2016b, A Imperatriz em 2014: a coleção do Pacífico no Museu Nacional do Rio de Janeiro e as lutas contemporâneas pela indigenização da Columbia Britânica, Canadá

May 22, 2017 | Autor: Nuno Porto | Categoria: Colections, Colonialism and Imperialism
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Descrição do Produto

MUSEU HISTÓRICO NACIONAL

D. LEOPOLDINA E SEU TEMPO:

sociedade, política, ciência e arte no século XIX

RIO DE JANEIRO | 2016

Presidente da República

Organização Aline Montenegro Magalhães Álvaro Marins Rafael Zamorano Bezerra

Michel Temer Ministério da Cultura Ministro Roberto Freire Instituto Brasileiro de Museus (IBRAM) Presidente Marcelo Mattos Araújo

Assistência Editorial André Amud Botelho Dayane Monique da Silva Paes Editoração BECONN | Produção de Conteúdo Daniela Risson Zanquiel Tortato

Museu Histórico Nacional Diretor Paulo Knauss Livros do Museu Histórico Nacional Editor Paulo Knauss D. Leopoldina e seu tempo: sociedade, política, ciência e arte no século XIX

Coordenação Editorial e Copidescagem BECONN | Produção de Conteúdo Guilherme Lohn Zanquiel Tortato Revisão (Português) BECONN | Produção de Conteúdo Daniela Risson

Publicação Museu Histórico Nacional (MHN)

Tradução (Inglês) BECONN | Produção de Conteúdo Érika Souza Guilherme Lohn Nicolle Varella Felippe Marina Castro Soares Diagramação BECONN | Produção de Conteúdo Érika Souza Imagem da Capa “Sessão do Conselho de Estado”. Georgina de Albuquerque, 1922 Impressão BECONN | Produção de Conteúdo Tiragem 1.000 exemplares

M986

Museu Histórico Nacional D. Leopoldina e seu tempo: sociedade, política, ciência e arte no século XIX/ Aline Montenegro Magalhães; Álvaro Marins; Rafael Zamorano Bezerra (coordenação). Rio de Janeiro: Museu Histórico Nacional, 2016. 348 p. : il.; 22,5 cm. Livro baseado no Seminário Internacional D. Leopoldina e seu tempo: sociedade, política, ciência e arte no século XIX, realizado de 14 a 16 de outubro de 2014. ISBN: 978-85-67853-18-5 1. Imperatriz Leopoldina. 2. Brasil Colônia. 3. História. 4. Memória. 5. História econômica. 6. História Política. 7. História Militar 8. História Social. I. D. Leopoldina e seu tempo: sociedade, política, ciência e arte no século XIX. II. Série Livros do Museu Histórico. CDU 069 Ficha elaborada pela bibliotecária Manuella Souza Ouriques - CRB 14/1533 As opiniões e conceitos emitidos nesta publicação são de inteira responsabilidade de seus autores, não refletindo necessariamente o pensamento do Museu Histórico Nacional. É permitida a reprodução, desde que citada a fonte e para fins não comerciais.

Sumário APRESENTAÇÃO D. Leopoldina e seu tempo: sociedade, política, ciência e arte no século XIX

Pelo povo ao Rei, o poder é dado: a linguagem constitucionalista dos panfletos manuscritos da Independência

Paulo Knauss página 7

Marcello Basile José Murilo de Carvalho Lucia Maria Bastos Pereira Neves

ENTRE DOIS MUNDOS

página 85

A imperatriz Leopoldina entre o público e o privado

COLEÇÕES, CIÊNCIA E ARTE

Maria de Lourdes Viana Lyra

Rugendas na Fazenda Mandioca: uma unidade de colonização no roteiro do artista-viajante Andrea Roca

página 9

Da Áustria ao Brasil: as diversas faces de D. Leopoldina

página 103

Paulo Rezzutti página 28

D. Leopoldina e a Arte no Brasil Paulo Knauss

A entrada de uma Habsburgo-Lorena na Corte Portuguesa: A arquitetura de festa como auspício de transformação

página 121



Maria Pace Chiavari

O colecionamento de objetos indígenas no tempo de Leopoldina

página 38

Analucia Thompson

NO TEMPO DA INDEPENDÊNCIA DO BRASIL

página 135

Leopoldina e a música Rosana Lanzelotte

D. Leopoldina, a Independência e o Império do Brasil: projetos, expectativas e melancolia de uma princesa na América Andréa Slemian página 53

D. Leopoldina: uma princesa entre as ciências e a política na Corte do Rio de Janeiro (1817- 1826) Lucia Maria Bastos Pereira Neves página 70



página 149

PRESENÇA CONTEMPORÂNEA A Imperatriz em 2014: a coleção do Pacífico no Museu Nacional do Rio de Janeiro e as lutas contemporâneas pela indigenização da Columbia Britânica, Canadá Nuno Porto página 166

Translations Imagens de duas Exposições: Exibindo a Coleção Etnográfica da Missão Austríaca para o Brasil

PRESENTATION

Claudia Augustat

D. Leopoldina and her time: society, politics, science and art in the nineteenth century Paulo Knauss page 216

página 179

Ruas, ferrovias e escola de samba: as memórias da Imperatriz

BETWEEN TWO WORLDS

Cêça Guimaraens página 190

O que pode ter matado D. Leopoldina Valdirene do Carmo Ambiel Luiz Roberto Fontes

