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Notas sobre o que é ser racional (ou por que Descartes tem que estar errado)1 E assim parece que, apesar do entendimento ser capaz de ser instruído, e de ser equipado com regras, o juízo é um talento peculiar que somente pode ser praticado e não pode ser ensinado Kant Introdução

Alguns filósofos, como Antonio Damásio (1994), criticam a filosofia cartesiana a partir de discussões contemporâneas a respeito da neurociência e de ciências cognitivas no contexto da filosofia da mente. Com efeito, as discussões convergem, com frequência, para questões a respeito da relação complicada entre mente/corpo, enfatizando, por exemplo, a importância de emoções e do corpo para a nossa racionalidade. Estes itens foram, de fato, sistematicamente desqualificados pela tradição cartesiana por serem dubitáveis e enganosos para a sua imagem de sujeito racional. O meu ponto de partida para a crítica da filosofia cartesiana é outro. Meu projeto tem por objetivo examinar o conceito de representação, não na filosofia da mente, mas na filosofia da lógica para uma explicação pragmatista da emergência de sistemas de lógicas não-clássicas. Tenho interesse na viabilidade do pluralismo lógico, tese filosófica que defende a existência de mais de um sistema lógico correto, mesmo os alternativos à ortodoxia clássica. Acredito que a crítica da tradição cartesiana caracterizada pelo excessivo protagonismo de noções subjetivas, como de clareza e distinção, e da imagem de racionalidade baseada em uma substância imaterial radicalmente separada do mundo é necessária para a possibilidade de uma visão integral da racionalidade. Esta visão anti-cartesiana deve dar legitimidade a sistemas formais que desafiam a ortodoxia lógica. O meu ponto de chegada esperado também é diverso ao de críticas usuais ao cartesianismo concentradas em tópicos de filosofia da mente. Minhas conclusões se voltam ao conceito de racionalidade vinculado à noção de manipulação de representações, mas não examinando estados mentais, consciência e percepções, mas sim o domínio prático de atividades regradas e outros elementos de normatividade. Este trabalho é, assim, uma consequência tanto do reconhecimento do sério desafio que sistemas de lógicas não clássicas trazem para a compreensão da razão contemporânea quanto da compreensão que a tradição cartesiana inviabiliza o pluralismo lógico. Uma vez que, para permitirmos a pluralidade de sistemas lógicos não-clássicos, temos que combater a imagem de racionalidade única e não-dinâmica

Este texto é produto de duas apresentações feitas, respectivamente, em 16/04/2016 no “Mora na Filosofia” da UFAL e em 01/06/2016 em atividade do grupo PenCogLing, na UFC. Agradeço particularmente aos professores Marcus José, Maxwell Morais, Fernando Monegalha e Cristina Viana em Maceió e aos professores Manfredo Oliveira, Konrad Utz, Victor Marques e Tiago Magalhães, por suas observações críticas ao meu trabalho nestas ocasiões. Também sou grato às críticas de Marcelo Maroldi a uma versão deste artigo. 1

