2016_Algumas observações sobre a função dos monstros biológicos na nossa metafísica

May 24, 2017 | Autor: Elena Casetta | Categoria: Metaphysics, Philosophy of Biology, Realism (Philosophy), Theoretical Philosophy
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António Barbosa & Ricardo R. Santos Editores

questões de-vidas Fulgurações interdisciplinares Autores António Barbosa • Miguel Barbosa • Tatiana Marques Fernando Martins Vale • Alexandra Silva • Paulo Reis Pina Gil C. Santos • Vasco Barreto • Elena Casetta Joaquim Monteiro • Maria Estela Jardim • Ricardo R. Santos

Centro de Bioética da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa 2016

ÍNDICE

Introdução

011

I. BIOÉTICA O agir responsável: para uma ética da responsabilidade em saúde António Barbosa

015

Ética nos ensaios clínicos em países em desenvolvimento Miguel Barbosa

037

Para além da miopia cultural: o desafio da imaginação bioética Tatiana Marques

061

Mitos terapêuticos e escolha informada Fernando Martins Vale

079

Eu, o hospedeiro e o outro. Fenomenologia dos transplantes de órgãos Alexandra Silva

191

Vulnerável estou, humano sou. Do vulnus no contexto da saúde Paulo Reis Pina

111

II. FILOSOFIA, BIOLOGIA & MEDICINA O significado filosófico da ‘Teoria dos Sistemas em Desenvolvimento’ na biologia Gil C. Santos O mistério da epigenética Vasco Barreto Algumas observações sobre a função dos monstros biológicos na nossa metafísica Elena Casetta O binómio visão-cérebro Joaquim Monteiro A fotomicrografia e a prática médica do século xix ao início do século xx Maria Estela Jardim A vida não é aqui Ricardo R. Santos

135 161

173 187 193 213

Algumas observações sobre a função dos monstros biológicos na nossa metafísica Elena Casetta

Resumo. Neste ensaio tomar-se-á em consideração alguns tipos de monstros biológicos, partindo da ideia clássica de que os monstros são fenómenos naturais cuja função seria avisar os seres humanos. A finalidade é ilustrar de que modo tais entes nos levam a discutir o conceito de espécie e o de indivíduo típicos da nossa relação diária com o mundo – poderíamos dizer, da nossa «metafísica de senso comum» –, proporcionando algumas ideias para reflectirmos sobre a escolha entre realismo e irrealismo relativamente à presença, ou ausência, de uma estrutura da realidade independente da nossa mente e das nossas teorias.

Quod moneat voluntatem deorum A função dos monstros, já na raiz do nome – do latim, mŏnēre, advertir –, é comunicar a vontade dos deuses: «quod moneat voluntatem deorum», nas palavras do gramatista latino Sexto Pompeio Festo1. Geralmente, na literatura clássica a palavra «monstro» é usada para indicar um «fenómeno não natural através do qual os deuses avisam os homens» (Lenfant, 1999, p.198). Aristóteles provavelmente foi o primeiro a olhar para os monstros de modo científico, visto que no De generatione animalium (767a35-767b9) usa a palavra «teras», «monstro», para descrever casos reais de anomalias físicas ou deformidades. Chama a atenção sobretudo para casos em que a progénie difere de modo evidente dos pais e, no que diz respeito aos humanos, realça que isso pode ocorrer de duas maneiras: quando uma criança é muito diferente de quem a gerou; quando uma pessoa não se parece com um ser humano (assemelhando-se talvez a um organismo de outra espécie). Em ambos os casos, seriam monstros, isto é, organismos que se afastam do tipo natural, onde por tipo se entende, em Platão a ideia, e em Aristóteles a essência. Para o pensamento tipológico (typological thinking, é assim que o biólogo evolucionista e sistemático Ernst Mayr o designa, contrapondo-o ao populational thinking 1

Cit. in Van Delft (1976, p.11).

