2017 As tensas relações entre autonomia e regulação da ética no campo da pesquisa educacional

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As tensas relações entre autonomia e regulação da ética no campo da
pesquisa educacional.

Mónica de la Fare - Isabel Cristina de Moura Carvalho



Os atravessamentos dos processos regulatórios da ética na pesquisa
envolvendo seres humanos e os espaços de pesquisa/formação em Educação

Este trabalho apresenta uma problematização dos processos e
dispositivos que regulam a ética na pesquisa envolvendo seres humanos.
Focaliza em algumas particularidades do campo da pesquisa em temas de
Educação e é resultado de um exercício reflexivo produzido a partir de duas
experiências. A primeira vinculada ao trabalho de avaliação de projetos de
pesquisa da Comissão Científica do Programa de Pós-Graduação em Educação da
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PPGEd/PUCRS) e aos
dispositivos implementados nesse espaço para adequar os aspectos referidos
à regulação da ética na pesquisa educacional às regulamentações vigentes.

A segunda experiência se deriva da coautoria desenvolvida a partir da
realização de produções prévias (DE LA FARE; MACHADO; CARVALHO, 2014 e
MACHADO; CARVALHO, 2014). Num desses trabalhos buscamos sistematizar um
conjunto de contribuições provenientes de pesquisas e reflexões teóricas
das Ciências Humanas e Sociais para potenciar reflexões e produções no
campo da produção científica em temas de Educação. Essa pesquisa
bibliográfica nos permitiu reconhecer as relações entre o processo de
institucionalização da atual normativa da regulação da ética na pesquisa e
o princípio de autonomia proposto pela Teoria Principialista da ética
biomédica, identificável nas primeiras produções desse campo, questão que
retomaremos brevemente neste trabalho.

Outro dos resultados desse estudo foi a identificação de escassas
publicações que abordam questões éticas na pesquisa educacional ou
referidas ao tema da regulação da ética na pesquisa em temas de
Educação[1]. Nessa análise foi possível identificar, em algumas dessas
produções, correspondências com a Teoria Principialista assim como
propostas orientadas à adequação da pesquisa educacional aos princípios
dessa teoria.

As duas experiências mencionadas nos conduziram à elaboração desta
produção, no qual propomos problematizar o tema da regulação da ética na
pesquisa como um assunto de formação em pesquisa mas que de regulação e
controle. Para isso, trabalhamos com a noção de autonomia dos campos
científicos, proveniente dos construtos teóricos da teoria de Pierre
Bourdieu para o caso particular do campo científico (BOURDIEU, 1976; 2003,
2004). Essa teoria orienta a elaboração de análises da ciência como espaços
sociais, nos que competência técnica e poder social são considerados
indissociáveis. O espaço social da ciência, ou seja, o campo científico, é
teorizado como "o espaço do jogo" de uma luta de competência pelo monopólio
da autoridade científica, advertindo que é o próprio funcionamento do campo
que produz uma forma específica de interesse (BOURDIEU, 1976). Resulta
necessário esclarecer, para evitar confusões que a noção de campo,

pulveriza também todo tipo de oposições comuns,
começando pela oposição entre consenso e conflito, e,
embora elimine a visão ingenuamente idealista do mundo
científico como comunidade solidária ou como "reino das
finalidades" (no sentido kantiano), se opõe também à visão
não menos parcial da vida científica como "guerra"
(BOURDIEU, 2003, p. 85)


Baranger (2004) nos adverte sobre a visão otimista e pessimista de
Bourdieu em relação à ciência, sustentada na teorização do campo científico
que, por uma parte é um espaço social como todos os outros e por outra, "um
mundo aparte", sendo assim como o autor francês titula um dos capítulos de
seus últimos livros (BOURDIEU, 2003), publicação em que completa e
complementa sua primeira teorização sobre o campo científico, desenvolvida
inicialmente em seu artigo da década de 1970 (BOURDIEU, 1976). No marco
dessa, a teoria a noção de autonomia, adquire sentido para compreender que
um campo científico está sometido a pressões (exteriores) e atravessado por
tensões. A relativa autonomia de um campo, em relação ao sistema de forças
que constituem sua estrutura –também entendida como uma trama de tensões-,
reside na relativa independência desse espaço para lidar com as forças que
se exercem sobre ele (pressões) e uma das características que diferenciam
maiormente os campos é seu grau de autonomia, de relativa autonomia
(BOURDIEU, 2003).

