\"2046, os segredos do amor\" de Wong Kar Wai

June 14, 2017 | Autor: Lidia Mello | Categoria: Cinema, Wong Kar-Wai, Filme, Estética do Cinema
Share Embed


Descrição do Produto

Culto à Imagem :
Os Segredos do Amor.


Por Lídia A. Rodrigues Silva Mello

RESUMO:
A partir da constatação de que o contemporâneo realizador chinês Wong Kar-
Wai é um formalista e cultua a imagem, propõe-se neste ensaio refletir a
estética do seu fazer cinematográfico, no filme 2046 – os segredos do amor
(2046, China, 2004), seus elementos formais, estéticos; sustentada
sobretudo, pelos teóricos franceses Gilles Deleuze e Jacques Aumont, e por
outros teóricos do cinema.
Palavras-chave: Estética. Imagem. Culto. Arte. W.Kar-Wai.

Résumé
En partant de la constatation que le réalisateur chinois, il contemporain
Wong Kar-Wai, est un formaliste et fait culte à l`image, on propose dans
cet article reflexir la esthétique de sa façon de faire du cinema, dans
son film 2046 – les secrets d`amour (2046, Chine, 2004), des éléments
formels, esthétiques. Basée sur les théories, principalment, des auteurs
français: Gilles Deleuze et Jacques Aumont, et par d`autres théoriciens du
cinéma.
Mots-Clès: Esthétiques. Image. Culte. Art. W.Kar-Wai.



Todos nós temos necessidade de um lugar onde
guardar, estocar e esconder lembranças,
pensamentos, impulsos, esperanças e sonhos. São
aspectos da nossa vida que não podemos resolver
e sobre os quais não podemos agir. (...) Para
alguns, este lugar é um espaço real; para
outros, um espaço mental e para um número
reduzido de pessoas não é nem um nem outro.


W.K.Wai

1. Palavras Primeiras

A proposta deste ensaio é voltar-se para uma reflexão estética dos
elementos visuais utilizados por Wong Kar-Wai[1] no seu filme 2046 - os
segredos do amor. Partindo da mirada de que esse diretor faz um cinema que
cultua à imagem, pretendo investigar como ele cria, recria e exercita o
formalismo.
Jacques Aumont[2], afirma que "a forma é a estrutura dos elementos
visuais que compõem um objeto visível" (1993, p.274). O teórico argumenta
que a teoria da Gestalt[3] define "a forma como esquema de relações
invariantes entre certos elementos (1993, p.68)'. Ou seja, no caso do
cinema é a maneira de como se estrutura e dispõe as partes do todo (os
elementos de determinada imagem) e o modo pelo qual construímos o campo
visual (objeto-espaço-tempo) e pelo qual se revela a nossa percepção
daquilo que vemos na tela, no quadro fílmico. Como instrumento para
identificar as escolhas estéticas e desvelar a expressividade
cinematográfica de Wong Kar-Wai, assim como para estabelecer um diálogo com
seu cinema, selecionei, principalmente os autores Jacques Aumont e Gilles
Deleuze[4]; e ainda Christian Metz[5], Francis Vanoye[6] e Anne Goliot-
Lété[7], dentre outros teóricos do cinema.
Com esses autores, espero encontrar sustentação teórica para minhas
intuições, reflexões e interpretações.
O termo estética, conforme Aumont (1993, p.302), "O termo Estética,
forjado na metade do século XVIII, a partir da raiz grega aesthesis,
sensação, sentimento, a palavra designou primeiro, com precisão, o estudo
das sensações e dos sentimentos produzidos pela obra de arte".
A palavra estética, aos poucos, passou a abranger toda reflexão que
tem por objeto as artes em geral ou uma arte específica. Engloba o estudo
dos objetos artísticos e os efeitos que provocam no observador, abrangendo
os valores artísticos, a percepção e a questão do gosto.
Contemporaneamente, sob uma perspectiva fenomenológica (de um conjunto de
fenômenos), não existe mais a idéia de um único valor estético, a partir do
qual julgamos todas as obras de arte. Cada objeto artístico estabelece sua
própria beleza, ou seja, o tipo de valor pelo qual será julgado. Os objetos
artísticos são belos porque são autênticos, segundo seus modos de serem
singulares, e carregam significados que só podem ser percebidos por meio da
experiência estética.

Com relação ao conceito de estética do cinema, Aumont (1995, p.15), "A
estética abrange a reflexão sobre os fenômenos de significação considerados
como fenômenos artísticos. A estética do cinema é, portanto, o estudo do
cinema como arte, o estudo dos filmes como mensagens artísticas".
Considero que o cinema enquanto arte proporciona prazer ao espectador
e ao realizador, na leitura e construção das imagens. Os aspectos acima
estão intrínsecos no cinema desse realizador, sobretudo do filme em estudo,
2046.
Sobre o conceito de análise fílmica, no livro Ensaio sobre análise
fílmica, Francis Vanoye e Anne Goliot-Lété (1994, p.52), relatam que:
Analisar, descrever um filme, contá-lo, já é interpretá-lo, pois isso é, de
certo modo, um processo de reconstrução audiovisual. Todavia, os autores,
falam das necessidades de estabelecer limites à interpretação do analista.
A interpretação semântica está ligada aos processos pelos quais o
leitor/espectador confere sentido ao que lê ou vê e ouve. A interpretação
crítica já remete à atitude do analista que pesquisa como e por que, na
esfera de sua organização estrutural, o texto (literário ou fílmico) produz
sentido (1994, p.52). Metz (1980, p.85) traz outra definição: "o que se
denomina estudo dos filmes (...) trata-se de análises nas quais o filme não
é considerado simplesmente como um exemplo ou amostra (...) mas como uma
totalidade singular examinada enquanto tal (...)".
A partir desses conceitos, inicio a reflexão, por acreditar que é um
caminho para construir ou desconstruir um filme, um produto, por assim
dizer, audiovisual, pensando a visualização, compreensão e interpretação da
imagem, dos valores formais de 2046. Esta opção não é uma fórmula
específica, pronta, e nem é subjetiva, pois como diz Vanoye (1994), a
análise fílmica depende da atitude do analista, de como ele estrutura,
organiza, interpreta o texto fílmico e dá sentido ao mesmo. Eu diria
também, que depende dos elementos que o filme nos oferece e das
particularidades do cinema que faz o realizador Kar-Wai, que desvendarei ao
longo deste exercício teórico. A intenção não é, a de esgotar esse assunto,
mas criar trajetos possíveis de serem trilhados.