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típico da teoria darwiniana), por detrás da variabilidade observável dos organismos haveria um número limitado de tipos discretos, fixos e imutáveis. Indubitavelmente, o pensamento tipológico tem as suas raízes nos primeiros esforços que o homem primitivo fez para classificar em categorias a espantosa diversidade da natureza. O eidos de Platão é a codificação formal desta forma de pensamento. Segundo o pensamento tipológico, há um número limitado, fixo, imutável de ‘ideias’ por detrás da variedade observada e o eidos (ideia) é a única coisa fixa e real, porque a variabilidade observada não tem maior realidade do que a forma de um objecto projectada na parede de uma caverna. (Mayr 1959, p.2)

A versão do pensamento tipológico que aqui nos interessa tratar é uma variante de inspiração aristotélica, diferente da que foi proposta por Mayr. Vejamo-la sucintamente2. Segundo esta variante, cada organismo é caracterizado pelas suas propriedades e definido, quanto à sua natureza, pelo seu tipo ou espécie de origem. As propriedades são características contingentes: um carvalho poderá ter folhas lobuladas ou dentadas, ser frondoso ou despido de folhas, ter bolotas ou não, ter dois metros ou quinze. Contudo, qualquer que ele seja, um certo carvalho será sempre o mesmo carvalho em todos os processos de mudança, isto é, ficará o mesmo apesar da variação no tempo; além disso, exemplares diferentes de carvalho poderão gozar de propriedades diferentes – um será mais alto, o outro mais baixo, um dará mais flores, etc. – mesmo continuando todos a ser carvalhos. Ser carvalho – o tipo de origem –, na visão aristotélica é uma propriedade que um certo organismo não pode perder: se esse organismo não fosse um carvalho, não seria o que é e, por conseguinte, muito simplesmente não seria. Além disso, os tipos organizam a variedade: como dissemos, mesmo que possuam propriedades diferentes, os carvalhos assemelham-se uns aos outros mais do que aos gatos, por exemplo. Portanto, os tipos, ao dizerem o que é um certo objecto, e o que não é, classificam «em categorias a diversidade espantosa da natureza», delimitam o mundo de um certo modo em vez de outro: São moldes [cookie cutters] ontológicos. Estes percorrem o universo, por assim dizer, dividindo-o em seres humanos individuais, cães individuais, carvalhos individuais, etc. Como resultado, oferecem-nos os princípios para identificar, distinguir e contar os objetos. Desse modo, invocamos o género cão para identificar um cão específico, para distinguir diversos cães e para contar os cães […]; e quando fazemos isto, estamos meramente a recontar o modo como o género dividiu o mundo nas suas instâncias. (Loux, 1998, p.123)

No entanto, um ente pode afastar-se do tipo natural porque não se parece de todo com o que deveria ser um exemplar típico daquele tipo, ou porque parece 2

Cf. Varzi (2007b) e Loux (1998: cap.3).

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misturar em si mais do que um tipo, ou ainda porque parece não pertencer a nenhum tipo ou a mais do que um. Em casos destes, estaríamos na presença de uma anomalia, de uma deformidade, de um monstro. Quer sejam enviados pelos deuses, quer sejam fruto da evolução, os monstros – se aceitarmos a sua função clássica de conselheiros – estariam avisar-nos. Do quê? Uma resposta plausível poderia ser que a sua presença monstruosa nos torna conscientes, por contraste, de que o mundo possui uma estrutura própria. Mas em que medida é plausível o pensamento tipológico?

