(2017) Percurso e história do passado em espanhol: considerações sobre o processo de gramaticalização do Perfecto Compuesto

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Descrição do Produto

• Anais •

16o Congresso Brasileiro de Professores de Espanhol 1o Simpósio Nacional de Professores de Espanhol em Formação

1a edição

ISBN 978-85-9513-016-6

São Carlos 2017

As opiniões e declarações contidas nos artigos desta coletânea são de responsabilidade única e exclusiva de seus autores e autoras, não sendo, necessariamente, coincidentes com as da Comissão Organizadora do Evento. Os artigos que a integram são, ainda, de inteira responsabilidade de seus autores e autoras no que respeita a conteúdo, revisão e formatação técnica, não cabendo à Comissão qualquer responsabilidade legal sobre os quesitos aqui referidos.

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE Ficha catalográfica elaborada pelo Sistema CBL da Câmara Brasileira do Livro.

Edição digital • abril de 2017 • O presente arquivo é um formato PDF estático (925 p.), a partir do qual se originou o ePub2.

Ficha técnica Anais do 16o Congresso Brasileiro de Professores de Espanhol e do 1o Simpósio Nacional de Professores de Espanhol em Formação Organização Andreia dos Santos Menezes Antón Castro Míguez Neide Elias Revisão, projeto gráf ico e diagramação Rebeca Mega

Realização

Capa Rebeca Mega (sobre arte de Pedro Gentile)

APEESP - Associação de Professores de Espanhol do Estado de São Paulo Gestão 2014-2016 Diretoria Fábio Barbosa de Lima (presidente) Edilson da Silva Cruz (vice-presidente) Sheila Galvão da Silva (1ª secretária) Gustavo Walter Spandau (2º secretário) Glauce Gomes de Oliveira Cabral (1ª tesoureira) Camila de Lima Gervas (2ª tesoureira)

Apoio

Conselho Consultivo Renie Robim (presidente) Isabel Cristina Contro Castaldo Michele Costa Bruna Macedo de Oliveira (suplente) Conselho Fiscal Daniela Ioná Brianezi (presidenta) Andreia dos Santos Menezes Jorge Rodrigues de Souza Júnior Franklin Larrubia Valverde (suplente) 16o Congresso Brasileiro de Professores de Espanhol e 1o Simpósio Nacional de Professores de Espanhol em Formação 28 a 31 de julho de 2015 | São Carlos-SP

Comissão Organizadora Coordenação da Comissão Organizadora Andreia dos Santos Menezes (Unifesp/APEESP) Antón Castro Míguez (UFSCar) Fernanda Castelano Rodrigues (UFSCar) Silvia Etel Gutiérrez Bottaro (Unifesp) Comissão Organizadora Daniela Ioná Brianezi (APEESP) Graciela Foglia (Unifesp) Greice Nóbrega e Sousa (Unifesp) Ivan Martin (Unifesp) Joana Rodrigues (Unifesp) Larissa F. Locoselli (UNILA) Neide Elias (Unifesp) Rosa Yokota (UFSCar) Rosângela Dantas (Unifesp/APEESP) Wilson Alves-Bezerra (UFSCar) Conselho Consultivo Francisca Pereira Maia (APROFER) Lídia Silva dos Santos (APEEPE) Renato Vázquez (APEERJ) Silvania Monteiro dos Santos (APEDF) Simone Rugilo (APEEPR) Comitê Científ ico Local Adrián Pablo Fanjul (USP) Ana Cecilia Olmos (USP) Angélica K. G. Simão (Unesp – S. José do Rio Preto) Antonio Esteves (Unesp – Assis) Kelly C. Henschel P. de Carvalho (Unesp – Assis) María Dolores Aybar Ramírez (Unesp – Araraquara) Mirian Gárate (Unicamp) Nildicéia Aparecida Rocha (Unesp – Araraquara) Valéria De Marco (USP) Comitê Científico Nacional Alai Garcia Diniz (UNILA) Alfredo Cordiviola (UFPE) Carlos Henrique Lopes de Almeida (UFPA) Del Carmen Daher (UFF) Graciela Ravetti (UFMG) José Luis Martínez Amaro (UNB) Luiz Eduardo Fiori (UNIR) Luizette Guimarães de Barros (UFSC) Magnolia Brasil Barbosa do Nascimento (UFF) Márcia Paraquet (UFBA) Rhina Landos Martínez André (UFMT) Vera Lucia de Albuquerque Sant’Anna (UERJ)

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Sumário Apresentação..................................................................................................................... 15

• Conferências • Mesa de Abertura Línguas e Literaturas em Contato (29 de julho de 2015, no Teatro Florestan Fernandes) Neide Maia González.......................................................................................................... 25 Fabián Severo..................................................................................................................... 31 Ilan Stavans......................................................................................................................... 37

• Mesas Plenárias • Aspectos cognitivos e o ensino de espanhol como L2........................................................ 43 Elena Ortiz Preuss Associações de professores de espanhol: história e identidades em (re)construção........ 53 Dayala Paiva de Medeiros Vargens Ensino do espanhol e formação inicial: contribuições do projeto teletandem.......................... 61 Kelly Cristiane Henschel Pobbe de Carvalho Formação de professores e oferta de língua espanhola nas escolas: uma análise necessária...................................................................................................... 71 Andrea S. Ponte