The Empress Leopoldina between the public and the private Maria de Lourdes Viana Lyra page 217



página 200

From Austria to Brazil: the diverse faces of d. Leopoldina Paulo Rezzutti page 228

Seminário Internacional do Museu Histórico Nacional 2014 D. LEOPOLDINA E SEU TEMPO: sociedade, política, ciência e arte no século XIX

The entry of a Habsburg-Lorraine in the Portuguese Court The festivity architecture as auspice of transformation Maria Pace Chiavari page 234

página 214

IN THE TIME OF THE INDEPENDENCE OF BRAZIL D. Leopoldina, Independence, and Empire in Brazil: projects, expectations, and melancholy of a princess in America Andréa Slemian page 244 D. Leopoldina: a princess between science and politics. In the Court of Rio de Janeiro (1817-1826) Lucia Maria Bastos Pereira Neves page 254 By the people to the King, power is given: the constitutional language of the manuscript pamphlets of Independence Marcello Basile José Murilo de Carvalho Lucia Maria Bastos Pereira Neves page 263



COLLECTIONS, SCIENCE AND ART Rugendas at the Mandioca Farm: A settlement unit in the artist-traveler script Andrea Roca page 275 D. Leopoldina and the art in Brazil Paulo Knauss page 285 The collection of indigenous objects in the time of Leopoldina Analucia Thompson page 294 Leopoldina and the music Rosana Lanzelotte page 302 CONTEMPORARY PRESENCE The Empress in 2014: The Pacific’s collection in the National Museum of Rio Janeiro and the Contemporary struggles for indigenization in British Columbia, Canada Nuno Porto page 314 Pictures of two Exhibitions: Displaying the Ethnographic Collection of the Austrian Mission to Brazil Claudia Augustat page 322 Streets, Railroads and Samba Schools: The Empress’s memories Cêça Guimaraens ppage 330 What may have killed D. Leopoldina Valdirene do Carmo Ambiel Luiz Roberto Fontes page 336 2014 International Seminar (2014). D. LEOPOLDINA AND HER EPOCH: Society, politics, science e art in the nineteenth century page 345

NUNO PORTO

A Imperatriz em 2014: a coleção do Pacífico no Museu Nacional do Rio de Janeiro e as lutas contemporâneas pela indigenização da Columbia Britânica, Canadá Nuno Porto *

O

fio condutor deste texto é constituído por dois fragmentos da Coleção do Pacífico, atualmente em exposição pública no Museu Nacional do Rio de Janeiro. O primeiro foi oferecido ao Real Museu do Rio de Janeiro em 1821. O segundo data de 1884 e resulta de um intercâmbio entre a instituição do Rio de Janeiro e o Museu de Etnologia de Berlim. Este conjunto convoca efeitos contemporâneos de ações da Imperatriz Leopoldina, que são vividos, hoje, na Costa Noroeste do Canadá e suscita o argumento que pretendo desenvolver ao longo das páginas que se seguem, recorrendo a uma abordagem etnográfica. É um argumento pouco linear segundo o qual as coleções museológicas tendem a ser vistas, no presente, como históricas, não apenas

* Doutor em Antropologia Social e Cultural (2002) pela Universidade de Coimbra, Portugal. A sua tese explorou a articulação entre colonialismo, ciência e cultura de museus e a forma como se fundiram no desenvolvimento do Museu do Dundo e dos seus proprietários, a Companhia de Diamantes de Angola. Entre 2006 e 2012 foi membro da Comissão para a reabertura do Museu do Dundo, liderado pelo Ministério da Cultura de Angola. Durante esse período, desenvolveu o website do arquivo de material da Companhia de Diamantes de Angola em sede na Universidade de Coimbra www.diamangdigital.net . [email protected] Entre 1991 e 2011 lecionou temas teóricos relacionados com a antropologia social, cultura material, museologia crítica, cultura visual e estudos africanos na Universidade de Coimbra. Atualmente está associado ao Departamento de História da Arte e Artes e Teoria Visuais da University of British Columbia, Vancouver, Canadá, onde é Curador das Coleções da América Latina e África. Em 2013 foi Professor convidado do Programa de Pós-Graduação em Memória Social da Universidade Federal, do estado do Rio de Janeiro UNIRIO, no Brasil. Da sua obra publicada destacam-se: Modos de Objectificação da Dominação Colonial – O caso do Museu do Dundo, 1940-1970 (Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2009); “From Exhibiting to Installing Ethnography: Experiments at the Museum of Anthropology of the University of Coimbra (Portugal) 1999-2005”, in Basu, Paul & Macdonald, Sharon (eds.), Exhibition Experiments (N.Y.; London: Blackwell Publishing, 2007), pp. 175-196; (co-ed. with Mary Bouquet) Science Magic and Religion, The Ritual Processes of Museum Magic, (Oxford; N.Y.: Berghahn Books, 2005); “Under the Gaze of the Ancestors – Photographs and performance in Colonial Angola”, in Edwards, Elizabeth & Hart, Janice, (eds.) Photographs, Objects, Histories, (London; New York: Routledge, 2004), pp.: 113-131.