1.1 SOBRE O FILME E SEU ENREDO

Perguntado numa entrevista[8] sobre o que era o seu filme 2046 os
segredos do amor, Kar-Wai respondeu: "O filme é sobre promessa. Em 1997, o
governo da China prometeu 50 anos de mudanças. Eu pensei que deveria fazer
um filme sobre promessas. O filme se passa em 2046, é um filme futurístico,
mas não de ficção científica". Num outro momento de sua fala o diretor
relata também, que é um filme sobre o amor, sobre homens e mulheres à
procura de amor.
Não obstante a origem do realizador seja oriental, seu cinema é
bastante ocidentalizado. Quanto ao título do filme, é uma referência que o
diretor faz ao ano de 2046, ano em que Hong Kong (antiga colônia inglesa e
a cidade em que foi filmada a maioria das cenas de seus filmes) perderá sua
autonomia político-cultural e passará a fazer parte definitivamente da
administração econômico-política e cultural chinesa (esse é um elemento,
extra-diegético - fora da narrativa).
Kar-Wai dirigiu dez longas metragens desde 1989 até 2007, são eles:
Conflito mortal (1988), Dias selvagens (1991), Cinzas do tempo (1994),
Amores Expressos (1994), Anjos caídos (1995), Felizes Juntos (1997), Amor à
flor da pele (2000), 2046 - os segredos do amor (2004), Eros (2004) e Um
beijo roubado (2007). Somente o último não foi filmado em Hong Kong (ver
mais detalhes sobre o histórico da sua filmografia em anexo). Ao ambientar
praticamente toda sua cinematografia em Hong Kong, se ampara em vestígios
da memória e na nostalgia dessa metrópole que, para ele, já não existe
mais.
Além da direção, produção, e com roteiro próprio, Kar-Wai, constroi o
enredo de 2046 com as histórias de amor (de nomadismo afetivo) e a
trajetória do escritor Chow Mo-Wan – o protagonista (Tony Leung Chiu Wan),
ele retorna a Hong Kong para escrever o romance 2046 e se hospeda num
hotel. Ele assume a personalidade de um conquistador, de um "Dom Juan", e
inicia uma série de relações amorosas com quatro diferentes belas mulheres:
as atrizes Carina Lau (como as prostitutas Lulu/Mimi - a prostituta mais
velha), Ziyi Zhang (como Bai - a prostituta jovem), Gong Li (como Su Li
Zhen – a jogadora de cartas), e Faye Wong (como a filha do dono do hotel),
por quem Chow se apaixona (mas esse amor não se realiza). Todas vivem e se
hospedam no quarto 2046, em frente ao seu.

Fotos do protagonista do filme (Chow) e suas diferentes mulheres




Atormentado pelas lembranças dos anos que passou em Singapura, Chow
escreve um livro de ficção, chamado 2046 (no qual relaciona fatos de sua
própria de vida). Escreve uma história sobre passageiros de um trem que
fazem uma viagem que parece sem fim (viagem a qual não se sabe de fato se
alguém retornou), rumo a um destino misterioso (2046), onde esperam
reencontrar suas memórias perdidas. Não é por acaso, que na frase escolhida
para a epígrafe, o realizador nos diz que todos nós buscamos um lugar onde
guardar e esconder lembranças, pensamentos, esperanças e sonhos. Eis aqui
temas tratados no seu filme, rememorações tipicamente proustianas, de um
tempo que já se foi, de um "tempo perdido".


1.2 REFLETINDO O FILME


Pensar, analisar um filme, segundo Vanoye e Goliot-Lété (1994, p.15),
é "decompô-lo em seus elementos constitutivos. É despedaçar (...) e
denominar materiais que não se percebem isoladamente "a olho nu", pois se é
tomado pela totalidade. Parte-se (...) do texto fílmico para "desconstruí-
lo" e obter um conjunto de elementos distintos do próprio filme". Completa
os autores: "Analisar um filme não é mais vê-lo, é revê-lo e, mais ainda,
examiná-lo tecnicamente. Trata-se de uma outra atitude com relação ao
objeto-filme, que, aliás, pode trazer prazeres específicos: desmontar um
filme é, de fato, estender seu registro perceptivo e, com isso, se o filme
for realmente rico, usufruí-lo melhor. A análise de um filme (...) faz com
que se descubram detalhes do tratamento da imagem (...) que aumentam o
prazer a cada vez que se revê a obra" (1994, p.12
A trama do filme é articulada entre a memória (por meio da voz off,
cuja fonte não é vista) do narrador-personagem principal, o escritor
Chow/Tony Leung, e a história de ficção do romance que ele está escrevendo.
A voz off indica os fatos, é um fio condutor que nos leva ao passado ou ao
futuro, abrindo assim uma dupla perspectiva temporal - e as imagens vêm
ilustrar e elucidar seu papel evocativo, de causar impressão no espectador.

No início, na abertura e no final do filme é possível visualizar
imagens em forma de círculo, o espectador é apresentado a uma série de
espirais, narrativas de memória, com ruptura dos planos retomados da
narrativa e estranhas transformações dos personagens; vemos, portanto uma
câmera que entra num buraco escuro, focando um estranho objeto arredondado,
uma espécie de olho que vai apresentar, situar o espectador, e desvelar o
universo e a memória de 2046.

Fotos da abertura do filme
2046 é o número que vimos na porta do quarto de Hotel, usado para os
encontros furtivos de amor, do casal de protagonistas do filme anterior de
Kar-Wai, Amor à flor da pele, (China, 2000) numa cena quase na metade do
filme, e também é o número do quarto do Hotel em que Chow encontra com suas
mulheres de 2046; e ainda o lugar de destino do trem - a cidade
futurística, o nome do romance que Chow escreve. Outra referência utilizada
pelo diretor em Amor à flor da pele é a cena (quase no fim do filme) em que
o protagonista Chow (de mesmo nome/personagem também em 2046) conta para um
outro personagem num restaurante: "antigamente, quando uma pessoa tinha um
segredo, subia uma montanha procurava uma árvore, abria um buraco nela e
sussurrava o segredo dentro do buraco; e depois o cobria com lama, e lá
ficava o segredo pra sempre". Esse diálogo também ouvimos por meio de um
narrador, no início e em outros momentos do filme 2046.
O filme 2046 tem um narrador que nos conta em 1ª pessoa uma história
da qual ele também participa (como personagem) e tem uma relação íntima com
os outros elementos da narrativa. Sua maneira de narrar é fortemente
marcada por características subjetivas, emocionais, pela linguagem do
corpo, do gesto, do tempo e do personagem como ser de linguagem. Em 2046, a
proximidade com o mundo narrado revela fatos e situações que um narrador de
fora não poderia conhecer - ao mesmo tempo essa mesma proximidade faz que a
narrativa seja parcial e impregnada pelo ponto de vista do narrador.
Wong Kar-Wai em várias situações do filme deixa o espectador em
situações de voyeurismo. Podemos ver abaixo um exemplo em que Chow (o
protagonista) está no seu quarto, no hotel e age como um "voyeur",
espreitando a filha do dono do hotel; recurso, porém, que acaba funcionando
como um dispositivo.

