28) Paralelos com o Meridiano 47: ensaios (2015)

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Paulo Roberto de Almeida

PARALELOS COM O MERIDIANO 47 ENSAIOS LONGITUDINAIS E DE AMPLA LATITUDE

Hartford Edição do Autor 2015

Paralelos com o Meridiano 47 Ensaios Longitudinais e de Ampla Latitude

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Paralelos com o Meridiano 47 Ensaios Longitudinais e de Ampla Latitude

Paulo Roberto de Almeida Doutor em ciências sociais. Mestre em economia internacional. Diplomata.

Edição do Autor - 2015

Direitos de publicação reservados: © Paulo Roberto de Almeida 2015

_______________________________________________________ ALMEIDA, Paulo Roberto. Paralelos com o Meridiano 47: Ensaios Longitudinais e de Ampla Latitude; Hartford: Edição do Autor, 2015. 380 p. 1. Política internacional. 2. Relações internacionais. 3. Economia. 4. História. 5. Sociologia. 6. Economia. 7. Globalização 8. Brasil. 8. América Latina. 10. Título _______________________________________________________

Informação sobre a capa: composição do autor sobre ilustração do Google Images

Contato com o autor: www.pralmeida.org [email protected] (1.860) 989-3284 Esta versão: 16/04/2015

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All the Globes frame, and spheres, is nothing else But the Meridians crossing Parallels. The Cross John Donne (24/01/1572 – 31/03/1631, Londres, Inglaterra)

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Índice Apresentação Freakdiplomacy, or the advantages of being an accidental diplomat

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Primeira Parte

Relações internacionais e política externa do Brasil 1. Relações Internacionais e política externa do Brasil: perspectiva histórica 2. Ideologia da política externa: sete teses idealistas 3. Relações Brasil-Estados Unidos em perspectiva histórica 4. Um exercício comparativo de política externa: FHC e Lula em perspectiva 5. Sucessos e fracassos da diplomacia brasileira: uma visão histórica

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Segunda Parte

Economia internacional, globalização 6. Mudanças na economia mundial: perspectiva histórica de longo prazo 7. Debate sobre a globalização no Brasil: muita transpiração, pouca inspiração 8. Interessa ao Brasil uma taxa sobre os movimentos de capitais? 9. A distribuição mundial de renda: caminhando para a convergência? 10. Contra a antiglobalização 11. Perguntas impertinentes a um amigo antiglobalizador 12. Fórum Social Mundial: nove objetivos gerais e alguns grandes equívocos 13. Fórum Surreal Mundial: Pequena visita aos desvarios dos antiglobalizadores 14. O Brasil e o G20 financeiro: alguns elementos analíticos

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Terceira Parte

Regionalismo, Integração 15. Mercosul e Alca na perspectiva brasileira: alternativas excludentes? 16. O Mercosul não é para principiantes: sete teses na linha do bom senso 17. Problemas da integração na América do Sul: a trajetória do Mercosul 18. Acordos regionais e sistema multilateral de comércio: a América Latina 19. Contexto geopolítico da América do Sul: visão estratégica da integração 20. Mercosul: uma revisão histórica e uma visão de futuro

153 172 182 190 204 216

Quarta Parte

Política internacional, Questões estratégicas 21. Camaradas, agora é oficial: acabou o socialismo 22. A China e seus interesses nacionais: reflexões histórico-sociológicas 23. Teses sobre o novo império e o cenário político-estratégico mundial 24. O legado de Henry Kissinger 25. Pequena lição de Realpolitik 26. Estratégia Nacional de Defesa (END): comentários dissidentes 27. A Arte de NÃO Fazer a Guerra: novos comentários à END

237 253 257 274 279 284 292

Quinta Parte

Ideias, cultura, problemas 28. O Fim da História, de Fukuyama, vinte anos depois: o que ficou?

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29. Um Tocqueville avant la lettre: Hipólito da Costa como founding father do americanismo 30. Reflexões a propósito do centenário do Barão 31. Uma frase (in)feliz?: o que é bom para os EUA é bom para o Brasil? 32. O IBRI e a RBPI: contribuição intelectual, de 1954 a 2014

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Apêndices Relação cronológica dos ensaios publicados no boletim Meridiano 47 Livros publicados pelo autor Nota sobre o autor

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Apresentação Freakdiplomacy, or the advantages of being an accidental diplomat

Quando eu estava terminando de montar – esta é a palavra exata – este livro de ensaios publicados no boletim Meridiano 47 fui presenteado com o livro Freakonomics, o livro de um “rogue economist”, Steven D. Levitt, um desses pequenos gênios de Harvard e do MIT, e de um jornalista, Stephen J. Dubner, que estava pesquisando sobre a psicologia da moeda para o The New York Times Magazine. Do entendimento entre os dois nasceu esse livro, que eu já conhecia de ler aos pedaços em livrarias, de dezenas de resenhas e referências elogiosas publicadas em dezenas de outras publicações digitais ou impressas, e de um ou outro artigo da dupla reproduzido nos espaços virtuais que todos frequentamos atualmente. Apressado para terminar a assemblagem dos mais interessantes artigos que eu havia publicado, desde 2001, no mais dinâmico boletim de relações internacionais já inventado na academia brasileira, quase não pego o livro para, por uma vez, lê-lo atentamente. Bem, ainda não terminei de devorar esse pequeno volume de ensaios bizarros – oportunamente complementado por um novo, SuperFreakonomics, tratando dos mesmos assuntos pouco convencionais na economia e no jornalismo – mas já cheguei à conclusão que eu e os autores dos dois volumes (e outros virão) de economia contrarianista temos muito em comum: a coincidência se resume basicamente no fato de sermos, eu e a dupla Freak, contestadores das verdades reveladas, daquilo que os franceses chamam de idées reçues, ou seja, o pensamento banal, aceito como correto nos mais diferentes meios em que essas ideias se aplicam (mas geralmente de forma equivocada). E por que digo isto, ao iniciar a introdução de um livro de “ideias já recebidas”, ou pelo menos de ensaios já publicados? É porque eu já fui chamado, certa vez, de accident prone diplomat, ou seja, alguém que busca confusão, o barulho, no meu caso, de fato, mais a provocação do que a contestação gratuita. Com efeito, eu não consigo me convencer com certas idées reçues nos meios que frequento, e estou sempre à busca de seus fundamentos, justificações, provas empíricas, testemunhos de sua adequação e funcionamento no ambiente em que deveriam operar, em condições normais de pressão e temperatura, enfim, o entendimento convencional de como é ou de como deve funcionar a diplomacia, em especial, a nossa, esta sempre tida por excelente e que, aparentemente, não improvisa. Talvez devesse fazê-lo, em certas ocasiões... 11

Na verdade, antes de ser um accident prone diplomat, se isto é correto (o que duvido), creio ser um diplomata acidental, alguém que se dava bem na academia, tangenciando as áreas dos dois autores de Freakonomics, e que resolveu, num repente, ser diplomata. Posso até recomendar a profissão, aos que gostam de inteligência, de cultura, de viagens, de debates sobre como consertar este nosso mundo tão sofrido, aos que são nômades por natureza (como é o meu caso e mais ainda o de Carmen Lícia), menos talvez aos que apreciam pouco um ambiente meio Vaticano meio Forças Armadas. Com efeito, hierarquia e disciplina são os dois princípios que estão sempre sendo lembrados aos jovens diplomatas como sendo a base de funcionamento dessa Casa aparentemente tão austera, tão correta, tão eficiente no tratamento das mais diversas questões da nossa diplomacia. Atenção, eu disse diplomacia, que é uma técnica, e não política externa, que pode ser qualquer uma que seja posta em marcha pelas forças políticas temporariamente dominantes no espectro eleitoral do país. Política externa pertence a um governo, a um partido; a diplomacia pertence a um Estado, que possui instituições permanentes, entre elas essa que aplica a política externa de um governo por meio da diplomacia. E por que então o título Freakdiplomacy que inaugura este prefácio? Não preciso responder agora, e provavelmente nem depois, mas a resposta talvez esteja em cada um dos ensaios reunidos nesta coletânea de artigos publicados desde 2001 no boletim Meridiano 47. Ninguém há de recusar o fato de que, desde 2003 pelo menos, o Brasil vive tempos não convencionais, nos quais assistimos coisas nunca antes vistas na diplomacia, que por acaso é o título de meu livro mais recente. Pois bem, reunindo tudo o que eu escrevi nos parágrafos anteriores – diplomata acidental, hierarquia, disciplina, ideias de senso comum, etc. – e juntando tais conceitos aos ensaios aqui compilados, vocês terão uma explicação para o sentido geral de minha obra, anárquica, dispersa, contestadora, por vezes contrarianista, mas explorando, como os dois autores de Freakonomics, the hidden side of everything, ou, neste caso, o lado menos convencional da diplomacia, aquele que explora certas verdades reveladas e ousa apresentar outras ideias que não necessariamente fazem parte do discurso oficial. Esta talvez seja a razão de eu também apreciar, muitíssimo, uma seção da revista Foreign Policy, desde a sua reorganização por Moisés Naím, que se chama “Think Again”, ou seja, reconsidere, ou pense duas vezes, pois a resposta, ou a explicação pode não estar do lado que você costuma encontrar, mas que talvez esteja escondida em alguma dobra da realidade, por uma dessas surpresas do raciocínio lógico, por alguma astúcia da razão ou por algum outro motivo que se encontra enterrado, e quase esquecido, na história. 12

A vantagem de ser um diplomata acidental está justamente no fato de poder perseguir, nem sempre impunemente, o outro lado das coisas, e de poder contestar algumas dessas idées reçues que passam por certezas consagradas, ou pela única postura possível no funcionamento convencional da grande burocracia vaticana, que também leva jeito de quartel (mas acordando um pouco mais tarde). Durante todos estes anos em que venho colaborando com o boletim Meridiano 47, e desde algum tempo com seu irmão mais novo, digital, Mundorama, tenho podido exercer meu lado irreverente e pouco convencional para tratar de aspectos muito pouco convencionais de nossa Freakdiplomacy nestes anos do nunca antes (et pour cause). Atenção: estes ensaios não brotaram, originalmente, de trabalhos de pesquisa, ou daquilo que se chama, usualmente, de scholarly work, isto é, o material resultante de estudos meticulosos, ou objeto de revisão cega por pares, que está mais propriamente coletado em meus livros publicados. Eles são, eu diria, peças de simples divertimento intelectual, ainda que vários deles contenham aparato referencial (notas de rodapé, bibliografia, citações doutas, etc.) e também sejam o reflexo de muitas leituras sérias e anotadas ao longo de meus anos de estudo e trabalho. Mas, destinados a um veículo mais leve, e não a uma revista científica, eles constituem reflexões de um momento, de um problema, de algum freak-event que valia a pena registrar em um artigo mais curto. Devo a existência de mais este livro de coletânea de meus próprios textos a meu amigo, colega acadêmico e grande editor de publicações leves e mais pesadas, o professor Antonio Carlos Lessa, do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília, a quem aprendi a admirar desde nossos primeiros passos conjuntos na reorganização da Revista Brasileira de Política Internacional, recuperada por mim de uma morte certeira, quando do falecimento de seu editor no Rio de Janeiro, Cleantho de Paiva Leite, no final de 1992. O professor Lessa foi o animador constante, e mais ativo, de diversas outras publicações que marcaram, e ainda marcam sua trajetória na UnB, algumas desaparecidas, em forma impressa ou digital, como foi o caso de Relnet, por exemplo (onde foram publicados alguns destes ensaios em sua primeira encarnação), outras resistentes e persistentes, como a própria RBPI e este boletim Meridiano 47, justamente. Sem o professor Lessa, o boletim não existiria, e sem o seu trabalho incansável não teríamos tantos e tão bons produtos saindo das fornalhas do IBRI e do IRel-UnB. A ele dedico, portanto, esta compilação seletiva, com meus agradecimentos renovados pelo seu esforço e sua pertinácia nos empreendimentos. Todos estes meus ensaios, na forma em que foram publicados, estão em princípio disponíveis nos arquivos digitais do boletim Meridiano 47 (ver este link: http://periodicos.unb.br/index.php/MED/issue/archive ou este aqui: 13

http://mundorama.net/category/2-biblioteca/boletim-meridiano-47/). O que vai aqui compilado foi retirado de meus próprios arquivos, em processador usual de texto, para contornar os problemas de formatação de texto em suporte digital, mas corresponde, em princípio, ao que foi publicado. Nem tudo o que publiquei vai aqui reproduzido, em ordem não cronológica, mas organizada por grandes categorias de estudo. Ficaram de fora diversos artigos circunstanciais, todas as resenhas de livros – já coletadas em outras publicações digitais que organizei – e alguns textos de menor importância. Todos aqueles efetivamente publicados (salvo distração minha) estão ordenados cronologicamente no apêndice ao final do volume, onde também figuram os respectivos links para revisão dos mais desconfiados ou curiosos. Também tenho colaborado, agora como colunista não pago, com outra iniciativa do Prof. Antonio Carlos Lessa, Mundorama, um veículo ainda mais leve que Meridiano 47, e que libera eventualmente material para posterior publicação neste último (como ocorreu com alguns destes meus ensaios). O lado “freak”, ou divertido, de ser um diplomata acidental está justamente na possibilidade de poder escrever livremente sobre assuntos sérios e menos sérios, com a liberdade editorial que só existe nos veículos leves, sem precisar cumprir todo o ritual chato dos requisitos acadêmicos ligados às revistas “sérias” – como a RBPI, por exemplo, com a qual também colaboro, de diversas maneiras – e sem precisar atentar para a langue de bois normalmente associada às publicações oficiais, onde o lado vaticano inevitavelmente predomina. Foi nestes ensaios que eu explorei o lado meio escondido de certas verdades reveladas do meio profissional, uma atividade que sempre me deu imenso prazer por combinar com meu jeito contrarianista de ser. Dito isto, preciso voltar a coisas mais sérias, como o segundo volume de minha história das relações econômicas internacionais do Brasil, que me espera desde vários anos a partir da conclusão do primeiro volume (Formação da Diplomacia Econômica no Brasil). Assim que terminar, vou voltar a me divertir, nas páginas de Meridiano 47, nos arquivos digitais de Mundorama, ou nos meus próprios veículos de divulgação. Vale! Paulo Roberto de Almeida Hartford, 16 de abril de 2015

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Primeira Parte

Relações Internacionais e política externa do Brasil

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1. Relações Internacionais e política externa do Brasil: uma perspectiva histórica Integrado como território produtivo nos circuitos do capitalismo mercantil durante a fase da primeira globalização, que corresponde aos grandes descobrimentos europeus, o Brasil começa a se constituir como povo e como nação no curso de três séculos de colonização portuguesa. Não há estado ou poder político autônomo, daí a ausência de relações internacionais próprias, que não aquelas determinadas de modo reflexo pelo poder metropolitano. A transferência da sede da monarquia opera uma primeira experiência de política externa, mas o sentimento nacional só se consolida a partir da constituição do Estado independente. A lenta afirmação de uma política exterior nacional se faz ao longo da segunda fase da globalização capitalista, quando ocorrem a primeira (máquina a vapor) e a segunda (eletricidade) das revoluções industriais de nossa era, que não mudam, contudo, o caráter primário-exportador da inserção econômica internacional do País. No final do século XIX, a despeito de transformações econômicas ocorridas durante o Império, o Brasil se inseria na divisão internacional do trabalho da mesma forma como em seu início: como uma Nação dotada de afirmada vocação agrícola para o monocultivo de exportação, ainda que alguns produtos momentâneos — como a borracha, por exemplo — viessem a disputar a primazia ao café nessa fase e no começo do século XX. A República trará poucas modificações a uma estrutura econômicosocial essencialmente conservadora, não obstante a promissora experiência industrializadora de seus primeiros anos. O que a República introduz de novo são princípios alternativos de política externa, como o pan-americanismo, por exemplo, numa área em que o Império tinha mantido, ou sido mantido em, um relativo isolamento das demais repúblicas do continente. A afirmação da República se dá num terreno em que o legado monárquico não tinha ainda se esvanecido, sobretudo nos meios diplomáticos, ocorrendo mesmo alguns episódios “jacobinos”, no casa das intervenções estrangeiras durante a revolta da Armada, por exemplo. Mas, do ponto de vista econômico, os problemas que passam a atormentar a jovem República eram os mesmos que tinham angustiado a jovem nação independente: o problema da mão-de-obra (desta vez como imigração) e os investimentos estrangeiros e os capitais de empréstimo, origem de monumental dívida externa que estaria sempre 17

sendo jogada para a frente. A questão financeira — com a negociação do Funding Loan de 1898 — e o problema da “defesa do café” (promoção comercial e propaganda no exterior) são os grandes assuntos da diplomacia econômica do Brasil nesse período, cuja inserção na divisão internacional do trabalho continuaria sendo feita pelo simples lado da exportação primária. Tem início, assim, uma diplomacia do café, que continuaria durante todo o período de afirmação de nossa “vocação agrícola”. A era do Barão, 1902-1912 Os elementos relevantes do relacionamento externo nessa fase são os dos limites territoriais deixados em aberto pela nulificação do Tratado de Madri, mediante o trabalho diplomático de delimitação das fronteiras ainda duvidosas. A figura proeminente nessa fase é, evidentemente, a do Barão do Rio Branco (1902-1912), verdadeiro patrono e elemento ideológico central no processo de formação da moderna diplomacia brasileira. Outras questões proeminentes são a do equilíbrio no Cone Sul, problema indissociável da política americana conduzida pela Chancelaria, e a da participação do Brasil nas conferências de paz de Haia. Na vertente econômica destacam-se os empréstimos para estocagem de café e o primeiro exemplo de “currency board” de nossa história econômica, com a criação da Caixa de Conversão em 1906. A República dos bacharéis, 1912-1930 Essa República de “bacharéis”, que vai atravessar grosso modo todo o primeiro período republicano, tenta inserir o Brasil no chamado “concerto de nações”, inclusive pelo envolvimento na Primeira Guerra e na ulterior experiência da Liga das Nações, motivo de uma das grandes frustrações na história multilateral da diplomacia brasileira. No que se refere às questões relativas à inserção do País no “concerto de nações civilizadas”, parecia evidente que o relacionamento político com as potências econômica e militarmente significativas não poderia se fazer em pé de igualdade, como a visão bacharelesca e jurídica das elites monárquicas e republicanas pretendeu, inutilmente, alimentar a ilusão durante um largo período. Desde as agruras do relacionamento com a Inglaterra vitoriana, passando pela participação algo frustrada nas conferências de paz de Haia, até a experiência humilhante da Liga das Nações, o Brasil se verá confrontado a posturas externas que iam do desprezo e da soberbia ao que — mais tarde e em outro contexto — se chamaria de benign neglect. Cabe destacar, porém, que, mesmo num contexto cultural ainda fortemente “colonizado” ideologicamente, a 18