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porque elas remetem para um tempo passado, mas, sobretudo, porque materializam um olhar contemporâneo sobre a continuidade entre o passado e o presente. No caso da primeira doação neste acervo oriundo da Costa Noroeste do Pacífico, ela nos remete para uma configuração em que a incerteza política vivida no Brasil em 1821 não obstava à manifestação de interesse numa aliança com vista à obtenção do apoio internacional em suporte a pretensões territoriais hoje desaparecidas: as pretensões da Rússia em ocupar a Costa Noroeste do Pacífico, cujo comércio naval os russos haviam parcialmente monopolizado recorrendo ao uso da força. O Canadá não existia ainda e, do ponto de vista dos vários grupos das, hoje, constitucionalmente consagradas como Primeiras Nações canadenses, este é um período marcante na ocupação estrangeira dos seus territórios, ocupação essa que está praticamente consolidada aquando da segunda doação, em 1884. Em segundo lugar, argumentarei que a relevância contemporânea destas coleções, inscreve a cultura – ou uma ideia de cultura – nas reclamações políticas em curso hoje, já que na província canadense da Columbia Britânica, não tendo havido tratados com as populações autóctones, a terra é hoje considerada, do seu ponto de vista, como sendo “não cedida”, isto é, ilegitimamente ocupada por estrangeiros e, portanto, passível de ser retornada aos seus proprietários legítimos, ou seja, às Primeiras Nações desta área. Finalmente, argumento que, do ponto de vista das instituições indígenas da Costa Noroeste, aquilo que os museus qualificam – a-problematicamente – como “coleções”, conjuntos de meros artefatos – são coisas que integram práticas tradicionais de ratificação de direitos sobre bens, pessoas e recursos e podem ser entendidos de várias formas, todas elas pouco permeáveis à ideia de coleção. As “coleções”, por outras palavras, incluem “artefatos” que – do ponto de vista dos seus produtores e herdeiros culturais – são entidades convocadas a prestar testemunho, prática que constitui o centro da instituição fulcral na reprodução social na Costa Noroeste, o potlatch. Pelo que, deste lado do Pacífico, aquilo a que os museus chamam de “coleções históricas” tem vindo a ser valorizado por conter objetos que comprovam um princípio básico da reclamação política atual, a saber, que as primeiras nações são as legítimas proprietárias da terra. Irei desenvolver este argumento em três movimentos. Começo por explorar a primeira doação – a doação russa de 1821, especulando sobre o contexto em que ela ocorre. Prosseguirei detalhando a transformação do contexto de relações em que ocorre a segunda doação de 1884. Finalmente, deter-me-ei na descrição do envolvimento destes objetos no renascimento das instituições políticas na Costa Noroeste do Pacífico no presente. 1. Há dois anos atrás, em 2013, consultando a página oficial da Exposição de Etnologia de “outras Culturas” do Museu Nacional do Rio de Janeiro (MNRJ), um dos objetos em evidência era

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uma “armadura” coletada em Vancouver1, onde presentemente trabalho. Segundo os curadores da Costa Noroeste a quem mostrei esta imagem, a peça – uma armadura Tlingit – era obviamente antiga, muito bem conservada e, na sua perspectiva, rara por essas duas razões. A peça torna-se tanto mais intrigante quanto, vista deste lado, é inesperada a sua localização: um museu no Brasil, portanto, quero dizer, fora das rotas coloniais do Império Britânico nas quais o Canadá se forjou. Estando eu a preparar uma curta estadia de dois meses no Rio de Janeiro, anotei a possibilidade de propor uma colaboração com o MNRJ que permitisse incorporar esta, e outras peças da Costa Noroeste eventualmente existentes na instituição, na plataforma digital desenvolvida com o propósito de disponibilizar coleções desta área dispersas por museus em diferentes partes do mundo2. Encontrar-me face a face, por assim dizer, com a armadura Tlingit na Sala do Pacífico do Museu Nacional, foi apenas o começo da parceria bem-sucedida que incluiu o levantamento documental da doação das peças ao Museu Nacional. Começarei por inquirir os materiais com o propósito de esboçar a configuração histórica em que ocorre a doação russa, partindo da carta de oferta dos catorze objetos e que, noto de passagem, exemplifica na perfeição um género universalmente consagrado pelo seu laconismo. Assinada pelo Vice - Consul da Rússia no Rio de Janeiro (o Consul propriamente dito, o Barão Grigori von Langsdorff, encontrava-se na Europa preparando a expedição ao interior do Brasil que se iniciaria no ano seguinte, em 1822) consiste numa: “Lista de vários objetos das Ilhas da contra costa da América do Norte, que ao Real Museu do Rio de Janeiro oferece o Capitão de Panafidin, da Corveta Russa Borodino”3. Comecemos por aqui: Zakhar Petrovich Panafidin – capitão da dita corveta – já não se encontrava no Rio quando a coleção foi entregue pelo vice-cônsul da Rússia ao Real Museu4.