Fotos exemplo de voyerismo


De acordo com Aumont (1993, p. 175), "dispositivo é o que regula a
relação do espectador com a obra, é suporte da imagem, de ampliação visual
para o espectador". Nessa vocação de voyeur do personagem Chow, Kar-Wai nos
fornece uma metáfora do escritor (com suas histórias ficcionais
relacionadas à suas experiências pessoais). Essa relação de voyeurismo
(categoria de interpretação aplicada ao filme) entre essa personagem e Chow
cria instabilidade de ponto de vista: inicialmente fica claro que Chow é o
voyeur, mas em seguida vimos a moça olhando como se tivesse observando-o;
então a câmera se movimenta e nos mostra imagens desse jogo indireto de
espreita. Nosso assunto aqui é a análise da forma, mas é importante falar
do narrador e do voyeurismo para fazer uma melhor abordagem sobre o filme.
Em 2046 se configura um desenvolvimento narrativo não-linear, o
diretor constrói uma narrativa que passa de um personagem a outro e com
repetição de algumas situações de seus filmes anteriores. Por exemplo, na
cena (quase no término do filme) em que Chow (o protagonista) está com a
jogadora de cartas, (a última mulher com a qual ele se relaciona) e
rememora a perda de Su Li-Zhen (perda que ocorreu em outro momento de sua
vida, mas no filme Amor à flor da pele, 2000, também de Kar-Wai). Outra
questão no filme é a forte relação entre o sonoro e o visual e o intenso
aproveitamento narrativo da trilha sonora, que em 2046 funciona como uma
narrativa paralela guiada pelo narrador - mas não nos deteremos também à
questão sonora, pois nosso objeto de estudo é a imagem e não o áudio ou
outras questões fílmicas.

1.3 A IMAGEM, O TEMPO E O ESPAÇO FÍLMICOS



No cinema moderno, cinema do qual faz parte Kar-Wai, a estética da
imagem visual ganha um novo caráter: suas qualidades pictóricas e
esculturais (...) adquire uma nova estética, torna-se legível (...) e
revela espaços vazios, lacunares ou desconectados, imagens fragmentadas
(Deleuze, 1985, p.292-293).
Por cultuar a imagem Kar-Wai, pode ser considerado, portanto, um
cineasta da imagem. Como classificou Bazin (1935, p.67), existe no cinema
duas grandes tendências opostas: os diretores que acreditam na imagem e os
que acreditam na realidade. Continua Bazin, por imagem "entendo de modo bem
geral tudo aquilo que a representação na tela pode acrescentar à coisa
representada". Outra definição encontra-se em Deleuze (1990, p.153), "A
imagem não tem como caracteres primeiros, o espaço e o movimento, mas a
topologia e o tempo".
Kar-Wai trabalha a imagem (com relação à duração dos planos) com uma
forte ligação com o tempo; ela ora precisa ser alongada, contraída,
dilatada, estendida, enfim; como dizia o cineasta russo Andrei Tarkovski,
trabalhar a imagem é como esculpir o tempo. Deleuze (1990, p. 56), citando
Tarkovski, diz que para este realizador "o essencial é a maneira como o
tempo flui no plano". Poder-se-ia dizer o mesmo em relação à Kar-Wai.
Quanto ao espaço em 2046, é quase sempre comprimido, quase
claustrofóbico, mas não constrói obstáculos, e visualmente essa questão nos
é demonstrada por Kar-Wai ao excluir do centro das imagens um ponto de
equilíbrio, jogando para as extremidades ou para fora a ênfase visual.

1.4 COMPOSIÇÃO E ENQUADRAMENTOS

A composição das imagens e os enquadramentos de 2046 (e ainda a
direção de arte: cor, luz, figurino e cenário etc., feita por -Alfred Yau
Wai Ming - mesmo diretor de arte de todos os filmes de Kar-Wai - exceto o
último, Um beijo roubado, 2007), são as questões que nos instigam a fazer a
análise do filme e que instauram uma forte estetização (embelezamento) da
imagem. Utilizamos aqui as definições de composição, de Betton:
A arte da composição consiste essencialmente em organizar
e arranjar da melhor maneira possível todos elementos do
principal aos secundários, a fim de obter um equilíbrio
harmonioso do conjunto, ou um efeito psicológico ou
dramático. (1987, p.51).




E Aumont:


A arte de compor foi por muito tempo à arte de dispor
convenientemente as figuras no quadro (personagens,
objetos, cenários) e somente à medida que a pintura se
afastou da imitação é que foi englobada a disposição dos
elementos plásticos, valores, cores, linhas e superfícies.
(1993, p.270).


Os elementos plásticos da imagem (representativos ou não)
são os que a caracterizam como conjunto de formas visuais
e que permitem constituir essas formas: a superfície da
imagem, e sua organização, o que se chama tradicionalmente
de composição, isto é, as relações geométricas mais ou
menos regulares entre as diferentes partes dessa
superfície; a gama de valores, ligada à maior ou menor
luminosidade de cada região da imagem - e o contraste
global ao qual essa gama da origem; a gama de cores e suas
relações de contraste; os elementos gráficos simples,
especialmente importantes em toda imagem "abstrata"; a
matéria da própria imagem, na medida em que proporciona a
percepção, por exemplo, sob as espécies da "pincelada" na
pintura ou do grão da película fotográfica etc. São esses
elementos que fazem à imagem e com os quais o espectador
se defronta. (Aumont, 1993, p.136)



Diante desses conceitos é possível dizer que a composição do quadro
fílmico em 2046 revela signos e tendências da estética do diretor, dentre
outros fatores que falaremos no decorrer desse exercício teórico. De acordo
com Deleuze, (1990, p. 44): "o signo é uma imagem que vale por outra
imagem, seu objeto, e a função do signo em relação à imagem, parece ser
cognitiva, pois acrescenta novos conhecimentos em função do interpretante".

A escolha de Kar-Wai, dos elementos visuais que compõem a tela de
2046, foi inspirada em várias linguagens artísticas (retomaremos e
exemplificaremos mais a frente), e ao optar por elementos artísticos para
compor suas imagens, Kar-Wai visa também impressionar os sentidos do
observador, aguçar a percepção e sensibilidade plástica, produzir efeitos
visuais, através da luz e do acentuado contraste das cores (que permite
exprimir os sentimentos do personagem e comover intensamente o espectador).
Esses recursos objetivam intensificar a sensação de profundidade - por meio
de cores quentes, da gradação da claridade, das penumbras que envolvem
áreas de luminosidade mais intensa, ou seja, do modo singular o qual faz
uso da luz e das cores, para dirigir a atenção do espectador. Tudo isso
podemos perceber na textura da tela, na superfície de 2046.
Kar-Wai, ao escolher os enquadramentos do seu poema visual 2046, faz
sua opção estética referenciado nesses elementos citados, e num cuidadoso
trabalho de selecionar os signos visuais e equilibrar a tela. Para Deleuze
(1990, p. 153), a tela é a membrana onde se afrontam imediatamente e
diretamente, o passado e o futuro, o interior e o exterior, sem distância
designável, independentemente de qualquer ponto fixo. Sobre o enquadramento
vejamos aqui a definição que utilizamos:

O enquadramento é, pois, a atividade da moldura, sua
mobilidade potencial, o deslize indeterminável da janela à
qual a moldura equivale em todos os modos da imagem
representativa baseados numa referência. (Aumont, 1993,
p.153).