“república dos bacharéis” não se afastará, grosso modo, da missão já desenhada pelas elites da “monarquia ilustrada” no sentido de buscar, incessantemente, afirmar os interesses nacionais no quadro de um sistema internacional fortemente discriminatório em relação a “potências menores”, nações anteriormente colonizadas, ou, enfim, formações periféricas de uma forma geral. Crise e fechamento internacional: 1930-1945 Com a retração da interdependência econômica global, nas crises politicomilitares e financeiras da primeira metade do século XX, o Brasil formula uma política externa própria, com o objetivo de aprofundar o desenvolvimento. A “era nacional” introduz, no cenário das relações internacionais do Brasil, o que se poderia chamar de “mudança de paradigma”. As alterações na correlação de forças sociais e na própria estrutura decisória do sistema político brasileiro, introduzidas pela Revolução de 1930 (e por seus desenvolvimentos subsequentes), não poderiam, é claro, deixar de afetar a natureza das relacionamento externo do País, em escala ainda não experimentada até aquela conjuntura histórica. Apesar de que a diplomacia brasileira continua, por um certo tempo mais, a apoiar-se na tradição bacharelesca e jurídica vinda do século XIX e sem embargo de que as preocupações de seus quadros principais ainda estivessem marcadas por uma atitude “essencialmente ornamental e aristocrática” — para empregar uma terminologia cunhada por Hélio Jaguaribe —, é nessa fase que se passa de uma postura mais ou menos passiva em relação ao sistema internacional dominante para uma tentativa de inserção positiva, e portanto afirmativa, nos quadros da ordem mundial em construção. O subperíodo é dominado pela redefinição de prioridades políticas e das alianças externas no contexto das crises da ordem política e econômica internacionais dos anos 1930, com dificuldades para a preservação de escolhas autônomas em face dos limites objetivos — guerra e bloqueios — à atuação puramente diplomática. Elementos de destaque no contexto externo são constituídos pela crise econômica inaugurada pelo crack da bolsa de Nova York, em 1929, pela questão da dívida externa – na qual se observa uma moratória de fato, seguida de renegociação com os credores bilaterais - e, sobretudo, pela política de alianças e de equilíbrio pendular entre imperialismos rivais, entre os quais se destacam os Estados Unidos e a Alemanha nazista. Em muitos países europeus e em diversas outras regiões do mundo civilizado se travava então uma surda (por vezes aberta) luta entre doutrinas ideológicas rivais, com 19

destaque para as correntes fascistas e autoritárias e, em menor plano, os diversos movimentos de afiliação socialista ou comunista. No plano interno, não se pode deixar de notar os desafios insurrecionais comunista e integralista, em 1935 e 1938 respectivamente, que não deixaram de ter conexões internacionais bem marcadas. A guerra civil espanhola, na qual chegam a combater inclusive voluntários brasileiros — geralmente saídos do movimento aliancista de 1935 — epitomiza essa fase de intensos conflitos ideológicos e de apelos dramáticos à solidariedade internacional. No final do período, o Brasil define-se pela política de “grande aliança atlântica”, confirmada pela participação na Segunda Guerra Mundial e pelo alinhamento com as posições norteamericanas. Persiste em filigrana, durante toda essa fase, uma consciência nítida das elites dirigentes em relação ao atraso material e tecnológico do País, mesmo se essa percepção ainda não tivesse sido conceitualmente definida nos termos da grande divisão entre desenvolvimento e subdesenvolvimento que vai mobilizar a agenda internacional no imediato pós-guerra e nas décadas seguintes. Em todo caso, grande parte das energias da diplomacia varguista, no capítulo das relações econômicas externas, será mobilizada em função da necessidade de se lograr recursos financeiros e materiais para a instalação de uma usina siderúrgica no País, o que será alcançado mediante o apoio dos Estados Unidos à construção de Volta Redonda. Uma política exterior tradicional: 1945-1960 Essa fase tem início pela participação tentativa e parcial do Brasil na construção de uma nova ordem mundial, na conferência de Bretton Woods, em 1944, a partir de quando a reorganização econômica do mundo é enquadrada pela luta entre os modelos rivais do liberalismo e do socialismo. Ela tem continuidade com a afirmação incisiva – já no segundo Governo Vargas - dos interesses nacionais no quadro inédito de diminuição dramática dos atores relevantes no plano internacional — em função da bipolaridade introduzida pela Guerra Fria— e, portanto, de redução simultânea das parcerias economicamente “rentáveis” nesse quadro de opções obrigatórias. Mas, a “opção americana” que então se desenha se faz também no contexto da emergência de uma diplomacia do “desenvolvimento”, que se afirmará plenamente na fase seguinte. Se, por um lado, a doutrina da “segurança nacional” define o sustentáculo ideológico da Guerra Fria, o Pan-americanismo, por outro, mobiliza os esforços da diplomacia para a “exploração” da carta da cooperação com a principal potência hemisférica e ocidental. É 20

nesse quadro de barganhas políticas e de interesse econômico bem direcionado que o Brasil empreenderá sua primeira iniciativa multilateral digna de registro, a Operação Pan-Americana, proposta pelo Governo Kubitschek em 1958. No plano econômico externo, é nessa fase que tem início a negociação dos primeiros acordos de produtos de base – café, cacau, açúcar, entre outros -, com a criação concomitante das organizações multilaterais setoriais que se ocupam desses produtos, ao mesmo tempo em que o Brasil suscita, em 1956, mediante a demanda formal de reestruturação das dívidas oficiais bilaterais, a criação de um foro de credores que mais adiante evoluirá para a constituição do Clube de Paris (1961). Ainda no terreno da diplomacia econômica multilateral, essa fase corresponde aos primeiros exercícios negociadores de política comercial no GATT, quando o Brasil renegocia sua adesão, em 1957, a partir da nova Lei Aduaneira e de reclassificação tarifária. A política regional é marcada por uma certa ambiguidade entre o equilíbrio estratégico e o isolamento diplomático, visível sobretudo no relacionamento com o principal parceiro e rival, a Argentina, mas o quadro evolui, sobretudo a partir da era Kubitschek, para a superação da competição e sua substituição pela convivência e pela cooperação. Começa a ter voga, nessa época, sob a impulsão do economista argentino Raul Prebisch, o chamado “modelo cepalino”, isto é, a promoção do desenvolvimento nacional por meio de políticas ativas de industrialização, eventualmente mediante a cooperação econômica no contexto sul-americano e a promoção de esquemas de integração. Tais esforços, inclusive por um certo mimetismo em relação ao mercado comum europeu recentemente (1957) instituído, resultarão, em 1960, na criação da Associação Latino-Americana de Livre-Comércio (ALALC). No plano institucional interno, é também nessa fase que se completa a profissionalização da carreira diplomática, cujo acesso passa a se dar, desde 1946, por vestibular organizado pelo Instituto Rio Branco e na qual a ascensão funcional confirma mais intensamente o mérito do que o background familiar. A política externa independente: 1961-1964 A prática da política externa independente, em sua primeira modalidade nos conturbados anos Jânio Quadros-João Goulart, representa uma espécie de parênteses inovador num continuum diplomático dominado pelo conflito Leste-Oeste. O impacto da revolução cubana e o processo de descolonização tinham trazido o neutralismo e o não-alinhamento ao primeiro plano do cenário internacional, ao lado da competição 21

cada vez mais acirrada entre as duas superpotências pela preeminência tecnológica e pela influência política junto às jovens nações independentes. Não surpreende, assim, que a diplomacia brasileira comece a repensar seus fundamentos e a revisar suas linhas de atuação, em especial no que se refere ao tradicional apoio emprestado ao colonialismo português na África e a recusa do relacionamento econômico-comercial com os países socialistas. A aliança preferencial com os Estados Unidos é pensada mais em termos de vantagens econômicas a serem barganhadas do que em função do xadrez geopolítico da Guerra Fria. Formuladores protagonistas dessa nova maneira de pensar foram políticos relativamente tradicionais como Afonso Arinos e San Tiago Dantas e alguns diplomatas de espírito inovador como Araújo Castro. É nesse período que, ao lado da tradicional dicotomia Leste-Oeste, se começa a proclamar uma divisão do mundo ainda mais insidiosa, Norte-Sul, entre países avançados e países subdesenvolvidos. O Brasil foi um dos articuladores mais ativos das propostas desenvolvimentistas que resultaram na criação, em março de 1964, da Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD), cujos objetivos eram, nada mais, nada menos, do que a revisão completa da arquitetura do sistema multilateral de comércio e a criação de mecanismos — sustentação de produtos de base, sistema geral de preferências comerciais em favor dos exportadores de matérias-primas, não reciprocidade nas relações de comércio — suscetíveis de promover uma inserção mais ativa dos países em desenvolvimento na economia mundial. Quando a primeira sessão da conferência se realizava, em Genebra, o golpe militar no Brasil sinalizou, entretanto, um retorno a padrões mais tradicionais de política externa. A volta ao alinhamento, 1964-1967 O reenquadramento do Brasil no “conflito ideológico global” representa mais uma espécie de “pedágio” a pagar pelo apoio dado pelos Estados Unidos no momento do golpe militar contra o regime populista do que propriamente uma operação de reconversão ideológica da diplomacia brasileira. Em todo caso, observa-se um curto período de “alinhamento político”, durante o qual a nova “diplomacia do marechal” Castelo Branco — em contraposição àquela resolutamente nacionalista aplicada por Floriano Peixoto durante a revolta da Armada — adere estritamente aos cânones oficiais do Pan-americanismo, tal como definidos em Washington: registre-se, numa sequência de poucos meses, a ruptura de relações diplomáticas com Cuba e com a maior parte dos 22

países socialistas, assim como a participação de força de intervenção na crise da República Dominicana. A política multilateral e as relações bilaterais, de modo geral, passam por uma “reversão de expectativas”, para grande frustração de parte da nova geração de diplomatas que tinha sido educada nos anos da política externa independente. No plano econômico externo, a volta à ortodoxia na gestão da política econômica permite um tratamento mais benigno da questão da dívida externa, seja no plano bilateral, seja nos foros multilaterais do Clube de Paris ou nas instituições financeiras internacionais, como o FMI. É sintomático aliás que a única assembleia conjunta das organizações de Bretton Woods a realizar-se no Brasil, tenha tido por cenário o Rio de Janeiro da primeira era militar, em 1967, quando também se negocia a instituição de uma nova liquidez para o sistema financeiro internacional, o Direito Especial de Saque do FMI. Revisão ideológica e busca de autonomia tecnológica: 1967-1985 Mas, a postura de princípio favorável a uma política exterior de tipo “tradicional” ou a aceitação indiscutida de regras diplomáticas caracterizadas pelo “alinhamento incondicional” às teses do principal parceiro ocidental vinham tendo cada vez menos vigência no Brasil contemporâneo, mesmo no regime dos militares adeptos da doutrina da segurança nacional. Basicamente, essas atitudes apenas se manifestaram nos primeiros anos do pós-guerra e no seguimento imediato do movimento militar de 1964, para serem logo em seguida substituídas por atitudes mais pragmáticas. A atitude “contemplativa” em relação aos EUA — partilhada igualmente pelos militares e pelas elites, de modo geral, durante a Guerra Fria — cede progressivamente lugar a uma diplomacia altamente profissionalizada, preocupada com a adaptação dos instrumentos de ação a um mundo em rápida mutação, e instrumentalizada essencialmente para o atingimento dos objetivos nacionais do desenvolvimento econômico. Tem início, então, a participação plena do Brasil nos esforços de construção de uma “nova ordem econômica internacional”, com atuação destacada em todos os foros multilaterais abertos ao engenho e arte de uma diplomacia mais madura e liberta das alianças exclusivas da Guerra Fria. O período pode ser caricaturalmente identificado com a “diplomacia dos rótulos”, que efetivamente se sucedem entre 1967 e 1985, a saber: (1) “diplomacia da prosperidade” ainda no Governo Costa e Silva; (2) “Brasil Grande Potência”, no período Médici; (3) “pragmatismo responsável”, sob a presidência 23

Geisel; (4) “diplomacia ecumênica”, já no último governo militar desse ciclo, o de Figueiredo. A despeito dessas classificações mais ou menos arbitrárias, tratou-se, basicamente, de uma “diplomacia do crescimento”, consubstanciada na busca da autonomia tecnológica, inclusive a nuclear, com uma afirmação marcada da ação do Estado nos planos interno e externo. Mas, observa-se também nesse período a confirmação da fragilidade econômica do País, ao não terem sido eliminados os constrangimentos de balança de pagamentos que marcaram historicamente o processo de desenvolvimento brasileiro: as crises do petróleo, em 1973 e 1979, seguida pela da dívida externa, em 1982, marcam o começo do declínio do regime militar. Redefinição das prioridades e afirmação da vocação regional: 1985-2000 Os elementos mais significativos da postura internacional do Brasil poderiam ser atualmente caracterizados pelos seguintes processos: redefinição das prioridades externas, com afirmação da vocação regional — processo de integração sub-regional no Mercosul e de construção de um espaço econômico na América do Sul —, opção por uma maior inserção internacional e aceitação consciente da interdependência — em contraste com a experiência anterior de busca da autonomia nacional —, com a continuidade da abertura econômica e da liberalização comercial, no quadro de processos de reconversão e de adaptação aos desafios da globalização. A diplomacia passa a apresentar múltiplas facetas, que não exclusivamente a de tipo bilateral ou aquelas de ordem estritamente profissional corporativa: são elas a regional, a multilateral (principalmente no âmbito da OMC) e a presidencial. As mudanças de ordem política, econômica e diplomática nas relações internacionais do País, neste período recente, são tão variadas, e de tal magnitude — tanto as surgidas internamente como as induzidas de fora —, que qualquer tentativa de levantamento das “questões relevantes” nesta fase da história nacional correria o risco de deixar de fora problemas importantes de uma agenda externa crescentemente diversificada e extremamente complexa, seja no âmbito multilateral ou nos diversos planos bilaterais. Mencione-se, por obrigatória, a questão nem sempre bem colocada da “opção” entre uma “política externa tradicional” — por definição “alinhada” — e uma “política externa independente”, problema dramatizado por anos de enfrentamento bipolar no cenário geopolítico global. Superando, contudo, o invólucro “ideológico” da postura externa do País nesse período, e mesmo os diversos “rótulos” com os quais se 24

procurou classificar a diplomacia da era “militar”, assume importância primordial, independentemente da postura política particular de cada Governo frente aos desafios do cenário internacional, a questão do desenvolvimento econômico, verdadeiro leit motiv da diplomacia brasileira contemporânea. A política externa brasileira, desde os anos 50 pelo menos, foi basicamente uma política econômica externa, mesmo se problemas de ordem regional (rivalidade com a Argentina), de tipo político-ideológico (desafio insurrecional segundo o modelo “castrista”) ou de cunho social-humanista (direitos humanos, por exemplo) ocuparam frações significativas da agenda diplomática em momentos determinados desse período. Sem praticamente nenhum tipo de exceção, todas as grandes questões de política interna do País — industrialização, capital estrangeiro, política energética e de “segurança nacional” (começando pelo petróleo, passando pelo programa nuclear e chegando à política de informática), modernização tecnológica etc. — são também, e antes de mais nada, questões de política externa da Nação. São essas as questões — acrescidas de algumas outras que delas derivam: dívida externa, meio ambiente, exportações de artigos militares etc. — que estão no centro das relações internacionais do Brasil contemporâneo e que, como tais, devem conformar o próprio “menu” de um estudo global das relações internacionais do País. Uma outra questão, mais recente, mas que faz parte igualmente da agenda econômica “externa” da Nação, veio a elas se juntar em forma permanente: a política de integração regional, em especial o processo de constituição de um mercado comum no cone sul americano. Ainda que esta última issue diplomática tenha resultado, basicamente, de uma opção de public policy cuja natureza foi fundamentalmente política — e mesmo “geopolítica”, no bom sentido da palavra —, isto é, a decisão tomada, ao concluir-se o período militar, de encerrar a tradicional postura de conflito e de concorrência com a Argentina para substituí-la por uma de cooperação e de integração, essa questão representa, igualmente, um capítulo específico, ainda que inédito, da densa agenda brasileira no campo das relações econômicas internacionais. Ela é uma vertente, provavelmente a mais importante na atualidade, da já chamada “diplomacia do desenvolvimento”. Assim como a industrialização e a modernização econômica do País foram perseguidas de maneira persistente, desde longas décadas, pela sociedade em seu conjunto, a integração regional passa a fazer parte do horizonte histórico futuro da 25