1 http://www.museunacional.ufrj.br/exposicoes/etnologia/armadura, acessado a 3 de Abril de 2015 2 Refiro-me à Rede de Pesquisa Recíproca – Reciprocal Research Network em língua inglesa. Esta plataforma digital foi co-desenvolvida por representantes do grupo Musqueam, Stō:lo e Kwakwaka’wakw, e pelo Museu de Antropologia da Universidade da Columbia Britânica, com o objetivo de tornar digitalmente acessíveis e reclassificar objetos da Costa Noroeste dispersos por coleções de diferentes museus dentro e fora do Canadá. A rede é acessível no endereço: https://www.rrncommunity.org/login. Na sequência do projeto executado em parceria com o Museu Nacional do Rio de Janeiro, esta coleção do Pacífico é a primeira proveniente de um museu de língua não inglesa a integrar a rede. Gostaria de expressar os meus agradecimentos à equipe do MNRJ dirigida por João Pacheco de Oliveira, Professor Titular do Departamento de Antropologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro e responsável pela Curadoria Científica das Coleções Etnográficas do Museu Nacional; a Rita Cássio Santos, doutoranda do MNRJ; a Edmundo Pereira, Professor Adjunto do Departamento de Antropologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro; ao Setor de Museologia e Setor de Etnologia, em particular a Crenivaldo Veloso, Marco Aurélio Marques Caldas, Pedro Ernesto Correia Ventura e Rachel Correia Lima. Agradeço ainda a dedicação de Maria das Graças Freitas Souza Filho, M. Sc., responsável pela Seção de Memória e Arquivo – SEMEAR, e de Marcia Valéria de Souza, Conservadora – Restauradora, cuja preciosa ajuda permitiu localizar e consultar a documentação relacionada aos objetos. 3 Arquivo do Museu Nacional do Rio de Janeiro, Pasta 1, Doc. 6, 09/08/1821; CD: MU01- 0017/0018, DR. CO. A06 4 Agradeço ao José Milhazes a informação que gentilmente prestou sobre este oficial da marinha russa.

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A corveta – abro uns parênteses para introduzir alguns dados contextuais – é parte da frota da Companhia da América Russa, uma criação dos Romanov. Incentivada por Catarina II, a Grande, a ocupação da costa noroeste da América é consequência da “descoberta” pelos russos, entre 1728 e 1742, de um conjunto de ilhas e de porções territoriais vastas, a leste da península de Kamchatka – as Ilhas Aleutas e o Alasca. Quando Catarina ascende ao trono imperial russo em 1762, a ocupação programática desse território não é simples de gerir devido às várias frentes em que a Rússia está envolvida. Não obstante, é sob o seu reinado que parte das ilhas Aleutas são anexadas em 1766, ano em que é recomendada a anexação de toda a costa Noroeste, compreendendo o território que se estende do Alasca até à Califórnia. A passagem de James Cook pelo Pacífico Norte em 1778, terá criado alguma urgência na reclamação russa do território. Pelo que o Tzar Paulo I, sucessor de Catarina, sobretudo a partir da Ukase de 1799 – proclamação pela qual a Rússia reclamava para si os territórios no Pacífico acima do paralelo 55 – delega na recém-formada Companhia da América Russa a sua governação. Logo então, no mesmo ano de 1799, Nikolai Rezanov e Alexander Baranov, fundadores da Companhia, ocupam Sitka. Esta localidade, centro nevrálgico do comércio de peles de foca pelos Tlingit, no coração do território tradicional deste povo, passa a ser chamada de Novo Arcanjo. O Tzar Alexandre (sucessor de Paulo I) intensifica esta atitude e em 1822, por meio da sua própria ukase, e novamente recorrendo à superioridade militar, incorpora como seu território posições cruciais para o domínio comercial: assim, o sobrante das Ilhas Aleutas passa também a ser russa; além disso, a Companhia é autorizada a adquirir postos comerciais noutros territórios úteis ao tráfico, processo que tem início com a aquisição de duas ilhas no arquipélago do Hawai5. O móbil deste processo é, justamente, o comércio de peles de foca: note-se que, em menor escala, este comércio era controlado pelos Tlingit que recuperariam Sitka, pela última vez, entre 1802 e 1804. A intensificação da captura destes animais e a sua maior abundância a menores latitudes, terá propiciado o alargamento da ocupação russa para sul, concluindo a construção do seu posto em Fort Ross, na Califórnia, em 1812. O capitão Panafidin é um agente desta Companhia e os objetos que oferece ao Real Museu do Rio de Janeiro são, genericamente falando, despojos de guerra e testemunhos de soberania. A viagem em que transporta estes “vários objetos” até ao Brasil é longa, já que constitui uma viagem à volta do mundo, iniciando-se e terminando na Rússia, com duas escalas no Rio de Janeiro. Com efeito, Panafidin parte de Kronstadt, na costa Atlântica da Rússia em finais de setembro de 1819, dirigindo-se ao Brasil para descarregar ferro e embarcar mercadoria de que não temos especificação. 5 PIERCE, Richard A., Russia’s Hawaiian Adventure, 1815-1817, Berkeley and Los Angeles, The University of California Press, 1965.