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presente no cartesianismo, pretendo, então, me dedicar no presente trabalho à crítica da tradição da razão baseada na noção da representação. O presente artigo desempenha, por consequência, o papel de uma introdução ao projeto mais ambicioso de integrar a discussão da natureza da necessidade lógica e do problema do pluralismo lógico a uma imagem da razão de inspiração pragmatista. Neste contexto, defendo, contra a tradição cartesiana, que a racionalidade não deve ser pensada como uma propriedade de uma substância imaterial representando verdadeiramente o mundo radicalmente desde fora dele. A razão deve ser vista como uma capacidade treinável de um ser biológico de se engajar deontologicamente em trocas contínuas com o meio e com outros seres. Este engajamento deve ser tomado deontologicamente, porque é baseado em elementos normativos, como proibições e autorizações, constituídos pelo reconhecimento de (e pelo compromisso com) regras e normas. Na tradição representacionalista, a razão desempenha um papel correlato a de um espelho que deve representar ou apresentar imagens fiéis à realidade para o desenvolvimento do conhecimento (Abrams, 1953; Rorty, 1979). Em oposição a esta perspectiva, em uma tradição pragmatista, a razão deveria ser tomada como uma espécie de lâmpada responsável por deixar nítidas determinadas normas que orientam e perfazem implicitamente nossas atividades, compromissos, responsabilidades e engajamentos no mundo (Brandom, 1994 e 2000). No que se segue pretendo apresentar algumas questões que nos ajudarão a detalhar e enriquecer nossa compreensão da racionalidade ao se recusar tópicos da tradição cartesiana e ao defender um pragmatismo deontológico baseado em práticas regradas. O trabalho se divide em três seções principais. A primeira seção trata do contexto cultural e filosófico das principais obras de Descartes e de algumas tensões no interior de sua filosofia. A segunda seção introduz críticas ao cartesianismo inspiradas em um pragmatismo centrado na noção de atividades regradas e sociais. A terceira seção desenvolverá algumas intuições associadas à normatividade de regras mostrando algumas questões contemporâneas ainda em aberto. Concluo tratando de possíveis desdobramentos da visão pragmatista aqui desenvolvida.

I) Contexto cultural-filosófico e algumas tensões no cartesianismo

(...) posto que em toda parte há somente uma e mesma forma de raciocinar Descartes (em correspondência com Burman) Descartes, por ocasião da publicação das Meditações de Primeira Filosofia (Meditações Metafisicas), em 1641, estava reagindo a um mundo de incertezas, mudanças, descontinuidades e rupturas marcado, dentre outros eventos historicamente importantes, pela descoberta do assimchamado novo mundo, pela emergência de núcleos urbanos ascendentes perfeitos pelo 2

humanismo renascentista e pelo crescente mercantilismo em trocas sociais, pela revolução científica de Bruno e Galileu que desafia paradigmas filosóficos da tradição escolástica e antiga, pela invenção de Gutemberg multiplicando livros, educação e instrução, pelo protestantismo e reforma religiosa se confrontando com formas tradicionais da cristandade. Todos estes fatores provocaram muitos conflitos sociais e políticos severos e, em certa medida, originais. Como consequência, a dificuldade de se fundar teses hegemônicas e consensuais provocou o reaquecimento do ceticismo em reação a posições dogmáticas do saber. As correntes céticas modernas promoviam a visão da inexistência de um critério externo e decisivo para resolver disputas e conflitos entre teorias rivais e para determinar validade de teses filosóficas. Se apontava, pois, para o limite radical da razão humana. Se defendia que qualquer certeza é impossível. Não é por acaso que uma consequência direta deste mundo de incertezas seja a tentativa do homem moderno se refugiar dentro de si, o que marca o subjetivismo e individualismo próprios deste período histórico. Aparentemente, Descartes parece tomar para si o projeto (heroico) de completar o movimento de solapamento da tradição escolástica e de se aproximar a metafísica da ciência emergente. Em confrontação com o ceticismo, se observava a necessidade de se afastar definitivamente a possibilidade de erro e a garantia do conhecimento do real. Este anseio motiva o projeto da fundação da filosofia e das ciências modernas em um ponto de partida maximamente seguro e claro. É bem conhecido o procedimento cartesiano empreendido para estabelecer esta empresa metafísica fundacionalista: assumir o ceticismo e, ao levá-lo às suas últimas consequências demonstrar, verdades indubitáveis. Ao longo da primeira meditação (1641) e da quarta parte do Discurso do Método (1637), vemos o autor abandonando sistematicamente as opiniões, a tradição, os dados dos sentidos e a própria razão como fundamentos para a verdade. Alguns argumentos filosóficos famosos foram empregados, como o argumento do sonho para generalizar a dúvida quanto aos sentidos e o argumento do Deus enganador/gênio maligno para motivar uma dúvida muito profunda contra a própria razão, em especial em relação a verdades matemáticas. Neste ceticismo exacerbado, Descartes parece proceder por redução ao absurdo da tese radical do ceticismo, uma vez que mesmo o ceticismo artificialmente levado às últimas consequências chegaria, sob pena de absurdo, a duas verdades indubitáveis, a saber: a certeza da minha existência enquanto alma imaterial, radicalmente distinta do mundo, cujo atributo principal é pensar e a existência de Deus como um ser perfeito criador da natureza transparente à razão humana. O sujeito, individual, imaterial e isolado do mundo seria, pois, o destaque do fundamento da metafísica e da ciência. Uma interioridade cuja autoridade máxima seria o pensamento racional. Nesta visão, o sujeito imaterial tem acesso privilegiado a si mesmo, às 3