• Conferência • Mesa de Encerramento Guaraní vs. jopara: ¿dos realidades lingüísticas o una? (31 de julho de 2015, no Teatro Florestan Fernandes) Hedy Penner....................................................................................................................... 83

• Comunicações • Congresso A Argentina através da “Casa Tomada” de Julio Cortázar................................................... 101 Zenilda Durci A formação de professores em contexto de fronteira: a constituição de um centro de memórias..................................................................................................... 113 Marilene Aparecida Lemos A implantação da Língua Espanhola na rede municipal de Niterói: registro de processo e análise da discussão dos conteúdos curriculares .......................... 119 Flávia Coutinho Ferreira Sampaio A Linguística Aplicada contemporânea e a formação de professores: questões de identidades sociais na elaboração de materiais didáticos............................. 129 Doris Cristina Vicente da Silva Matos A metáfora da viagem em Dom Quixote e El astronauta paraguayo................................. 137 Angela Cristina Dias do Rego Catonio “A moça tecelã” y “Doze reis e a moça no labirinto do vento”: Marina Colasanti en traducción......................................................................................... 145 Rivana Zaché Bylaardt 16o Congresso Brasileiro de Professores de Espanhol e 1o Simpósio Nacional de Professores de Espanhol em Formação 28 a 31 de julho de 2015 | São Carlos-SP

Panorama historiográfico da literatura hispano-americana .............................................. 669 Mônica Fernandes Barbosa Percepciones y cuestionamentos de la realidad y su conexión entre una imagen de sí y del otro: consideraciones sobre la experiencia PIBID en el curso de Letras/Espanhol ............................ 679 Ivani Cristina Silva Fernandes Percurso e história do passado em espanhol: considerações sobre o processo de gramaticalização do Perfecto Compuesto.................................................... 687 Leandro Silveira de Araujo Políticas de Educação Bilíngue nos EUA ............................................................................ 699 Thábata Christina Gomes de Lima Problemáticas e necessidades acerca da formação de um leitor brasileiro em língua espanhola ......................................................................................................... 711 Rafael Borges Ribeiro dos Santos Romance do Conquistador (1991): uma releitura do mito “donjuanesco” ........................ 717 Isis Milreu “Seminarios clase”: a aula de espanhol em uma sequência didática................................. 723 Joziane Ferraz de Assis “Sempre gostei da língua espanhola”: trajetórias de formação nas vozes de professores de espanhol............................................................................................... 733 Glíndia Victor e Rita Buzzi Raush Utopistas da América: as visões do porvir de Vasconcelos, Ureña e Carpentier................ 743 Amanda Brandão Araújo Moreno

• Comunicações • Simpósio A interculturalidade no Ensino de Espanhol no Brasil........................................................ 757 Marianna Maria Donadeli A ludicidade nas aulas de ELE para alunos do 6º ano do Ensino Fundamental.................. 767 Everson Nascimento Silva e Silvia Gabriela Brito Barbosa Aquí no hay quien viva: análise contrastiva de uma série espanhola e suas adaptações hispano-americanas........................................................................................ 775 Adilson da Silva As relações de poder no romance testemunhal “En cualquier lugar”, de Marta Traba................................................................................................................... 783 Giselle Bomfim Cerqueira Conversación al sur, de Marta Traba: entre a memória e a história................................... 789 Luana Isabel Silva de Assis La Celestina: reformulação e a construção da imagem da mulher nas versões cinematográficas de 1969 e 1996....................................................................................... 795 Regina Célia de Sousa Costa Marcas do gênero testemunhal em “Conversación al sur”, de Marta Traba, e em “Operación Masacre”, de Rodolfo Walsh.................................................................. 807 Kamilla Souza Santana Neutro, internacional e estándar: as diferentes nomenclaturas do espanhol utilizadas pelas propagandas e ofertas de emprego na internet....................................................... 813 Wendy de Oliveira dos Santos Nicarágua extrema: a sinestesia da violência de Estado na obra de Lizandro Chávez Alfaro.................................................................................................. 819 Sílvia Amancio de Oliveira 16o Congresso Brasileiro de Professores de Espanhol e 1o Simpósio Nacional de Professores de Espanhol em Formação 28 a 31 de julho de 2015 | São Carlos-SP