O pensamento tipológico entre biologia e metafísica do senso comum O pensamento tipológico e o essencialismo3 que o acompanha foram declarados uma «questão morta» em biologia (Sober, 1980, p.249), adaptando-se mal ao evolucionismo. «O essencialismo ingénuo [folk essentialism] – escreve Paul Griffiths (2002) – é simultaneamente falso e está em contradição com a concepção das espécies que Darwin nos deixou». A abordagem tipológica tinha sentido num contexto pré-darwiniano, mas não é aceitável num paradigma evolucionista, que oferece uma visão dinâmica e histórica das espécies: «as espécies são o resultado da especiação. Nenhuma característica qualitativa – morfológica, genética, ou comportamental – se considera essencial para a pertença a uma espécie» (Ereshefsky, 2010). Com Darwin tornou-se claro que os organismos pertencem a uma só espécie ou, em geral, a um tipo, não porque partilhem uma propriedade essencial qualquer, mas porque descendem do mesmo evento de especiação e fazem parte de uma linha de ascendente-descendente. As semelhanças são, quanto muito, sintomáticas de uma história comum. E não só: que a natureza esteja por si mesma dividida em unidades discretas, como pretende o pensamento tipológico, parece ser posto em causa pela gradação dos processos de especiação, já reconhecida por Darwin na Origem das Espécies. Todavia, o pensamento tipológico, embora tenha sido banido da concepção evolucionista das espécies, foi recentemente reproposto em novas formas que tentam conciliar essencialismo e evolucionismo4, mas sobretudo continua a caracterizar a nossa metafísica quotidiana5. Por outras palavras, «os seres humanos Muito resumidamente, por «essencialismo» entende-se aqui a ideia segundo a qual existiriam propriedades essenciais tais que um ente não pode deixar de possuir (ou, por outras palavras, possui em todos os mundos possíveis em que existe), que o fariam ser precisamente esse ente. Por exemplo, no caso das substâncias químicas, possuir uma certa estrutura molecular: H2O é uma propriedade essencial da água, ser incolor não (num mundo diverso do nosso a água poderia ser cor-de-rosa na condição de que, obviamente, o cor-de-rosa seja compatível com a estrutura H2O). Cf. Kripke (1980). 3

4

Como, por exemplo, a que defende Devitt (2008).

5

Por «metafísica quotidiana» ou «metafísica do senso comum» entendemos o conjunto de crenças e

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parecem predispostos a notar que os membros de um género biológico têm uma essência escondida que permanece a mesma com as mudanças exteriores» (Gelman e Hirschfeld, 1999). Que se trate de uma posição metafísica e não estritamente científica, parece confirmar-se não só porque, como nota o linguista George Lakoff, enquanto hipótese científica seria inconciliável com o conceito de espécie pretendido pela biologia evolucionista, isto é, com «o corpo de conhecimento científico mais amplamente documentado da época moderna»; mas também porque «nenhuma evidência empírica se deu em favor da concepção segundo a qual os géneros naturais são definidos juntamente por condições necessárias e suficientes acerca dos seus membros» (Lakoff, 1988, pp.126-7). Uma metáfora que se tornou comum entre os filósofos da biologia para expressar a imagem do mundo natural legada pelo pensamento tipológico, que dá forma à nossa metafísica do senso comum, é a que se encontra no Fedro de Platão, onde se pede que «se saiba dividir [os entes] segundo as Ideias, com base nas articulações que têm por natureza, tentando não causar rupturas, como costuma fazer um mau carniceiro» (265e). A metáfora, que nasceu com objectivos diferentes – isto é, explicar o método dialético –, ilustra a ideia segundo a qual o mundo estaria por si mesmo estruturado segundo articulações naturais, totalmente independentes das nossas teorias e classificações. Essas articulações, segundo as quais o bom carniceiro (a pessoa que trincha as carnes durantes os banquetes) e, fora da metáfora, o bom taxinomista, deveriam cortar a carne prestando atenção a «não causar rupturas», marcariam tipos, ou géneros, naturais. Todavia, parece haver excepções neste mundo platónico ordenado, isto é, parece haver certos entes que se afastam dos tipos ou géneros naturais e que, portanto, com a sua mera existência (ou enquanto reconhecidos) qua monstros, testemunhariam, pelo contrário, a presença dessas articulações naturais ou, por outras palavras, mostrariam que o mundo natural possui uma estrutura independentemente da actividade organizadora dos nossos sistemas cognitivos, da nossa linguagem e das nossas teorias. A ideia pela qual os monstros seriam excepções num mundo vivo estruturado articuladamente em tipos naturais não parece ser completamente verdade, se abandonarmos o preconceito (bias) que nos leva a atribuir aos vertebrados um valor exemplar injustificado e a pensar que a grande variedade da vida se reduz a organismos totalmente parecidos connosco, sendo que na realidade constituem uma minoria, pois as características não são representativas a não ser dos próprios vertebrados (Wilson, 1999; Hull, 1992). Num horizonte mais amplo, descobriremos que a vida se apresenta em formas monstruosas, igual ou até mais frequentemente do que se apresenta nas formas consideradas «normais». concepções não científicas (que possivelmente mas não necessariamente precedem ou levam a concepções científicas) relativas à natureza do mundo externo e à sua eventual estrutura, composição e leis de funcionamento. Cf. Varzi (2007a) e Hobbs et al. (1987). Para um tratamento mais amplo deste ponto, cf. Casetta (2009).