nacionalidade. Num mundo em rápida mutação, com cenários geopolíticos e geoeconômicos ainda não totalmente claros, a opção de política regional adotada pelo Brasil passa a conformar um dos pontos mais importantes de sua agenda internacional. Como tal, essa questão deve figurar em posição de destaque em qualquer estudo que se empreenda, doravante, sobre as relações internacionais do Brasil. Nova fase de inserção econômica internacional, com a redefinição de algumas linhas de sua política externa (integração sub-regional), se define no bojo da terceira fase da globalização capitalista, que corresponde igualmente a um processo de grandes transformações na economia e na sociedade brasileiras. Finalmente, nenhum estudo das relações internacionais do Brasil poderia descurar a perspectiva propriamente globalizante — e “primariamente” comparatista — consistindo em pensar sua inserção num sistema internacional cujas bases de funcionamento estão em processo de transformação acelerada. Não está ainda totalmente claro que estrutura de tomada de decisões políticas, em nível mundial, e que conformação precisa, em termos de sistema hierarquizado (ainda que segundo novos princípios), terá a ordem emergente atualmente, que passa a substituir o cenário bipolar enterrado ao mesmo tempo em que se cobre de terra o caixão do socialismo mundial. Em todo caso, essa “nova ordem” já não mais consistirá, apenas, de duas superpotências, algumas potências médias e vários Estados “emergentes”. Os fenômenos de “globalização” — não apenas restrito à internacionalização dos circuitos produtivos — e de “regionalização” — com a formação de blocos econômicos e políticos em diversas regiões do planeta — prometem introduzir novas variantes nos modelos até aqui conhecidos de sistema internacional, tais como referidos anteriormente: o modelo dos impérios universais, o das cidades-Estado comerciais e o moderno sistema de Estados. O cenário histórico futuro indica, previsivelmente, que o estudo das relações internacionais de um País como o Brasil terá de trabalhar, durante um certo tempo ainda, com os conceitos de “Estado periférico” e de “potência média”. Ainda assim, o padrão de relacionamento de um Estado desse tipo com os atores principais do sistema internacional, bem como o peso específico de nações “periféricas” na estrutura do poder mundial sofrerão mudanças significativas em direção do horizonte 2000. Nesse sentido, uma reflexão comparada sobre as tendências de desenvolvimento dos Estados médios, com base nos elementos de análise já disponíveis, poderá contribuir a uma melhor compreensão da agenda diplomática de um país-continente como o Brasil. 26

Anos 15001580

15801670

16701790

17901830

18301850

Relações econômicas internacionais do Brasil, 1500-1890 Produção Região Mão-deCentro Relações internacionais, principal dominante obra econômico processos econômicos pau-brasil, Mata Índios feitorias e Incorporação das novas produtos atlântica, entreposto terras aos circuitos da floresta costa do s na costa, mercantis; produtos exóticos; Nordeste sesmarias exercício do monopólio português e tentativas de usurpação por outras potências europeias açúcar, Nordeste Índios e Salvador Estabelecimento do tabaco, escravos pacto colonial: exclusivo pecuária negros, econômico metropolitano; tropeiros regime do tráfico, monopólios de Estado e das companhias de comércio; dominação espanhola e invasões estrangeiras; expansão do território ouro e Minas Escravos, Salvador, Desenvolvimento da pedras Gerais, faiscadore Ouro economia interna (minas, preciosas, costa do s, Preto, Rio pecuária, algodão); açúcar Nordeste trabalhado de Janeiro concessões de Portugal à res livres Inglaterra; opressão fiscal da metrópole, quebra de monopólios pelas reformas pombalinas; esgotamento da economia do ouro algodão, vários Escravos, Rio de Processo da café, arquipélag primeiros Janeiro independência, abertura dos pecuária os colonos portos, tratados desiguais econômico com a Inglaterra, s desenvolvimento das primeiras atividades fabris, expansão do café na região fluminense e da criação no Sul; primeiro Banco do Brasil café, Sul, escravos, Rio de Diversificação da algodão Sudeste, ainda Janeiro, economia, empréstimos poucos São Paulo externos; primeiras imigrantes siderúrgicas, contestação e recusa dos tratados de comércio; livre navegação no Prata; tráfico sob pressão, estagnação da economia açucareira; déficits comerciais, primeira tarifa 27

protecionista 1850- café, Sul, colonos São Paulo, Dominação econômica 1890 borracha, Sudeste, europeus, Rio de do café, surto temporário do pecuária Amazônia brasileiros Janeiro algodão, começo do boom da , borracha, desenvolvimento primeiros da infraestrutura (ferrovias, operários telégrafos), investimentos estrangeiros, forte imigração europeia; alternância de tarifas protecionistas e liberais; declínio da hegemonia econômica britânica, diversificação de parceiros e começo da presença norte-americana; superávits comerciais; atividades fabris em diversos centros urbanos Fonte: Paulo Roberto de Almeida, Formação da Diplomacia Econômica no Brasil.

Anos 18901920

19201940

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Relações econômicas internacionais do Brasil, 1890-2000 Produção Região Mão-deCentro Relações internacionais, principal dominante obra econômico processos econômicos Borracha, Amazônia, seringueir São Paulo, Boom da borracha café, Sudeste, os, Manaus, propicia ganhos a algodão, Nordeste agricultor Belém proprietários de seringais, surtos es, comerciantes e compradores iniciais de operariad estrangeiros (a Amazônia se industriali o fabril internacionaliza, antes de zação entrar em decadência); surto industrializador no Sudeste atrai investimentos diretos estrangeiros em serviços e na manufatura; política comercial protecionista; começo da “relação especial” com os Estados Unidos e do declínio da preeminência britânica; diplomacia do café e empréstimos para sustentação do produto. O café Sudeste; Operariad São Paulo Diplomacia do café torna-se cresciment o paulista; como determina o essencial da predomin o emergênci centro política externa; empréstimos ante; industrial a da industrial, externos para estabilização industriali em São burguesia Rio de da produção começam a ser zação Paulo industrial Janeiro feitos na praça de NY; errática como passagem da hegemonia

19401964

A industriali zação ocupa o centro das políticas econômic as do Estado

Sudeste; esforços de incorporaç ão de regiões mais afastadas à economia nacional

Operariad o fabril de SP; expansão das zonas de fronteira agrícola

19641990

Autonomi a econômic ae tecnológic a pela autarquia

Sudeste (indústrias de segunda geração);

Engenheir os, tecnólogo s, homens de negócios

19902000

Produção diversifica da; exportaçõ es de commoditi es, mas estrutura industrial avançada

Sudeste continua a concentrar metade do PIB nacional, mas ocorre um processo de interioriza ção do cresciment o

Sociedade industrial e de serviços; mas a população ainda dispõe de baixo nível de educação formal

centro britânica para a nortefinanceiro americana (aumento dos investimentos diretos de firmas dos Estados Unidos). Grande Diplomacia do concentra desenvolvimento, com ção do promoção da industrialização desenvolv substitutiva; políticas de imento no controle cambial e abertura Sul seletiva ao capital estrangeiro (tentativa de relação especial com os Estados Unidos); promoção de acordos sobre produtos de base e de aquisição de equipamentos estrangeiros. Expansão Reinserção, num das primeiro momento, nas conurbaçõ correntes dominantes da es mais economia capitalista, depois desenvolv prosseguimento de caminho idas no autônomo de capacitação Sudeste tecnológica; esforços de exportação e de diversificação da base econômica; iniciativas nos terrenos nuclear e de tecnologias sensíveis, com surgimento de contencioso externo com principal parceiro hemisférico; acúmulo de grande dívida externa e de desequilíbrios setoriais e sociais; modernização econômica com pouco progresso social. Ampliação Busca de inserção do econômica internacional; mercado tentativas de estabilização para econômica, com avanços e cobrir o fracassos; aumento Mercosul considerável do PIB, mas continuidade de níveis pouco equitáveis de distribuição de renda. Avanços no processo de integração regional, mas baixo nível de coordenação de políticas econômicas. 29

Fonte: Paulo Roberto de Almeida, Formação da Diplomacia Econômica no Brasil . Evolução conceitual da diplomacia econômica no Brasil, séculos XIX e XX

Comercial

Financeira

Investiment os

Século XIX Depois de exercício de livrecambismo, Brasil adota política comercial própria, baseada na reciprocidade estrita; política comercial mais fiscalista do que industrializante; protecionismo oportunista ou ocasional; baixa proteção efetiva; as alíquotas tarifárias passam de ad valorem a específicas no período; Fragilidade orçamentária do Estado obrigou a empréstimos para gastos correntes, pagamento de obrigações externas e aplicação em alguns projetos de desenvolvimento; dependência de banqueiros londrinos; “diplomacia dos créditos externos” vinculada a objetivos geopolíticos do Brasil na Bacia do Prata (empréstimos ao Uruguai e Argentina); Precocidade patentária, acompanhamento dos progressos tecnológicos em curso na Europa e nos Estados Unidos; política reativa de atração de capitais produtivos e de novos inventos para o País; poucas reservas de mercado; ausência de critérios;

Política de “braços para a lavoura”, preservando o tráfico e a escravidão, e tímida política de atração de colonos “europeus” por falta de uma lei de terras; recusa de comerciantes ou de trabalhadores independentes; política errática de atração de “colonos”; Brasil “presente na criação” das Multilateral primeiras uniões de cooperação; precocidade na presença nos Força de trabalho

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Século XX Política tarifária pragmática na maior parte do período; alta proteção efetiva; alíquotas retornam ao conceito de ad valorem; protecionismo vinculado a objetivos industrializantes; revisão da política comercial como instrumento de desenvolvimento; adoção de perspectiva integracionista e possibilidade de livre-comércio no final do período; Empréstimos comerciais, bilaterais e multilaterais vinculados a projetos de desenvolvimento; dependência dos mercados de capitais em determinados períodos; inadimplência ocasional; recurso ao FMI; política de créditos externos vinculada a objetivos comerciais em países em desenvolvimento; defaults dos tomadores de créditos; Política de desenvolvimento tecnológico associada a restrições patentárias; períodos de abertura e de fechamento em relação ao capitais estrangeiros; várias reservas de mercado e conceito de similaridade nacional; política substitutiva; nova lei de patentes no final do período; Sucesso na “importação” de imigrantes europeus, mas ainda prática de seletividade “racial” e profissional; pouca atenção à importação de “cérebros”; restrições crescentes; de importador a moderado “exportador” de mão-de-obra; Participação na elaboração na “ordem econômica” do século XX; presença em todos os foros

primeiros esforços de coordenação multilateral, mas pouca capacidade efetiva de influenciar as decisões das demais “potências” do concerto internacional; Burocracia “patrimonialista”, com Institucional seleção elitista do pessoal - funcional diplomático; definição precoce de seção encarregada de temas comerciais; diplomatas negociam acordos e agentes consulares defendem interesses comerciais; ampla presença geográfica; processo decisório interativo com a elite política e com a área fazendária; representantes da classe política na chefia da Secretaria de Estado;

relevantes; ativo relacionamento com os parceiros economicamente mais importantes; aumento progressivo da influência nos processos decisórios multilaterais; Estrutura funcional-burocrática profissionalizada; diplomatas com especialização econômica cobrem todos os aspectos da presença externa (absorção da carreira consular); ampliação da rede diplomático-consular no exterior; menor apelo político-partidário na direção do Itamaraty e menor osmose com a área fazendária; novos critérios de seleção do pessoal diplomático e dos padrões de mobilidade ascensional.

Fonte: Paulo Roberto de Almeida, Formação da Diplomacia Econômica no Brasil (em fase de publicação)

782. “Relações Internacionais e política externa do Brasil: uma perspectiva histórica”, Washington, 22 de março de 2001, 13 p. Revisão do trabalho n. 748 (Relação de Publicados n. 241), elaborado em 19 de setembro de 2000, para conferência sobre “Brasil 500 anos”, feita em 9/11/2000 na Universidade de Santiago de Compostela. Publicado na revista Meridiano 47, Boletim e Análise de Conjuntura em Relações Internacionais (Brasília: Instituto Brasileiro de Relações Internacionais, abr./mai./jun. 2001, n. 10/11/12, p. 2-11; ISSN 1518-1219; link: http://www.mundorama.info/Mundorama/Meridiano_47_-_1100_files/Meridiano_10_11_12.pdf). Disponível no site pessoal: www.pralmeida.org/05DocsPRA/782RelIntBrasilPRA.pdf. Incorporado ao livro Paralelos com o Meridiano 47: Ensaios Longitudinais e de Ampla Latitude (Hartford, 2015). Relação de Publicados n. 274.

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2. Ideologia da política externa: sete teses idealistas Le canon a tué le féodalisme. L’encre à écrire va tuer la société moderne. Napoleão ∗

A reflexão irônica de Napoleão – já imperador, solidamente instalado no comando de seu império europeu e exercendo plenamente o poder – era dirigida, não sem ironia e desdém, contra aqueles que começavam a ser designados, segundo a expressão então cunhada por Destutt de Tracy, pelo conceito de ideólogos. Para Napoleão, esses litterati nouvelle manière – que de maneira otimista ou ingênua, acreditavam que poderiam influenciar a política dos príncipes – viviam concebendo grandes projetos de reforma da sociedade sem qualquer embasamento na realidade ou sem atender um mínimo compromisso com a coerência. A situação não modificou-se substancialmente desde aqueles dias e a classe dos ideólogos – uma subespécie da categoria mais ampla dos trabalhadores intelectuais – proliferou de maneira extraordinária na era contemporânea. Alguns ideólogos consideram-se a si mesmos “intelectuais independentes”, muito embora vários deles sejam propensos a trocar voluntariamente essa condição pela carreira mais emocionante de “conselheiro de príncipes” (desde, é claro, que estes últimos estejam dispostos a ouvi-los e a acatar seus conselhos aparentemente sensatos e descompromissados). De certa forma, os diplomatas constituem, no plano da política externa, os ideólogos dos estados modernos. Eles estão sempre procurando soluções inovadoras a velhos e novos problemas das relações internacionais, combinando propostas singelas de melhoria da situação mundial com a expressão mais imediata dos interesses concretos de seus países respectivos. Ao fazê-lo, ele operam um mélange de Idealpolitik com Realeconomik, o que não deixa de representar uma aplicação ponderada da tradicional receita de equilíbrio entre os requerimentos de mudança e as pressões do status quo. Se os fundamentos da ação diplomática não estiverem contaminados pela ambiguidade ou pela incoerência, tal tipo de atuação representaria nada mais do que uma demonstração do mais puro bom senso. Mas, se é verdade também que a política externa nada mais é do que a continuidade da política interna por outros meios, é mais ∗

O canhão matou o feudalismo. A tinta de escrever vai matar a sociedade moderna.