suas representações ou ideias, que são como imagens de coisas no mundo. Ele pode guiar seu espírito para evitar erros e precipitações ao só afirmar e manipular representações claras e distintas que aparecem para ele. A auto-transparência das impressões do indivíduo marca também o inovador estilo confessional e autobiográfico da obra cartesiana. Assim, temos, como fundamento da modernidade, uma privacidade isolada e imaterial, fundamentalmente intelectual e radicalmente independente de contextos sociais, históricos e biológicos (já suspensos na primeira meditação metafísica pelo seu método de investigação peculiar). Não parece haver dúvidas para a pergunta o que é ser racional para esta tradição individualista cartesiana. Ser racional é ser um sujeito portador de uma alma destacada do mundo e sem corpo que representa o mundo com suas imagens e manipulações de ideias de maneira verdadeira e, eventualmente, falsa. Curiosamente, Descartes é um filósofo que ao se isolar do mundo para empreender suas meditações filosóficas, em auto-reflexão e introspecção sistemáticas, se descobre alma racional, pensante e imaterial. O julgamento do indivíduo exercitando sua autonomia, e não a autoridade externa como instituições e Deus, são relevantes aqui. Com a disciplina, autocontrole e pensamento prospectivo, preconizados em seu Discurso do Método, marca-se a possibilidade de, sistematicamente, afastar o erro e aperfeiçoar o espirito pelo controle das paixões e do corpo. Esta imagem de racionalidade é debitária em grande medida do método cartesiano de aprofundamento da dúvida cética aos fundamentos filosóficos. É mister se ter certeza da verdade e não somente julgar verdadeiramente. O filósofo deveria ser juiz e julgar a verdade e não ser advogado e se basear em defesa e refutações de verossimilhanças (ver quarta parte do Discurso do Método). Além disso, o itinerário próprio das discussões se remete com frequência à luz natural da razão que parece, por sua vez, redundar no tradicional monismo lógico, ou seja, na existência de uma razão única, (convenientemente) coincidente com o lugar que a humanidade se encontra. A relação de Descartes com a tradição filosófica posterior também deve ser salientada; não é controverso se afirmar que a sua obra é em grande medida formadora da tradição moderna. O ponto de partida filosófico próprio da modernidade é o epistemológico e não ontológico como marcantes na Antiguidade e Idade Média. A matematização da natureza completamente transparente à razão humana também deve se destacar: leis físicas e matemáticas deveriam ser válidas para toda a realidade material. A finalidade dos antigos, constitutiva das essências das coisas, é retirada de todo o mundo físico, abandonado em leis mecânicas, uma vez que a própria distinção entre forma e matéria perde sua importância. O sujeito emancipado com razão autônoma não depende mais da revelação da igreja, da evidência da história e do testemunho de seus pares para avançar no conhecimento da realidade e de si mesmo. A autoridade é baseada unicamente na auto-consciência de um agente, não na obediência à igreja. 4