Entendemos que o panorama dos debates atuais exige revisar noções e
conceitos -que se instalam como pontos centrais de discussão- para uma
problematização dos princípios éticos que fundamente a regulação da ética
em pesquisa em Ciências Humanas e Sociais, a partir de bases conceituais
mais próximas às tradições do campo educacional, distante -em muitos casos-
da tradição biomédica.




Possibilidades de movimentação da regulação da ética num Programa de Pós-
Graduação

Propomos, nesta segunda parte, problematizar as possibilidades de
instituição de dinâmicas de regulação da ética em programas de pós-
graduação em educação, a partir da apresentação de circuitos e
procedimentos operacionalizados pela Comissão Cientifica da Faculdade de
Educação (CC/FACED), no marco das iniciativas implementadas pela PUC/RS na
regulação da ética na pesquisa envolvendo seres humanos, que remontam ao
início da década de noventa. Tal problematização apresenta, em linhas
gerais, pontos-chave dos percursos da institucionalização da ética na
referida universidade e aponta, como exercício de pensamento, os pontos em
que essas iniciativas poderiam bifurcar em estratégias de regulação ética
próprias do campo educacional. As tensões, no sentido de uma ética amoldada
pela Teoria Principialista -que anima uma ética conforme às questões
próprias da pesquisa com seres humanos da tradição em saúde-, se fazem
sentir pela via da regulação legal em vigor, estendida a toda pesquisa
acadêmica.

O discurso institucional localiza, nos inicios da década de 1990, os
começos do processo de institucionalização de processos de regulação da
ética em pesquisa na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul,
através da criação do Comitê de Ética em pesquisa e posteriormente de
outros espaços de regulação[2]. Nesse processo de criação de dispositivos
regulatórios, para o trabalho articulado das unidades acadêmicas junto a
esse comitê, foram criadas as Comissões Científicas das Unidades
Acadêmicas, definidas como "órgãos ligados diretamente às respectivas
direções das Unidades Universitárias da PUCRS, constituindo-se em
instâncias avaliativas relacionadas às atividades de pesquisa realizadas no
âmbito das Unidades"[3]. As funções dessas comissões foram definidas pela
própria universidade, dentre outras, nos interessa destacar: a de avalição
de projetos de pesquisa (a partir dos seguintes critérios: "expectativa de
geração de conhecimento, principalmente exequibilidade e relevância
compatível ao grau acadêmico ao qual se propõe, e quanto aos aspectos
científicos e metodológicos" e a de "encaminhamento dos projetos de
pesquisa, quando necessário, a outras instâncias da universidade,
especialmente ao Comitê de Ética em Pesquisa (CEP/PUCRS) e/ou ao CEUA
(Comitê de Ética para o Uso de Animais), de acordo com a regulamentação
vigente".[4]

Para desenvolver essas funções a CC/FACED, no caso dos projetos de
pesquisa de mestrandos e doutorandos, estabeleceu que os mesmos sejam
encaminhados a dita comissão logo do parecer emitido pelo jurado da banca
de qualificação. Seguidamente, o procedimento habitual consiste em
confirmar a avaliação já efetivada pelos pares que conformam as bancas
examinadoras. Em relação aos encaminhamentos ao CEP/PUCRS, se realiza a
revisão da documentação apresentada nos projetos, que deve incluir uma
carta de apresentação do pesquisador ante as instancias ou âmbitos nos que
realizará seu trabalho empírico e a apresentação de um modelo de Termo de
Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), nos casos em que corresponde seu
uso. Esses são os procedimentos utilizados para avaliar os projetos de
pesquisa dos pós-graduandos.

O resultado habitual dessas avaliações é que as pesquisas não
apresentam riscos nem procedimentos invasivos para a população que dela
participa. Posteriormente se procede à devolução da documentação com um
parecer protocolizado, que assinala como facultativo para os pesquisadores
(neste caso a dupla orientador-orientando) o envio do projeto de pesquisa
ao CEP/PUCRS.