PERCURSO E HISTÓRIA DO PASSADO EM ESPANHOL: CONSIDERAÇÕES SOBRE O PROCESSO DE GRAMATICALIZAÇÃO DO PERFECTO COMPUESTO Leandro Silveira de Araujo Universidade Federal de Uberlândia (UFU) Universidade Estadual Júlio de Mesquita Filho (Unesp) – Faculdade de Ciências e Letras (FCLAR) Atentos à formação dos tempora, Romani (2006), Company Company (1983), Company Company e Cuétara Pride (2011) e Ledgeway (2011) observaram o comportamento diacrônico do sistema temporal das variedades românicas do latim e afirmam que um dos mais importantes desenvolvimentos do sistema verbal neolatino foi a criação de formas perifrásticas destinadas à expressão da anterioridade. Tendo em vista as implicações que a criação do Pretérito Perfeito Composto (PPC) trouxe para a expressão do passado na língua espanhola e a relativa estabilidade do Perfeito Simples (PPS), grande parte das discussões suscitadas por este trabalho se dedicará fundamentalmente ao estudo da forma composta, bem como a relação estabelecida diacronicamente com a forma simples. Sob o ponto de vista da gramaticalização, este estudo permite nos aproximar de ambas as formas verbais, respeitando a complexidade que rodeia suas origens e desenvolvimentos na expressão dos sentidos de passado absoluto e antepresente. Ao agirmos dessa maneira, esperamos encontrar, na história da língua, razões que auxiliem no esclarecimento do atual estado de uso dos pretéritos em variedades diatópicas do espanhol. Aliados à abordagem da gramaticalização, verificamos que o desenvolvimento do perfeito composto nas línguas românicas e, mais especificamente, no espanhol, caracteriza-se por uma gradual e progressiva mudança em direção a um estágio maior de abstração. Desse modo, os traços aspectuais (de resultado e persistência), próprios da origem da construção, vão se desbotando à medida que a forma composta vai se apropriando de valores mais temporais, o que lhe permite expressar valores como o de antepresente e, até mesmo, de passado absoluto. A evolução funcional sofrida pelo perfeito composto colocou-o em condição de competição com a forma simples na expressão dos respectivos valores. Frente à construção desta variável, vemos que as línguas românicas apresentaram diferentes ajustes.

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Do latim às línguas românicas: a mudança funcional da forma composta Harris (1982), Serrano (1994), Squartini e Bertinetto (2000), Company Company (2002), Company Company e Cuétara Pride (2011), Detges (2006), Romani (2006), Oliveira (2010), Araujo e Berlinck (2013), entre outros, mostram que a forma do perfeito composto passou por um longo processo de mudança semântica e formal, resultando, conforme a língua românica e/ou variedade linguística, num comportamento múltiplo no que diz respeito às funções desempenhadas e à forma assumida. O clássico trabalho de Harris (1982) sobre a evolução do perfeito composto nas línguas românicas mostra-nos que, desde sua origem, na língua latina, a forma composta passou por quatro grandes etapas de evolução, igualmente passíveis de contemplação num estudo sincrônico contemporâneo que confronte as várias línguas românicas e suas variedades. A figura a seguir resume o comportamento da forma composta:

Figura 1 Da evolução da forma composta nas línguas românicas segundo Harris (1982).

Na primeira etapa, a forma composta restringe-se à expressão de estados presentes resultantes de ações passadas, adquirindo, portanto, um valor resultativo. Esse é o uso observado na origem da perífrase no latim (1), nos estágios iniciais de formação da maior parte das línguas românicas, como no português (2) e espanhol (3) antigos, além do uso que ainda fazem alguns dialetos da Itália, como o calabrês e o siciliano (HARRIS, 1982; DETGES, 2006). (1) In ea provincia pecunias magnas collocatas habent.1 Têm capitais consideráveis colocados nesta província.2 (2) Noutra Aldeia, junto desta cidade, temos já feita uma casa à maneira de ermida.3 Em outra aldeia, junto desta cidade, já temos uma casa feita como uma ermida. (3) Grant cosa as perdida.4 Tens grande coisa perdida.

Em todas as frases, é possível inferir a existência de um estado final presente (possuir pecunias magnas, uma casa, grant cosa) resultante de uma ação anterior já concluída (colocar capitais, 1 Enunciado coletado por Andrés-Suárez (1994), do discurso de Cícero (106 a.C – 43 a.C) intitulado De imperio Gn. Pompei (66 a.C). 2 Adaptação da tradução feita por Andrés-Suárez (1994), no original: Tienen colocados en esta provincia capitales considerables. 3 Enunciado coletado por Barbosa (2008), de uma carta de P. Manuel da Nobrega, do ano de 1549. 4 Enunciado coletado por Alarcos LLorach (1972), do Libro de Alexandre, uma obra em verso da primeira metade do século XIII, que narra a vida de Alexandre Magno, rei da macedônia. Tradução nossa.

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fazer uma casa, perder grande coisa). Tendo em vista o comportamento sintático, é própria dessa etapa a possibilidade de intercalarmos o complemento (pecúnias magnas, uma casa, grant cosa) entre os elementos que compõem a construção (habent/temos/as + particípio passado), além da concordância em gênero e número entre o complemento e o particípio. Essas características indicam-nos que, nesse momento, os constituintes da construção resultativa ainda não desfrutavam de um estado de coesão. O comportamento vigente na segunda fase permite-nos observar um uso que parece ter se conservado no português brasileiro (4), no galego e em algumas variedades do espanhol (5). Tratase da expressão iterativa ou durativa de uma situação cujo início se deu no passado, mas que se mantém ainda no presente, tal como expressa o enunciado seguinte: (4) O governo de Cuba tem feito gestos de aproximação com administração americana5 (5) […] en el medio se van a ir buscando las alianzas que tradicionalmente ha tenido el peronismo con otros partidos. 6 [...] no meio vão ir procurando as alianças que tradicionalmente o peronismo tem feito com outros partidos.