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fácil ser ideólogo no plano nacional ou doméstico do que no das relações internacionais, inclusive porque, pelo menos desde a ruptura renascentista do monopólio papal sobre a legitimidade dos estados, não existem mais príncipes com estatura internacional. Daí porque, mesmo ideólogos da política externa como os diplomatas devem desviar muito de sua atenção para os fatores domésticos da política internacional de seus estados, o que no caso deste texto é assumido de forma explícita. As reflexões que se seguem buscam, precisamente, discutir as raízes internas das posições internacionais assumidas pelo Brasil ou, de outra forma, recolocar no plano nacional alguns dos fundamentos da atuação externa do Brasil, que muitos julgam poder apreender apenas na interação com outros estados e no contexto exclusivamente externo. Não é esta a posição do autor, que apenas considera compreensível a política externa de um estado quando os diplomatas que a aplicam são capazes de situá-la no contexto dos interesses domésticos e da “ideologia nacional” que a sustenta. A diplomacia brasileira, por exemplo, sempre ostentou em suas bandeiras ideológicas os princípios da independência e da soberania nacionais, o que nos parece muito sensato e compreensível. Nada nos deveria impedir, contudo, enquanto “ideólogos” da diplomacia, de contestar alguns dos fundamentos dessas idéias e de discuti-las abertamente. Ao fazê-lo confessamos candidamente que pretendemos colocar em causa algumas dessas idées reçues sobre a inserção internacional do Brasil e os requerimentos para uma eventual mudança de status. Assim, as sete teses “idealistas” relacionadas abaixo pretendem comentar, se não discutir, velhos princípios da política externa brasileira que costumam ser reafirmadas de tempos em tempos. O objetivo é confessadamente provocador. 1. Os objetivos nacionais permanentes Nunca é demais lembrar: esses objetivos precisam ser permanentemente reafirmados, sobretudo para diplomatas, que vivem num mundo em estado de mutação permanente. Entretanto, alguém, na Casa de Rio Branco, ainda sabe quantos ou quais são eles? Tinham certamente uma presença mais vigorosa na época em que os militares ocupavam o poder político, quando a Escola Superior de Guerra, uma espécie de “Sorbonne” do pensamento estratégico nacional, convidava anualmente o ministro das relações exteriores a pronunciar conferência magistral sobre o assunto: invariavelmente, o discurso começava por retomar os fundamentos desses objetivos nacionais 33

permanentes, como recomendavam aliás os próprios manuais da ESG, o bastião conceitual mais visível da ideologia do poder nacional. Mas, o fato é que, hoje, o tema está visivelmente em baixa, e ninguém mais se lembra de retomar a lista para verificar se estamos ou não indo pelo bom caminho. Esses objetivos pareciam ter algo a ver com a preservação da segurança da pátria frente às ameaças externas, com a afirmação e a defesa do interesse do país, a preservação da integridade do território nacional, a projeção internacional do estado brasileiro, a consolidação de seu potencial econômico e militar e o desenvolvimento integral da nação, fazendo do Brasil uma sociedade mais justa e mais humana. Em outros termos, nada de muito démodé, ao contrário, uma agenda perfeitamente atual, compatível com programas eleitorais de centro, esquerda ou direita. Em função desses objetivos ainda válidos, como situar o papel e a função da política externa brasileira? Ela poderia ser definida, parafraseando Clausewitz, como a continuação da política interna por outros meios. Adotando, em conseqüência, uma visão mais idealista (mas não menos “utilitarista”) da diplomacia brasileira, o objetivo precípuo da política externa não deveria ser, unicamente, o de representar o país no exterior e menos ainda o de contribuir para uma pretendida grandeza nacional, a exemplo do slogan “Brasil grande potência” típico daquele passado militar. Se examinarmos a lista, a constatação que se poderia fazer é a de que, atualmente, nada parece afetar a integridade do território nacional, nem parece existir qualquer ameaça externa à segurança da pátria ou à consolidação de seu potencial econômico e militar, a não ser, talvez, nossa própria capacidade, domesticamente fabricada, de provocar danos ao meio ambiente nacional ou de colocar em risco a saúde e o bem estar da população. Bem mais difícil, contudo, seria apontar precisamente o que poderia constituir o chamado “interesse nacional”, pois cada grupo social ou movimento político parece ter sua própria definição do que seja um “projeto nacional” estabelecido em função dos “interesses do país”. Se conseguirmos, entretanto, reduzir a um denominador comum as aspirações dos mais diversos setores ou partidos no que se refere ao interesse público nacional, a expressão mais frequente a ser ouvida seria, muito provavelmente, a noção de “desenvolvimento”. Este é o leit-motiv e o verdadeiro fulcro da ideologia nacional, como aliás já tinham constatado, meio século atrás, filósofos como Álvaro Vieira Pinto e sociólogos como Alberto Guerreiro Ramos. Nesse contexto, a função mais importante e fundamental da política externa deveria ser, tão simplesmente, a de coadjuvar o 34

processo de desenvolvimento econômico e social da nação. Assim, o critério essencial pelo qual deveria pautar-se a atuação de cada diplomata brasileiro é a promoção do progresso material e cultural da sociedade brasileira, objetivo de alguma forma intangível e certamente mais fácil de ser pregado do que efetivado, ou ainda de ser operacionalizado na prática. Em outros termos, não existe um critério unívoco de transposição de “oportunidades externas” em “possibilidades internas”, para utilizar conceitos caros a Celso Lafer. O que remete o diplomata à esfera do bom senso, ou então, à situação de ele ter capacidade de perceber e identificar, na trama por vezes complexa da agenda internacional, o que exatamente corresponde ao interesse nacional e que tipo de inserção externa seria mais suscetível, preferencialmente a outras alternativas, de conduzir o Brasil no caminho do desenvolvimento sustentável. Ainda incerto quanto ao roteiro a ser seguido? Isto é compreensível, mas a solução consiste, tão simplesmente, em conhecer profundamente o Brasil e ter uma visão clara da economia política de nosso desenvolvimento social. 2. A independência nacional No passado, esse conceito já foi equalizado ao exercício pleno da soberania, o que tanto tinha a ver com a capacidade de o estado manter abertas todas as opções possíveis para a demonstração de seu poder, como com a não dependência de qualquer fonte de abastecimento externa. Historicamente, nem o primeiro objetivo foi jamais alcançado, nem o segundo, que é não apenas ilusório como economicamente irracional, apresenta qualquer viabilidade prática ou finalidade instrumental, do ponto de vista do sistema produtivo. Em termos estritamente econômicos, o conceito pode ser traduzido pelo coeficiente de abertura externa, que representa a parte do comércio exterior na formação do produto. No Brasil, a noção assume ares de imperativo categórico, a ponto de figurar, na Carta de 1988, como um dos princípios constitucionais que guiam as relações internacionais do país, como se os líderes do país – ou, vá lá, os diplomatas – fossem capazes de colocá-la em risco. Durante os períodos de fechamento da economia internacional, como a partir da crise de 1929 e durante a depressão dos anos 1930 e os anos de guerra, não havia mesmo outra opção senão a chamada self-reliance, ou seja, o recurso a fontes alternativas internas de suprimento e a ênfase no mercado interno. No atual contexto internacional, contudo, esse objetivo permanente deveria ser procurado não necessariamente na direção da independência econômica stricto sensu, mas sim 35

mediante uma ativa interdependência com os grandes centros da economia mundial, quando não através de uma internacionalização cada vez mais intensa da economia brasileira. A globalização torna irrelevante qualquer diferenciação entre o mercado interno e o externo e, se alguma distinção pode haver, ela sempre resultaria em destacar a superioridade do mercado externo, tanto em termos de renda agregada como em função da demanda ampliada e do upgrade tecnológico. A antiga concepção da independência nacional – entendida em determinadas épocas como a realização da plena autonomia decisória em matéria econômica, quase como a conformação de uma espécie de autarquia produtiva –, nunca contribuiu, de fato, para a verdadeira independência nacional, mas sim a fragilizou, a ponto de tornar o País menos propenso a responder aos desafios da competição externa. Apenas uma espécie de substrato inconsciente da antiga “prevenção contra o estrangeiro” ou a manifestação delongada de um complexo de inferioridade hoje aparentemente superado – e aos quais não são alheios certos equívocos de nossas elites políticas – têm impedido a necessária (e inevitável) internacionalização mais intensa do sistema produtivo brasileiro ou a afirmação desinibida da presença cultural no exterior. Da mesma forma, é carente de sentido a noção de que o país necessita primeiro afirmar-se economicamente ou de que suas empresas devem capacitar-se tecnologicamente ou fortalecer-se financeiramente antes de que possam ser colocadas em prática políticas de abertura econômica e de liberalização comercial. Em outros termos: globalização sim, mas ainda não, esperemos mais um pouco para resolver problemas imediatos. Ao contrário: a multinacionalização das empresas brasileiras ocorrerá no bojo e pari-passu ao processo de internacionalização da economia brasileira. A globalização pode não ser o objetivo final, mas representar tão simplesmente um meio de alcançar determinados objetivos, que não são os da internacionalização em si, mas os do aumento da eficiência e da capacidade de competição dos agentes econômicos nacionais. 3. O interesse nacional e a cooperação internacional A cooperação internacional costuma ser identificada com a disponibilidade de “excedentes nacionais”, isto é, o fato de um determinado país, após sua fase de “acumulação primitiva”, ter deixado de ser receptor de assistência financeira ou técnica externa para tornar-se, ele mesmo, provedor de ajuda ao desenvolvimento, a exemplo dos membros do Comitê de Ajuda ao Desenvolvimento da Organização de Cooperação 36

e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Na verdade, o processo é mais difuso, como indica o fato de o Brasil ter aderido, em 1960, à Associação Internacional de Desenvolvimento (do Banco Mundial) na condição de contribuinte líquido, ao mesmo tempo em que recebia, para o Nordeste por exemplo, ajuda assistencial sob a forma de alimentos ou outros tipos de doações. Os dois lados da equação “cooperação internacional” se confundem por vezes, não havendo uma função de substituição que corresponde exatamente ao processo histórico mediante o qual o sistema econômico de um país passa, numa determinada etapa, de receptor líquido de recursos externos à condição de exportador de capitais. O interesse nacional não deve ser concebido como uma busca egoísta de vantagens exclusivas para o país, no contexto regional ou internacional, mas como um processo de seleção de benefícios crescentes para a nação no quadro da cooperação externa, bilateral ou multilateral. A cooperação internacional, em ambos os sentidos, corresponde ao interesse nacional, tanto mais quanto ela se desdobrar em projetos de maior intensidade, que a transcendam, rumo a processos de associação política ou de integração econômica. Assim, é do interesse do Brasil o desenvolvimento harmônico do maior número possível de estados-nações, muito embora não esteja ao alcance dos representantes brasileiros, em foros internacionais ou em países estrangeiros, a realização de mudanças estruturais ou o atingimento de transformações econômicas e políticas internas nessas nações, ainda que para fins de desenvolvimento. Em todo caso, o interesse nacional confunde-se, em grande medida, com o interesse da comunidade internacional. A cooperação externa, tanto a recebida quanto aquela generosamente prestada aos países de menor desenvolvimento relativo, é, contudo, acessória ao projeto nacional de desenvolvimento econômico e social, que passa pela auto-capacitação tecnológica e a formação interna de capital humano. Em qualquer hipótese, quanto mais ajuda o Brasil prestar a países de menor desenvolvimento relativo, maiores condições ele terá de lograr avanços para si mesmo nos campos tecnológico, financeiro e comercial. 4. A “graduação” e o status de país em desenvolvimento O sistema de comércio internacional do pós-Segunda Guerra foi construído com base em regras de reciprocidade, ou seja, no pressuposto de um tratamento igualitário para todos os países, ricos ou pobres, agrários ou industrializados, avançados ou atrasados. Uma das lutas mais consistentes empreendidas pela diplomacia econômica 37

brasileira nos anos 50 e 60 foi levada justamente no sentido de buscar um tratamento diferencial, ou seja, preferencial e mais favorável, para os países em desenvolvimento, o que foi obtido a partir das reformas do sistema multilateral a partir de 1964, com as reformas do GATT e a atuação inovadora da Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento, a UNCTAD. Desde então a não-reciprocidade assegura um certo acesso de produtos desses países aos mercados desenvolvidos – embora segundo uma relação unilateral, condicionada e assistencialista – bem como a derrogação ou redução de certas obrigações normativas. O sistema vem sendo preservado tal qual, praticamente desde essa época, com algumas modificações menores introduzidas no curso de rodadas de negociações comerciais, geralmente no sentido de ser efetuada a graduação dos mais industrializados, como o Brasil, mantendo preferências para os de menor desenvolvimento relativo. O tratamento preferencial pode trazer algumas vantagens setoriais, mas não constitui, por si só, elemento impulsor do desenvolvimento econômico. Nessas condições, a afirmação, sempre reiterada pela diplomacia brasileira, de nosso status de “país em desenvolvimento” e a consequente busca, ou preservação, das vantagens inerentes a tal condição constituem, paradoxalmente, os meios mais seguros de perpetuar o Brasil nesse estado desconfortável – e, em grande medida, falso – de “país em desenvolvimento”. Em determinadas conjunturas históricas, como a que atravessou o Brasil na passagem para o século XXI, de transformação estrutural ou de transição para uma nova etapa de desenvolvimento econômico, uma mudança auto-assumida de paradigma oferece uma chance única para uma melhor inserção internacional. A liberalização comercial unilateral dos anos 90, por exemplo – como aliás, na mesma linha, a assunção irrestrita do princípio do free trade na Inglaterra vitoriana de um século e meio atrás –, fez mais para aumentar a competitividade externa do Brasil no mercados internacionais do que o suposto tratamento favorável concedido a um certo número de produtos manufaturados por parte de alguns países desenvolvidos. Da mesma forma, o ajuste fiscal e as reformas econômicas internas fazem parte da nova inserção internacional do Brasil. A melhor forma de graduação é aquela auto-assumida, não a imposta pelos parceiros mais desenvolvidos. 5. A integração regional e o ingresso em foros restritos A economia mundial do final do século XX e início do XXI tem sido caracterizada pelos processos de globalização e de regionalização, que não são contraditórios entre si 38

ou apresentando-se como alternativas excludentes. De fato, o que caracteriza a economia mundial da atualidade é o extraordinário aumento da interdependência entre os países, sejam eles membros ou não de algum bloco de comércio ou sistema de aliança política. O Brasil participa de ambos os processos, tendo logrado superar pruridos nacionalistas para engajar-se resolutamente na globalização e dirigido, de forma relativamente exitosa em seus primeiros dez anos, a consolidação do Mercosul em direção de uma união aduaneira. Os processos de integração regional, possuidores de uma racionalidade econômica stricto sensu, devem ser perseguidos como objetivos funcionais ou correlativos ao processo de desenvolvimento nacional, mas não necessariamente como um fim em si, na medida em que sua vertente política e institucional deve ser confrontada aos custos sociais (inclusive financeiros e diplomáticos) de sua realização efetiva. Da mesma forma, a busca seletiva de adesão a (ou de aceitação em) determinados clubes seletos – como podem ser o MTCR, o CSNU, a OCDE – devem ser vistos antes como o resultado do que como a causa de determinados processos estruturalmente vinculados aos objetivos nacionais permanentes. A busca do prestígio pelo prestígio introduz custos adicionais ao esforço interno de ajuste, custos que devem ser confrontados aos benefícios esperados ou à capacidade do país em produzir excedentes líquidos para sua projeção internacional. Em princípio, é o desenvolvimento interno, econômico e social, da nação que trará o reconhecimento externo, e com ele determinados convites à assunção de responsabilidades maiores na comunidade internacional, e não o contrário. O discurso democrático e universalista da diplomacia brasileira, basicamente orientado para a ação multilateral, deve guardar coerência com sua forma de atuação nos mais diferentes foros abertos à nossa presença. O objetivo último de uma política externa “globalizada” e “integracionista” é o aumento do bem-estar da população brasileira, não o internacionalismo abstrato, a integração pela integração ou a incorporação em foros restritos apenas pelo prestígio aparente que isso comporta. 6. A imagem internacional do Brasil Ela é certamente falha, injusta, incorreta, por vezes difamatória: o Brasil geralmente aparece na imprensa internacional mais pelo lado de suas mazelas sociais e ambientais do que pelos aspectos exitosos de seu desenvolvimento ou pelas realizações materiais e artísticas de seu povo. Muitas vezes isso se dá por perversidades próprias à nossa 39

estrutura econômica e social, outras vezes por incompetência dos agentes públicos brasileiros na apresentação de nossas realidades. O aperfeiçoamento dessa imagem não deveria contudo ser buscado pelo mero investimento nos meios, isto é, pela promoção de um retrato “mais fiel” do Brasil, mas por uma ativa política corretiva nas fontes do problema. Do incômodo de conviver com certas realidades, possivelmente vexatórias do ponto de vista internacional, nascem determinadas posições de princípio que apenas eludem alguns problemas cruciais de ordem política ou social; nessa ordem de idéias pode ser colocada a visão jurídica que ainda anima nossa política de direitos humanos. Um certo investimento em “imagem” vem sendo feito junto a interlocutores externos, sem que se possa medir muito bem o retorno efetivo dos recursos engajados nessas formas sutis de propaganda. Alguma satisfação, pelo menos no plano individual, pode resultar dessas ações, mas tais recursos estariam certamente melhor empregados se fossem canalizados para as tarefas de educação e de promoção da cidadania ou da preservação ambiental no próprio Brasil, em lugar de serem direcionados para o exterior. 7. Avaliação do instrumento diplomático brasileiro Depois do “mito do Barão”, a afirmação da “excelência do Itamaraty” é certamente uma das crenças mais arraigadas em nosso estamento profissional, tendo obtido um grau razoável de aceitação pública, interna e externamente. A auto-complacência com nossas supostas boas qualidades pessoais, ótima formação acadêmica e alto desempenho profissional parece constituir uma espécie de “pecado original virtuoso”, tendo sido constantemente estimulada por uma dessas frases grandiloquentes cuja origem é creditada ao imediato entorno regional: “El Itamaraty no improvisa” (talvez devesse fazê-lo em determinadas ocasiões, para não dar a errônea impressão de lentidão ou passividade). De fato, a preservação das linhas básicas da política externa brasileira ao longo das décadas deve-se a seu caráter intelectualmente reflexivo, politicamente cauteloso, operacionalmente coordenado e essencialmente discreto em termos de mídia. Sem querer desmerecer a qualidade e a dedicação da burocracia diplomática, sobretudo em confronto com outras categorias profissionais servindo o Estado, caberia no entanto introduzir uma nota de caução e de advertência, no sentido de que a autossatisfação e a glorificação generosa dos atributos de qualquer tipo de casta social são, de um ponto de vista puramente antropológico, os caminhos mais seguros para uma crescente 40

endogamia, a degenerescência precoce e a esclerose. Os processos de osmose, em contrapartida, costumam ser regeneradores e vivificadores para todas as células do organismo, da mesma forma como a mistura racial e a abertura à alteridade reforçam a capacidade de resposta e de adaptação de todo e qualquer corpo social. Todos sabemos, por exemplo, que grande parte do nosso tempo é mais dedicado à busca de meios para (tentar) trabalhar – como suporte logístico, pessoal, material, comunicações, enfim, recursos e insumos de diversas categorias – do que propriamente voltado para os fins precípuos para os quais somos pagos pela comunidade: pensar e praticar a política externa brasileira. Caberia indagar, assim, se alguns procedimentos de trabalho conseguiriam passar num controle de qualidade um pouco mais severo de um auditor externo especializado em organização e métodos. Ou, então, se a continuidade da suposta excelência dos quadros do Itamaraty está vinculada à estabilidade estatutária da classe diplomática, aparentemente considerada (por “direito divino”?) um dos corpos permanentes e inamovíveis do Estado. Eventuais respostas alternativas às perguntas acima, talvez politicamente incorretas, poderiam introduzir um pouco mais de modéstia em nossa auto-avaliação e promover uma busca constante de aperfeiçoamento no modo como funciona esta instituição repleta de jovens idealistas. Como “ideólogos” da diplomacia, nos cabe uma certa dose de responsabilidade na permanente remise en cause da velha ordem em que somos chamados a atuar. Paulo Roberto de Almeida (http://pralmeida.tripod.com) é doutor em ciências sociais, mestre em planejamento econômico e autor de Formação da Diplomacia Econômica no Brasil (São Paulo: Senac, 2001) As opiniões expressas no presente texto são exclusivamente as de seu autor e não correspondem a posições ou políticas do Ministério das Relações Exteriores ou do Governo brasileiro.