A caracterização desse circuito de avaliação e de seus procedimentos
permite resgatar duas questões relevantes. Por uma parte, a reafirmação que
a CC/FACED faz da avaliação realizada pelos pares nas bancas de
qualificação, instancias validadas pelo próprio regulamento do Programa de
Pós-Graduação, quando o dispositivo institucional coloca nesse espaço a
possibilidade de exercício de uma nova avaliação. Por outra, o
reconhecimento da autonomia dos pesquisadores em relação à decisão de
enviar os projetos de pesquisa ao CEP/PUCRS. Destaca-se a ênfase colocada
no protagonismo da dupla orientador-orientando no processo da regulação da
ética na pesquisa e valoriza-se a relevância do espaço curricular da
orientação como âmbito da formação em pesquisa, processo que demanda a
reflexão inerente ao oficio de investigar e aos aspectos teórico-
metodológicos envolvidos, incluindo as discussões éticas vinculadas a ditos
processos.

Complementarmente, no espaço curricular da disciplina Pesquisa em
Educação, obrigatório para mestrandos e doutorandos, o tema da regulação da
ética na pesquisa em Educação vem ganhando maior espaço, considerando as
articulações que esse assunto tem com as dimensões epistemológicas e
metodológicas das pesquisas. Leitura, revisão histórica e discussão de
normativas vigentes referidas aos processos reguladores integram os
conteúdos dessa disciplina.

A proposta que estamos desenvolvendo consiste em incluir esse tópico
como uma das dimensões da reflexividade do processo de pesquisa tentando
que esse espaço de formação, complementar ao de orientação, contribua para
o fortalecimento da abordagem da regulação da ética na pesquisa como uma
dimensão de análise dos processos de investigação. Isso remete a produzir
reflexões e debates sobre as particularidades de "procedimentos técnicos
contextuais, necessariamente modulados pelas especificidades das diferentes
áreas de conhecimento e pelas contingências inerentes a cada pesquisa"
(BEVILAQUA, 2010, p. 88).

Nesse sentido, a abordagem e o trabalho com esse tema nessa disciplina
tentam provocar um distanciamento da redução do processo de reflexão sobre
a ética na pesquisa à obediência a normas e ao cumprimento de requisitos
vinculados ao preenchimento de formulários. Nossas experiências na formação
de pesquisadores nos orientam a afirmar uma importante vinculação entre
formação, autoria e autonomia nos processos de formação em pesquisa, assim
como a considerar indissociáveis o binômio pesquisa/formação num Programa
de Pós-Graduação. Como foi assinalado em outra oportunidade, na Pós-
Graduação, as dissertações de mestrado e especialmente as teses de
doutorado são resultado de dois processos indissociáveis: a formação de um
pesquisador orientado por um pesquisador com um capital científico
legitimado e a construção de um produto da atividade científica por parte
de um potencial "recém chegado" ao espaço de jogo de disputas de posições
num campo científico (DE LA FARE; LENZ, 2012).[5]

É a partir da construção deste ponto de vista que entendemos que o
tema da regulação da ética na pesquisa constitui-se como tema central da
formação em pesquisa mais que como um assunto de controle normativo.
Pensamos que o contexto atual de discussões sobre o tema de regulação da
ética na pesquisa envolvendo seres humanos representa uma evidente
possibilidade de aprofundar as análises e discussões sobre as
especificidades da pesquisa científica em temas de Educação. Em nossa
perspectiva, a discussão ética não pode ser dissociada do conjunto de
processos e procedimentos que envolvem a revisão de aspectos teórico-
metodológicos e epistemológicos de nossas pesquisas, envolvidos no ofício
de investigar e na formação de pesquisadores.



A normativa atual de regulação da ética nas pesquisas que envolvem seres
humanos: nos rastros das marcas da Teoria Principialista



A regulação da ética nas pesquisas que envolvem seres humanos é
atualmente regida, no Brasil, pela Resolução n. 466/12 do Conselho Nacional
de Saúde (CNS)[6]. Essa norma substituiu a Resolução n. 196/96, que
expandiu a todas as áreas do conhecimento um dispositivo regulatório
inicialmente criado para as pesquisas realizadas na área da saúde.