Como se percebe, a forma composta passa a apresentar um status de maior coesão, uma vez que o particípio (feito, tenido) já não concorda com o complemento – “gestos/alianzas” e tampouco é possível posicionar esse complemento entre o auxiliar e o particípio. Tanto é assim que soa incomum no português brasileiro atual uma frase como (6). (6) O governo de Cuba tem gestos feitos de aproximação.

A terceira fase da evolução do passado composto corresponde ao valor de antepresente – uso considerado padrão na língua espanhola. Em outras palavras, trata-se da expressão de situações passadas (Momento do Evento – ME) que guardam relação com o Momento de Fala (MF), porque tanto o ME como o MF estão envoltos pela mesma conjuntura temporal.7 Vejamos essa situação de uso: (7) Este año han tirado trescientos millones de litros de agroquímicos. 8 Este ano jogaram trezentos milhões de litros de agrotóxicos.

Notemos que tanto o evento (tirar trescientos millones de litros de agroquímicos) quanto o ato de enunciação ocorrem na mesma conjuntura temporal, determinada pelo marcador este año. Na etapa final (IV), a forma composta perde traços de ordem aspectual (I – resultado; 5 Enunciado coletado da Folha online, de 21/02/2013. Disponível em: . Acesso em: 12 nov. 2014. 6 Enunciado coletado de uma entrevista radiofônica difundida pela rádio Cadena 3 de Córdoba, Argentina (05/08/2010). Tradução nossa. 7 Daí decorre a observação, corrente em gramáticas normativas sobre a existência de marcadores temporais como “hoy”, “este mes”, “este año” vinculados à forma composta (ALARCOS LLORACH, 1972). 8 Enunciado retirado de uma entrevista radiofônica difundida pela rádio Cadena 3, de Córdoba, Argentina (13/06/2010). Tradução nossa.

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II – durabilidade; III – relevância presente), para expressar um valor marcadamente temporal de pretérito. Nessa etapa da evolução, o perfeito composto passa por um momento de confronto com a tradicional forma simples de pretérito, podendo esse conflito ser resolvido de diferentes maneiras, conforme o sistema linguístico observado. Vejamos o uso no francês – língua em que já vigora o valor da fase IV (PAIVA BOLÉO, 1936): (8) Sotheby’s a vendu hier soir à Londres un portrait de la comtesse Bismarck. Sotheby vendeu ontem à noite, em Londres, um retrato da Condessa Bismarck. 9

O marcador temporal hier soir (ontem à noite) demonstra que a ação ocorreu em um âmbito temporal anterior ao da enunciação e que, por isso, não mantém relação com o ato de fala – indício, portanto, de um passado absoluto. Sobre a forma simples de pretérito no francês, sabe-se que está restrita a registros literários (MEILLET, 1982; PAIVA BOLÉO, 1936). A análise da mudança funcional que descrevemos revela que a sucessão de fases segue por um continuum em direção à expressão de um valor marcadamente temporal de passado, o que implica um paulatino debilitamento dos traços aspectuais de perfeito e de duração. Segundo explicam Squartini e Bertinetto (2000), o extremo desse continuum é encontrado atualmente nas línguas faladas ao norte da Itália e na França, onde a forma do perfeito simples já não é usada devido ao avanço do perfeito composto. A fim de recuperar o comportamento do perfeito composto tanto sob a perspectiva diacrônica, como sincrônica, Detges (2006) elabora o seguinte quadro: Quadro 1 Evolução diacrônica do perfeito (traduzido de DETGES, 2006). (I) Resultativo

(II) Persistência até o momento de fala

(III) Relevância no momento de fala

(IV) Narrativas, Aoristo

Calábria L’aiu fattu. 1

Português Tenho falado muito com ele.

Espanhol No ha ganado mucho este año. 2

Italiano L´ho comprato l’anno passato.3

Francês Il a mangé maintenant.

Francês J’ai vécu ici pendant 20 ans.

Francês Cette année, il n’a rien gagné.

Francês Et alors, je l’ai acheté.4

1 – “O fiz” ( tradução nossa); 2 – “Não ganhou muito este ano” (tradução nossa); 3 – “Comprei-o ano passado” (tradução nossa); 4 – Respectivamente, “Ele comeu agora”, “eu vivi aqui durante 20 anos”, “Neste ano, ele não ganhou nada”, “Então, eu o comprei” (traduções nossas).

Observemos que o Quadro 1 apresenta diferentes informações. Na primeira linha, retratam-se as quatro etapas da evolução diacrônica do perfeito composto, segundo a proposta de Harris (1982). Por sua vez, a segunda linha revela-nos como as línguas românicas acomodaram o uso do perfeito composto em um dos estágios. Finalmente, a terceira linha ajuda-nos a entender a polissemia funcional sincrônica existente no uso da perífrase em algumas línguas – devido à persistência de traços próprios de etapas anteriores. Segundo nos exemplifica Detges (2006, p. 48), apesar de no francês moderno o passé composé concentrar-se na quarta fase, “[...] muitos de seus 9 Enunciado coletado de Le Monde online, de 06/02/2013. Disponível em . Acesso em: 12 nov. 2014. Tradução nossa.