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Zarpa do Rio a 7 de fevereiro de 1820 na direção do Índico, cruzando o Cabo da Boa Esperança e fazendo escala em Manila, nas Filipinas. Daí, atravessa o Pacífico aportando em Sitka, na Costa Noroeste do Pacífico. Aqui, reparações de manutenção do barco, a transferência de mercadorias e o embarque de um carregamento de peles retém-no de outubro de 1820 a janeiro do ano seguinte. Em Janeiro de 1821 levanta ferros em Sitka descendo toda a costa do Pacífico e atravessando o Estreito de Magalhães para aportar de novo no Rio de Janeiro, após uma viagem trágica, marcada pelo adoecimento de quase metade dos 90 membros da tripulação e a morte de uma parte deles, provavelmente, de cólera. A viagem até ao Rio demora quatro meses e é nesta segunda chegada ao Rio que os “vários objetos”, certamente embarcados em Sitka, são oferecidos ao Real Museu. Felizmente, “A saúde da população recuperou-se completamente após uma estadia no Rio de dois meses”6, de modo que quando os objetos dão entrada no Real Museu, em agosto de 1821, o Borodino está já a mais de meio caminho de Kronstadt, onde aporta em setembro do mesmo ano. Dado ambiente político que se vivia no Brasil nesse período, é pouco expectável que a doação ao Real Museu– uma doação relativamente modesta – tivesse suscitado comoção de maior. Devido aos movimentos liberais na metrópole, D. João VI encontrava-se em Portugal tendo deixado o governo do Brasil sob regência de D. Pedro, num cenário de grande tensão entre adeptos de diferentes projetos políticos para o Império, estabelecidos tanto no Brasil quanto em Portugal, e que se envolveriam num processo que conduziria à independência do Brasil no ano seguinte7. O Real Museu, fundado em 1818 por D. João VI, ocupava um edifício próprio no campo Santana, e suas coleções eram maioritariamente formadas pelas coleções do monarca, no que parece ser uma coincidência de interesses com a sua nora, já que a chegada de D. Leopoldina ao Brasil, em 1817, favorece o desenvolvimento de uma cultura de coleção que D. João VI – avaliando o apoio anteriormente dado a Langsdorff e a Saint-Hilaire – parece favorecer pessoalmente. Não é demais sublinhar que a coleção emerge como uma das metodologias transversalmente empregue por exploradores, cientistas viajantes e naturalistas quer residentes – como Langsdorff – quer afiliados a diferentes Missões, designadamente a Missão Francesa e a Missão Austríaca. Mediante esta metodologia, como nota Velloso, formavam-se coleções para museus estrangeiros, mas também para o Brasil, colocando o recém-formado Real Museu “na rota da ciência internacional”8. E este

6 Ivashintov, Nikolai Alekseevich, Russian Round-the-World Voyages, 1803-1849, with a summary of later Voyages to 1867, Ed. Pierce, Richard, The Limestone Press, [1848] 1980 7 Bittencourt, Vera Lúcia Nagib, De alteza real a imperador: O governo do Príncipe D. Pedro, de abril de 1821 a outubro de 1822, São Paulo: Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, Produção acadêmica premiada, 2009 8 Veloso Junior, Crenivaldo Regis, Os ‘Curiosos da Natureza’: Freire-Allemão e as práticas etnográficas no Brasil do Século XIX, Dissertação (Mestrado) Universidade Federal Fluminense, Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, Departamento de História, 2013, pp 69.

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processo no qual a coleção é uma metodologia transversal a várias áreas disciplinares, investe o museu de um papel alquímico que transforma o que quer que seja – plantas secas, minerais, animais empalhados ou artefatos obtidos como despojos de guerra e testemunhos de soberania – em objetos de conhecimento. 2. O papel de Dª. Leopoldina no enraizamento desta cultura de coleção não deve ser menosprezado: a Imperatriz traz consigo para o Brasil um projeto civilizacional que, sendo essencialmente político, situa a prática de recolha naturalista em sintonia com a obtenção de conhecimento com vista a projetos de governabilidade. Visto do centro da Europa, e, mesmo, visto dos centros de poder situados no litoral, o Brasil é pouco conhecido; pelo que a recolha de espécimes de diferentes ordens (vegetais, minerais, zoológicos ou etnológicos) contribui tanto para conhecer a natureza, quanto para prever possibilidades da sua exploração, quanto para projetar o tipo de mercadorias que poderiam solidificar, pela via comercial, relações políticas privilegiadas. A chegada de Leopoldina ao Brasil é, como nota Augustat, indissociável da chegada, com ela, de um intenso programa de colecionamento, no qual se incluem intercâmbios museológicos e que, da parte austríaca chegada ao Brasil com a Imperatriz, se traduzirá, até 1836, em nada menos que 11 remessas do Brasil para Viena contabilizando 1.146 mamíferos, 12.293 pássaros, 1.678 anfíbios, 1.612 peixes, 32.825 insetos, 409 crustáceos, 951 mariscos, 73 moluscos, 1.729 contentores de vermes intestinais preservados em líquido, 242 sementes, 430 minerais, 138 amostras de madeira, 216 moedas, 192 crânios e 2.217 objetos etnográficos9. Já em 1827, no entanto, o crescimento de coleções ficara associado ao desenvolvimento de relações de troca com instituições congéneres. Nesse espírito, o Museu de Berlim envia ao Real Museu uma coleção de pássaros, ação que suscita a ordem de serviço de criação de duplicatas das coleções recolhidas no Brasil para efeito de intercambio com instituições congêneres10. É no espírito de criação de uma comunidade de interesses na qual o conhecimento científico redobra relações políticas, que a segunda doação de objetos da Costa Noroeste do Pacífico pode ser entendida. Segundo o livro de registo: “Os objetos seguintes fazem parte de uma coleção muito preciosa colhida por um viajante que trabalhou no interesse do Museu Real de Berlim entre os Haidah das Ilhas Rainha Carlota e as tribos vizinhas da costa”11. No total esta doação compreende 27 objetos que atestam dois elementos importantes: por um lado uma alteração significativa na relação com as populações da Costa Noroeste por comparação com os sessenta anos anteriores; por outro lado 9 Augustat, Claudia, (Ed.) Beyond Brazil, Johann Natterer and the Ethnographic Collections from the Austrian Expedition to Brazil (18171835), Vienna 2012: 16 10 VELOSO JUNIOR, Op. Cit. pp73 n237. 11 Livro de registos nº 2 (1884) do Museu Nacional do Rio de Janeiro, pp. 331-333.