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Monstros biológicos No mundo natural lidamos com diversos tipos de monstros. Gostaria de abordar, muito brevemente, duas grandes categorias, híbridos, quimeras e organismos geneticamente modificados (OGM), por um lado, e clones e mosaicos intraespecíficos, por outro. Os membros da primeira categoria parecem ultrapassar as articulações naturais de que falámos, levando-nos a interrogar sobre as fronteiras entre os «tipos». Pelo contrário, os segundos parecem pôr em discussão a nossa própria concepção de organismo, isto é, daqueles entes «portadores» dos tipos – ou identificados por eles – segundo a concepção de raízes aristotélicas acima delineada. Para tomarmos consciência de que estes são (se consideram), precisamente os monstros da nossa biologia, pensemos, por exemplo, na origem do termo Quimera, o ser monstruoso cantado por Homero, que era «leão a cabeça, o peito cabra, e dragão / a cauda; da boca chamas horríveis / vomitava de fogo» (Ilíada VI, 180-184); ou na raiz da palavra híbrido, a mesma do grego ybrizein, exceder os limites justos, ser desmesurado. Ou então nas metáforas que povoam a linguagem da divulgação científica, tais como o termo frankenfood para indicar os alimentos modificados geneticamente. Ou ainda, recordem-se os cenários distópicos de Brave New World de Aldous Huxley, onde a clonagem se torna forma eugénica de controlo social. Híbridos, quimeras, OGM. Sabe-se já desde a Antiguidade que muitas plantas produzem uma prole híbrida, isto é, que deriva do cruzamento de organismos pertencentes a espécies diferentes. Mas foi no final do século xviii que, no domínio da agricultura, se começaram a fazer cruzamentos de grande escala entre variedades ou espécies. Ao mesmo tempo, com a Flora Britânica de James E. Smith de 1800, os naturalistas alargaram as suas pesquisas aos híbridos espontâneos, descobrindo que em muitas classes de plantas a hibridação espontânea é um fenómeno decididamente mais comum do que se pensava6. Carvalhos, salgueiros, eucaliptos, acácias estão, por exemplo, particularmente predispostos a formar bosques de híbridos e a hibridação ocasional é extremamente frequente entre as plantas que dão flor (Stebbins, 1959, p.234). Para as orquídeas, por exemplo, a hibridação é a regra: de facto, estima-se que os cruzamentos realizados nos últimos 150 anos foram mais de 110 mil, alguns provenientes do cruzamento até de vinte espécies parentais diferentes pertencentes a nove géneros diferentes7. E a suposta «cruzamento» dos tipos não diz respeito só aos vegetais. Entre os exemplos de hibridação espontânea que melhor se conhecem há um género de gastrópodes terrestres A tal ponto que hoje a hibridação é considerada uma forma de especiação bastante frequente, em especial entre as plantas, quer na realização de novas espécies em laboratório, quer na natureza (Ridley, 2004, pp.405ss). 6

Veja-se a página de Internet da Royal Horticultural Society: http://www.rhs.org.uk/plants/registration_orchids.asp 7