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usos refletem estágios anteriores de sua evolução”10 quando motivados por questões pragmáticas. Na mesma direção, há diversos estudos que apontam a existência da mesma polissemia funcional no espanhol, seja ela encontrada na comparação entre diferentes variedades linguísticas ou mesmo verificável dentro de uma mesma variável. A título de exemplo, observemos o comportamento da forma composta na variedade de San Miguel de Tucumán, a partir dos seguintes enunciados retirados de entrevistas radiofônicas: (9) Resultado: […] ¿[ya] ha presentado finalmente la renuncia a la obra social del PAMI filial Tucumán? 11 Finalmente já apresentou a renúncia do serviço social do PAMI filial Tucumán? (10) Persistência: […] confederación general económica en la República Argentina, una entidad que… durante muchos años ha sido, sin dudar, la líder en el gremialismo empresario nacional.12 Confederação geral econômica na República Argentina, uma entidade que durante muitos anos tem sido, sem dúvidas, a líder no gremialismo empresarial nacional. (11) Antepresente: Lo que hemos hecho en este primer tramo de nuestra gestión es sentar las bases de trabajo.13 O que fizemos nessa primeira parte de nossa gestão foi assentar as bases do trabalho. (12) Passado absoluto: [Yo creo] que ustedes mismo han sido el termómetro de lo que ha ocurrido con el cambio prestacional en aquel momento.14 Eu acredito que vocês mesmos foram o termômetro do que ocorreu com a mudança na prestação de serviço naquele momento.

Sobressaltam aos olhos os diferentes valores inferidos pelo uso da forma composta conforme o contexto em que se instauram, isso porque em uma mesma variedade do espanhol pode-se observar os quatro valores atribuídos ao perfeito composto por Harris (1982). Ou seja, enquanto no enunciado (9), o sintagma “ha presentado finalmente la renuncia” abre procedentes para a verificação de uma situação resultante atual diferente da que existia inicialmente, nos enunciados seguintes, as expressões temporais (10) “durante muchos años”, (11) “en este primer tramo” e (12) “en aquel momento” evidenciam os valores de persistência, antepresente e passado absoluto, vigentes no uso que se faz da forma verbal em cada um dos enunciados. Não obstante, é importante destacarmos que os marcadores temporais desempenham um importante papel na identificação dos sentidos aferidos. Por outro lado, a análise atenta das diferentes variedades dialetais da língua espanhola mostra comportamentos e preferências de uso particulares. A título de exemplo, Serrano (1994) compara as variedades de Madri e das Canárias e aponta na primeira uma maior preferência por usos do perfeito composto com valor de passado absoluto – característico da última fase do processo de 10 “[…] many of its usage reflect earlier stages of its evolution” (DETGES, 2006, p. 48). 11 Enunciado retirado de uma entrevista radiofônica difundida pela rádio LV7 de San Miguel de Tucumán, Argentina (30/11/2010). Tradução nossa. 12 Enunciado retirado de uma entrevista radiofônica difundida pela rádio LV7 de San Miguel de Tucumán, Argentina (26/04/2010). Tradução nossa. 13 Enunciado retirado de uma entrevista radiofônica difundida pela rádio LV7 de San Miguel de Tucumán, Argentina (26/04/2010). Tradução nossa. 14 Enunciado retirado de uma entrevista radiofônica difundida pela rádio LV7 de San Miguel de Tucumán, Argentina (30/11/2010). Tradução nossa.

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evolução proposto por Harris (1982); enquanto que na variedade das Canárias, nota um uso de PPC preponderantemente com valor de antepresente, isto é, da terceira fase. Na mesma direção, estudos de Company Company (2002) e Moreno de Alba (2006) comparam a variedade mexicana com a de Madri e acusam a preferência por um uso com características mais aspectuais no México – por alinhar-se com os valores dos primeiros estágios de evolução – enquanto que a variedade de Madri avança por usos com característica marcadamente temporal, aproximando-se, por isso, dos valores próprios das etapas finais. Em consonância com o que observaram Serrano (1994) e Company Company (2002), queremos mostrar com esse estudo que os diferentes comportamentos dialetais observados no uso do PPC respondem a diferentes graus de gramaticalização que a forma apresenta nas variedades das diferentes comunidades de fala, isso porque cada uma delas está sob pressões histórico-sociais próprias. Paralelamente, é importante pensarmos nas possíveis alterações de comportamento no uso do Perfeito Simples diante da aproximação funcional do PPC. Neste sentindo, Schwenter e Cacoullos (2008) descrevem como se estabelece a relação entre as duas formas em algumas línguas românicas: Quadro 2 Estágios de desenvolvimento do perfeito composto e simples nas línguas românicas (traduzido de SCHWENTER; CACOULLOS, 2008). Perfeito Composto