A Resolução n. 196/96 definia o termo "pesquisa envolvendo seres
humanos" como "pesquisa que, individual ou coletivamente, envolva o ser
humano, de forma direta ou indireta, em sua totalidade ou partes dele,
incluindo o manejo de informações ou materiais." (BRASIL, 1996). A
Resolução vigente, n. 466/12, apresenta uma definição similar, porém a
condição "que envolva o ser humano" é redefinida, no que se apresenta como
indício de tentativa de universalização do sistema regulatório a todos os
campos do conhecimento: "que tenha como participante o ser humano, em sua
totalidade ou partes dele, e o envolva de forma direta ou indireta,
incluindo o manejo de seus dados, informações ou materiais biológicos"
(BRASIL, 2012).

Também destacamos que a primeira norma dessa sucessão de resoluções é
de finais da década de 1980, e em seu primeiro artigo estabelecia uma outra
delimitação do alcance dessa regulação: "Esta Resolução tem por objetivo
normatizar a pesquisa na área de saúde. É de aplicação em todo o território
nacional e suas disposições são de ordem pública e interesse social.
(BRASIL, 1988).[7]

A Resolução n. 196/96 e, posteriormente, a Resolução n. 466/12
mencionam um conjunto de documentos vinculados à defesa dos direitos
humanos mas, na sua dimensão operacional, explicitam suas bases teóricas
nos quatro princípios da Teoria Principialista da Bioética:

A presente Resolução incorpora, sob a ótica do
indivíduo e das coletividades, referenciais da bioética,
tais como, autonomia, não maleficência, beneficência,
justiça e equidade, dentre outros, e visa a assegurar os
direitos e deveres que dizem respeito aos participantes da
pesquisa, à comunidade científica e ao Estado. Projetos de
pesquisa envolvendo seres humanos deverão atender a esta
Resolução. (BRASIL, 2012).

As últimas disposições dessa extensa resolução reconhecem
especificidades éticas nas ciências sociais e humanas: "XIII.3-As
especificidades éticas das pesquisas nas ciências sociais e humanas e de
outras que se utilizam de metodologias próprias dessas áreas serão
contempladas em resolução complementar, dadas suas particularidades."
(BRASIL, ,2012).[8]

No entanto, conjectura-se que pouca atenção se tem dado a esse artigo
e os efeitos disso se fazem sentir na atuação generalizada dos CEP a partir
das bases estabelecidas para a pesquisa em saúde. Uma vez assentadas as
práticas de análise dos projetos segundo as demandas naturalizadas para as
ações em saúde, pelo cumprimento dos dispositivos legais em vigência, o
debate se torna confuso e perde os contornos quando se trata de pensar ou
viabilizar pesquisas no campo das Ciências Sociais e Humanas,
particularmente, no que toca às ações de pesquisa em Educação. Como
assinala a antropóloga Claudia Fonseca, "as preocupações éticas se
concentram, desde o início, nos exageros da ciência médica. E são soluções
cunhadas para sanar problemas nessa área disciplinar que têm se alastrado
para o resto das ciências" (FONSECA, 2010).

Pensamos que no cenário atual de debates e discussões resulta
necessário desprender as discussões sobre regulação da ética em pesquisa
das bases conceituais da Teoria Principialista e de seus efeitos na
pesquisa nas Ciências Humanas e Sociais, assunto que desenvolveremos na
próxima subseção, focalizando a discussão na questão da autonomia.
Entendemos que o sentido atribuído por essa teoria à autonomia e, em se
mesma a ideia de uma regulação pela via de princípios morais, resulta
insuficiente para problematizar a complexidade de dilemas éticos presentes
em nossas pesquisas.



Uma trama de autonomias em tensão: interrogações sobre usos e apropriações
da noção de autonomia na pesquisa

A ênfase colocada nos quatro princípios da Bioética pela sucessão de
normativas, que regulam a pesquisa em saúde a partir de finais da década de
1980 e que interferem na regulação das pesquisas que envolvem seres humanos
a partir dos últimos anos da década de 1990, nos levou a identificar seu
campo de proveniência, questão que já foi desenvolvida com maior detalhe
num trabalho anterior (DE LA FARE, MACHADO, CARVALHO, 2014) e que retomamos
sinteticamente nesta produção.

Os princípios éticos presentes na normativa atual foram elaborados no
contexto da denominada Teoria Principialista, divulgada num livro produzido
em coautoria por um filósofo e um teólogo, Tom Bouchamp e James Childress.
O livro, titulado Princípios da Ética Biomédica foi publicado em 1979 e se
vincula a um relatório elaborado por uma Comissão do governo dos EEUU em
1978, identificado como Relatório Belmont. Essa comissão, conformada por um
grupo de especialistas foi convocada em 1974, ante o escândalo público
provocado pela atuação de investigadores da área médica, que realizaram
experimentações abusivas em populações vulneráveis. Tom Bouchamp integrou
essa comissão e foi um dos autores do relatório citado.