Assim a disputa entre luz natural da razão e obscurantismo redunda na afirmação do pensamento puro baseado em ideias claras e distintas que marcam a tradicional e moderna oposição radical entre sujeito cognoscente e objeto conhecido. Vale também notar que a moralidade moderna, debitária da imagem de racionalidade da tradição cartesiana, não reside nem na honra e nem na glória, mas no controle racional do indivíduo sobre as paixões provocadas pelas afecções de seu corpo dentro do qual está encarcerado. A filosofia de Descartes não marca só a tradição filosófica posterior, mas também a nossa visão comum de mundo contemporânea: O homem senhor de si e única criatura portadora de razão universalizante pode dominar a natureza tomada como recurso inesgotável para suas atividades e conquistas. Neste horizonte, o conhecimento é avançado por uma alma pronta, foco da interioridade, constituída antes de qualquer interação com coisas no mundo e com outros indivíduos que vai, por assim dizer, acrescentando coisas e informações em sua bagagem. Esta imagem é completada pela visão de que o mundo possui alguma essência inerente, inerte e definida, combinada com a concomitante definição de conhecimento empreendido por uma mente imaterial com acesso intelectual e íntimo a estas essências. Nesta visão, muitos concordariam que o conhecimento estaria de alguma forma em nossas cabeças e o nosso corpo só serviria como veículo e depósito de informações e instrumento para manipular modelos de como as coisas estão no mundo. O corpo ele mesmo é apenas matéria sem vida e sem espírito. Além disso, não parece exagero se ver o individualismo próprio de países desenvolvidos e industriais no esteio desta tradição: o mundo é fundamentalmente composto por indivíduos livres e racionais, ou seja, sujeitos ou almas individuais imortais, sem passado, sem socialização prévia, e sem classes. Eles são transparentes para si mesmos e, por dominarem seus motivos e desejos, podem controlar suas paixões sistematicamente. Seriam, portanto, autores responsáveis, criadores dos próprios valores e escolhas. Não é incomum se destacar algumas tensões na filosofia de Descartes. Muitos séculos de escrutínio público e qualificado mostram as dificuldades de se conciliar a busca de uma certeza absoluta, uma vez que é uma categoria subjetiva, com a necessidade de uma representação objetiva do mundo para avançar conhecimento científico. Esta tensão pode ser notada também na aparentemente inconciliável relação entre a mente (subjetiva) e o real (objetivo), advinda do fio condutor que funda a certeza na interioridade e a nossa autoridade no acesso privado ao conteúdo de nossas representações e não na exterioridade pública de nossa linguagem e instituições. As duas imagens que merecem ser contrapostas aqui são a de uma alma simples e imaterial e a de um indivíduo material, produto da história e da educação por outros sempre imerso em contextos práticos e institucionais.

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Acredito, como Brandom (1994, 2000) que a robustez destas questões mostra que não podem ser resolvidas dentro da tradição cartesiana, mas deveriam ser dissolvidas por uma mudança de paradigma de pensamento. Isto se daria, especialmente, no afastamento teórico do representacionalismo, próprio da modernidade, em direção a um pragmatismo baseado no reconhecimento da centralidade de práticas regradas para entendermos fenômenos linguísticos, lógicos e mentais.