Quanto aos modos de enquadrar e os elementos da forma visual,
utilizados no filme comecemos com o enquadramento fechado, usado em grande
parte de 2046, seguido de movimentos de câmera (recurso que confunde a
geografia espacial da cena) e é escolhido por Kar-Wai, para mostrar
primeiro o espaço, para depois descrevê-lo lentamente, por exemplo, à
medida que sublinha os gestos dos personagens com movimentos de câmera
lenta. A descrição do que foi filmado é mostrado por partes, como se a
câmera prolongasse seu tempo, adaptando o cenário a uma dimensão de espaço
distorcido e atemporal, o que pode ser visto na cena no início do filme, em
que Chow (ainda em Singapura) e Su Li-Zhen estão a decidir seus destinos
num bar.
Aumont (1993, p. 154) nos fala de outros tipos de enquadramento que
gostaria de citar: "O superenquadramento (o quadro dentro do quadro,
criação de centros visuais) e reenquadramento (movimento do quadro que
prioriza um sujeito/personagem)". Técnicas que Kar-Wai também utiliza muito
em 2046, através de espelhos, janelas, paredes, portas, cortinas etc.
Ilustro abaixo como exemplo a cena em que Chow está jantando num
restaurante com a filha do dono do hotel.

Fotos exemplo de enquadramento
E ainda Kar-Wai faz uso do desenquadramento, como uma marca de seu
estilo, de compor a imagem. Aumont (1993) citando Pascal Bonitzer (1977),
define "desenquadramento" como um enquadramento desviante, marcado como tal
e que procura distinguir o enquadramento da equivalência automática do
olhar. E, pois um descentramento, esvaziamento, deslocamento das zonas
significantes (em 2046 são os personagens) para as bordas da imagem através
de movimentos de câmera, para estabelecer uma forte relação entre o
personagem e o lugar, o que introduz uma forte tensão visual em que o
espectador tem tendência, quase automática, a reocupar esse centro vazio.
Apoiando-se nas variações do enquadramento Kar-Wai propõe no filme poucos
enquadramentos simétricos. Um exemplo é o plano, o insert que enquadra o
número 2046 na porta do hotel.
O diretor cria campos vazios e ângulos insólitos, "isolando" corpos
fragmentados ou às vezes inteiros em planos abertos, com uma excentricidade
dos pontos de vistas que ora destaca ou ora "expulsa" os corpos para fora
do quadro. Os personagens são raramente centralizados no quadro, ficam
desenquadrados ocupando apenas um canto da imagem (são mostrados como seres
a contemplar, seres de imagens, ícones).
Kar-Wai mostra, por exemplo, um encontro de seus personagens dentro
do trem numa cena de olhares cruzados, a câmera os enquadra em planos
fechados, e nessa composição do quadro há uma vacuidade entre os atores e o
limite/bordas do quadro (tipo de composição, de efeito comum em lay-outs de
publicidade).
A iluminação, quase sempre difusa em 2046, cria atmosferas, designa
zonas significantes através das variações do brilho e contraste, uma luz
que envolve personagens e objetos, une-os ou os afasta, que causa impressão
de profundidade emocional e produz, sobretudo efeitos sobre a
sensibilidade, percepção do espectador. Aumont (1993, p.287), nos diz que:
"no cinema, ainda mais do que na pintura, o estilo da luz rege a
expressividade da imagem (por que se trata de uma imagem-luz, de uma imagem
em que a luz está não só representada, mas presente)". O cineasta utiliza,
por exemplo, a luz de forma particular nos planos/contra-planos, no lugar
de tratá-los como planos complementares, ele usa a luz para enquadrar um
personagem preenchendo o quadro com um espaço escuro, depois enquadra o
outro personagem, e por fim os dois juntos, mas com a luz interceptando o
face-a-face dos atores sugerindo manter uma certa distância entre eles. É o
que podemos visualizar no exemplo abaixo, numa cena do trem entre Tak e
Wang (os andróides).

Fotos exemplo de iluminação

O formato widescreen/panorâmico/tela larga (1:2, 35), em geral usado
para filmar grandes paisagens, a natureza, grandes planos abertos, em 2046
é usado por Kar-Wai para filmar em locações que em sua maior parte são
fechadas e pequenas. Nos anos 70 esse formato foi muito usado pelo
cineasta italiano Sergio Leone e outros, e recentemente Kar-Wai retoma seu
valor, ainda que filmando pela primeira vez em scope e em locações
minúsculas; dá uma materialidade própria, mas comprime, e achata a
perspectiva. Com a fotografia scope (feita por Christopher Doyle, Lai Yiu-
Fai e Kwan Pung-Leung), usada para ampliar o horizonte da visão periférica
e de profundidade, escolhida por Wong Kar-Wai com a intenção de emocionar,
causar uma experiência sensorial no espectador; e para chamar sua atenção
para a textura da imagem. Esse tipo de fotografia scope deixa escuros os
cantos da tela e parte do espaço da cena, esse formato é fundamentalmente
assimétrico e portador de tensões.
Outra questão desse formato é a verticalidade contradizendo a
horizontalidade do cinemascope, e para acentuar essa verticalidade, o
diretor recorre à oposição entre a superfície e a profundidade de campo, um
dos lados da tela resta nítido e o outro desfocado (flou).
Aumont (1993, p.277), diz que: "é expressiva a obra cuja forma é
expressiva" e "que induz certo estado emocional em seu destinatário", e
ainda "que é expressivo aquilo que exprime um sujeito, em geral o sujeito
criador", e diríamos que isso pode ser visto em kar-Wai através do uso das
cores. As cores muitas vezes saturadas, em 2046 exploradas pelo diretor em
suas tonalidades quentes (vermelho e laranja) e frias, (verde e azul) com
fortes contrastes tanto no cenário quanto no figurino, visa o contraponto
com o conteúdo dramático das imagens, atribui à imagem uma espécie de
pictorialidade. Imprime sentimentos, causa emoções, participa do clima
afetivo e sensorial dos personagens, sugerindo associações que confirmam as
significações formais construídas pelo diretor, e expressando sua
subjetividade e a dos personagens.
O quadro visual de 2046 criado por Kar-Wai se apóia em fortes
dominantes na luz e nas cores, em cores que invadem o campo fílmico e jogam
umas com as outras. Um exemplo está nas cores complementares usadas nas
imagens que representam o romance fictício que Chow está escrevendo, como
na cena do trem em que estão uma moça andróide e o personagem Tak (ver
fotos logo abaixo), em que a cor vermelha evoca frio e a voz off explica
que lá não existe aquecedor. Porém, a cor verde (fria) do plano seguinte é
associada à sensação de aquecimento. A riqueza vem, portanto, da
fusão/dissociação desses tons complementares, embora opostos. Essas cores
não têm funções simbólicas, mas provocam sensações imediatas sugeridas
através dessa fusão/dissociação entre elas.