Os princípios da Teoria Principialista já mencionados, entendidos como
ferramentas de regulação moral, foram construídos para resolver conflitos
éticos na área médica. Um desses princípios é o da autonomia, definida como
respeito às pessoas que participam de uma pesquisa e associada a
procedimentos de obtenção do consentimento para participar da pesquisa.
Essas são as ideias que sustentam, na atualidade, o uso compulsório do
protocolo denominado Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE),
documento que legaliza, segundo a semântica do discurso normativo, a
anuência da participação dos sujeitos nas pesquisas.

II.2 - assentimento livre e esclarecido - anuência do
participante da pesquisa, criança, adolescente ou
legalmente incapaz, livre de vícios (simulação,
fraude ou erro), dependência, subordinação ou
intimidação. Tais participantes devem ser
esclarecidos sobre a natureza da pesquisa, seus
objetivos, métodos, benefícios previstos, potenciais
riscos e o incômodo que esta possa lhes acarretar, na
medida de sua compreensão e respeitados em suas
singularidades. (BRASIL, 2012).

II.23 - Termo de Consentimento Livre e Esclarecido -
TCLE - documento no qual é explicitado o
consentimento livre e esclarecido do participante
e/ou de seu responsável legal, de forma escrita,
devendo conter todas as informações necessárias, em
linguagem clara e objetiva, de fácil entendimento,
para o mais completo esclarecimento sobre a pesquisa
a qual se propõe participar (BRASIL, 2012).

Pensamos que a complexidade dos dilemas éticos na produção científica
das ciências humanas e sociais necessita subverter os limites conceituais
impostos por uma normativa, em geral, e mais ainda quando impõe essa única
referência para pensar a autonomia, na trama de dilemas éticos emergentes
nas particularidades dos processos e procedimentos de cada pesquisa
contextualizada nas especificidades de diferentes áreas de conhecimento.
Tentamos ser coerentes com a defesa do pluralismo teórico metodológico das
Ciências Humanas e Sociais e também buscamos contribuir com outras
perspectivas aos debates sobre a ética na pesquisa e a sua regulação. Esse
ponto de vista propõe deslocar dessa única visão as discussões sobre o tema
da autonomia e conduz a um movimento de abertura a outras dimensões que
permitam resgatar as diferentes perspectivas que podem representar as
contribuições provenientes do conhecimento acumulado nas Ciências Humanas e
Sociais.

Esta perspectiva orienta a produzir um movimento de apropriação ou
talvez de (re)apropriação dos pontos de vista a partir dos quais é possível
problematizar dilemas da pesquisa científica. Especificamente em relação às
discussões sobre autonomia resulta paradoxal que a pesquisa educacional,
com importantes teorizações de autores clássicos e contemporâneos, que
abordam desde diferentes delimitações e perspectivas teorizações o tema da
autonomia, limite suas reflexões sobre dilemas éticos à ideia de autonomia
trazida pela Teoria Principialista.

A modo de exemplo, e sem pretensões de exaustividade, se reconhecem no
campo educacional construções teóricas que conceituam a questão da
autonomia desde os inícios do século passado, como se identifica na obra de
autores que podemos considerar clássicos. Como evidencia, mencionamos
trabalhos de Jean Piaget da década de 1930 sobre a educação moral das
crianças (PIAGET, 1996) assim como os estudos da tradição funcionalista da
sociologia da educação, encarnados na obra de Emile Durkheim (DURKHEIM,
2003), também retomados por Piaget no trabalho citado.

Desde outras perspectivas, autores e produções das chamadas Pedagogias
Libertárias agregam outro importante conjunto de contribuições para pensar
o tema da autonomia nos processos educacionais. As noções de autonomia,
ação direta, autoeducação, dentre outras, são teorizadas nas obras de
autores como Edmond-Marc Lipiansky (LIPIANSKY, 1999), Ferrer y Guardia
(1906)[9], Maria Lacerda de Moura (MOURA, 1933) e Julio Barcos (1927)[10].
A discussão do conceito de autonomia remete também a uma significativa
revisão de numerosas produções da Filosofia da Educação. Não se pode deixar
de mencionar a importância dessa noção para Paulo Freire, que dedicou uma
obra específica à Pedagogia da Autonomia (FREIRE, 2014).