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ilustra a inclusão do Brasil nas redes académicas da época. Em 1884 esta doação está normalizada pelo intercâmbio de espécies entre o Real Museu e instituições do exterior que sustentam redes de circulação internacional de conhecimento. Num certo sentido, a acumulação de conhecimento sobre o Brasil, na medida em que se faz em paralelo com o a acumulação de conhecimento sobre o resto do mundo, é indissociável da criação de uma consciência do posicionamento do Brasil no mundo. Nesta lógica de reciprocidade, simplificando, quanto mais dados se obtêm em relação ao Brasil – sob a forma de espécimes de distintos domínios recolhidos em “duplicatas”, e porque esses dados são objetos de troca por similares de outras proveniências – mais dados se obtêm em relação ao resto do mundo. O conhecimento sobre o Brasil desenvolve-se, portanto, a par do desenvolvimento do conhecimento sobre o resto do mundo e o posicionamento, nele, do Brasil. Aquando desta segunda doação este processo é claro. Importaria notar que ele vai de par com uma inflexão nas modalidades de relação entre comércio e política que parece assumir uma tendência para dissociar comércio e ocupação territorial. Uma possível indicação desta dissociação é a venda do Alasca – por parte da Rússia – à novel república dos Estados Unidos da América em 1845, mas, de uma forma algo mais modesta, parece ser nessa direção que aponta o modo de constituição desta coleção, obtida, como se escreve no livro de registos “por um viajante que trabalhou no interesse do Museu Real de Berlim”12. O dito viajante, Johan Adrian Jacobsen (1853-1947), de nacionalidade norueguesa, foi contratado em 1881 por Adolphe Bastian, diretor do Museu Etnológico de Berlim, para fazer uma coleção de artefatos dos grupos da Costa Noroeste da América do Norte que Bastian visitara pouco antes. As credenciais de Jacobsen haviam sido construídas na sua colaboração com Carl Hagenbeck, o célebre empresário de exposições zoológicas e de grupos vivos. Jacobsen colaborara com Hagenbeck no recrutamento de “esquimós” da Groenlândia e Lapões e projetava de para si próprio a imagem de navegante experiente e ilustrado, tendo produzido, durante as suas campanhas de aquisição de objetos indígenas, e, para além da documentação das peças, alguma literatura sobre os costumes cerimoniais das Primeiras Nações da Costa Noroeste, designadamente sobre os Nuxalk [Bella-Coola] e os Kwakwaka’wakw [Kwakiutl]. Num momento em que a etnologia tendia a profissionalizar-se – Adolphe Bastian abriria uma classe de profissionais na disciplina a dirigir instituições centrais na produção de saber disciplinar – a associação de interesses formalizada no contrato entre ambos, Bastian e Jacobsen, estava, ela própria, em vias de extinção. Não obstante, a coleção Jacobsen do Museu Etnológico de Berlim, é objeto de um texto de Jacobsen na publicação

12 Idem, p. 331.

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A IMPERATRIZ EM 2014: A COLEÇÃO DO PACÍFICO NO MUSEU NACIONAL DO RIO DE JANEIRO E AS LUTAS CONTEMPORÂNEAS PELA INDIGENIZAÇÃO DA COLUMBIA BRITÂNICA, CANADÁ