Fotos exemplo do uso das cores


O figurino "anos 60", feito por William Chang (que fez também a
montagem do filme), objetiva exaltar a beleza e elegância, sobretudo, das
mulheres de 2046, uma beleza ideal, um efeito estético que pretende quase
esculturá-las - exemplo ilustrado abaixo num momento em que a jovem
prostituta está sozinha no seu quarto do hotel e em outro momento em que
ela está com Chow, também no quarto do hotel (o corpo da moça parece uma
escultura).


Fotos exemplo do figurino
Kar-Wai cria este tipo de imagens numa composição quase publicitária,
que nos mostra uma beleza quase inatingível, nos alimentando o desejo e a
sedução. O figurino é escolhido de forma harmoniosa, mesmo nas cenas em que
é futurista/pós-moderno, e esse cuidado Kar-Wai tem em todos seus filmes.
O cenário do filme - se não levarmos em conta o espaço fictício do
romance 2046 (nessas cenas o cenário é futurista e "publicitário") e as
cenas de memória-flashbacks, podemos dizer que é composto basicamente de
três peças: os quartos, o corredor e a escada do hotel. Os cenários nos são
descritos quase sempre em pedaços e em sua maioria em planos fechados, nos
quais aprisionam os desejos dos personagens. São compostos também por
pontos de fuga do olhar, através de cortinas, escadas, paredes, muros e dos
vãos das portas, prolongando ou distorcendo o espaço. Um exemplo é a cena
em que a filha do dono do hotel "se despede" do seu namorado japonês, os
vemos confinados por paredes e portas que vão distorcendo nossa visão do
ambiente.
Sobre o plano/contra-plano – close. Em uma cena no início do filme
(ilustrado por algumas imagens a seguir), Kar-Wai filma Chow (o
protagonista) com a prostituta mais velha (Lulu). Eles estão conversando em
pé, se reconhecendo, faz-se um primeiro plano do rosto dele, depois um
contra-plano mostrando a tela dividindo o rosto dela com uma cortina
vermelha, (trazendo-lhe a memória recordações), para depois, novamente
mostrar o rosto dele onde já vemos parte das costas dela, e em seguida
mostra outros planos e contra-planos deles.


Fotos exemplo de plano/contra-plano
Nessa cena pode-se dizer que a câmera assume a posição de espectador,
observador; além de revelar a expressão psicológica da prostituta Lulu e
salientar uma lembrança de sua vida passada (de algo, porém que não se
consumou, aliás, como todas as histórias de amor desse filme). O uso de
closes no filme resulta na opção do diretor na exploração de superfícies e
texturas de objetos e de detalhes das pessoas, para criar uma relação
intimista com o espectador.
Outra questão percebida, os quartos do hotel não têm janelas, não têm
vistas, logo os planos são sem perspectivas e sem linhas de fuga, são
planos com forte compressão causados por ambientes escuros.
Outro recurso já comentado anteriormente e muito usado em 2046 em
várias cenas do filme é a oposição entre a superfície e a profundidade de
campo - enquadra-se o primeiro plano nítido e o fundo desfocado (em flou).
Por exemplo, na cena ilustrada abaixo pelas fotos, em que vemos a
prostituta mais nova, uma das mulheres de Chow, ao telefone (no
corredor/recepção do hotel) com todo quadro do primeiro plano nítido e o
fundo desfocado, nos colocando numa relação íntima com a personagem.

Fotos exemplo do recurso: oposição entre a superfície e profundidade de
campo

E ainda os ângulos e movimentos de câmera usados em 2046 são
justificados pelo diretor através da configuração do cenário, da
iluminação, do desejo de mostrar fenômenos afetivos e suscitar sentimentos,
um bom exemplo, podemos ver quando Kar-Wai faz um plongée a 90° (a câmera
enquadra do alto para baixo) numa cena de sexo entre a prostituta mais
jovem e Chow. A câmera de movimenta lentamente, mas não leva os personagens
ao centro do quadro, ela os deixa nas bordas do quadro, dentro do último
plano dessa seqüência a câmera desloca-se então sobre os corpos e começa a
rodeá-los para capturar um pouco de espaço em torno.
Esses movimentos de câmera não têm no filme função de abrir o espaço,
de quebrar ou de dividir o campo - mas ao contrário: de costurar, de fechá-
lo, de impedir fugas.
A câmera lenta, outro recurso às vezes usado no filme, com forte
efeito estilístico, dá ritmo à imagem; quase como uma certa "musicalidade
visual", determinando sua temporalidade e espaço, expressando o sentido, o
momento que o personagem está vivenciando; e proporciona uma experiência
visual ao espectador. As câmeras lentas usadas no filme parecem querer
libertar os personagens da narrativa e entregá-los à iconicidade (vemos
exemplos disso tanto no início quanto no final, nas cenas entre Chow e a
jogadora de cartas).
O uso do travelling. Normalmente usado para descrever e/ou acompanhar
uma ação ou personagem, que pode ser vertical ou horizontal; é utilizado
por Kar-Wai no início do filme (travellings verticais acelerados), ao
mostrar cenas da cidade e sua arquitetura, para criar ritmo e dinamização
do espaço.
Comentando o flashback, recurso que encontra razão na bifurcação do
tempo em que já passou e do momento presente. Quando vemos em 2046
alternâncias de imagens entre esses tempos, isso provoca um recuo na
consciência do espectador, acompanhada de reações afetivas, como a
nostalgia e lembranças expressas. Vemos um exemplo disso na cena no início
do filme, em que o protagonista revê a mulher que ele crê ser Su Li-Zhen,
sua antiga amada (lamentando tê-la perdido). Porém, Su Li-Zhen foi sua
paixão no filme Amor à flor da pele, e não em 2046.
Kar-Wai na entrevista, dada por ele ao site já citado nesse ensaio,
declara que o cinema permite jogar com o tempo: passado, presente e futuro,
e ele faz, a meu ver, bom proveito desse recurso em seus filmes. Vejamos um
conceito que tem a ver com esse assunto: as "imagens-lembrança", conceito
criado por Bergson e citado por Deleuze, a relação da imagem atual com a
imagem-lembrança cria um circuito fechado que vai do presente ao passado,
mas que depois nos traz de volta ao presente (Deleuze, Apud Bergson, 1990,
p.63). Essa relação elaborada através do flashback em 2046 ilustra bem esse
isso, através das "imagens-lembrança" dos personagens.