813. “Ideologia da política externa: sete teses idealistas”, Washington, 2 de outubro de 2001, 10 p. Ensaio reelaborado a partir de trabalho n. 508, de 1996, publicado em versão original no livro Relações internacionais e política externa do Brasil: dos descobrimentos à globalização (Porto Alegre: UFRGS, 1998). Publicado na revista eletrônica Espaço Acadêmico (Maringá: UEM, a. I, n. 5, outubro de 2001; http://www.espacoacademico.com.br/05almeida.htm). Publicado em Relnet: site brasileiro de referência em relações internacionais (Brasília: a partir de 12.10.2001), divido em 4 Partes: Primeira: 1. “Os objetivos nacionais permanentes”; Segunda: 2. “A 41

independência nacional”; 3. “O interesse nacional e a cooperação internacional”; Terceira: 4. “A “graduação” e o status de país em desenvolvimento”; 5. “A integração regional e o ingresso em foros restritos”; Quarta: 6. “A imagem internacional do Brasil”; 7. “Avaliação do instrumento diplomático brasileiro”. Publicado igualmente no Meridiano 47, Boletim de Análise de Conjuntura em Relações internacionais (Brasília: ISSN: 1518-1219; n. 17, novembro de 2001, p. 1-8; link: http://www.mundorama.info/Mundorama/Meridiano_47_-_1100_files/Meridiano_17.pdf). Ensaio incorporado ao livro: Paralelos com o Meridiano 47: Ensaios Longitudinais e de Ampla Latitude (Hartford, 2015).Relação de Publicados n. 286, 287 e 291.

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3. Relações Brasil-Estados Unidos em perspectiva histórica 1. Do Império à Era Vargas As relações bilaterais entre o Brasil e os Estados Unidos no século XX passaram por diferentes situações, da aproximação à indiferença, da desconfiança à aliança militar, da cooperação à competição, nas diversas fases de desenvolvimento de um relacionamento que remonta ao período anterior à independência do Brasil. Os Estados Unidos — como primeira potência hemisférica em todo o período, e principal potência planetária desde o final da Segunda Guerra Mundial — estiveram presentes em todos os lances importantes da diplomacia brasileira no século XX, assim como ocuparam grande parte da interface externa do Brasil no campo econômico, científico, cultural e tecnológico no último meio século. As relações foram (ainda são) marcadas por uma evidente assimetria nos planos econômico, tecnológico e militar, ainda que o Brasil tenha buscado introduzir, no plano diplomático, maior equilíbrio político, com base na reciprocidade e na igualdade de tratamento. A República brasileira introduziu princípios alternativos de política externa, como o pan-americanismo, área na qual o Império tinha mantido relativo isolamento das repúblicas do hemisfério. Nos episódios iniciais de afirmação da República, o relacionamento começa sob bons auspícios: por ocasião das intervenções estrangeiras durante a revolta da Armada, os EUA vêm em auxílio do novo regime, contra as inclinações monarquistas de algumas potências europeias. Os desníveis de desenvolvimento entre os dois países já eram evidentes entre o final do século XIX — quando se assistiu a uma primeira tentativa de integração comercial hemisférica patrocinada pelos EUA — e o início do século XX. A partir de 1902, o barão do Rio Branco, armado de uma concepção diplomática baseada no equilíbrio de poderes (competição com a Argentina pela hegemonia regional), opera uma política de aproximação com os EUA. O Presidente Theodore Roosevelt proclama, logo em seguida, o seu corolário à doutrina Monroe, com o objetivo de justificar o papel de polícia que os EUA pretendiam impor, mediante intervenções armadas, a seu entorno geográfico imediato (Caribe e América Central). Nos próximos anos e décadas, o Brasil e a Argentina passam a competir entre si para estabelecer com os EUA uma “relação especial” que sempre se revelou ilusória, esperando igualmente corresponder, na América do Sul, a um “padrão de civilização” 43

que os EUA e as potências europeias pretendiam ostentar com exclusividade. Pelo resto da República velha, as relações bilaterais serão distantes, operando-se, contudo, a gradual substituição de hegemonias na esfera financeira e dos investimentos, a partir do momento em os EUA se convertem em exportadores de capitais, inclusive para o Brasil, que passa do domínio da libra ao do dólar. A República dos “bacharéis” busca inserir o Brasil no “concerto das nações”, mediante o envolvimento na Guerra e na ulterior experiência da Liga das Nações, motivo de uma das grandes frustrações na história da diplomacia brasileira. Os EUA, que tinham patrocinado o surgimento da Liga, mantêm-se fora dela, tendo o Brasil abandonado o órgão em 1926. Tanto por parte das grandes potências europeias, como no caso dos EUA, o Brasil se vê confrontado a posturas externas que vão do desprezo e da soberbia ao que mais tarde se chamaria de benign neglect. O período de Roosevelt — que coincide com a era Vargas — modificará a postura isolacionista de seus predecessores, buscando uma nova relação com os vizinhos da América Latina, mas ele também coincide com a crise econômica, o fechamento dos mercados e a ruptura dos equilíbrios internacionais. Os EUA emergem como a potência militar incontrastável do pós-Segunda Guerra e o Brasil fará as apostas corretas ao se aliar aos esforços de guerra e consolidar seu alinhamento ideológico desde o início da Guerra Fria. O Brasil participa, desde a conferência de Bretton Woods (1944), da construção da nova ordem econômica mundial dominada pelos princípios do liberalismo de tipo americano. A opção americana da era da bipolaridade não impede a emergência de uma diplomacia do desenvolvimento no Brasil. Não obstante a doutrina da segurança nacional, o pan-americanismo justifica os esforços da diplomacia para a exploração da carta da cooperação com a principal potência hemisférica e ocidental. É nesse quadro de barganhas políticas e de interesse econômico bem direcionado que o Brasil empreenderá sua primeira iniciativa multilateral regional, a Operação Pan-Americana, proposta pelo Governo Kubitschek em 1958 e da qual resultará o Banco Interamericano de Desenvolvimento e, mais adiante, a Aliança para o Progresso. A prática da política externa independente, nos conturbados anos Jânio QuadrosJoão Goulart, representa uma espécie de parênteses inovador num continuum diplomático dominado pelo conflito Leste-Oeste. O impacto da revolução cubana e o processo de descolonização tinham trazido o neutralismo e o não-alinhamento ao primeiro plano do cenário internacional, ao lado da competição cada vez mais acirrada entre as duas superpotências pela preeminência tecnológica e pela influência política 44

junto às jovens nações independentes. Não surpreende, assim, que a diplomacia brasileira comece a repensar seus fundamentos e a revisar suas linhas de atuação, em especial no que se refere ao tradicional apoio emprestado ao colonialismo português na África e a recusa do relacionamento econômico-comercial com os países socialistas. A aliança preferencial com os Estados Unidos é pensada mais em termos de vantagens econômicas a serem negociadas do que em função do xadrez geopolítico da Guerra Fria. 2. Do regime militar à redemocratização A situação de relativa ambiguidade nas relações diplomáticas entre o Brasil e os Estados Unidos muda em 1964, quando se opera uma volta ao alinhamento político. Entretanto, o reenquadramento do Brasil no “conflito ideológico global” representa mais uma espécie de “pedágio” a pagar pelo apoio dado pelos Estados Unidos no momento do golpe militar contra o regime populista do que propriamente uma operação de reconversão ideológica da diplomacia brasileira. Em todo caso, observa-se um curto período de alinhamento diplomático, durante o qual o Brasil adere estritamente aos cânones oficiais do pan-americanismo, tal como definidos em Washington. Ocorre, numa sequência de poucos meses, a ruptura de relações diplomáticas com Cuba e com a maior parte dos países socialistas, assim como a participação na força de intervenção por ocasião da crise da República Dominicana. A política multilateral, de modo geral, passa por uma “reversão de expectativas”, para frustração da nova geração de diplomatas que tinha sido educada nos anos da política externa independente. No plano econômico, a volta à ortodoxia na gestão da política econômica permite um tratamento mais benigno da questão da dívida externa, seja no plano bilateral, seja nos foros multilaterais do Clube de Paris ou nas instituições financeiras internacionais, como o FMI. É sintomático que a única assembleia conjunta das organizações de Bretton Woods a realizar-se no Brasil, tenha tido por cenário o Rio de Janeiro da primeira era militar, em 1967, quando se negocia a instituição de uma nova liquidez para o sistema financeiro internacional, o Direito Especial de Saque do FMI. Tem início, a partir de 1967, uma fase de “revisão ideológica” e de busca de autonomia tecnológica. A atitude “contemplativa” em relação aos EUA cede lugar a uma diplomacia profissionalizada, preocupada com a adaptação dos instrumentos de ação a um mundo em mutação, e instrumentalizada para o atingimento dos objetivos nacionais de crescimento econômico. Praticou-se uma “diplomacia do desenvolvimento”, consubstanciada na busca da autonomia tecnológica, inclusive 45

nuclear, com a afirmação marcada da ação do Estado no plano interno e externo, mesmo à custa de conflitos com os EUA (denúncia, em 1977, do acordo militar de 1952, por motivo de interferência nos “assuntos internos” do País, de fato na questão dos direitos humanos). Observa-se no período a confirmação da fragilidade econômica do País, ao não terem sido eliminados os constrangimentos de balança de pagamentos que marcaram historicamente o processo de desenvolvimento brasileiro. No seguimento das crises do petróleo, em 1973 e 1979, e da dívida externa, em 1982, o Brasil e os EUA aprofundam seus desacordos políticos, tendo em vista a postura da diplomacia brasileira percebida como excessivamente “terceiro-mundista” pelos EUA (intensificação das relações comerciais com países árabes considerados radicais como Líbia e Iraque, voto “antissionista” na ONU, coordenação com outros devedores para um tratamento político da questão da dívida etc.), ademais da busca continuada de autonomia tecnológica, sobretudo na área nuclear e de mísseis. Os elementos mais significativos da postura internacional do Brasil na fase da redemocratização são caracterizados pelos processos de autonomia internacional e afirmação da vocação regional, com o início da integração sub-regional no Mercosul e de construção de um espaço econômico na América do Sul. Faz-se também, nos anos 1990, a opção por uma maior inserção internacional e a aceitação consciente da interdependência — em contraste com a experiência anterior de busca da autonomia nacional —, com a continuidade da abertura econômica e da liberalização comercial, no quadro de processos de reconversão produtiva e de adaptação aos desafios da globalização. A “carta americana” ainda é importante, mas já não é essencial nesse período e a diplomacia passa a apresentar múltiplas facetas, que não exclusivamente a de tipo bilateral tradicional: são elas a regional, a multilateral (principalmente no âmbito da OMC) e a presidencial. 3. Problemas das relações bilaterais na fase contemporânea A manutenção de boas relações do Brasil com os EUA não impede a existência de conflitos tópicos entre os dois países, geralmente a respeito de questões comerciais (protecionismo no acesso de determinados produtos brasileiros ao mercado americano, como aço ou suco de laranja, diferenças de opinião no que se refere a patentes industriais, acusações de pirataria ou de reservas de mercado, como no caso da informática) ou então em função de problemas mais gerais da agenda multilateral 46

(desarmamento, não proliferação, reforma de instituições do sistema da ONU, negociações comerciais multilaterais ou regionais etc.). Depois de recusar-se, durante quase trinta anos, a aderir ao tratado de não-proliferação nuclear (TNP, de 1968), por ele considerado como discriminatório e desequilibrado, o Brasil realiza, em 1996, essa mudança paradigmática em sua política externa e nuclear, o que elimina determinadas preocupações dos EUA em relação ao regime de controle de tecnologia de mísseis (foro informal ao qual o Brasil é aceito como membro logo depois). No final da década de 1990, em grande medida graças ao exercício da diplomacia presidencial, o relacionamento com os EUA se torna mais maduro e isento de preconceitos ideológicos e de ilusões quanto a qualquer tipo de “relação especial”. Mencione-se, por exemplo, a questão nem sempre bem colocada da “opção” entre uma “política externa tradicional” — por definição “alinhada” — e uma “política externa independente”, problema dramatizado por anos de enfrentamento bipolar no cenário geopolítico global. Superado, contudo, o invólucro “ideológico” da postura externa do País nesse período, e mesmo os diversos “rótulos” com os quais se procurou classificar a diplomacia da era “militar”, assume importância primordial, atualmente, a questão do desenvolvimento econômico, verdadeiro leit motiv da diplomacia brasileira contemporânea. O Mercosul e a formação de um espaço econômico integrado na América do Sul são vistos, na agenda diplomática do início do século XXI, como alavancas do processo de desenvolvimento brasileiro, que poderia vir a ser perturbado pelo projeto de uma área de livre comércio hemisférica, a Alca, patrocinada pelos Estados Unidos em moldes similares aos da primeira tentativa efetuada na conferência americana de 1889-90. Em 2001, no imediato seguimento dos atentados terroristas contra os Estados Unidos, quando não se tinha ainda concebido uma estratégia integrada de resposta a esses bárbaros ataques, o governo brasileiro tomou a iniciativa de coordenar um movimento de solidariedade continental para com os Estados Unidos, chegando inclusive a mobilizar o que muitos consideraram um “vetusto” instrumento da Guerra Fria, o TIAR (Tratado Interamericano de Assistência Recíproca, de 1947), como forma de demonstrar o compromisso comum dos países americanos com o repúdio aos atos terroristas e em favor da adoção de medidas conjuntas para prevenir e evitar esse tipo de ação inaceitável no contexto do mundo civilizado. Não obstante essa demonstração de solidariedade, o Brasil também considerou que a eliminação efetiva das ameaças terroristas no mundo moderno passa por um 47

comprometimento sério com os possíveis focos de instabilidade política e econômica em diversos cantos do planeta, sobretudo aqueles que se manifestam a partir de sérios desequilíbrios sociais ou regionais, de situações de grave privação dos mais elementares direitos humanos e de condições mínimas de existência digna, em oposição a uma abordagem puramente militar das questões de segurança e estabilidade.

1460. “As relações entre o Brasil e os Estados Unidos em perspectiva histórica”, Brasília, 18 de agosto de 2005, 6 p. Reelaboração do trabalho n. 868, para fins de publicação no jornal Extra, da comunidade brasileira da costa leste (New Jersey). Reestruturado em duas partes. Publicado no Colunas de Relnet (n. 12, jul./dez. 2005), Parte 1. “da República Velha à redemocratização”; Parte 2. “problemas das relações bilaterais na fase contemporânea”; e no Meridiano 47 (Brasília: IBRI, ISSN: 15181219; Parte 1. “As relações entre o Brasil e os Estados Unidos em perspectiva histórica: da República Velha à redemocratização”, n. 60, jul. 2005, p. 6-8; link: http://www.mundorama.info/Mundorama/Meridiano_47_-_1100_files/Meridiano_60.pdf), Parte 2. “As relações entre o Brasil e os Estados Unidos em perspectiva histórica: problemas das relações bilaterais na fase contemporânea” (n. 61, ago. 2005, p. 6-7; link: http://www.mundorama.info/Mundorama/Meridiano_47__1-100_files/Meridiano_61.pdf). Ensaio incorporado ao livro: Paralelos com o Meridiano 47: Ensaios Longitudinais e de Ampla Latitude (Hartford, 2015). Relação de Publicados n: 578, 584 e 610.