II) Sobre um pragmatismo anti-cartesiano

A vida é o amor E a vida da vida é o espírito [Geist] Goethe O desafio à tradição cartesiana pode ser feito por muitas vias. Por exemplo, podemos desafiá-lo a partir da constatação que o mundo no qual vivemos não é constituído por este tipo de indivíduo livre tomando decisões desde fora de interações sociais, históricas e biológicas, radicalmente apartado do mundo. Quanto maior o número de indivíduos interagindo em comunidades, menor é o nosso campo de manobra e liberdade de ações. A suposta livre deliberação do indivíduo, em verdade, pressupõe um denso pano de fundo inarticulado de normas, regras, prescrições e valores restringindo nossos desejos, decisões e ações. Acompanhando nossa herança moderna, nós somos, com frequência, dispostos a acreditar em nosso comércio diário com o mundo a partir da desqualificação de fatores normativos, como autoridade, compromissos, proibições e autorizações. Estes itens normativos são pressupostos em cada uma de nossas práticas, inclusive as inferenciais. Na suposta transparência de nossas almas em nossa autoridade introspectiva, com frequência, nos esquecemos sistematicamente dos compromissos, engajamentos e responsabilidades implícitas em nossas práticas e, assim, frequentemente também negligenciamos como estes itens são perfeitos por uma história densa de trocas e interações materiais. O pragmatismo, que quero defender, se qualifica a partir de uma espécie de construtivismo social. Nossa socialização nos inclina para algo. Em certo sentido nossas escolhas são pré-escolhidas pelos valores e normas da comunidade na qual fomos educados. A sociedade cria boa parte do pano de fundo cognitivo, moral e lógico no qual nos movimentamos ao determinar um quadro complicado de obrigações, proibições e autorizações, muitas vezes, tácitas. Um ser racional não deveria apenas ter que representar o mundo fielmente e fazer inferências sofisticadas, mas deveria prioritariamente poder reconhecer outros seres como racionais, ser reconhecido por estes como racional e reconhecer as regras que constrangem seus comportamentos teóricos e práticos. Aqui, o corpo e seu comportamento devem ser 6

requalificados e reintroduzidos na discussão da racionalidade. O corpo é, em verdade, um importante emissor de sinais, cheio de significados sociais que mostram este quadro denso de fatores normativos de uma forma de vida particular. Nesta imagem de racionalidade é crucial, antes de podermos representar com sofisticação o mundo ou mesmo nos engajarmos em práticas simbólicas abstratas e complexas, que possamos internalizar normas sociais e usá-las apropriadamente para regular nosso próprio comportamento. Vários fatores desempenham papel aqui como recompensa e encorajamento de colaboradores, ameaças de ostracismo para maus colaboradores, perda de reputação e constrangimentos por autoridades, sanções para os resistentes a cooperar, punição de transgressores, benefícios de reciprocidade para estabilizar colaborações e fixar expectativas mútuas. Nós todos reconhecemos e acreditamos em algumas instituições e agimos conforme esta crença. O importante aqui não é representar o mundo verdadeiramente, mas reconhecer e se engajar com regras públicas. Me parece importante destacar o anti-realismo próprio da visão de racionalidade do pragmatismo. A rejeição da imagem cartesiana de racionalidade e do conhecimento desloca o tópico da epistemologia e da metafísica da organização intrínseca de uma realidade independente da mente estruturada por uma luz natural da razão compartilhada por todos seres racionais para os princípios (regras) que organizam a experiência e o conhecimento de agentes racionais reconhecedores de fatores normativos. Ser racional não é descobrir estruturas independentes no mundo, e nem manipular itens abstratos na mente, mas prioritariamente reconhecer contextos de autorizações e proibições que constrangem nossas práticas. Neste sentido, o pragmatismo parece mais promissor para nossas demandas contemporâneas. Afinal qual papel, se algum, desempenham no cartesianismo o ser humano como organismo, a evolução biológica, a linguagem como instituição social e pública, os complexos acordos e valores marcados por longas e complicadas interações ao longo da história? Sem surpresas, instituições, valores, comunidades, moralidade e política não são elementos centrais para o cartesianismo. Tudo se passa como se, em se avançando uma metafísica da alma como veículo de representações, se poderia subalternamente tratar destes temas menos importantes para as certezas garantidas pela poderosa e monolítica luz natural da razão.

III) Regras e algumas perguntas abertas

It must go further still: that soul must become its own betrayer, its own deliverer, the one activity, the mirror turn lamp Yeats