2. A MISE-EN-SCÈNE DE WONG KAR-WAI


Antes de abordar a mise-en scène, é preciso de citar em particular
algumas influências artísticas e estéticas de Kar-Wai, apenas para situar o
leitor das suas origens, digamos assim, do cinema desse realizador. Desde
os primeiros filmes de Wong Kar-Wai a crítica internacional identificou uma
filiação do diretor à Nouvelle Vague francesa[9], em razão da escolha em
comum de captar a energia urbana dos ambientes das metrópoles, como fazia,
por exemplo, o realizador Jean Luc Godard. E desde Amor à flor da pele
(2000), se tornou claro que a referência dele é, sobretudo, ao formalismo
do cineasta francês Alain Resnais (dos primeiros filmes). Em 2046 novamente
a influência de Godard é forte na parte futurista do filme de Kar-Wai (pode-
se dizer, em relação a seu filme Alphaville). Nos dois filmes, o mundo
futurista é representado mais pela luz e pelos efeitos criados pela
luminosidade do que pelo cenário em si, através de uma representação
minimalista. Também em ambos filmes o tempo é representado por meio de um
longo corredor, com portas a serem abertas, com trajetos a serem feitos e
com zonas/áreas a atravessar. Kar-Wai, ainda, inspira-se na proposta de
Godard de causar rupturas na narrativa e de "pictorializar o cinema, do
enquadramento como um gesto criador" (Aumont, 2004, p.224).
O cineasta chinês tem outras influências: como o uso expressivo da cor
do cineasta japonês Yasujiro Ozu10. Também se inspira, ao construir a
temática de 2046 na impossibilidade do amor, no desencanto existencial e na
melancolia fílmica do cineasta italiano Michelangelo Antonioni (conhecido
como cineasta da incomunicabilidade). Antonioni, muito cuidadoso com a
beleza visual de suas imagens, inovou muito o cinema italiano. Fez filmes
dos anos 50 até recentemente, pouco antes de falecer, em julho 2008.
Vamos a questão da mise-en-scène. Com origem no teatro, esse termo
significa encenação, a forma de dispor a entrada e saída dos personagens no
espaço do quadro, de organizar e equilibrar os objetos, a escolha dos
movimentos de câmera e enquadramentos, ou seja, os meios pelos quais um
cineasta imprime sua "marca", sua singularidade, o estilo de seus filmes.
Há em 2046 uma coerência de estilo de Kar-Wai, vista já anteriormente
em outros de seus filmes: Amores expressos e Amor à flor da pele, como a
duração dos planos alongada, efeitos de câmera lenta (que magnificam e
solenizam os gestos e os trajetos dos personagens) e o uso lacunar do plano
(que enquadra o/s personagem/ns deixando espaços vazios dentro do quadro).
O valor do plano para Kar-Wai nunca é somente um sintagma11 (Metz, 2006,
p.147), que se junta a outros planos no desenvolvimento da narrativa, é
também um fluxo de outras imagens, de lembranças, do que já se passou em
outros filmes seus, é um eco que se repercute dentro do tempo de 2046, do
tempo infinito e rico de seu cinema. Wong Kar-Wai constrói muito de seus
filmes jogando com efeitos de oposição, com os planos largos, e na
gestualidade dos corpos, dos personagens, ou seja, na montagem. A
importância do estatuto do plano para Kar-Wai pode ser visto, por exemplo,
na cena descrita abaixo. Na separação entre Chow e jogadora de cartas, no
final do filme, vimos eles se despedindo, ele parte em direção à direita,
ela fica e começa a chorar apoiada contra o muro, com a face em parte
escondida como numa cumplicidade instintiva com a superfície do muro, onde
ali encontra a sustentação que lhe falta. Vemos de novo a imagem de Chow
indo embora pela direita; e ela pela esquerda. A posição e direção dos
gestos e dos olhares dos atores são pensados para dar sentido à separação,
são focados separadamente nos rostos; e em câmera lenta. Esse plano faz eco
a outros planos de 2046, criando assim e completando a atmosfera da cena da
separação do casal.

Fotos que ilustram a importância do estatuto do plano para Kar-wai


O diretor recorre também ao raccord de olhar, veja exemplo abaixo,
primeiro os dois atores são enquadrados juntos ela está feliz, a jovem
prostituta, revela sua paixão por Chow, ele a esnoba, e nesse mesmo
instante ele passa a repelí-la ironicamente. Em seguida são enquadrados num
campo/contra-campo olhando para o mesmo lado – enquadramento que jamais
daria a impressão de um contato visual olhando separadamente.

Fotos exemplo de raccord de olhar
Para isso, Kar-Wai utiliza a posição do quadro panorâmico e a
diferença entre extremidades de quadro dos personagens para "preencher" e
justificar visualmente o contato de olhos dos personagens. Um olho no olho,
porém que pode se dar espacialmente pela construção na montagem dos planos,
mas que passa a não existir mais sentimentalmente.


3. AS DIFERENTES LINGUAGENS UTILIZADAS POR KAR-WAI

Para construir seu estilo, Kar-Wai se ancora também no hibridismo, em
diferentes linguagens, seja do cinema, da fotografia, da literatura, do
vídeo-clipe (cortes rápidos), da publicidade (características:
atemporalidade, efeitos antirrealistas, emotivos e sedutores) e do
futurismo (que pretende que a inscrição do tempo na imagem seja
interpretada como um valor pictórico, como uma pintura; o que podemos
inclusive visualizar na estética de néon das cenas no trem). Kar-Wai nos
traz uma nova reconfiguração espaço-temporal da narrativa em 2046. Obtida
por meio da "imagem-tempo direta" que possibilita ao espectador uma
dimensão proustiana, dimensão na qual objetos e personagens ocupam no tempo
um lugar incomensurável ao que tem no espaço (Deleuze, 1985, p.53). No
cinema moderno, completa Deleuze: "a imagem-tempo tornou-se direta tanto
quanto o tempo descobriu novos aspectos por essência e não por acidente,
quanto à montagem ganhou novo sentido" (1985, p.322).
Nesse sentido, Kar-Wai nos traz uma configuração do cinema
contemporâneo, ou, se quiserem, pós-moderno, com uma poesia imagética, uma
poesia do detalhe, podemos, portanto, perceber através do que vemos na tela
de 2046 e do que descrevemos nessa análise, uma configuração rica em
elementos artísticos, de vanguarda - numa tentativa de criar novos
significados da imagem.
Em sua busca constante em valorizar a forma, Kar-Wai usa, como já
citei, elementos da arte pictórica (cores fortes, nuances, contrastes)
visando melhor trabalhar a plasticidade e causar mais emoção com suas
imagens - dessa maneira, "o fílmico quis absorver também o pictórico"
(Aumont, 2004, p.168). O diretor potencializa, todos esses recursos
visuais, a direção de arte, para narrar histórias de amor em 2046 (que
nunca se concretizam, que não avançam); que ecoam na sensualidade dos
movimentos dos personagens e nos movimentos e ângulos de câmera, que operam
no filme uma temporalização da imagem.
De acordo com Aumont (1993, p.160) "as imagens temporalizadas se
modificam ao longo do tempo, pelo efeito do dispositivo que as produz e
apresenta". Um exemplo de temporalização da imagem pode ser visualizado
abaixo na cena em que a filha do dono do hotel está fumando e é prolongado,
alongado o tempo do levantar do seu cigarro; cortando posteriormente para
um rápido desvio de olhar do protagonista-Chow, que a observava.