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(Cerion) cujas populações de híbridos são comuns nas ilhas das Caraíbas. Entre os insectos produziram-se centenas de híbridos, em especial nas borboletas e falenas e na Drosophila8. Pelo contrário, entre os vertebrados são os peixes (e especialmente os peixes de água doce) a apresentar a maior proporção de híbridos espontâneos reconhecidos nos animais, e também entre os pássaros os híbridos são frequentes: os gansos, por exemplos, apresentam 20 exemplos (documentados) de híbridos espontâneos. Também os mamíferos hibridam: o exemplo mais conhecido é sem sombra de dúvida a mula, mas para os criadores a hibridação entre os mamíferos domésticos e os seus «parentes» selvagens (cão x coiote, bisonte x iaque) foi desde sempre uma prática comum (Stebbins, 1959). É possível distinguir as quimeras biológicas dos híbridos. No processo que leva ao nascimento de quimeras biológicas, contrariamente aos híbridos, não se dá nenhuma meiose e, por conseguinte, os patrimónios genéticos dos pais – pertencentes a espécies diferentes – permanecem separados e simultaneamente presentes no mesmo indivíduo. A existência de quimeras biológicas foi reconhecida já em meados do século xvii, com a descoberta do Citrus × aurantium bizzarria9, em que se encontram presentes, ao mesmo tempo, folhas, flores e frutos idênticos aos da laranjeira e aos do limoeiro, além de frutos compostos, com os dois tipos fundidos ou pelo menos presentes em simultâneo na mesma fruta, em proporções e modalidades diferentes. Hoje as quimeras vegetais povoam os nossos quintais com muitas begónias e crisântemos e de violetas africanas, como no caso dos Pelargonium variegados. Com a revolução biotecnológica – e aqui chegamos a um terceiro tipo de entes considerados talvez ainda mais monstruosos do que os que já foram tratados – tornou-se possível intervir directamente em porções precisas do DNA. Entre os animais transgénicos que foram produzidos em laboratório acham-se coelhos, ratos, peixes, porcos, ovelhas e frangos, que se obtiveram por inserção (regra geral, através de microinjeção no embrião) de material genético proveniente, por exemplo, do ouriço-do-mar, da Drosophila, do rato. Parece que o primeiro rato-quimera interespecífico foi realizado em 1973, quando se produziu a primeira quimera ratazana rato (Gardner e Johnson 1973). Outros exemplos de quimeras interespecíficas obtidas com sucesso em laboratório foram os de entre cabra e ovelha e entre Bos taurus e Bos indicus10. Mosaicos intraespecíficos e clones. A segunda grande categoria de monstros que estamos a delinear inclui, pelo contrário, mosaicos intraespecíficos e organismos clonais. Se quiséssemos equiparar os mosaicos intra-específicos com um monstro Patterson e Stone (1952) citam uma centena de combinações híbridas de Drosophila produzidas em laboratório e conhece-se também um exemplo de híbrido espontâneo (Mulleri x Aldrichi). 8

9

Tilney-Basset (1989: cap.1).

10

Vejam-se, respectivamente, Fehilly et al. (1984) e Summer et al. (1983).

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literário, a Criatura sobre a qual o jovem e ambicioso Victor Frankenstein concentrou os seus esforços seria a imagem ideal. De facto, apesar de a realização de Frankenstein se ter revelado um fracasso para o seu criador, não é difícil, pelo contrário, encontrar na natureza organismos vivos muito bem adaptados que são mosaicos intraespecíficos, isto é, cujas células não apresentam todas o mesmo mapa cromossómico. Na prática, tal como sucedeu com o monstro narrado por Mary Shelley, encontram-se presentes em simultâneo muitos DNA diferentes, um para cada possuidor das partes que o compõem, algo parecido com o que acontece em alguns organismos vivos. Por exemplo, as células dos gatos cor de «carapaça de tartaruga» são geneticamente distintas umas das outras, dado que subsistem diferenças de inativação do cromossoma x, diferença que se exprime, a nível fenotípico, na coloração diversa. Mas há também uma acepção mais ampla segundo a qual se poderia plausivelmente afirmar que todos nós, humanos, somo organismos geneticamente não-uniformes. De facto, por um lado, podemos continuar a seguir a nossa concepção de senso comum e distinguir-nos nitidamente das bactérias simbiontes que povoam o nosso intestino. Por outro lado, todavia, nascemos com as nossas bactérias, que nos povoam por toda a vida e sem as quais muito simplesmente não sobreviveríamos. Acrescente-se a isto que o número de células bacterianas presentes num ser humano é maior em relação às células humanas – mesmo que a biomassa, obviamente, seja inferior. Se abandonarmos a nossa concepção de senso comum, poderia parecer que mais do que sermos indivíduos separados, nós e as nossas bactérias, somos um único indivíduo, em mosaico, justamente. Por fim, no mundo natural podemos encontrar uma riquíssima variedade de organismos clonais. Às vezes trata-se de organismos espacialmente ligados: morangos e cogumelos, nos casos mais comuns. As plantinhas de morango, por exemplo, estão ligadas à planta-mãe, de onde se originam de modo assexuado, através de ramos laterais, os estolhos, que quando são cortados tornam as plantinhas independentes. Outras vezes, trata-se de organismos que não estão espacialmente ligados. É o caso dos afídios e dos dentes-de-leão (Janzen, 1977). Detenhamo-nos brevemente sobre estes. As muitas plantinhas de dente-de-leão que podemos ver num prado têm todas provavelmente o mesmo DNA, isto é, fazem parte do mesmo clone, dado que os dentes-de-leão se reproduzem principalmente por apomixia, uma forma de reprodução que implica a formação de sementes geneticamente idênticas à planta-mãe. Todavia, ocasionalmente, podem reproduzir-se de forma sexuada, dando assim origem a clones diversos. Se, porém, olharmos para os dentes-de-leão de modo, por assim dizer, «fenomenológico», veremos tantas plantinhas separadas, cada uma com a sua individualidade e a sua história, bastante curtas. Se, pelo contrário, observarmos as mesmas plantinhas com os olhos da selecção natural, isto é, se observarmos o seu DNA e seu fitness, provavelmente só veremos poucos e velhos indivíduos «monstruosos» espalhados no espaço. Como escreve Richard