Por último, nesta rápida enumeração, também referimos que o tema da
autonomia, em relação à instituição escolar, também foi trabalhado em
pesquisas que focalizam suas análises na política educacional e na gestão
escolar trazendo também contribuições para a discussão sobre autonomia
nesses processos.

A menção dessas produções do campo educacional coloca em evidência a
urgência de ampliar nossas análises e discussões sobre o tema da autonomia
e os dilemas éticos em nossas pesquisas, iniciando, talvez, pela revisão
das contribuições das diferentes tradições do campo educacional.

Trata-se de problematizar uma trama de autonomias em tensão, que
atravessam os processos e procedimentos envolvidos no ofício de pesquisar e
na formação de pesquisadores. Nesse sentido, retomamos a afirmação
apresentada na introdução deste trabalho, em relação a que no espaço social
da pesquisa em temas de Educação os dilemas éticos constituem mais um
assunto de formação de pesquisadores que de controle e de regulação
normativa. Assim, propomos produzir movimentos, deslocamentos, que nos
permitam reconhecer, identificar, interrogar -no momento atual de debates e
polêmicas da regulação da pesquisa em Ciências Humanas e Sociais- os
próprios dilemas éticos de fazer pesquisa em temas de Educação.



Particularidades da pesquisa educacional e dilemas éticos: concluindo com
os inícios de uma reflexão

A partir do movimento de reflexão proposto e do resgate das
especificidades da pesquisa educacional para pensar dilemas éticos, nesta
última subseção pretendemos apresentar sinteticamente aspectos que
identificamos como particularidades do campo da pesquisa educacional e que
podem oferecer subsídios para as discussões sobre ética e regulação da
ética na pesquisa. Novamente esclarecemos que não estamos querendo
trabalhar com um critério de exaustividade, outrossim, com a ideia de
abertura e exploração de possibilidades, questão vinculada a um momento de
apropriação de discussões que até pouco tempo, e ainda hoje, resultam um
pouco distantes.

Bernard Charlot, num artigo em que analisa e interroga as
especificidades do campo educacional na pesquisa científica, reconhece como
uma característica da educação como área de saber, "o fato dela ser uma
área na qual circulam, ao mesmo tempo, conhecimentos (por vezes de origens
diversas), práticas e políticas" (CHARLOT, 2006, p. 9) e acrescenta:

é um campo de saber fundamentalmente mestiço, em que se
cruzam, se interpelam e, por vezes, se fecundam, de um
lado, conhecimentos, conceitos e métodos originários de
campos disciplinares múltiplos, e, de outro lado, saberes,
práticas, fins éticos e políticos. (Ibíd).

O autor reconhece que essa condição mestiça não é privativa do campo
da pesquisa em educação, mas, se identifica em disciplinas como as ciências
políticas, as ciências de administração, o urbanismo e até a própria
medicina: "são disciplinas que possibilitam a inserção da inteligibilidade
e da racionalidade em campos prático-éticos complexos e, por atuarem nesses
campos, que correm o risco de ser contaminadas pelo utilitarismo e pelo
irracional" (Ibíd).

A essa condição mestiça apontada por Charlot acrescentamos que o campo
da pesquisa educacional pode ser pensado como um espaço
multiparadigmático[11], constituído a partir de diferentes tradições
disciplinares, que compreendem distintas ordens de referências e práticas.

Nesse sentido, a diferença das discussões sobre regulação da ética na
pesquisa em outros espaços das Ciências Humanas e Sociais, as análises
reflexivas sobre os dilemas éticos envolvidos nos processos de pesquisa não
podem limitar-se às pesquisas elaboradas a partir da construção de dados
qualitativos, comumente denominadas como "pesquisas qualitativas". As
pesquisas que priorizam processos de construção de dados quantitativos não
estão excetuadas de dilemas éticos, também se reconhece a existência de "um
outro" ou de "outros" nos processos e procedimentos da generalização
estatística. As categorias utilizadas pela estatística educacional, muitas
vezes reproduzidas no campo da pesquisa em temas de Educação, contribuem
para reforçar estereótipos e preconceitos, em geral vinculados às
diferentes condições dos sujeitos da educação. Um exemplo são as análises
que enfatizam a referência a classificações generalizantes tais como:
"analfabetos", "evadidos" ou até "desertores" do sistema educacional. Esta
questão recoloca a discussão sobre regulação da ética na pesquisa em temas
de educação que, pelas suas características, exige pensar dilemas éticos na
construção assim como na divulgação de investigações que trabalham com
dados qualitativos, quantitativos ou ambos combinados.