Fotos exemplo de temporalização da imagem


A narrativa de 2046 é reforçada por uma imagem diacrônica, como diz
Metz (2006), uma imagem que transita em vários tempos: passado, presente e
futuro. E pela concepção espacial representada no filme de forma
fragmentada, como numa memória afetiva (como relatos de um diário), e em
ambientes internos de dimensões limitadas. Ambientes – espaços, os quais se
desenrolam as cenas em que nos são apresentadas e concluídas no filme, na
reflexão dessa obra de arte: 2046 - os segredos do amor.
O diretor faz, portanto, uso de diversos recursos para criar impacto
visual do filme, chamando com isso a atenção para a superfície da tela, o
que também se confirma pela sua escolha do formato scope para fortalecer a
narrativa intimista do filme. O trabalho plástico como já foi
caracterizado, os elementos visuais da composição imagética e sua
significação no filme em questão cultuam a imagem, e mesmo assim não é
excessivo nem redundante, porque não se submete apenas à narrativa e nem é
apenas decorativo.
Além do seu desejo em exprimir o belo, a estética de Kar-Wai provém
de um pensamento sensorial que quer comunicar seus sentimentos e dos seus
personagens através das imagens. Como diz Aumont no livro O olho
interminável (2004, p.172), "só um cinema não narrativo, uma cinetização da
pintura pode ter por categorias formais, valores puramente plásticos, tais
como a pintura os conhece".
E Kar-Wai pertence a esse cinema citado por Aumont, que valoriza a
forma, pertence a um regime estético pós-moderno, e isso podemos ver nas
composições e na forma que ele cria seus filmes. Sua preocupação não é de
retransmitir uma conjuntura existente como no cinema clássico (em que a
linearidade da narrativa se destaca e que a importância desse tipo de
cinema está na história) ou de uma escola específica, mas de recriar o
cinema a partir de outras artes e da sua própria; de criar o seu sistema,
sua estética. O cinema de Kar-Wai prima pela forma como domínio vivo, pelo
culto dos valores plásticos. Ele não está dentro da lógica da representação
canônica (que só pode existir em virtude de convenções, regras dadas), mas
da sensação e de uma possibilidade de criar, inovar. Tornar visível essa
diferença, que traz a sua expressividade cinematográfica. É afirmar que o
cinema ainda não deu tudo, que não pode partir somente de convenções e que
pode sempre dar mais.
Aumont (1993) citando Gombrich (1974) nos diz que a expressividade da
obra de arte não pode estar contida na obra como dado e que está
principalmente extrínseca. Diante disso, percebe-se que Kar-Wai busca
expressar em 2046, significados que estão não só dentro do filme em si, mas
entremeado por outras influências culturais, artísticas, estéticas, por
sinal bem equilibradas.

4. Palavras Findas


A idéia de construir, de escrever esse artigo partiu de uma reflexão
que levasse em conta a expressividade estética de Wong-Kar-Wai, do filme
2046, a partir dos conceitos dos teóricos do cinema, que utilizamos ao
longo dessa análise fílmico-estética. Esperamos ter demonstrado o que
propomos – investigar as escolhas estéticas desse realizador chinês, e como
ele transforma seu filme em vestígio do seu gesto, do seu estilo, através
dos elementos visuais e formais (tais como enquadramento, composição,
iluminação, fotografia, cenário, figurino etc.). E claro, como diz Vanoye e
Goliot-Lété (1994), a atitude, interpretação e produção de sentido fílmico
depende de cada analista. No cinema desse diretor a própria imagem já é uma
narrativa em si, e esse é um conceito que Deleuze defende no seu livro A
Imagem-Tempo (1990).
Ao longo desse ensaio, pude perceber como o realizador Wong Kar-Wai
cria o universo estético do seu filme 2046, a bela história de amor dos
personagens, seres errantes, nômades, que alimentam em seus corações
ideais de amor que talvez nem os cabe, que alimentam lembranças afetivas
infindas, de um tempo que já se foi e de sentimentos que emergem irrompendo
os limites do quadro fílmico. Diz Vanoye e Goliot-Lété: "Analisar um filme
é também situá-lo num contexto, numa história. E, se considerarmos o cinema
como arte, é situar o filme em uma história das formas fílmicas. Assim como
os romances, as obras pictóricas ou musicais, os filmes inscrevem-se em
correntes, em tendências e até em escolas estéticas, ou nelas se inspiram a
posteriori" (1994, p.23).
O cinema desse realizador de Hong Kong, é um cinema de arte, seu
estilo, é permeado de referências estéticas, e estas referências estão
agregadas à forma em que ele constrói o filme 2046 – os segredos do amor.
Para findar, gostaria de trazer uma citação de Wong Kar-Wai em seu
filme 2046: "Quando a peônia floresce, fica alta e então se vai, ela quer
dizer sim ou não?" Essa frase foi usada pelo diretor no final do filme (a
peônia é uma flor delicada que precisa de muito cuidado). Nesse sentido,
Kar-Wai, um cineasta que prima e cultua a imagem, dá sentido à beleza de
suas imagens e compõe os quadros dos seus filmes a partir do seu gosto
pessoal, de suas referências artísticas, do seu encanto pelo estético.



REFERÊNCIAS

AUMONT, Jacques. A imagem. São Paulo: Papirus, 1993.

__________et al. A estética do filme. Campinas: Papirus, 1995.

__________O olho interminável, cinema e pintura. Cosac & Naify, 2004.

BAZIN, André. O cinema. São Paulo: Brasiliense, 1991. 

BETTON, Gerard. Estética do cinema. Martins Fontes, 1987.

DELEUZE, Gilles. A imagem-tempo. São Paulo: Brasiliense, 1990.

METZ, Christian. A significação no cinema. São Paulo: Perspectiva, 2006.

__________Linguagem e cinema. São Paulo: Perspectiva, 1980.

VANOYE, Francis; GOLIOT-LÉTÉ, Anne. Ensaio sobre a análise fílmica
Campinas: Papirus, 1994.

Arte Barroca. Disponível em http://www.historiadaarte.com.br e acessado em
02/08/2008.

As fotos usadas no ensaio foram extraídas diretamente do filme.