Perfeito Simples

Siciliano

Estados presentes resultantes de ações passadas

Passado perfectivo

Espanhol Mexicano Português

Situação passada ainda em andamento no presente

Passado perfectivo

Espanhol Peninsular Catalão

Situação passada com relevância presente

Situação passada sem relevância presente

Francês Italiano do norte

Toda situação passada

Registro formal e escrito

O quadro revela-nos, mais uma vez, como as línguas românicas tendem a privilegiar uma ou outra fase do continuum descrito por Harris (1982). Não obstante, em especial, mostra-nos a acomodação da forma simples como um dos resultado do comportamento do PPC em cada língua. Ou seja, à medida que o perfeito composto perde seus atributos aspectuais, marcando seu valor temporal de passado, o PPS vai perdendo seu campo de expressão, tornando-se, no último estágio, apenas uma marca de registro. Uma vez exposto o dinâmico comportamento da forma composta, tanto diacronicamente como sincronicamente, bem como a relação que ela estabelece com PPS nesse emaranhado de usos, parece-nos interessante destacar como é possível encontrar, sincronicamente, dois tipos de variação linguística envolvendo essas formas. Isso porque, se por um lado é possível observar a forma composta apresentando mais de um valor – mesmo que a análise esteja restrita a uma variedade dialetal apenas –, por outro, parece notável a relação de equivalência funcional que PPC pode estabelecer com PPS – especialmente nos estágios mais avançados de desenvolvimento da forma composta. Conscientes desse comportamento, Schwenter e Cacoullos (2008) evocam dois princípios do processo de gramaticalização que justificam o estado variável apresentado. Por um lado, a per-

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sistência justifica a manutenção de alguns traços semânticos da forma original no uso da perífrase em estágio mais avançado de gramaticalização, permitindo, portanto, a atribuição de mais de um valor a seu uso. Por outro lado, a estratificação evidencia que as novas formas que surgem para um dado domínio funcional (passado absoluto, por exemplo) coexistirão por um tempo com formas preexistentes (PPS). Diante dessa percepção, os autores propõem o seguinte esquema, no qual se observa como a forma composta passa por um processo de gramaticalização que o conduz a dois tipos de variação, formal e funcional:

Figura 2 Da variação sincrônica como efeito da gramaticalização que sofre o perfeito composto. Fonte: adaptada de Schwenter e Cacoullos (2008, p. 12).

A gramaticalização e os pretéritos no espanhol: fundamentos para a compreensão dos processos de mudança O estudo da relação existente entre o homem, a sociedade e a linguagem permite-nos entender como os fenômenos de variação e mudança linguísticas se originam e se relacionam em qualquer língua natural, mostrando-se como comportamentos constituintes e constituidores do próprio sistema linguístico – na medida em que, ao mesmo tempo em que caracterizam o funcionamento desse sistema, possibilitam a renovação e a modificação dele. Nesse sentido, a percepção da atribuição de novas funções linguísticas para formas antigas, ou ainda da criação de novas formas destinadas à expressão de funções pré-existentes mostram-nos que a gramática é uma entidade complexa e dinâmica, que se recria a todo instante por ação do uso, importante mecanismo propulsor da variação, a qual, por sua vez, é imprescindível para que se efetive a mudança linguística. Conforme assinala Hopper (1987), a gramática pode ser entendida como um fenômeno social e temporal, cuja estruturação está em constante feitura. Uma vez que sua constituição emana do discurso, as estruturas que a compõem não são fixas e abstratas, mas constituídas pela interação dos participantes do discurso e ancoradas em um enunciado concreto. Tanto é assim que afirma: Its forms are not fixed templates but are negotiable in face-to-face interaction in ways that reflect the individual speakers’ past experience of these forms and their assessment of the present context, including especially their interlocutors, whose experiences and assessments may be quite different. Moreover, the term Emergent Grammar points to a grammar which is not abstractly formulated and abstractly represented, but always anchored in the specific concrete form of an utterance (HOPPER, 1987, p. 142).

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Lichtenberk (1991) também salienta o contínuo estado de constituição de uma gramática. Para o autor, na gramática de cada língua há, em um determinado momento, muitas regularidades rígidas junto a muitos aspectos que são maleáveis ​em vários graus, de modo que os falantes possuem certo grau de liberdade no manuseio dessas estruturas. Neste jogo entre o mais rígido e o mais maleável, assume-se que a gramática dá forma ao discurso, enquanto que o discurso também modela a gramática (LICHTENBERK, 1991). Sob essa perspectiva é que Lichtenberk (1991) define a gramaticalização como um processo histórico que configura um tipo de mudança que tem certas consequências para as categorias morfossintáticas da língua e, por isso, para a gramática da língua (Lichtenberk, 1991, p. 38). Por seu turno, Lehmann (2002), de modo mais sistemático, salienta que a gramaticalização não é apenas a mudança de um item lexical para um item gramatical, mas também o avanço de um item já gramatical para um ainda mais gramatical. Em suas palavras, é importante destacar que “[...] mesmo a simples passagem de um lexema a uma formação gramatical (se fôssemos restringir gramaticalização a este processo) não é um salto, mas uma mudança gradual para uma nova função”. Semelhantemente, Hopper e Traugott (2003) caracterizam-na pela transformação, por meio do uso efetivo, de um item ou frase lexical em um item gramatical, e em seguida, em um item ainda mais gramatical. Uma definição com base na linguística funcional é dada por Harder e Boye (2011, p. 63), que afirmam que a gramaticalização é “[...] a mudança diacrônica que dá origem a expressões linguísticas que são codificadas como discursivamente secundárias”. Company Company (2003) destaca a complexidade que envolve esse tipo de mudança, implicando rearranjos em diferentes níveis da língua: [...] un macrocambio, un cambio de cambios que frecuentemente abarca cambios específicos distintos – formales, semánticos, sintácticos – que muestran pautas comunes de comportamiento evolutivo, y que muchas veces involucra un cambio de nivel de lengua, puesto que su origen suele estar en el léxico y en la pragmática mientras que su resultado es morfosintáctico (COMPANY COMPANY, 2003, p. 11).