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Dawkins (1982, p.254), nesta segunda perspectiva não poderemos contar mais do que três ou quatro dentes-de-leão – os clones, precisamente, ou seja, os grupos de plantinhas de dente-de-leão que possuem o mesmo DNA – que competem pelo território inteiro da América do Norte. Faremos agora algumas observações sobre a importância dos monstros para a nossa metafísica. Já se disse que os monstros provocam, aparentemente, uma crise no pensamento tipológico da metafísica do senso comum. Mas o que está em jogo poderia revelar-se até mais diferente do que se espera. De facto, se a metafísica do senso comum nos remete para um mundo como o que emerge da metáfora platónica acima referida, então o que os monstros estariam a pôr em causa é a presença de «articulações naturais», ou seja, a própria estrutura da realidade que é exterior às nossas mentes e às nossas teorias. Portanto, em última análise, os monstros levam-nos a reflectir sobre a escolha entre realismo e irrealismo relativamente à presença, ou não, de uma estrutura da realidade independente da nossa mente e das nossas teorias.

Os monstros entre realismo e irrealismo Como bem sabem as pessoas míopes – e quem o não é pode pensar em como se vê quando se abrem os olhos debaixo de água –, na sua visão os contornos do mundo perdem nitidez e, juntamente com eles, quando o defeito é muito grave, os objectos que dependem desses contornos. Pôr os óculos, restitui a nitidez aos objectos. Em suma, podemos dizer que, com ou sem óculos, um míope vê o mesmo mundo de dois modos diferentes (se formos realistas à la Ferraris11), ou então vê dois mundos diferentes (se formos irrealistas à la Goodman12). Acontece o mesmo quando pomos certos óculos conceptuais em vez de outros, quando adoptamos um quadro teórico de referência em vez de outro. Se olharmos para o mundo com os óculos da metafísica do senso comum, a descrição que dele obtivermos será provavelmente bastante diferente da que teríamos se tivéssemos posto um par de óculos diferentes, os da física ou os da biologia, por exemplo. Ainda, se com os óculos do senso comum contamos milhares de plantinhas de dentede-leão, com os da teoria evolucionista contamos apenas, por exemplo, quatro indivíduos. Com os óculos do senso comum, quando encontramos um organismo humano, tendemos a separar dele as células bacterianas, enquanto com os óculos da teoria imunológica – segundo a qual é um si próprio, isto é, está no interior dos limites do organismo em questão, tudo o que não desencadeia uma reacção Para Maurizio Ferraris (2001), o mundo exterior (exceptuando os objectos sociais) é independente – quanto à existência e à estrutura – dos esquemas conceptuais com que os representamos. 11

Para Nelson Goodman (1978) não há um mundo natural ao qual as versões, que se obtêm de certos esquemas conceptuais em vez de outros, fariam referência, ou seja, não se trata de diversas «versões» de um só mundo, mas sim de vários mundos, um para cada esquema conceptual. 12