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Uma proposta alternativa para entender a razão deve pensá-la como corporificada, sempre situada no mundo material e essencialmente dinâmica. Estou concordando aqui com alguns pontos pragmatistas encontrados em Wittgenstein (1953, 1969), Brandom (1994, 2000), Hutto, Myin (2013), Tomasello (2009). Ao tratarmos de racionalidade não tratamos de uma propriedade de uma substância imaterial representando o mundo radicalmente desde fora dele, verdadeira ou falsamente, mas uma capacidade treinável de um ser biológico no mundo em trocas contínuas e permanentes com o meio e em engajamentos deontológicos com outros seres. Nesta proposta, não se trata de atribuir falsidade ao cartesianismo, mas mostrar sua inadequação para nossos problemas contemporâneos a respeito de cognição, linguagem e lógica. O cartesianismo impede importantes e necessários avanços. Desafia-se o cartesianismo, nesta abordagem pragmatista, propondo que o domínio prático de atividades corrigíveis em um ambiente social deveria ser anterior ao conhecimento teórico de representações abstratas, verdadeiras ou não. A competência de agentes racionais em lidar com coisas no mundo é mais importante que pretensos conteúdos intelectuais dentro de um ser imaterial preso em um corpo material. A habilidade de se engajar e reconhecer regras não é consequência, mas pressuposto para teorias sofisticadas que tentam modelar a realidade. Em outras palavras, nós primeiro agimos e nos ocupamos com coisas no mundo para depois pensarmos nelas e não: temos algum acesso intelectual privilegiado a essências para, então, agirmos no mundo. Para se recusar algumas teses cartesianas ao enfatizarmos a noção de práticas regradas, parece importante explicitarmos alguns princípios pragmatistas (anti-cartesianos), a respeito da noção normativa de regra. É importante observar que as regras que perfazem nossas práticas inferenciais não representam nada. Este é um tópico que marca o anti-representacionalismo da minha proposta. Em um sentido filosoficamente relevante, vale notar que regras não podem ser verdadeiras e nem falsas, porque elas não descrevem nada, mas, sim, são usadas para corrigir e avaliar a qualidade de nossas descrições e ações no mundo. Temos então um deslocamento da verdade (e condições de verdade), importante para qualquer realismo (semântico), para a discussão normativa de como determinar, a partir de quais critérios, se algo é verdadeiro e se tem sentido. Este deslocamento conceitual marca a tradição construtivista. Não se trata aqui de afirmar que o conceito de verdade não é importante. Ele perde relevância, uma vez que regras fixam os critérios e métodos pelos quais determinamos se algo é verdadeiro. Em certo sentido, a verdade é filosoficamente menos importante que os procedimentos, métodos e operações para se determinar a verdade. Vale notar também que

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regras são relativas (poderiam ser outras), mas nem sempre são convencionais e arbitrárias2. Regras são abstratas, mas não privadas. Elas são, em um sentido importante, públicas. Vale notar que a mera convenção não coage agentes racionais a nada. Precisamos de um sistema com autoridade, obediência, punições, correções de desvios e recompensas. O tipo de restrição (constraint) que queremos entender tem que ser, de certa forma, internalizado pelo individuo, porque não se dá aqui como a impossibilidade material de se passar por uma parede ou biológica de não se voar sem asas3. Como havia apontado na introdução gostaria de defender uma explicação pluralista e relativista para problemas concernentes a multiplicidade de sistemas lógicos alternativos, especialmente a possibilidade de princípios lógicos divergentes da ortodoxia clássica, enfatizando o papel de regras e práticas em nossa racionalidade. Afinal, como podemos finalmente reconhecer, corrigir e desempenhar diversos raciocínios, inclusive não-clássicos, de acordo com desafios e pressões ambientais diferentes, se ao invés de afirmarmos o caráter dinâmico de práticas regradas, pensarmos que sistemas lógicos representam estruturas eternas, inertes e radicalmente independentes de nós? Entendo, pois, Descartes como antípoda da tradição pragmatista, uma vez que princípios, leis e axiomas não deveriam ser pensados como representações necessariamente verdadeiras cuja origem se remete à luz natural da razão e cuja objetividade se funda na existência de um Deuz veraz. No pragmatismo a la Brandom que defendo, princípios lógicos deveriam ser pensados como regras que explicitam normas implícitas de nossos acordos e práticas. A moral, ou como agimos no mundo, não deveria ser uma consequência da razão, mas a racionalidade deveria ser considerada como uma consequência da moralidade, ou melhor de nossas práticas regradas e interações com outros indivíduos a partir de autorizações e proibições. A natureza moral e prática da racionalidade ganha protagonismo na tradição pragmatista a qual o presente trabalho se vincula. A moralidade não deve ser vista somente como mais um aspecto da racionalidade; ela não é só constitutiva da racionalidade, ela é decisiva para se entender outros fenômenos racionais puramente teóricos. De acordo com esta perspectiva, contextos institucionais e sociais não são uma mera soma de esforços privados, mas, sim, a publicidade de determinadas práticas institucionais, constituídas ao longo de complicada 2