48

4. Um exercício comparativo de política externa: FHC e Lula em perspectiva Mais de um ano depois da inauguração do governo do presidente Luis Inácio Lula da Silva, em 1º de janeiro de 2003, parece possível traçar algumas linhas de sua política externa numa perspectiva comparada com aquela implementada pelo anterior governo do presidente Fernando Henrique Cardoso (1995-2002). Pretendo fazê-lo de modo muito breve, apenas alinhando, numa tabela simétrica, posições de política externa e práticas diplomáticas respectivas dos dois presidentes, sem maiores elaborações conceituais ou digressões analíticas, pelo momento. Este exercício

comparativo

apresenta,

deliberadamente,

algumas

caracterizações

estereotipadas, o que pode ser considerado como instrumental para melhor enfatizar as diferenças entre as duas administrações. Existem, no entanto, provas documentais ou suportes declaratórios para cada uma das caracterizações oferecidas, que representam o resultado de um seguimento relativamente detalhado da política externa e das relações internacionais do Brasil desde muitos anos, tanto em função de um envolvimento direto com a área, em decorrência de minha condição de diplomata profissional, como devido às atividades acadêmicas por mim desenvolvidas desde sempre. Um dos exemplos preliminares desse tipo de exercício foi conduzido no ensaio “A relação do Brasil com os EUA: de FHC-Clinton a Lula-Bush”, preparado para o livro Reformas no Brasil: Balanço e Agenda, organizado por André Urani, Fabio Giambiagi e José Guilherme Reis (Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2004). A origem mais imediata da tabela comparativa foi, entretanto, um convite da Florida International University para participar, em 4 de março de 2004, do seminário “Brazil: Between Regionalism and Globalism: Old Ambitions, New Results?”, organizado pelo Summit of the Americas Center, daquela universidade, e pelo Instituto Brasileiro de Relações Internacionais, do qual fui diretor executivo no período 1996-1999. Uma parte de minha participação nesse seminário encontra-se disponível, em inglês, no seguinte link de meu site pessoal: http://www.pralmeida.org/docs/1213bTwoForeignPol.htm. O presente exercício comparativo também dá seqüência a esforços similares ou preliminares de reconstrução histórica, baseados num seguimento tanto quanto possível próximo das posições e declarações do Partido dos Trabalhadores em matéria de política internacional e de relações exteriores do Brasil, seja em seus documentos fundacionais, seja por ocasião de campanhas presidenciais, que costumam revelar de 49

modo mais claro o pensamento dos dirigentes em questões internacionais. Um primeiro levantamento desse tipo foi feito no artigo “A política internacional do Partido dos Trabalhadores: da fundação do partido à diplomacia do governo Lula”, publicado na revista Sociologia e Política (Curitiba: UFPR; ISSN: 0104-4478; nº. 20, junho de 2003, p.

87-102;

ver

em:

http://www.scielo.br/rsocp

ou

www.pralmeida.org/docs/1009PolExtPT.pdf). Uma versão atualizada e ampliada foi oferecida no ensaio “La politique internationale du Parti des Travailleurs: de la fondation du parti à la diplomatie du gouvernement Lula”, in Denis Rolland (org.), Le Brésil de Lula, un an après (Paris: L’Harmattan, 2004; disponível em francês em meu site: www.pralmeida.org/docs/1193PRADiplomatiePT.pdf). A tabela comparativa que se apresenta a seguir, sem maiores pretensões quanto a seu rigor analítico ou caráter exaustivo, foi construída em torno de algumas grandes áreas de interesse para a diplomacia brasileira. Estas áreas são as seguintes: multilateralismo e Conselho de Segurança das Nações Unidas; OMC, negociações comerciais multilaterais e cooperação Sul-Sul; terrorismo; globalização e capitais voláteis; FMI e política de condicionalidades; Brasil como líder; América do Sul; Mercosul; Argentina; Europa; relação com os Estados Unidos; ALCA, ademais de dois últimos tópicos funcionais sobre os instrumentos diplomáticos e as características gerais das duas políticas externas. Poderei,

eventualmente,

ampliar

e

tornar

mais

rigoroso,

tanto

metodologicamente quanto substantivamente, o presente exercício, que procurou evitar, tanto quanto possível, julgamentos de valor ou apreciações qualitativas sobre os impactos internos e externos das duas diplomacias, aqui sumariamente caracterizadas. Uma análise desse tipo exigiria, porém, um certo recuo histórico e uma investigação mais acurada sobre o significado e as conseqüências de determinadas iniciativas de política externa tomadas por cada um dos presidentes, em suas administrações respectivas. Pelo menos no que se refere ao governo Lula, parece ser ainda muito cedo para oferecer uma avaliação desse tipo.

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Comparando duas diplomacias: FHC e Lula em perspectiva Fernando Henrique Cardoso Luiz Inácio Lula da Silva (1995-2002) (2003-2004) Multilateralismo e Conselho de Segurança das Nações Unidas Multilateralismo moderado; ênfase no direito internacional mas aceitação tácita dos “mais iguais”; relações com outras potências médias; candidato não-insistente a uma cadeira permanente no CSNU;

Forte multilateralismo; soberania e igualdade de todos os países; alianças com outras potências médias e economias emergentes; grande prioridade na conquista de uma cadeira permanente no CSNU;

OMC, negociações comerciais multilaterais e cooperação Sul-Sul Participação plena, ativismo moderado; Participação plena, forte ativismo; interdependência econômica e abertura ao soberania econômica nacional e políticas investimento direto estrangeiro; setoriais de desenvolvimento; diálogo mas sem real coordenação com os alianças estratégicas (G-20; G3, com países do Sul; África do Sul e Índia); Terrorismo “É preciso reagir com determinação ao terrorismo, mas ao mesmo tempo enfrentar, com igual vigor, as causas profundas e imediatas de conflito, de instabilidade, de desigualdade. (…) A barbárie não é somente a covardia do terrorismo, mas também a intolerância ou a imposição de políticas unilaterais em escala planetária.” (30/10/2001) “A Carta das Nações Unidas reconhece aos Estados membros o direito de agir em autodefesa. Isto não está em discussão. Mas é importante termos consciência de que o êxito na luta contra o terrorismo não pode depender apenas da eficácia das ações de autodefesa ou do uso da força militar de cada país. (…) Mas o terrorismo não pode silenciar a agenda da cooperação e das outras questões de interesse global.” (9/11/2001)

“Não será militarmente que vamos acabar com o terrorismo, nem tampouco com o narcotráfico. Vamos enfrentar isso com muito mais densidade na hora em que a gente atacar o problema crucial que é a pobreza no mundo.” (10/7/2003) “Existe, hoje, louvável disposição de adotar formas mais efetivas de combate ao terrorismo, às armas de destruição em massa, ao crime organizado. (…) Não podemos confiar mais na ação militar do que nas instituições que criamos com a visão da História e a luz da Razão. (…) O verdadeiro caminho da paz é o combate sem tréguas à fome e à miséria, numa formidável campanha de solidariedade capaz de unir o planeta ao invés de aprofundar as divisões e o ódio que conflagram os povos e semeiam o terror.” (23/09/2003)

Globalização e capitais voláteis No começo, um novo “Renascimento”; No começo, “um novo mundo é possível”; sim a Davos, relações cordiais; sequer sim enfático a Porto Alegre, um sonoro cogitado para ir a Porto Alegre; NÃO a Davos; depois, limitações, devido às assimetrias e depois, buscando um diálogo realista com a volatilidade dos capitais; os dois mundos; aceitação implícita do Consenso de recusa explícita do Consenso de Washington e suas premissas; Washington (consenso de Buenos Aires); 51

sustentabilidade econômica;

preferência pela sustentabilidade social;

FMI e condicionalidades Abordagem não-ideológica; PT opôs-se a qualquer acordo, no começo; relações cooperativas durante as depois, aceitação relutante e desconfiança turbulências financeiras (três pacotes de silenciosa (novo acordo em 2003); apoio preventivo: 1998, 2001 e 2002); tolerar, apenas e tão somente enquanto for aceitação, enquanto for necessário; absolutamente indispensável; Brasil como líder Visto como resultado da preeminência Um dos grandes objetivos políticos, não econômica e limitado à região; limitado apenas à região; modulação em função das percepções dos pode ser conquistado com o ativismo parceiros regionais (Argentina); diplomático e as alianças estratégicas; consciência dos limites estratégicos e das não existem limitações aparentes em capacidades econômicas do Brasil; função de fatores “reais”; cooperação com a África; solidariedade com a África; América do Sul Relações estratégicas, ênfase retórica, mas Relações estratégicas, iniciativas políticas poucas iniciativas reais durante o primeiro para traduzir a retórica em realidade; mandato (1995-1998); Viagens a, e visitas bilaterais de todos os acordo comercial Mercosul-CAN países da região (menos Uruguai); bloqueado; conceito de Alcsa esquecido; retomada das negociações regionais de Encontro de Brasília dos chefes de Estado comércio: acordo CAN-Mercosul, mas no segundo mandato (setembro 2000); dificuldades para a área de livre comércio; integração física (IIRSA-BID); integração física (bilateral, BNDES); Mercosul Uma das mais importantes prioridades da A prioridade mais importante da diplomacia brasileira; diplomacia brasileira; base possível para a integração econômica importância estratégica e uma base para a com o mundo e para o fortalecimento das união política da América do Sul, livre de relações econômicas na região; influências externas e de limitações temas econômicos e comerciais têm hegemônicas (fortaleza); prioridade sobre os demais; o social e o político têm a precedência; Argentina Um parceiro estratégico; coordenação política e econômica dentro de certos limites; pressupostos e posições cautelosas sobre a moeda única do Mercosul; Mercosul intergovernamental;

O parceiro estratégico; consultas frequentes sobre os mais diversos assuntos, buscando posições comuns (na ALCA, por exemplo); meta reafirmada da moeda comum e de uma união política no Mercosul;

Europa Laços históricos, o mais importante Parceiro importante e papel compensatório parceiro, mas postura realista sobre a nas alianças estratégicas contra o abertura comercial; unilateralismo (EUA); não considerada como alavanca estratégica acordo comercial Mercosul-UE visto nas relações com os EUA; como mais benéfico do que a ALCA; 52

Relação com os Estados Unidos Definida como essencial, cooperativa; desacordos setoriais, a maior parte limitada a questões de comércio; ênfase política na cooperação bilateral; reciprocidade moderada;

Importante, mas não considerada essencial; várias áreas de desacordos, tanto políticos quanto econômicos; ênfase política na multipolaridade; reciprocidade estrita;

ALCA Sem muito entusiasmo a respeito, mas sem PT se opunha, no começo; oposição real ao projeto; Lula candidato falou de “anexação”; ALCA poderia ser uma oportunidade aceitação relutante, uma vez no poder, e concreta para a modernização da dura barganha na mesa de negociação; economia; pedidos de compensações para corrigir barganha realista sobre os protecionismos assimetrias estruturais; setoriais dos EUA (subsídios agrícolas) e acordo limitado nas regras, na ausência de aceitação limitada dos novos temas (regras um real acesso a mercados (setor e acesso); agrícola); Instrumentos diplomáticos Itamaraty como foco principal; diplomacia presidencial explícita; prioridades econômicas antes de tudo; aceitar o mundo como ele é; talvez uma Tobin tax para diminuir a volatilidade e promover a cooperação; diálogo com o G-7 e uma abordagem da agenda internacional do tipo da OCDE;

Itamaraty e assessores presidenciais; diplomacia presidencial implícita; prioridades políticas em primeiro lugar; mudar o mundo (Fome Zero Mundial); sim à Tobin tax e outros instrumentos distributivos para lutar contra as injustiças; diálogo com o G-8, coordenação com o G-15 e promoção de alianças estratégicas;

Características gerais Integração ao mundo globalizado; desejo Participação num mundo globalizado com de uma “globalização com face humana”; preservação da soberania nacional; abordagem tradicional da diplomacia; política externa criativa (“ativa e altiva”); diplomacia tem um papel acessório no diplomacia tem um papel substantivo na desenvolvimento; conformação do “projeto nacional”; diálogo com outros líderes mundiais, liderança regional e internacional para buscando um melhor ambiente mudar substantivamente e trazer justiça ao cooperativo para o desenvolvimento. mundo (“nova geografia comercial”). Concepção e seleção de temas: Paulo Roberto de Almeida (21.02. e 13.03.2004)

1227. “Um exercício comparativo de política externa: FHC e Lula em perspectiva”, Brasília 14 de março de 2004, 5 p. Reestruturação e ampliação do trabalho n. 1213, fazendo uma comparação preliminar das diplomacias respectivas dos dois presidentes em várias temas multilaterais e regionais. Publicado no Meridiano 47 (n. 42-43, jan/fev. 2004, p. 11-14; link: http://www.mundorama.info/Mundorama/Meridiano_47_-_1100_files/Meridiano_42_43.pdf); na Revista Achegas (Rio de Janeiro: n. 17, 12 mai. 2004; ISSN 1677-8855; http://www.achegas.net/numero/dezessete/paulo_r_a_17.htm). 53

Ensaio incorporado ao livro: Paralelos com o Meridiano 47: Ensaios Longitudinais e de Ampla Latitude (Hartford, 2015). Relação de Publicados n. 442 e n. 470.

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5. Sucessos e fracassos da diplomacia brasileira: uma visão histórica Numa apresentação feita na quarta conferência de instituições para o estudo científico das relações internacionais, realizada em Copenhagen, em junho de 1931, o já renomado historiador britânico Arnold Toynbee relacionava o que lhe pareciam ser sucessos e fracassos da diplomacia multilateral e das relações mantidas no plano internacional pelas grandes potências, desde que a paz tinha sido restabelecida, doze anos antes, na sequência da mais devastadora das guerras que a humanidade tinha conhecido até então. Entre os primeiros ele relacionava a própria criação da Liga das Nações, o tratado de Paris de renúncia da guerra como instrumento de política nacional (também conhecido como pacto Briand-Kellog), a Corte Internacional de Justiça e a Conferência Mundial do Desarmamento, que deveria começar o seu trabalho alguns meses mais à frente. Dentre os fracassos, ele relacionava: a recusa do Senado americano de ratificar o ato de criação da Liga, a rejeição desta última pelo governo soviético, as dificuldades para a plena incorporação da Alemanha ao cenário estratégico do pósguerra e o duplo insucesso do Protocolo de Genebra para a solução pacífica das controvérsias internacionais e da conferência tripartite (EUA-Reino Unido-Japão) para a redução dos armamentos navais (Arnold J. Toynbee, “World Sovereignty and World Culture: the trend of international affairs since the War”, Pacif Affairs, vol. IV, n. 9, setembro 1931, p. 753-778). Toynbee registrava os grandes progressos feitos no plano econômico, mas lamentava os atrasos no âmbito da política, cuja característica mais importante era para ele o ‘estado de anarquia’, não muito diferente da situação em que se encontrava o Ocidente, no final da Idade Média. Um julgamento contemporâneo talvez não chegasse a conclusões muito distintas das de Toynbee, quase oitenta anos depois daquele seu diagnóstico otimista quanto à globalização – que ele chamava de “unificação econômica do mundo” – e das perspectivas relativamente pessimistas que ele denotava no plano da política internacional. Pode-se, em todo caso, retomar sua metodologia para analisar os sucessos e os fracassos da diplomacia brasileira nos planos regional, hemisférico e multilateral, com base numa visão de longo prazo. Quais seriam, numa visão sintética, os grandes sucessos e os possíveis fracassos da diplomacia brasileira ao longo de seus quase dois séculos de existência continuada? Pode-se dizer, inclusive, que ela tem início, no plano exclusivamente locacional, em 55

1808, pois que seus primeiros passos serão dados no bojo da secular diplomacia lusitana, que então passa a formular sua agenda e a defender os interesses da Coroa portuguesa a partir do território brasileiro. A primeira diplomacia brasileira herda várias boas qualidades da diplomacia portuguesa, a começar pela memória de seus excelentes arquivos, a habilidade em defender os interesses nacionais num quadro internacional dominado por grandes potências e o cuidado em selecionar as melhores capacidades para a representar no exterior. Justamente, no momento da consolidação da independência, pode-se dizer que a diplomacia brasileira alcança seus primeiros sucessos ao obter o reconhecimento de várias nações importantes à época, a começar pelos Estados Unidos, ainda que parte do resultado tenha sido devido a compromissos e assunção de obrigações (pagamento a D. João VI, incorporação do empréstimo português feito pela Grã-Bretanha e a herança dos tratados desiguais concluídos entre esta e Portugal, que amarraram o Brasil até 1844, pelo menos). Mais para o final do século 19 e o início do seguinte, o Barão do Rio Branco concluiria o trabalho de consolidação do território brasileiro, iniciado ainda na era colonial, com a participação de brilhantes diplomatas brasileiros como Alexandre de Gusmão, ao negociar diretamente ou ao conduzir a defesa dos interesses nacionais em processos de arbitragem, os limites fronteiriços ainda pendentes com os vizinhos imediatos. Precavido, ele chegou inclusive a traçar os princípios pelos quais se estabeleceriam as fronteiras com o Equador, se este país não tivesse tido suas pretensões amazônicas diminuídas pela Colômbia e pelo Peru. Ainda no século 19, um dos nossos maiores contenciosos diplomáticos foi a questão do tráfico escravo, a partir das pressões inglesas para o seu término e a recusa obstinada dos escravistas brasileiros em atender essas demandas (já garantidas num acordo bilateral de Portugal com a Grã-Bretanha, no quadro do Congresso de Viena, e novamente aceitas pelo Brasil no momento da independência, prometido o seu final para 1831, ‘para inglês ver’). José Bonifácio tinha sido derrotado em suas propostas constituintes (1823) para substituir o tráfico pela imigração de agricultores europeus, num prelúdio para a abolição da escravidão; mas desde o início dos anos 1840 a diplomacia brasileira teve de enfrentar, sem sucesso, a arrogância inglesa, que desrespeitava nossa soberania sobre o mar territorial e impunha humilhações ao Brasil que os ingleses não tinham coragem de repetir nas relações com os Estados Unidos. Pode-se registrar que nossa imagem de ‘país escravocrata’, constatada in loco por Darwin, alimenta desde um século e meio os boletins da mais antiga ONG do mundo, a 56