ANEXO 1 – Ficha Técnica do Filme

Filme: 2046 – os segredos do amor - Título Original: 2046
Gênero: Romance, Duração: 127 minutos
Paises/Ano de Lançamento (China / Hong Kong / França/ Alemanha): 2004
Site Oficial: www.sonyclassics.com/2046
Estúdios: Columbia Pictures Corporation / Block 2 Pictures Inc. / Jet Tone
Films / Classic S.r.l. / China Film Co-Production Corporation / Fortissimo
Film / France 3 Cinéma / Orly Films / Paradis Films / Shanghai Film Studios
/ Zweites Deutsches Fernshen / arte France Cinéma
Distribuidores: 20th Century Fox / Buena Vista International / Sony
Pictures Classics
Roteiro, Produção e Direção: Wong Kar-Wai.
Música: Peer Raben e Shigeru Umebayashi
Fotografia: Christopher Doyle, Lai Yiu-Fai e Kwan Pung-Leung
Desenho de Produção, Figurino e Edição/montagem: William Chang
Direção de Arte: Alfred Yau Wai Ming
Efeitos Especiais: BUF Compagnie
Elenco: Tony Leung Chiu Wai - Mo Wan Chow (protagonista), Gong Li (Su Li
Zhen), Kimura Takuya (Tak), Wong Faye (Wang Jing Wen), Zhang Ziyi (Bai
Ling), Carina Lau (Lulu / Mimi), Sum Wang (Sr. Wang), Siu Ping Lam (Ah
Ping), Maggie Cheung, Chang Chen.



ANEXO 2 – Orçamento e prêmios

Orçamento do filme: U$ 12 milhões
Prêmios: ganhou o Prêmio FIPRESCI (Federação Internacional da Imprensa
Cinematográfica) no Festival da cidade Valladolid na Espanha. E foi
indicado a Palma de Ouro no Festival de Cannes em 2004, embora não tenha
ganhado.


ANEXO 3 - HISTÓRICO DA FILMOGRAFIA DO DIRETOR
Os filmes desse cultuado diretor oriental estão sendo, ainda que a passos
lentos, lançados em DVD no mercado brasileiro. Já chegou por aqui Conflito
Mortal (1988) -As tears go By, filme inspirado em Caminhos Perigosos (1973)
de Martin Scorsese. Esse foi o filme de estréia de Wong Kar-Wai como
diretor de longas-metragens. Outros filmes também lançados em DVD no Brasil
ou disponíveis para importar: Felizes Juntos, Dias selvagens, Amores
expressos, Anjos caídos, Amor à flor da pele, Eros, 2046 e Um beijo
roubado.

Depois de Conflito Mortal, Kar-Wai reuniu alguns dos atores mais conhecidos
de Hong Kong, para fazer Dias Selvagens (1991).
Em 1994 fez o filme Cinzas do tempo (Ashes
of time), melodrama sobre o tema das artes marciais, que por sinal foi re-
editado e será relançado em outubro desse ano, 2008. Ainda nesse mesmo ano
de 1994, nos intervalos entre as filmagens de Cinzas do tempo, Kar-Wai
realizou Amores Expressos, grande sucesso internacional. Seu primeiro filme
distribuído nos cinemas americanos.

Em 1995, dirigiu outro grande sucesso internacional, Anjos Caídos.

Em 1997 dirigiu o polêmico Felizes Juntos (com música de Caetano Veloso na
trilha) que trata de relacionamento amoroso entre dois homens. Filme que
premiou Wong Kar-Wai como melhor diretor em Cannes (aliás primeiro chinês a
ganhar tal prêmio).

Em 2000, realizou o filme Amor à flor da Pele, foi um enorme sucesso, com
ele tornou um cineasta muito cultuado por cinéfilos do mundo todo.

Escreveu outros roteiros e produziu muitos outros filmes, fora esses aqui
citados (que roteirizou e dirigiu ao mesmo tempo).

E ainda, fez e faz direção de comerciais (alguns de seus clientes: BMW,
Philips, Motorola, etc.), séries para TV e vídeo-clips, com destaque para
"Six Days" que fez em 2002 para o DJ Shadow. Além de realizar alguns filmes
de curta-metragens.

Em 2004 dirigiu 2046 – os segredos do amor, para mim, sua obra-prima (filme
analisado nesse artigo). Nesse mesmo ano, realizou um episódio do longa
Eros (segmento The Hand), junto com os diretores Antonioni e Steven
Soderbergh mostrando uma visão do erotismo nos três continentes (asiático,
europeu e americano).

Em 2007, fez um episódio (I Travelled 9000 km To Give It To You") do longa
francês, Cada um com seu cinema (uma homenagem de 33 diretores do mundo
inteiro ao cinema).

Já instalado em Hollywood abriu o festival de Cannes edição 2008, com o
filme Um beijo roubado (My Blueberry Nights) que contou com elenco estrelar
americano. Se "rendendo" a indústria cinematográfica de Hollywood, começa
de certo modo "se afastar" de Hong Kong e a trabalhar menos com atores
chineses. Seu filme atual, em fase de pré-produção e que deve estrear em
2010, é The Lady From Shanghai, mas sua trama ainda é misteriosa.

-----------------------
[1] Designer que trabalhou com publicidade, roteirista e cineasta
reconhecido no campo do cinema, nascido em Shanghai, China, na Ásia, em
1958, viveu maior parte da sua vida em Hong Kong atualmente vive nos U.S.A.

[2] Nasceu na França em 1942, é ainda professor atuante em Paris, e
teórico de análise fílmica e estética do cinema, tem como principais
obras: A imagem (1993), A estética do cinema (1994) e O olho interminável-
cinema e pintura (2004).

[3]A Gestalt (palavra alemã, que significa dar forma) ou teoria da forma,
surgiu no início do século XX. A Escola da Gestalt, como ficou conhecida,
desenvolveu uma teoria da percepção com base em um rigoroso método
experimental, que possibilitou a compreensão da maneira como se ordenam ou
se estruturam, no nosso cérebro, as formas que percebemos.

[4] Um dos mais importantes filósofos do séc. XX foi professor, teorizou
também sobre o cinema e outras artes. Nasceu na França em 1925 e faleceu em
1992. Tem como principais obras cinematográficas: A imagem-movimento (1985)
e A imagem-tempo (1990).
[5] , teórico da semiologia e psicanálise do cinema, foi professor em
Paris. Nasceu na França em 1931 e faleceu em 1993. Suas principais obras
são: A significação no cinema (1968), Linguagem e cinema (1971) e O
significante imaginário (1977).
[6] É professor emérito de estudos cinematográficos da Universidade Paris
X, Nanterre. Suas principais obras traduzidas para o português são: Usos da
linguagem – Problemas e técnicas na produção oral e escrita (1979) e Ensaio
sobre análise fílmica (1994), em colaboração com a autora Anne Goliot-Lété.

[7] Conferencista e pesquisadora da Universidade Paris VII, Denis Diderot.
[8] Concedida ao IndieWire e publicada no site Zeta Filmes em 2008, está
disponível em http://cinefabico.wordpress.com/2010/04/14/entrevista-com-
wong-kar-wai/, acesso em 20/05/2013.

[9]Referenciado movimento cinematográfico surgido na França nos anos 60,
que trouxe muitas inovações, instaurou o cinema moderno. A teoria autoral-
cinema de autor é "seu grande pilar", seus principais expoentes são Jean
Luc Godard, François Truffaut, Claude Chabrol, Jacques Rivette, Alain
Renais e Eric Rohmer. A Nouvelle Vague francesa influenciou e desencadeou
de certa forma os cinemas novos de várias partes do mundo, inclusive do
Brasil.
Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.