Assim, além de uma condição mestiça e de uma trama multiparadigmática
a pesquisa em educação se beneficiaria da revisão de alguns dos critérios
de validação empírica, possíveis de serem reconhecidos nos processos de
avaliação de projetos e de pesquisas divulgadas e/ou publicadas. Esses
critérios têm operado, muitas vezes, em nome de uma pretensa
cientificidade, como exigência de identificar (mais que caracterizar,
descrever, analisar, compreender ou apresentar) determinada instituição,
comunidade, grupo ou espaço.

Nos inícios dos anos 2000 uma análise sobre o campo da pesquisa
educacional, elaborado por Bernardete A. Gatti, reconhecia o imediatismo
enquanto à escolha dos problemas de pesquisa e o predomínio pela
preocupação com a aplicabilidade direta e imediata das conclusões que em
geral aparecem como recomendações (GATTI, 2001). Tendência esta que esse
trabalho identificava como atenuada, mas ainda como uma presença constante
na pesquisa educacional. Em sintonia com a identificação de certos
imediatismos que permanecem, reconhecemos que no campo da pesquisa
educacional convergem atividades de pesquisa com outras atividades
profissionais: formação em espaços escolares ou não escolares, atividades
de formação e extensão universitária, ações profissionais desenvolvidas no
contexto de programas o projetos sócio-educativos, etc. Aqui novamente
encontramos a condição mestiça apontada por Bernard Charlot.

Essa particularidade, reconhecível em muitas de nossas pesquisas, nos
interpela em relação aos processos de construção de problemas de
investigação, que às vezes -na urgência por gerar respostas a problemáticas
identificadas através de diversas ações profissionais- geram certos vazios
nas perguntas de pesquisa, ou seja, na construção de problemas de
conhecimento e incluem o trabalho com dados empíricos coletados a partir da
participação em espaços em que os pesquisadores em formação (doutorandos e
mestrandos) ou os já formados desenvolvem outras atividades.

Essa outra característica inclui um conjunto de aspectos que são
matéria de discussões metodológicas indissociáveis de diferentes posições
epistemológicas. Nesse marco, a formação em pesquisa adquire um carácter
extremadamente relevante frente aos dilemas éticos que se apresentam em
relação ao uso de informações utilizadas nas pesquisas, coletadas em
espaços nos que se desenvolvem outras atividades profissionais. Novamente
afirmamos que mais que o cumprimento da assinatura do TCLE é o caminho da
formação que permitirá desenvolver o trabalho de um pesquisador que,
exercendo num mesmo espaço atividades que incluem a pesquisa mas que não se
restringem a ela, poderá distinguir as especificidades do ofício de
pesquisar para explicitar, esclarecer e apresentar seu trabalho de pesquisa
na construção das articulações necessárias para o trabalho de campo ou a
coleta de dados junto com os outros participantes da pesquisa.

Todo isso nos conduz a interrogar aspectos do oficio de pesquisar em
temas de Educação. A regulação da ética na pesquisa nos convida a revisar
conceitos, repensar dispositivos de regulação outros –que não são os
normativos- e a produzir (re)apropriações das reflexões e debates sobre os
dilemas éticos no campo da pesquisa educacional. Nesse sentido, novamente
reiteramos a proposta de pensar a regulação da ética na pesquisa envolvendo
seres humanos como um tema que necessita ser prioritariamente trabalhado
nos dispositivos de formação em pesquisa e isso implica fortalecer as
possibilidades de reflexão inerentes ao ofício de pesquisar em temas de
Educação.



Referências

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2010, p. 39-70.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia. Saberes necessários à prática
educativa. 48ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2014.

GATTI, Bernardete A. Implicações e perspectivas da pesquisa educacional no
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LIPIANSKY, Edmond-Marc. A Pedagogia Libertária. São Paulo: Imaginário,
1999.