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imunitária – contaremos provavelmente só um organismo. E ainda, se com os óculos da teoria da evolução vemos as fronteiras entre as espécies como sendo parcialmente convencionais (sendo o processo de especiação, como se dizia, um processo gradual), com os do senso comum, tipológico, veremos provavelmente os mesmos limites como sendo discretos, nítidos e definitivamente estabelecidos. Poder usar óculos diferentes não significa naturalmente que o mundo não existe, ou que existam muitos: mesmo quem é míope sabe, como é óbvio, que o mundo está lá, independentemente dos seus óculos e indiferente às suas crenças, percepções e teorias, como Achille Varzi explicitou várias vezes (2010). A questão é: somos capazes de olhar para o mundo a olho nu, sem necessariamente ter de escolher que óculos usar? Talvez não. É precisamente nesta pergunta e nas tentativas de lhe dar resposta que boa parte da metafísica é posta à prova, desta vez a dos filósofos. Como se disse, os monstros têm a ver com as articulações, com os limites. Ora, há dois modos possíveis de olhar para a sua presença. O primeiro (a) é o que indicámos na primeira secção: o facto de nós percebermos, conceptualizarmos, intuirmos, certos entes como sendo monstruosos seria já um testemunho da sua efectiva monstruosidade. Esta pode consistir, se nos basearmos nos casos examinados, ou na transgressão dos limites entre os tipos naturais, segundo a qual o mundo seria por si mesmo estruturado (híbridos, quimeras, OGM), ou no desvio relativamente à nossa classificação comum dos limites dos indivíduos (mosaicos e clones). Portanto, para (a) haveria um mundo articulado de uma certa maneira, que é exactamente o que as nossas capacidades cognitivas nos dão. De tal forma que tudo o que não entra nessa estrutura é um monstro, ou seja, algo que – repugnando-nos – nos adverte da presença e da robustez da sua estrutura. Como é óbvio, pertencendo à metafísica do senso comum, trata-se de uma posição extremamente intuitiva. Há, porém, um segundo modo (b) de olhar para os monstros, cuja plausibilidade gostaria de discutir. Para (b), os monstros contestariam a adequação dos óculos da metafísica do senso comum e do pensamento tipológico, e avisar-nosiam da possibilidade de a nossa concepção comum poder não ser a única, nem a mais adequada a dar conta do mundo, o mundo vivo, neste caso. Híbridos e quimeras convidam-nos a discutir os limites entre espécies ou outras categorias taxinómicas13; mosaicos e clones, por seu lado, advertem-nos de que os óculos da metafísica descritiva poderiam não ser os únicos, quando se trata de decidir que entes devem ser considerados indivíduos. Que não se trata, como se mostrou na secção anterior, de raras exceções, poderia ser, para o defensor de (b) um primeiro argumento a favor da sua posição: se os entes que transgridem o mundo tipológico são muitos e as transgressões várias, talvez então esses limites que se ignoram não sejam tão independentes de nós como a metafísica do senso comum gostaria que fossem. Mas este é apenas um argumento prima facie; debrucemo-nos um pouco mais sobre ele. 13

Cf. Casetta (2009).