Anti-Slavery Society, com quem interagiu Joaquim Nabuco, outro derrotado na mesma questão, posto que pretendia não a simples abolição, mas também a reforma agrária e a educação dos negros libertos. Nossa diplomacia conheceu momentos não exatamente gloriosos, ao ter de defender, durante anos a fio, o tráfico e a escravidão nos foros internacionais. As relações regionais passaram por momentos difíceis, desde o início do século 19 e no decorrer de todo o século 20: pode-se dizer que nossa diplomacia foi bem sucedida ao evitar o isolamento de uma monarquia de estilo e raízes europeias num continente republicano e quase todo hispânico. Mas em algumas ocasiões – lutas contra os caudilhos Rosas, da Argentina, e Solano Lopez, do Paraguai – a diplomacia bastante competente do Império precisou recorrer à força militar para apoiar as teses brasileiras sobre o equilíbrio de poderes nos dois lados do Prata. Na Amazônia, a situação era inversa, posto que o rio corria dentro do território nacional. Ainda assim, foi possível desarmar pretensões estrangeiras quanto à internacionalização de sua navegabilidade, tese que a diplomacia defendia no Prata. De modo geral, a diplomacia foi bem sucedida no relacionamento com os vizinhos e no trato bilateral com o gigante hemisférico. Mas o desejo sempre implícito de uma ‘relação especial’ com o império do Norte, com vistas a reproduzir no continente meridional a sua preeminência setentrional – aliás, em todo o Caribe e até o Panamá – nunca foi aceita em tese e sequer implementada na prática. Essa sensação de copo meio cheio ou meio vazio continua a prevalecer em relação aos projetos de integração regional: as concepções mais flexíveis da diplomacia brasileira enfrentam resistências de alguns vizinhos – que temem o poderio da indústria brasileira – ou então são confrontadas a propostas utópicas de outros líderes, de cunho essencialmente político, cujo único resultado é a substituição do pragmatismo comercialista do Brasil por modelos irrealizáveis no plano da prática. No eixo vertical, a relutância em aceitar um acordo de comércio de âmbito hemisférico, supostamente porque as empresas do império seriam mais competitivas, ou porque este não retrocede substancialmente em seu protecionismo e subvencionismo agrícolas, termina por impor um fracasso diplomático, seja porque os demais vizinhos aceitam acordos de livre comércio com o mesmo império, seja porque a manutenção do status quo nem contribui para ganhos de competitividade das empresas brasileiras, nem salvaguarda os interesses destas últimas nos mercados dos vizinhos sul-americanos. Por fim, o velho sonho das elites brasileiras – especialmente diplomáticas e militares – de ver o Brasil aceder ao ‘círculo íntimo’ do poder mundial, seja pela 57

incorporação negociada ao clube dos ‘mais iguais’, seja pela detenção do poder nuclear, nunca pode ser concretizada, por razões basicamente internas, não por deficiências de ordem propriamente diplomática. A postura do Brasil sempre foi cooperativa, seja ao honrar seus compromissos financeiros internacionais, seja ao favorecer soluções negociadas para os conflitos entre Estados. Mas esse reconhecimento nunca bastou para converter o Brasil num sócio confiável aos olhos das grandes potências da Liga das Nações e, atualmente, do Conselho de Segurança das Nações Unidas. Ou seja, não basta a promoção do multilateralismo, o respeito ao direito internacional, o pacifismo inerente à nossa diplomacia para elevar o status do Brasil no plano mundial, e isso não tem a ver apenas com nossa postura ambígua no que concerne o protocolo adicional ao Tratado de Não-Proliferação Nuclear: o que as grandes potências realmente exibem, afinal de contas, é a disposição de coadjuvar sua ação diplomática com a capacidade efetiva de projetar poder real. Para isso são requeridos outros atributos, mas sua aquisição não se dá exclusivamente pela via diplomática. Paulo Roberto de Almeida é diplomata de carreira, doutor em ciências sociais e autor do livro O Estudo das Relações Internacionais do Brasil (Brasília: LGE, 2006). 2005. “Sucessos e fracassos da diplomacia brasileira: uma visão histórica”, Brasília, 17 maio 2009, 4 p. Digressões históricas sobre conquistas e frustrações da diplomacia brasileira ao longo de dois séculos. Publicado na Meridiano 47, Boletim de Análise de Conjuntura em Relações Internacionais (Brasília: IBRI; ISSN: 1518-1219; n. 113, Dezembro/2009, p. 3-5; link: http://periodicos.unb.br/index.php/MED/article/view/490/307). Ensaio incorporado ao livro: Paralelos com o Meridiano 47: Ensaios Longitudinais e de Ampla Latitude (Hartford, 2015). Relação de Publicados n. 944.

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Segunda Parte

Economia internacional, globalização

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6. Mudanças na economia mundial: perspectiva histórica de longo prazo A economia mundial, tal como a conhecemos atualmente, é um “arquipélago” em construção desde o século 16, pelo menos e, ainda hoje, ela não constitui um sistema perfeitamente unificado, sequer homogêneo, a despeito de toda a retórica em torno da globalização. Talvez, um dia, ela venha a ser unificada num mesmo universo de redes comerciais, financeiras e de recursos humanos circulando sem restrições sobre fronteiras e controles alfandegários. Por enquanto, contudo, trata-se de uma colcha de retalhos, reunindo pedaços hoje essencialmente capitalistas, é verdade, mas ainda dotados de características nacionais distintas em seu colorido diversificado. Ela poderá caminhar progressivamente para um conjunto mais homogêneo de sistemas econômicos nacionais, mas isso depende dos progressos da liberalização comercial, financeira e “humana”, o que ainda está longe de ser garantido. Vejamos esse processo com lentes de longo alcance, começando na era dos descobrimentos. Mesmo a partir da unificação geográfica conduzida por Colombo (1492), Vasco da Gama (1498) e Fernão de Magalhães (1521), a economia mundial do início da era moderna não era, em absoluto, universal. Nessa primeira onda de globalização, de caráter mercantil, tratava-se, mais exatamente, de um arquipélago de economias centrais, predominantemente de origem europeia, vinculadas a suas respectivas periferias nas novas terras descobertas, mediante um sistema usualmente conhecido como ‘exclusivo colonial’. Os demais centros regionais – o ‘Império do Meio’ (China), o império Mogul, na Índia, o mundo muçulmano (que começava a ser unificado sob o jugo otomano) e outros ‘blocos’ sub-regionais, na Eurásia ou nas Américas – não tinham realmente condições de disputar qualquer hegemonia econômica mundial, como diriam os marxistas. Até o final do século 18, China e Índia constituíam duas grandes economias, produzindo bens valorizados nos mercados ocidentais, mas dotadas de instituições pouco adaptadas aos desafios da nova economia industrial, caracterizada pelo que se poderia chamar, ainda no jargão marxista, de um ‘modo inventivo de produção’. Foi precisamente a partir da revolução industrial na Inglaterra, nessa mesma época, que tem início a diferenciação dos centros econômicos mundiais, processo que os historiadores econômicos chamam de ‘grande divergência’, ou seja, a aceleração da transformação 61

tecnológica no Ocidente, seguida da dominação absoluta das potências europeias sobre o resto do mundo (destinada a durar cinco séculos, talvez até hoje). Essa segunda grande onda da globalização, de natureza industrial, conforma o que se poderia chamar, pela primeira vez, de economia mundial, uma rede integrada de centros produtores de matérias primas, de um lado, servidas pelos centros financeiros europeus – com a libra inglesa e os bancos britânicos em seu núcleo – e as oficinas manufatureiras, de outro, dotadas das novas tecnologias industriais de produção em massa. As economias nacionais, até então pouco diferenciadas entre si – pois que uniformemente e predominantemente de base agrícola ou mercantil – começam a exibir diferenças estruturais, a partir de níveis de produtividade bem mais elevados nos sistemas industriais. A defasagem de renda começa sua escalada para índices sempre crescentes, entre o centro e a periferia, num processo que se desenvolveria durante praticamente dois séculos, com um recrudescimento ainda maior durante a maior parte do século 20, para diminuir apenas a partir da terceira onda de globalização, a partir do último quinto desse século. No intervalo, a economia mundial capitalista seria desafiada por duas ameaças muito diferentes, entre si, mas concordantes em sua ação desagregadora de um sistema verdadeiramente unificado de relações mercantis e financeiras. A partir da primeira guerra mundial, as crises recorrentes dos centros capitalistas desenvolvidos no entre guerras (em especial a de 1929 e a depressão que se seguiu) e a implantação de sistemas coletivistas (de natureza soviética, desde 1917, e os fascismos, pouco depois), com suas experiências estatizantes e antiliberais, representaram uma ‘breve’ interrupção de setenta anos no processo de globalização. No imediato pós-segunda guerra mundial, as muitas experiências de nacionalizações e de estatizações no Ocidente capitalista, com seu cortejo de práticas intrusivas, dirigistas e planos de ‘desenvolvimento’ (com muito planejamento estatal centralizado, mesmo no capitalismo) representaram, igualmente, um retrocesso na reunificação de um sistema de mercado verdadeiramente mundial, desde então colocado sob a égide dos dois irmãos de Bretton Woods (o FMI e o Banco Mundial) e do GATT (OMC, em 1995). Foi somente a partir das reformas econômicas ‘neoliberais’ iniciadas na China a partir dos anos 1980 e da implosão e quase completo desaparecimento dos regimes socialistas, entre 1989 e 1991, que o processo de reunificação da economia mundial é retomado, no bojo da terceira onda de globalização capitalista, desta vez dominada pela sua vertente financeira (mas que inclui também os investimentos diretos). O fim do 62

socialismo representou pouco em termos de concorrência manufatureira – já que o socialismo era um medíocre produtos de bens industrializados – e menos ainda em termos de fluxos financeiros e tecnológicos – onde os países socialistas eram ainda mais marginais, senão irrelevantes – mas significou um impacto decisivo em termos de mercados e, sobretudo, de mão-de-obra (com um destaque absoluto para a China). A fase atual, se ainda não pode ser identificada com um novo processo de ‘convergência’ da economia mundial, caracteriza-se, pelo menos, pela diminuição da divergência entre as regiões – com notáveis exceções, como nos casos da África, do Oriente Médio e em grande medida da América Latina – e pelo rápido catch-up experimentado por alguns emergentes dinâmicos. No curso dos últimos vinte anos de globalização, a China e a Índia retiraram centenas de milhões de pessoas de uma miséria abjeta, colocando-as numa situação de pobreza moderada, justamente em função das reformas econômicas empreendidas e de sua inserção na globalização. Esse processo deve continuar, pelo menos naqueles países que decidiram substituir antigas políticas protecionistas e estatizantes por uma abertura ao comércio internacional e aos investimentos estrangeiros diretos. O lado financeiro permanece ainda a dimensão problemática da globalização, não porque a liberdade de circulação de capitais seria, em si, desestabilizadora das economias nacionais, mas porque os governos ainda insistem em praticar políticas monetárias e cambiais inconsistentes com os novos dados da economia mundial. O monopólio dos bancos centrais na emissão de moedas-papel, na fixação das taxas de juros (sem correspondência efetiva com o equilíbrio real dos mercados de capitais) e seu papel na manutenção de regimes cambiais irrealistas e desajustados explica muito das crises financeiras ocorridas na segunda metade dos anos 1990 e em 2007-2009. As bolhas que se formam não são o resultado de ‘forças cegas do mercado’ – como políticos inescrupulosos e economistas pretensamente keynesianos proclamam – mas sim a conseqüência das manipulações dos governos em setores sensíveis da economia real. A possibilidade de maiores progressos em direção à convergência econômica mundial depende, assim, tanto da continuidade da abertura dos países ao processo de globalização quanto da habilidade dos governos em manterem soberania monetária e cambial no novo contexto criado pela unificação paulatina dos mercados de capitais. Não é provável que essa convergência se dê rapidamente, tendo em vista a resistência de muitos governos à abertura comercial e financeira e sua tendência a continuar manipulando taxas de juros e regimes cambiais, mas é previsível que a 63

globalização continue avançando naqueles países e regiões propensos a aceitarem as novas regras de mercado. Independentemente do que digam aqueles que condenam as novas políticas ‘neoliberais’, é um fato que os países que mais progressos fizeram no plano do crescimento econômico e da prosperidade de seus povos são aqueles que mais rapidamente souberam integrar-se comercialmente na economia mundial, e dela puderam aproveitar os efeitos benéficos dos investimentos diretos, que trazem capitais, know-how e tecnologia. A lição parece ter sido aprendida, mas nem todos souberam dela retirar os ensinamentos adequados. Esse tempo chegará, um dia...

2124. “Transformações da economia mundial: visão histórica de longo prazo”, Rio de Janeiro 17 de março de 2010, 4 p. Revisão ampliada do segundo ensaio da série preparada para o Ordem Livre (trabalho: 2072; publicados: 951), tratando da evolução da economia mundial e de suas características mais marcantes. Publicado, sob o título “Mudanças na Economia: uma história de longo prazo”, na seção de Economia do Portal IG (23/03/2010). Republicado sob o título de “Mudanças na economia mundial: perspectiva histórica de longo prazo” em Mundorama (04.05.2010; link: http://mundorama.net/2010/05/03/mudancas-na-economiamundial-perspectiva-historica-de-longo-prazo-por-paulo-roberto-de-almeida/), reproduzido em Meridiano 47 (vol. 11, n. 118, maio 2010, p. 27-29; ISBN: 15181219; links: http://meridiano47.info/2010/05/03/mudancas-na-economia-mundialperspectiva-historica-de-longo-prazo-por-paulo-roberto-de-almeida/ e https://docs.google.com/viewer?url=http://meridiano47.files.wordpress.com/2010/0 7/v11n118.pdf&pli=1). Ensaio incorporado ao livro: Paralelos com o Meridiano 47: Ensaios Longitudinais e de Ampla Latitude (Hartford, 2015). Relação de Publicados n. 956.

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7. O debate sobre a globalização no Brasil: muita transpiração, pouca inspiração

É realmente curioso o estatuto argumentativo e o arcabouço conceitual do debate de idéias em torno da globalização no Brasil (se é que existe algum): ao que percebo pela imprensa, mas também em algumas revistas especializadas, poucos “intelectuais” – reluto em utilizar esta noção, preferindo-lhe talvez o epíteto mais comum de acadêmicos – se dispõem a sustentar suas afirmações mediante provas empíricas, dados estatísticos ou por meio de correlações causais apoiadas em fatos, números ou, simplesmente, através de uma demonstração ainda que superficial de que os seus dizeres traduzem algo mais consistente do que palavras vazias, afirmações ocas ou frases simplesmente carentes de fundamentação histórica. Proponho-me, neste ensaio e nos seguintes, examinar a situação desse bizarro debate sem contendores bem delimitados e oferecer, sem pretensões a um esgotamento do problema, algumas linhas explicativas para o que eu chamei de excesso de transpiração e alguma carência de inspiração (ou, se quisermos, excesso de teorização de baixa qualidade, acoplado a sérias e imensas lacunas do mais elementar empirismo). Tomemos, por exemplo, esta afirmação, retirada de um documento apoiado por um imenso congraçamento de ativistas antiglobalização, a maior parte dos quais simples militantes dotados de instrumental metodológico limitado para analisar a globalização, mas animados por algumas figuras de proa que costumam ser chamadas, obviamente pela imprensa, de “intelectuais”: segundo um dos documentos de base desse movimento, por demais conhecido para requerer propaganda gratuita, “os povos do Terceiro Mundo, assim como os setores pobres e excluídos dos países industrializados, sofrem os efeitos devastadores da globalização econômica e da ditadura de instituições internacionais como o FMI, o Banco Mundial, a OMC e os governos que servem aos seus interesses”, isto é, os da “globalização devastadora”. Compreende-se a violência verbal e o caráter peremptório da argumentação, ainda que ambos carentes de um real embasamento em dados de fato comprobatórios dos pretensos “efeitos devastadores” da globalização (sempre apodada de “capitalista”): afinal de contas, os promotores desse tipo de “documento” ou de movimento “social” – mais bem retórico, ouso dizer – parecem ser, em sua maior parte, aqueles mesmos órfãos (ou viúvas) do socialismo ancienne manière, que tiveram de reciclar-se 65

rapidamente ao se verem desprovidos de espaços de manobra condizentes com suas antigas pretensões à universalidade concreta e uma alegada adequação à “necessidade histórica”. De mais difícil compreensão resulta ser o teor de um pronunciamento formal de uma autoridade sobre a mesma questão, preparado por um serviço que se acreditava bem treinado para manejar não apenas a língua pátria, mas também os raciocínios lógicos e, a mais forte razão, a consistência histórica. Senão vejamos: “Se a globalização é inevitável, isso não significa que devemos nos reconciliar de forma fatalista a seus efeitos perversos. Não precisamos aceitar que o preço da modernização, do ganho em competitividade e eficiência, é a marginalização, o empobrecimento e a desesperança daqueles que ficaram para trás. Tornar a globalização mais inclusiva e equitativa é um desafio que deve unir a todos nós.” Antes de examinarmos, contudo, estas três curiosas frases, cheias de subentendidos e de significados ambíguos, voltemos à afirmação mais definitiva daquele movimento social que encarna, como nenhum outro, o desejo de ver substituída a globalização capitalista por um outro mundo (e uma outra América, um outro Brasil, um outro Piauí etc., .etc., etc.) pretensamente possíveis (mas aparentemente inalcançáveis). O que dizem eles, exatamente?: que os “povos do Terceiro Mundo” (um imenso grupo de alguns bilhões de habitantes), “assim como os setores pobres e excluídos dos países industrializados” (uma categoria mais tangível, formada por apenas alguns milhões de pessoas), “sofrem os efeitos devastadores da globalização econômica e da ditadura de instituições internacionais como o FMI, o Banco Mundial, a OMC e os governos que servem aos seus interesses”. Seria isto verdade? Se o for, seria esta triste experiência compartilhada por todos eles, conjuntamente, e ocorreu ela durante todo o tempo em que vem se desenvolvendo a atual onda de globalização capitalista (grosso modo, as duas últimas décadas de “neoliberalismo”, como eles mesmos gostam de caracterizar)? Para ajudar-nos a dar uma resposta tentativa a essa dúvida cruel sobre a maléfica globalização capitalista dispomos do recente estudo sobre esse fenômeno “devastador”, ainda que realizado por esse órgão “ditatorial” que é o Banco Mundial: o relatório World Development Indicators (WDI) 2004, disponível no link: http://www.worldbank.org/data/wdi2004/. Pode-se, obviamente, como talvez façam os promotores do “outro mundo”, duvidar da fiabilidade estatística de um conjunto de 800 indicadores econômicos e sociais, organizados em 87 tabelas, divididas em seis seções 66