O estudo da constituição do perfeito composto e do auxiliar haber deve elucidar as definições apresentadas, pois a perífrase de anterioridade (haber + particípio) revela-se historicamente como uma construção que se moveu desde um eixo lexical, em que seus constituintes não desfrutavam de uma coesão e mantinham seus sentidos plenos originários, até um eixo mais gramatical, em que, já coesa, a construção opera no nível morfossintático da língua compondo uma estrutura com uma função temporal própria. Paralelamente a esse processo, o verbo principal haber, com sentido pleno de posse ao início, transforma-se em uma unidade gramatical à medida que adquire a função de auxiliar, responsável pela expressão das informações referentes à pessoa, número e temporalidade das perífrases de anterioridade. O Quadro 3 sintetiza esses processos históricos que se movem transformando itens lexicais em itens (mais) gramaticais. Cabe explicar que a coluna intermediária mostra uma etapa em que já se evidencia sinais de gramaticalização (1. o auxiliar já demonstra alguma perda de seu sentido de posse original, compõe a perífrase e se associa apenas a particípio de verbos transitivos; 2. o tempo composto já alcança um grau de coesão entre auxiliar e particípio, compondo desde então uma perífrase).

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Contudo, o uso ainda mais gramaticalizado, como encontramos no espanhol contemporâneo, é verificado em etapas mais avançadas do processo, tal qual figura na última coluna – em que 1. o auxiliar se esvazia de seu sentido pleno de posse; e 2. os constituintes dos tempos compostos alcançam um grau de coesão em que já não se permite qualquer interpolação de itens ou a concordância do particípio com um elemento fora da perífrase. Tem-se, nessa fase, a formação efetiva do paradigma dos tempos compostos de anterioridade.

2. Tempos compostos de anterioridade

1. Auxiliar haber

Quadro 3 Síntese da gramaticalização do auxiliar haber e dos tempos compostos de anterioridade. LEXICAL >>

>> GRAMATICAL >>

>> + GRAMATICAL

Haber (v. pleno – posse)

Haber (aux. de particípios transitivos)

Haber (aux. de qualquer particípio)

[…] que el estoriador sea discreto e sabio e aya buena retórica.

[…] las han dexadas a grant deshonor.

confederación general económica [...] ha sido la líder en el gremialismo.

Haber + (objeto + particípio)

(Haber + particípio) + objeto (pouca coesão)

Haber + particípio (completa coesão)

Litteras escriptas habeo.

De veinte arriba ha moros matado.

este año han tirado trecientos millones de litros.

Uma vez apresentado brevemente processo de gramaticalização no que diz respeito a seu funcionamento e características, bem como o desenvolvimento do Pretérito Perfecto Compuesto, avaliaremos como os princípios de gramaticalização descritos por Hopper (1991) podem nos auxiliar a entender o atual uso do PPC, a partir da observação do seu processo de formação. Princípios da gramaticalização Hopper (1991) delineia cinco princípios de gramaticalização: (i) estratificação; (ii) divergência; (iii) especialização; (iv) persistência; e (v) descategorização. Sobre o princípio da estratificação (layering), o autor observa que novas camadas emergem continuamente em um domínio funcional sem implicar o automático apagamento de camadas antigas, mas sim uma coexistência entre o novo e o antigo. O uso de uma ou outra possibilidade pode estar relacionado a questões sociolinguísticas, estilísticas ou ainda a pequenas nuanças de significado (HOPPER, 1991, p. 23). Como já discutimos e sistematizamos na Figura 2, esse princípio pode ser observado na relação historicamente estabelecida entre as formas simples e composta do pretérito perfeito na expressão dos domínios temporais de passado absoluto e antepresente, isso porque, conforme a variedade analisada, uma e/ou outra forma pode ser selecionada para veicular os referidos valores. Esse comportamento se deve a que, com o avançar da gramaticalização da forma inovadora – PPC –, a referência de passado antes destinada apenas ao PPS passa a ser também disputada pelo perfeito composto, de maneira que esse conflito não se resolveu igualmente em todas as variedades da língua espanhola. Frente a esse cenário de aparente variação linguística é que se coloca o questionamento condutor desse trabalho. O segundo princípio, da divergência (divergence), é evidenciado quando uma forma gramaticalizada existe juntamente com a forma anterior de origem, tendo ambas as formas independência quanto à sua história na língua. Em outras palavras, o princípio de divergência resulta