MOURA, María Lacerda de. Serviço militar obrigatório para a mulher? Recuso-
me! Denuncio! São Paulo: Editorial "A Sementeira", 1933.

PIAGET, Jean. Os procedimentos da educação moral. In: PIAGET et al (Org.).
Cinco estudos de Educação Moral. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1996, p. 1-
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RAMOS ZINCKE, Claudio. Cómo investigan los sociólogos chilenos en los
albores del siglo XXI: paradigmas y herramientas del oficio. Persona y
Sociedad. Universidad Alberto Hurtado, v. XIX, n. 3, Santigo de Chile,
2005, p. 85-119. Disponible en:
http://www.sociologia.uahurtado.cl/publicaciones/sociologos_chilenos.pdf


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[1] Informações mais detalhadas sobre os trabalhos do campo educacional
levantados e analisados para esse estudo podem ser encontrados em: de la
Fare; Machado; Carvalho (2014).

[2] Comitê de Bioética Clínica (Hospital São Lucas), Comissão de ética no
uso de animais (CEUA) e Comitê de ética do desenvolvimento científico e
tecnológico. Informações institucionais disponíveis no portal da
universidade, disponível em:
http://www.pucrs.br/portal/?p=pesquisa
[3] Essas comissões estão integradas por docentes credenciados nos
programas de Pós-Graduação e vinculados a grupo de pesquisa do CNPq e se
organizam se organizam a partir do trabalho de um professor coordenador e
um número de membros que varia de 2 a 6, segundo a unidade acadêmica. A
CC/FACED funciona com uma coordenadora e três professoras. O mandato das
comissões científicas é de um ano, com possibilidade de recondução e com
renovação de 1/3 de seus membros a cada novo mandato. Informações
institucionais públicas do portal-web da universidade, disponíveis em:
http://www.pucrs.br/portal/?p=pesquisa
[4] Informações institucionais públicas do portal-web da universidade,
disponíveis em:
http://www.pucrs.br/portal/?p=pesquisa



[5] O trabalho citado é resultado de uma pesquisa em que foram utilizados
conceitos da teoria de Pierre Bourdieu.

[6] A história do campo da Bioética não se reduz a essas normativas, no
trabalho em coautoria já citado aprofundamos a abordagem dessa questão.
[7] O segundo artigo dessa mesma norma define as ações que a área da saúde
compreende: "conhecimento dos processos biológicos e psicológicos nos seres
humanos", "conhecimento dos vínculos entre as causas de doenças, a prática
médica e a estrutura social", "prevenção e controle dos problemas de
saúde", "conhecimento e avaliação dos efeitos nocivos do ambiente na
saúde"; "estudo de técnicas e métodos que se recomendam ou empreguem para a
prestação de serviços de saúde" e "produção de insumos para a saúde".
(BRASIL, 1988).


[8] Foi conformado um Grupo de Trabalho (GT) das Ciências Humanas e Sociais
(Comissão Nacional de Ética em Pesquisa – CONEP), com representações de
diferentes associações profissionais dessas áreas –incluída a Associação
Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPED), que se encontra
trabalhando na elaboração dessa resolução específica. Informações
disponíveis sobre as atividades e avanços desse GT podem ser consultadas no
portal da ANPED: http://www.anped.org.br/anped/etica-na-
pesquisa/apresentacao

[9] Uma apresentação da obra de Francisco Ferrer Guardia pode ser
consultada no trabalho de Assad (1985).
[10] Um dos escritos de Julio Barcos, de 1927 y outras produções foram
recentemente reeditadas pela Universidade Pedagógica de Argentina (BARCOS,
2013).
[11] A caracterização de um campo como multiparadigmático implica
reconhecer nesse espaço marcadas diferenças epistemológicas e ontológicas,
com acumulação de pesquisas elaboradas a partir de cada paradigma e com
sintomas de incomensurabilidade entre paradigmas, cada um com seus
procedimentos próprios considerados como aceitáveis, com sua noção de prova
empírica e com sua própria conceituação de validez (Ramos Zincke, 2005, p.
87). Esse autor nos adverte que essas diferenças não podem ser
caracterizadas como impermeabilidades ou clausuras plenas, existem
filtrações e nos devires das disciplinas, importações e traduções entre
paradigma (Ibíd.).
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