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Podemos distinguir uma versão fraca e uma versão forte de (b). Na versão forte (b’) a existência de monstros como transgressores de limites colocaria em causa a própria existência desses limites; na versão fraca (b’’), pelo contrário, colocaria em causa a naturalidade desses limites. Encontram-se indícios de (b’)14 em boa parte da discussão bioética contemporânea15, visto que muitos dos argumentos avançados contra a licitude de práticas como a realização de organismos-quimera se baseia precisamente na existência (e na não transgressão) das articulações naturais de cariz tipológico. Para (b’’), pelo contrário, os monstros, mais do que colocarem em causa a existência dos limites em consideração, colocariam em causa o fundamento da distinção entre limites bona fide, isto é, os limites cuja existência seria independente da nossa atividade teórica e cognitiva em sentido lato, e limites fiat, que, ao invés, não existiriam se nós não existíssemos. Os monstros nunca gozaram de boa fama e um defensor de (a), seguro da intuição partilhada pela sua posição, poderia pedir ao defensor de (b) que o convencesse da superioridade da sua opção, em nada satisfeito com o argumento prima facie acima mencionado. Poderia objectar que seria perfeitamente legítimo aceitar (a), baseado, justamente, no facto de que parece responder melhor às nossas intuições, por exemplo, dando conta da sensação de «anomalia» que normalmente acompanha os monstros. E, se os limites entre tipos naturais dependem de certa maneira de nós, poderia perguntar ao defensor de (b) – tanto na sua versão fraca quanto na sua versão forte – porque é que há organismos, diferentes de nós, que não os respeitam – os monstros – mas também organismos, diferentes de nós, que, pelo contrário, os respeitam. Um exemplo concreto para esclarecer este último ponto. O critério de interfecundidade permite reconhecer os organismos pertencentes a uma certa espécie com base no facto de estes poderem unir-se dando origem a uma prole fértil, não o podendo fazer com organismos de espécie diferente. Mas, sem dúvida, é um critério de aplicação limitada, não se aplica às espécies que se reproduzem assexuadamente, e é muitas vezes transgredido (hibridação). Tendo em conta estes limites, é igualmente um critério bastante usado pelos zoólogos, com um certo sucesso: em condições «normais» (isto é, de nichos ecológicos estáveis, em estado de liberdade, etc.), os animais acasalam com os da mesma espécie, mostrando reconhecer limites não definidos por nós. Da mesma forma, apesar de ser aceitável reconhecer a noção de indivíduo biológico como sendo relativa a uma teoria, permanecem, todavia, vínculos materiais que não parecem facilmente reconduzíveis à nossa atividade cognitiva. Por exemplo, é bastante plausível defender com (b) que a noção de «indivíduo biológico» depende da escolha, a montante, de um quadro teórico de referência, como mostra o caso dos dentes-deleão. Se aceitarmos que este quadro teórico é a nossa melhor teoria do mundo da vida, reconheceremos como indivíduos biológicos os entes sobre os quais a seleção 14

Para uma tentativa de defesa desta posição, cf. Casetta (2009).

15

Cf., por exemplo, Robert & Baylis (2003) e Sandler (2012).

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natural age. Contudo, da mesma forma e em paridade de direitos, objectaria o defensor de (a), poder-se-ia afirmar que a seleção natural age precisamente sobre os indivíduos, ou, por outras palavras, que existem limites bem precisos entre certos entes individuais (que podem não corresponder aos que nos legou a nossa metafísica descritiva), e que o facto de a seleção natural – que não depende, como é óbvio, de nós – agir sobre esses entes e não sobre outros testemunha a robustez desses confins. Indicar para que lado da medalha olhar, porquê adoptar uma posição e não a outra, não é o objetivo deste contributo que deveria, porém, ter ilustrado por que razão os monstros podem desempenhar, nesta escolha, um papel absolutamente não secundário. (Tradução do Italiano por Maria da Graça Gomes de Pina)

Agradecimentos Uma primeira versão deste texto, substancialmente diferente, foi publicada em Mettere a fuoco il mondo. Conversazioni sulla filosofia di Achille Varzi (E. Casetta & V. Giardino Eds.), Isonomia, Vol. IV: 25-36. A autora agradece a Silvia Di Marco, Olga Pombo, Ricardo Santos e Achille Varzi os preciosos comentários e sugestões a uma versão anterior deste artigo. Este contributo faz parte do projeto BIODECON. Which Biodiversity Definition for Biodiversity Conservation? (PTDC/IVCHFC/1817/2014). Referências bibliográficas Casetta, E. (2009), La sfida delle chimere. Milano: Mimesis. Dawkins, R. (1989), The Extended Phenotype. Oxford: Oxford University Press. Devitt, M. (2008), Resurrecting Biological Essentialism, Philosophy of Science 75: 344-382. Ereshefsky, M. (2010), Species, The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Spring 2010 Edition), E.N. Zalta (a c. di), URL = . Fehilly, C.B., Willadsen, S.M. & Tucker, E.M. (1984), Interspecific Chimaerism between Sheep and Goat, Nature 307:634-36. Ferraris, M. (2001), Il mondo esterno. Milano: Bompiani. Gardner, R.L. & Johnson, M.H. (1973), Investigation of Early Mammalian Development Using Interspecific Chimaeras Between Rat and Mouse. Nature New Biology 246:86-89.

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