Penso aqui na distinção entre deliberação e não deliberação. Há vários casos cinzentos e intermediários de convencionalidade. Se referir a algo apontando é caso paradigmático de acordo público e relativo, que, alternativamente, não é convenção, no sentido de não ser fruto de uma deliberação. 3 Não são físicas, apesar de terem base biológica. Interessantemente, uma sentença do tipo "não posso passar pela garagem com este carro" tem uma ambiguidade modal importante. Em uma interpretação possível, uma placa proíbe carros com mais de 2m de altura. Neste caso, temos uma acepção claramente normativa. Já em outra interpretação possível a altura da garagem não deixa um carro alto demais passar. Nos dois casos há restrições, mas eu diria que a segunda restrição é de ordem meramente física e não interessa para uma discussão filosófica a respeito do estatuto normativo de regras.

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história de interações materiais, constrói o privado. Como afirma Wittgenstein em suas Investigações Filosóficas, “nosso uso da linguagem, nossa apreensão de seu significado, depende de um pano de fundo de comportamento comum e de práticas compartilhadas – não de um acordo sobre opiniões, mas sobre “forma de vida” (§241). Além disso, é compreensível, neste contexto, o deslocamento do exame do conceito de representação para a concentração de nossas investigações em entender o contexto e circunstância que perfazem nossas atividades de representação. A mente não deveria ser tomada como um veículo de imagens a ser desenvolvido, mas como uma capacidade a ser treinada e educada, uma vez que nós não temos coisas em nossas mentes, mas nós operamos com coisas no mundo. Assim a objetividade não deveria ser baseada em Deus, nem na "alma", nem em coisas independentes de nossa cognição, nem em formas fixas de julgar de todos os seres humanos, mas em acordos públicos. Ou seja, recusa-se a visão moderna de um sujeito privado construindo o mundo público. Esta é substituída por outra imagem: o sujeito privado sendo constituído por trocas em um ambiente público. A dificuldade para esta imagem pragmatista é a de explicar o engajamento de alguns seres em práticas cooperativas (Tomasello, 2009). Não educamos pedras, ou alguns seres vivos, mas seres os quais reconhecemos que nos reconhecem como seres racionais. Este mútuo reconhecimento parece demandar um pano de fundo, de certa forma, inarticulado, não verbal, irrefletido, não-transparente, mas internalizado, obrigatório e vinculante entre indivíduos de uma mesma comunidade. A pergunta se impõe: Como algumas práticas se tornam comportamento e disposição automáticos e pré-reflexivos? A cultura, ou Geist como os românticos alemães usam, é incorporada com uma forma de agir e se comportar no mundo, sendo compreendido por todos de maneira imediata, mas inarticulada. Neste contexto, acho importante observarmos a eficácia e autoridade de instituições em justificar e legitimar algumas práticas. Se perdemos a "proteção" realista de estruturas independentes e abstratas, devemos reconhecer que conceitos e princípios lógicos são tão permeados pelas forças do mundo (sociais e naturais) quanto toda e qualquer outra coisa. Assim sem um reino metafísico para oferecer comparações e critérios transcendentes ao indivíduo, as entidades formadas por estes conceitos são somente a realidade ela mesma. Nós não temos nenhum acesso a verdades que transcendem este nosso mundo humano demasiado humano. Tudo que temos são práticas inseridas em instituições que são formadas dentre outras coisas por poderes e interações sociais e materiais. Desta forma, vale destacar, kantianamente, que o mundo tem o selo de nossas próprias atividades conceituais. Não há necessidades universais na existência humana. A realidade embora não esteja fundada em uma racionalidade única e eterna, é racional porque sua inteligibilidade advém de nossos métodos, procedimentos, estratégias públicas de 10