alemã de referência da época13, sendo ainda objeto exclusivo de uma cuidadosa publicação ilustrada por parte do Museu Etnológico de Berlim da responsabilidade de Adolphe Bastian14, um ano antes da doação de parte desta coleção, seguramente “duplicatas”, ao Museu Real do Rio de Janeiro. De entre os 27 objetos desta doação, um deles, uma taça de madeira Haida, presta-se ao argumento desta seção, na medida em que parece sustentar a ideia de que nesta época – a viagem de Jacobsen ocorre entre 1881 e 1883 – os objetos da Costa Noroeste estão sendo produzidos para um mercado lentamente construído pelo crescimento do tráfico naval na área. Eles não são mais obtidos pela força e não valem como símbolos de soberania, mas, simplesmente, como mercadorias correntes, produzidas em quantidades suscetíveis de satisfazer uma demanda externa e crescente. Sem que, com isso, estes objetos perdessem relevância como objetos de conhecimento, eles parecem atestar a capacidade de certos indivíduos pertencentes aos grupos indígenas – Haida, no caso – de perceber um mercado emergente para o qual adaptam seus próprios processos produtivos integrando neles modalidades de produção artesanal em série. Com efeito – e pese, embora, a natureza formal da observação – a taça Haida, com numero 45 de referência provável na doação ao Museu Real em 1884 é idêntica (na forma, dimensão e elementos decorativos) ao objeto da coleção Jacobsen descrita como sendo de proveniência Haida com a designação de Taça de madeira (Holzgefaß), IV A 1103. O que parece indicar que Jacobsen terá adquirido várias taças semelhantes para o Museu de Berlim, o qual que terá distribuído “duplicatas” por instituições das suas redes de intercâmbio académico. Finalmente, em suporte deste argumento relativo à mudança de significado dos objetos, há que considerar a expedição mesma do capitão norueguês: com outra proveniência e com pequenas variações na data, ela não teria tido lugar, sequer como projeto. Assim, aquando do domínio russo do Pacífico Noroeste, os objetos indígenas eram produtos secundários do objeto das viagens russas, as peles de foca. E é de crer que tenha sido à sombra de um comércio maior que a mercantilização destes objetos tenha crescido. Mas ela não é, por sua vez, um desenvolvimento unívoco, apontando antes para a ideia de que o comércio de objetos indígenas seja indicativo de uma modalidade de relação na qual o parceiro comercial, no caso, o capitão norueguês, reconhece os Haida – assim como os Kwakwaka’wakw – como legítimos interlocutores. Na verdade, aquando da passagem de Jacobsen por território Kwakwaka’wakw, terá por intérprete e intermediário George Hunt, que ficará para a história da Antropologia como o associado de Franz Boas, que chegará a Tsaxis, re-designada Fort Rupert pela ocupação colonial inglesa, cinco anos após a passagem de 13 Ver a este propósito Aaron Glass, « Northwest Coast Ceremonialism: The Works of J.A. Jacobsen (1853-1947) », European journal of American studies, Vol 5, No 2, 2010. 14 BASTIAN, Adolphe, Amerika’s Nordwest –Küste, neueste Ergebnisse Ethnologischer Reisen aus den Sammling Der Königlichen Museen Zu Berlin, Berlin, Verlag Von A. Asher & Co. 1883.

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Jacobsen pela região. É possível que a doação reflita diferenças reais na ocupação britânica de Haida Gwaii (as Ilhas da Rainha Carlota, bastante mais a norte e ao largo) e a Ilha de Vancouver, já que a esmagadora maioria das peças doadas são Haida. Laconicamente, a listagem regista como provenientes da Ilha de Vancouver menos de meia dúzia de objetos, sem especificar onde, nessa ilha, eles foram recolhidos. Os Kwakwaka’wakw com quem Jacobsen fez comércio estão sob violenta pressão colonial que fizera a população decrescer 84% aquando da presença do capitão norueguês. E, pouco depois da sua passagem, a instituição central na sua reprodução social, o potlatch, será proibido. A proibição estender-se-á entre 1885 e 1951, sendo acompanhada pelo genocídio programado das populações indígenas pelo governo canadense. É no contexto da reivindicação presente das respectivas identidades culturais que os objetos assumem novos valores. Por um lado, os grupos recorrem a coleções antigas – como estas doações – como prova histórica da ocupação territorial. Mas fazem-no – e com isso entro no terceiro argumento deste texto – porque aquilo que duma perspectiva museológica são objetos, são, na sua perspectiva (e dou de barato a generalização um tanto grosseira), objetos particularmente dotados para o exercício de uma das atividades centrais no potlatch: a prestação de testemunho durante a cerimónia, testemunho esse que constitui, simultaneamente, memória e direito. 3. Em finais de agosto de 2014 a responsável pelos empréstimos de objetos do Museu de Antropologia da Universidade da Columbia Britânica (MOA), onde trabalho, enviou uma mensagem interna procurando um courrier para levar um cobertor das coleções do museu no norte da Ilha de Vancouver, para um potlatch marcado para a segunda semana de setembro. Trata-se de um cobertor feito em 2004 por William White, um reconhecido artista Tsimshian, ao abrigo de uma bolsa de criação cultural financiada pelo governo canadense. O cobertor chamado Sala gamiilga gaax ganou, (O corvo dança com sapos) tem o numero de identificação 2641/1 e deveria ser dançado por um menino especificando o seu lugar na genealogia em reconhecimento na festa. O potlatch em questão destinava-se a celebrar a mãe de Anthony Hunt (um descendente de George Hunt) e, com isso, em reclamar para si e sua descendência os direitos que antes cabiam a sua mãe. O menino que dançou o cobertor é membro deste grupo. A prática de liberar objetos das coleções por solicitação de membros das Primeiras Nações é uma prática comum no MOA. Muitos destes objetos são de difícil preservação, por um lado e, por outro, Vancouver é mais central para sujeitos de diferentes grupos, pelo que o entendimento do museu como guardador de objetos que são seus é um entendimento relativamente comum entre membros das Primeiras Nações. Mediante um simples pedido, uma vez atestado o direito do requerente sobre o objeto solicitado, dá-se início ao processo de transporte da peça sem mais delongas.