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da existência de múltiplas formas que compartilham de uma mesma base etimológica, mas que divergem funcionalmente. Diferente da estratificação, que envolve diferentes graus de gramaticalização dentro de um mesmo domínio funcional, a divergência caracteriza-se por haver uma forma gramaticalizada em um domínio e sua forma anterior operando em outro domínio, sem qualquer laço de dependência (HOPPER, 1991). Esse comportamento é o encontrado na observação o uso de haber na língua espanhola, forma que opera como auxiliar do perfeito composto (hemos escrito), mas que também pode ser encontrada na expressão de existência impessoal (hay – em (35)) e na perífrase de obrigatoriedade (hemos de considerar – em (34)). Resultados de processos diferentes que sofreu o verbo haber, as três funções são verificadas no uso moderno do espanhol e originamse de uma mesma forma-base, cujo sentido era de posse. A especialização – terceiro princípio de Hopper (1991) – é verificada na limitação de possibilidades de funções atribuídas a um item dentro de um domínio funcional. Assim, um feixe de usos com pequenas nuanças semânticas, existente em uma etapa inicial do processo de gramaticalização, pouco a pouco se reduz e, por conseguinte, um dos usos vai se sobressaindo aos demais. A título de exemplo, esse comportamento pode ser encontrado também na observação da história do perfeito composto nas línguas românicas, isso porque nota-se que PPC especializou-se em cada língua na expressão de um dos valores previstos pelo continuum elaborado por Harris (1982; Figura 1 e Quadro 1). Especificamente sobre o uso do perfeito composto no espanhol, temos observado que as variedades dialetais apresentam um uso bastante polissêmico da forma composta. Não obstante, é possível delinear uma função se destacando diante de outros usos menos recorrentes. Assim, estudos sobre o espanhol argentino (ARAUJO, 2012; 2013; ARAUJO; BERLINCK, 2013) e sobre o espanhol mexicano (COMPANY COMPANY, 2002; MORENO DE ALBA, 2006), por exemplo, mostramnos uma preferência por valores tidos como mais aspectuais, como os que figuram nos primeiros estágios da gramaticalização do perfeito composto. Ademais, a especialização poderia explicar-nos também como a forma simples, antes responsável pela expressão dos valores de passado absoluto e antepresente, supostamente se restringiu à expressão do passado absoluto, na medida em que a forma composta se ocupou da expressão do valor de antepresente. O quarto princípio elencado, da persistência, diz respeito à manutenção de traços semânticos da forma original no seu uso mais gramaticalizado. Conforme explica Hopper (1991), a relação do significado de uma forma gramatical com sua origem lexical pode estar opaca em fases mais avançadas. Contudo, em etapas intermediárias, espera-se observar uma forma polissêmica, ou seja, ainda não totalmente especializada, cujos usos refletem vestígios de um significado dominante anterior. Novamente, a partir da história do perfeito composto no espanhol e das descrições sincrônicas feitas de seu comportamento em algumas variedades dialetais faz-se possível verificar este princípio operando na língua, haja vista que na Argentina, por exemplo, observa-se um recorrente uso de PPC com valor resultativo – herdado, supostamente, da perífrase original de valor resultativo (ARAUJO, 2012; 2013; ARAUJO; BERLINCK, 2013), 15 bem como no México se destaca um uso com traços aspectuais de persistência (COMPANY COMPANY, 2002; MORENO DE ALBA, 2006). Finalmente, a descategorização diz respeito à eliminação de marcas próprias de uma ca15 Nos referidos estudos, observamos que mais de 40% dos usos registrados da forma composta em entrevistas radiofônicas apresentam um valor resultativo.

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tegoria, implicando na perda da autonomia discursiva que dispunha o item. Em outras palavras, esse princípio mostra que uma forma em gramaticalização tende a perder ou neutralizar marcas morfológicas ou sintáticas da sua categoria de origem. Como nos revelou o estudo da formação do auxiliar dos tempos compostos de anterioridade, o verbo haber – cujo sentindo pleno de origem era de posse – passa por um processo de descategorização, transformando-se em auxiliar de uma perífrase formada pelo necessário acréscimo de um particípio a ele. Considerações finais Por fim, a consciência da existência de um processo de gramaticalização por detrás do uso aparentemente divergente e variável dos pretéritos nas variedades do espanhol conduz-nos à percepção de que a variação no uso (estratificação), a polissemia (persistência) ou, ainda, a especificação funcional das formas verbais são comportamentos que, na verdade, apontam para uma macromudança que aparentemente ainda está em construção na língua. Nessa direção é que os princípios propostos por Hopper (1991) revelam o caráter gradual da gramaticalização, uma vez que “[...] conferem aos elementos analisados o grau de mais ou menos gramaticalizados, não visando, portanto, verificar se eles pertencem ou não à gramática” (GONÇALVES et. al, 2007, p. 79).

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