resolução de problemas práticos. Estes procedimentos emergem de uma história longa de interações entre indivíduos e com um meio ambiente muitas vezes inóspito. Há ainda uma outra questão em aberto. O problema clássico da aplicabilidade de formalismos, entretanto, continua. Como estes raciocínios formais têm sucesso? Ou seja, apesar de abstratos por que podem ser aplicados sistematicamente às mais diversas situações (muitas vezes inesperadas)?

Conclusão

Defendi aqui que o cartesianismo tem aparato conceitual inadequado para o entendimento da dinâmica da racionalidade quando pensamos em cognição e linguagem. O ponto principal é que nossas mentes e razão não são veículos prontos desde sempre, transportando, guardando e manipulando conteúdos, mas devem ser vistas como capacidades de seres biológicos interagindo em um mundo muitas vezes inóspito com vários desafios permanentes. É importante, pois, nos vermos como somos, animais finitos, biológicos, primitivos, contingentes, históricos, situados e, em certo sentido, largados no mundo; sempre imersos em contextos com inúmeras regras dinâmicas e implícitas. Nesta perspectiva pragmatista, nós lidamos com mesas e cadeiras e brincamos com pessoas, antes de perguntar se uma cadeira existe ou o que é uma pessoa. Seguindo uma tradição kantiana, uma representação não é nunca somente uma cópia, uma imagem, mas é o produto de nossa interação com o mundo externo e com forças ativas de nossas mentes (como o ato de julgar). Avançamos questões relacionadas ao anti-representacionalismo e ao anti-realismo para se preparar um referencial teórico para se entender princípios lógicos como regras e por que (e como) estas orientam, restringem e, em certa medida, coagem nossas ações e inferências no mundo. Acredito ser viável integrarmos, nesta perspectiva, a investigação da natureza da necessidade lógica e o problema do pluralismo lógico, uma vez que, desde suas origens, são apresentadas motivações filosoficamente muito diversas para fundar lógicas alternativas. Assim podemos avançar na compreensão do pluralismo lógico, ao termos uma visão abrangente sobre o que é ser racional, radicalmente distinta da visão cartesiana que domina a modernidade e boa parte da ortodoxia das pesquisas em ciências cognitivas e do senso comum a respeito de nossa racionalidade, contemporaneamente. Me parece legítimo, então, defender que a necessidade lógica deve ser vista como uma espécie de obrigação moral. Em outras palavras, o “segue-se necessariamente” da lógica deveria ser tomada como uma obrigação de se extrair informação a partir de outra orientada e perfeita pelo reconhecimento de algumas regras que coagem nosso comportamento prático no mundo.

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Vale ainda dizer que eu recuso qualquer interpretação da racionalidade que coloque o ser humano no centro do universo, ou desempenhando qualquer papel proeminente ou especial no mundo. Futuros trabalhos devem, portanto, desenvolver as seguintes ideias: 1) a rejeição de uma hierarquia de seres que convenientemente coloque o ser humano desempenhando papel central no universo. Acredito que não há diferença de natureza entre nós e outros animais nãohumanos. Contudo, uma diferença de graus também pode ser enganosa, uma vez que poderia mostrar o desenvolvimento evolutivo como um processo linear cuja culminância, convenientemente, seriamos nós. A distinção entre animais humanos e não humanos a partir do correlato papel da razão deveria ser, por assim dizer, porosa. 2) deve-se poder deixar em aberto outras formas de racionalidade. Concordo com Wittgenstein, quando afirma em seu “Sobre a Certeza” (§475) que somos animais em um estado muito primitivo.

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