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O potlatch oferecido por Anthony Hunt teve lugar a 13 de setembro de 2014 em Tsaxis / Fort Rupert, na Gukw’dzi a casa grande que é atualmente o centro da vida comunitária kwakiutl (o grupo dos kwakwaka’wakw da localidade). Quando o cobertor foi entregue ao seu autor ele foi colocado, junto de outros objetos que seriam usados durante a cerimónia, numa sala localizada no lado da casa oposto à enorme porta de entrada. Fazendo fronteira com essa sala, na parede interior da casa grande, fora colocada uma enorme tela pintada com os ancestrais totémicos do grupo, que é – junto com as colunas que sustentam as vigas do telhado, também esculpidas com antepassados – o que mais chama a atenção de quem entra no recinto. Dentro da casa, e partindo da parede onde a tela foi colocada, são distribuídos da direita para a esquerda, por proximidade de parentesco, todos os convidados. Junto à tela senta-se a orquestra e os músicos / cantores que entoarão os cânticos que acompanham a sequência da cerimónia. A cerimónia consiste a) em homenagear os antepassados b) reclamar direitos deixados por eles transmitindo nomes que vinculam, a crianças e jovens, os nomes dos antepassados e respectivos direitos, c) assegurar a formalização correta desse procedimento mediante a respetiva sanção pelo antepassado totémico, mediante a listagem de todas as linhas genealógicas que comprovam os direitos reclamados, mediante a sua execução com os objetos honoríficos corretos perante o maior número de convidados. Durante cerca de 12 horas, as genealogias foram sendo recitadas até ao presente. Os representantes presentes da cada ramo genealógico desfilam paramentados perante todos e executam os seus cânticos, danças e récitas. Nessa execução, as ‘máscaras’ e outros objetos, como o cobertor do MOA, são ativados, trazendo, para o presente, todos as cerimónias de que foram anteriores testemunhas, e testemunhando esta situação particular que passa a fazer parte – mais do que da ‘biografia’ da peça – do seu curriculum ‘jurídico’. Na medida em que o potlatch consiste na afirmação pública de direitos sobre pessoas, sobre coisas e sobre práticas, e na medida em que essa afirmação se faz no campo da memória não escrita, a presença em cerimónias particulares torna-se parte integrante dos objetos, independentemente de eles poderem regressar, quando inativos, à vitrine num museu. Fora das cerimônias, com efeito, estes objetos são mantidos longe da vista, pelo que o local onde estão mantidos fora de circuito é pouco relevante desde que não seja impeditivo da sua participação na vida cerimonial dos grupos. Neste sentido, enquanto agentes de jurisprudência e de memória – e sem que deixem de ser artefatos – eles não são exatamente coisas, mas serão antes, talvez, uma espécie de agência humana artefatualizada. Importa explicitar que este processo contemporâneo recorre, para a sua própria produção, às coleções históricas conhecidas. No caso dos kwakwaka’wakw, de resto, os museus têm desempenhado papéis fundamentais no resgate de memória de suas práticas culturais, tão duramente afetadas pelo processo de crescimento do estado canadense, dada a extrema violência, com

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beneplácito legal, a que os grupos indígenas foram sujeitos. A comunidade kwakiutl de Tsaxis, por exemplo, refere explicitamente a coleção de Jacobsen de Berlim, e os seus escritos sobre ela, como “um raro e valioso contributo à sobrevivência das culturas das Primeiras Nações”15. É também por isso que a sua antiguidade é valorizada no contexto atual de reclamação de direitos, dado que a configuração atual investe de renovado valor político esses objetos hoje pertencentes a coleções históricas. 4. Nas páginas precedentes sugeri que o mesmo tipo de objetos pode ser entendido de diferentes maneiras consoante o processo histórico que conduziu à sua transformação em objetos de coleção. No caso sob análise argumentei que os objetos de coleções que, no presente, consideramos históricas, podem ser vistos como indicadores de relações sociais, sejam elas políticas, comerciais, cognitivas ou uma combinação de parte delas, sem que – e esse ponto é parte integrante do argumento – o seu valor fique encerrado nessa apreciação. Ao contrário, parece ser uma potencialidade axial da coleção museológica a sua disponibilidade para ser chamada a intervir no presente momento. Uma das constatações do momento presente é, justamente, a da enorme vitalidade que grupos sociais – que foram considerados debilitados e em risco de desaparecimento – têm demonstrado face aos desafios contemporâneos reconfigurando o papel que os museus podem desempenhar na desintoxicação da história, na redistribuição de lugares da fala, e no estabelecimento de novos parâmetros para estipular seus direitos. Esse é um processo de indigenização do presente que força a cidadania de novas perspectivas e, no caso, a sua gravitação em torno dos museus. Colecionar, em suma, parece consubstanciar a potencial abertura para um futuro plural – imprevisto, sem antecipação, eventual – e esse é também, no caso destas coleções, um insuspeito legado de Dª Leopoldina.

15 http://www.firstnations.eu/fisheries/kwakwakawakw-kwakiutl.htm

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Imagens

Figura 1 Mapa da viagem à volta do mundo do Borodino 1819-1821.

Figura 2 Taças de madeira Haida recolhidas por Adrian Jacobsen. À esquerda imagem da taça da coleção do Museu de Berlim, Ident.Nr. IV A 1103, (http://www.smb-digital.de/eMuseumPlus?service=ExternalInterface&module=collection&objectId =1332753&viewType=detailView); à esquerda, imagem de taça idêntica pertencente à Coleção do Pacífico do Museu Nacional do Rio de Janeiro.

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Figura 3 O cobertor na página do catálogo em linha do MOA (http://collection-online.moa.ubc.ca/collection-online/search/ item?keywords=2641%2F1&row=0) e sendo dançado no potlatch the Anthony Hunt, Tsaxis, 13 de setembro de 2014.



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