(visão global, população, meio ambiente, economia, Estados e mercados e vínculos globais), que cobrem 152 economias e 14 grupos de países, e de um conjunto adicional de indicadores básicos para outras 55 economias. Se aceitarmos, contudo, como fazem muitos economistas e estudiosos dos problemas do desenvolvimento e a quase totalidade dos governos dos países membros, que tais números apresentam confiabilidade razoável, somos obrigados, pelo menos, a considerar os argumentos desse relatório, que vêm apoiados nesses números, dados, estatísticas e indicadores diversos. E o que dizem os números do Banco Mundial sobre os efeitos “devastadores” da globalização? Que esse processo perversamente capitalista retirou, nos vinte anos que vão de 1981 a 2001, mais de 400 milhões de pessoas da miséria absoluta. Com efeito, os dados revelam uma queda no número absoluto de pessoas que vivem com menos de um dólar por dia nos países em desenvolvimento, de 1,5 bilhão em 1981 para 1,1 bilhão em 2001. A cifra de um dólar por dia denota o limite da pobreza absoluta. Obviamente, hão de retorquir os antiglobalizadores, essa situação aparentemente positiva esconde imensas desigualdades entre os países. Na América Latina, por exemplo, como revela de fato o relatório, a pobreza só diminuiu marginalmente devido ao baixo crescimento das economias na década de 1990 e a maior parte daqueles 400 milhões de antigos miseráveis e novos pobres encontra-se quase que exclusivamente na China e na Índia. Quanto ao caráter “ditatorial” dos órgãos vilipendiados pelos antiglobalizadores, soa pelo menos estranho que países tão ciosos de sua soberania como a China e a Índia estejam entre seus membros mais ativos, o primeiro, aliás, depois de muito pouco tempo (grosso modo, os últimos vinte anos de globalização capitalista para as instituições de Bretton Woods e menos de cinco anos para a OMC). Quais foram os devastadores efeitos causados nesses dois países, ou no próprio Brasil, para ficarmos com um país mais perto de nós, pela presença nas, e por meio de operações com essas entidades “ditatoriais”? Para o Brasil, sabemos, por exemplo, que o FMI realizou três operações de apoio financeiro preventivo entre 1998 e 2003, pelos valores respectivos de 41,5 bilhões (com a participação de vinte outros países membros), de 30 bilhões (inédito na história do FMI) e de 15 bilhões de dólares, este último renovado pelo atual governo adepto da soberania econômica das nações em desenvolvimento. Quanto ao Banco Mundial e ao BID, eles mantêm uma das maiores carteiras de negócios de todo o mundo em projetos existentes no Brasil (nos três níveis da federação), sendo os montantes apenas inferiores àqueles que o BNDES empresta anualmente aos próprios agentes 67

econômicos nacionais. Que ditadura mais benévola, devem dizer prefeitos, governadores e ministros. Reduzida assim à total inconsistência intrínseca e extrínseca a primeira frase pinçada no anedotário do “altermundialismo” tupiniquim, vejamos agora a segunda frase selecionada para ilustrar o nosso debate unilateral sobre a antiglobalização. O que poderia querer dizer “inevitabilidade” da globalização, ou ainda se “reconciliar de forma fatalista” com “seus efeitos perversos”? Que a globalização não apresenta nada de inevitável está mais do que provado pela sua triste história no decorrer do século XX, quando ela se viu interrompida por aproximadamente setenta anos no país mais vasto do mundo e por mais meio século em uma ampla gama de outros países, cujo soma, diziase com um certo sorriso nos lábios, equivalia a mais de dois terços das terras emersas – mas havia também socialismo nos mares – e um volume equivalente de população. Pouco importa que a soma global dos produtos brutos desses países “socialistas” fosse ridiculamente pequena quando comparada à produção total dos países capitalistas – menores em território e inferiores em população –, e ainda absolutamente marginal no computo global dos intercâmbios globais (isto é, fluxos de comércio, da capitais, de tecnologia). O fato é que o glorioso socialismo havia interrompido a marcha triunfal e inevitável da globalização capitalista, como ingenuamente acreditavam Marx e Engels desde 1848. Que ela ainda seja evitável, isto está mais do que provado pelos exemplos exuberantes de Cuba e da Coréia do Norte, ainda hoje infensos aos cantos e ao charme pouco discreto das sereias do capital. Quanto aos seus pretensos “efeitos perversos”, eles são mais proclamados do que verdadeiramente provados, limitando-se, provavelmente, ao aprofundamento e extensão das desigualdades de renda (dentro e entre os países), ao recrudescimento do desemprego tecnológico e à preeminência nefasta da “financeirização” dos circuitos produtivos. Ou então, como revelado ainda no discurso por nós selecionado, pela contrapartida dos ganhos em “competitividade e eficiência”, que seria representada pela “marginalização”, pelo “empobrecimento” e pela “desesperança daqueles que ficaram para trás”. Antes de debater se existem provas materiais, empiricamente verificáveis, para tais efeitos nefastos, certamente lamentáveis a qualquer título, temos de registrar a inconsistência lógica revelada pela expressão “daqueles que ficaram para trás”. Ora, se eles ficaram para trás, não se pode atribuir à globalização efeitos que decorrer de sua ausência, pois que, como constatado pelo Banco Mundial, a inserção na globalização, 68

foi capaz de retirar da “marginalização”, do “empobrecimento” e da “desesperança” centenas de milhões de chineses e de indianos, que nela encontraram efeitos menos perversos do que aqueles proclamados pelos antiglobalizadores. Que a globalização precisa ser mais inclusiva e equitativa, disto não deve restar dúvidas ao mais cético dos economistas, mas para que ela exerça qualquer efeito nesse sentido seria preciso, antes de mais nada, que ela pudesse encobrir, englobar (com perdão pela tautologia) e engolir (menos polido, certamente) um número bem maior de países do que ela conseguiu até hoje, em especial na América Latina e em quase toda a África e Oriente Médio. Como dito ainda naquele discurso, trata-se de um “desafio que deve unir a todos nós.” Só ficarão de fora desse movimento universalista, os irredutíveis antiglobalizadores de sempre, como bons reacionários que são. Mas, estes não têm nada mais a perder senão a inocência infantil dos mitos que eles continuam a cultivar, contra todas as evidências materiais que o mundo coloca diante dos seus olhos. Como entretanto sabem todos aqueles que conhecem um mínimo de psicologia de gabinete, os grilhões mentais são ainda mais difíceis de se desfazerem do que velhas paranoias pacientemente construídas ao longo de anos ou décadas de automistificação e autoengano.

1252. “O debate sobre a globalização no Brasil: muita transpiração, pouca inspiração”, Brasília, 27 de abril de 2004, 5 p. Publicado no Meridiano 47 (Brasília: ISSSN 15181219, n. 44-45, março/abril 2004, p. 13-16; link: http://www.mundorama.info/Mundorama/Meridiano_47_-_1-100_files/Meridiano_4445.pdf). Ensaio incorporado ao livro: Paralelos com o Meridiano 47: Ensaios Longitudinais e de Ampla Latitude (Hartford, 2015). Relação de Publicados n. 451.

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8. Interessa ao Brasil uma taxa sobre os movimentos de capitais?

A proposta de introdução de uma taxa específica sobre os movimentos internacionais de capital de curto prazo (também comumente chamada de Tobin Tax) vem sendo debatida com alguma intensidade (e pouca clareza) no período recente, desta vez a propósito da possível constituição de um fundo mundial para combater a fome a pobreza. O assunto não é novo e o presidente Fernando Henrique Cardoso – a meu ver equivocadamente – tinha se referido favoravelmente à sua introdução em diversos momentos das turbulências financeiras do final dos anos 90 e do início da presente década. Naquela ocasião, os propósitos presumidos dessa nova taxa – intensamente promovida como solução mágica aos problemas da globalização financeira pelos chamados altermundialistas da ATTAC francesa, cuja sigla bizarra significa “Associação pela Tobin Tax e em Apoio aos Cidadãos” – eram os de diminuir a instabilidade dos mercados financeiros e amealhar recursos adicionais para fins de desenvolvimento dos países mais pobres. Desse ponto de vista, ela aparecia como inatacável, já que poucos ousariam contestar tão nobres ideais. Os economistas mais sensatos, a começar pelo próprio James Tobin (quando ainda era vivo), emitiam sinceras dúvidas sobre sua praticabilidade, nas condições concretas da globalização financeira. O prêmio Nobel de economia acusava diretamente os promotores da ATTAC de terem deliberadamente deformado o sentido de sua proposta original, que visava tão somente combater aplicações cambiais especulativas no imediato seguimento do fim do regime de taxas fixas de Bretton Woods, entre 1971 e 1973. Muitos outros economistas questionavam, e continuam a questionar, a operacionalização de uma taxa desse tipo, com base em argumentos de ordem prática: a intensidade, a diversidade e o ritmo veloz dos muitos fluxos de capitais que vão de um lado a outro do planeta, para fins tão diferentes como aplicações em bolsa, investimentos diretos, pagamento de fatores e transferências unilaterais (como podem ser os dons e as remessas de imigrantes). Representantes da ATTAC chegam a reconhecer essa dificuldade, mas ainda argumentam quanto ao caráter útil de uma taxação desse tipo, que poderia complementar os fluxos de ajuda ao desenvolvimento para países mais pobres. 70

Independentemente, porém, de seus objetivos meritórios e sem procurar, agora, resolver definitivamente o problema de sua operacionalização, uma outra questão mais importante se coloca do ponto de vista do Brasil: o interesse do próprio Brasil em ver introduzida uma taxa desse tipo, tendo em vista seu perfil de “dependente financeiro”, suas necessidades de financiamento externo e a administração ulterior dos recursos amealhados com tal contribuição. Com efeito, antes de procurar saber se a Tobin Tax pode ser colocada em prática e se os objetivos esperados pelos promotores dessa idéia serão ou não atingidos pela metodologia proposta, seria preciso determinar, a partir de uma visão nacional – que me cabe, antes de mais nada, como cidadão brasileiro –, se a medida invocada atende ou não aos interesses do Brasil. Meu argumento é pela negativa, mas vamos examinar os vários aspectos do problema para tentar chegar a algumas conclusões. O primeiro problema é o da instabilidade dos mercados financeiros, algo que parece assustar os países que eventualmente necessitem de fluxos contínuos de capitais “voláteis”. Os mercados, por definição, sempre são instáveis, e os capitais puramente financeiros sempre são voláteis, ainda que, obviamente, flutuações e movimentos erráticos ocorrem com maior intensidade nos momentos de crise. As crises são, entretanto, inerentes aos mercados livres, e apenas uma boa gestão dos chamados “fundamentais” pode neutralizar ou diminuir os efeitos mais nefastos para as economias neles integradas. O que representa a introdução de uma taxa sobre determinados movimentos de capital? A diminuição da turbulência – que me parece “estrutural” – ou tão simplesmente a imposição de custo adicional sobre esses fluxos? Esta segunda hipótese é a mais provável e o mercado continuará tão turbulento quanto antes, apenas que funcionado, com essa taxa, em um patamar ligeiramente superior de “custos de transação”. A Tobin Tax não pode obviamente resolver esse problema estrutural, ainda que se argumente que ela apenas visa colocar “areia na engrenagem” da especulação cambial (seu objetivo original quando James Tobin a sugeriu, no momento da derrocada do sistema de Bretton Woods, de extrema volatilidade das taxas cambiais). A dificuldade óbvia é a de distinguir as transações puramente “especulativas” das transferências legítimas para pagamentos de fatores ou para compra de ativos de maturação mais longa. Na impossibilidade de fazê-lo (uma vez que a integração financeira internacional significa a simplificação dos procedimentos aplicados aos 71

fluxos transfronteiriços), a solução prática é a taxação de todas as transações, na suposição de que os capitais movimentados toda a semana terão um retorno sensivelmente menor do que as aplicações de maior prazo e os investimentos diretos. Ou seja, essa CPMF universal acaba tendo de ser aplicada a todos os fluxos para tentar diminuir a volatilidade inerente a apenas uma parte deles. Para o Brasil, portanto, enquanto receptor líquido de capitais de todos os tipos, as perspectivas são a de ter de pagar um pouco mais pela importação do mesmo volume de capital. Não me parece muito brilhante como solução a um problema que me parece basicamente de ordem interna: com efeito, a volatilidade é de origem propriamente interna, e não externa, sendo muito mais devida ao caráter errático das políticas econômicas nacionais, do que ao ânimo volátil do capital financeiro. A praticabilidade e eficiência da CPMF brasileira é, como sabemos, total: ela é inescapável, insonegável, fácil e rápida. Dispondo do controle legal sobre o sistema bancário, o Estado brasileiro vai buscá-la diretamente no bolso do cidadão, quando este faz uma simples transação bancária. Ora, no sistema semianárquico de soberanias estatais que caracteriza o mundo, o controle territorial absoluto se afigura impossível, daí porque os economistas apontem a impraticabilidade da Tobin Tax. O dinheiro, aliás, nem precisa sair fisicamente da praça financeira que lhe dá origem para dirigir-se a outra. Basta que a transação seja registrada e operada a partir de um centro off-shore, e que os dois agentes nele tenham conta, para que o “longo braço” dessa CPMF universal se revele simplesmente inoperante e ineficaz. Como não existe uma entidade bancária internacional “de última instância”, é de se supor que o problema da jurisdição apresente um obstáculo praticamente incontornável a uma Tobin Tax eficiente e operante. Pretender taxar apenas as dez principais praças financeiras internacionais, como alguns sugeriram, é não apenas inócuo como inaceitável do ponto de vista dos dirigentes desses países. Vejamos, porém, seu outro objetivo presumido, do qual ela retira sua legitimidade: levar o dinheiro dos mais ricos (supostos “especuladores”) em benefício dos mais pobres (que podem ser também as vítimas dos “capitais voláteis”). Supondo-se que ela seja implementada, como canalizar essa nova cornucópia financeira para os efetivamente necessitados? Na ausência de um “taxador de última instância”, a Tobin Tax teria de depender da ação das autoridades nacionais para o seu recolhimento e redistribuição. Um nova burocracia mundial eficiente e justa teria de ser estruturada para recolher as 72

“contribuições nacionais” da Tobin Tax e repassá-las a projetos de desenvolvimento nos países mais pobres. Considerando-se que o Brasil é um país de renda média, e portanto não beneficiário da Tobin Tax por definição, o cenário previsível é o a criação eventual de uma “CPMF externa” inteiramente voltada para a remessa de capital para a nova burocracia internacional. Belo gesto de solidariedade tipo exportação: ele não cria novos recursos, apenas redistribui os fluxos correntes com alguma perda pelo caminho, em detrimento daqueles que podem legitimamente necessitar de aportes de capitais. Pergunta-se agora: o que a “nova” Tobin Tax faria que os capitais de empréstimos e as dotações concessionais existentes já não estão fazendo? Com efeito, os mecanismos que existem e operam, seja no plano bilateral tradicional (ajuda oficial ao desenvolvimento) e no quadro multilateral (BIRD, BID etc.) por acaso já não estariam servindo para a alocação de recursos concessionais? Todos os programas, fundos, dotações e mecanismos existentes atualmente no âmbito da ONU e de suas agências especializadas, bem como as remessas voluntárias operadas por ONGs generosas dos países avançados – entre as quais se destaca a OXFAM – por acaso já não fazem algo similar, tirando dos “ricos” para dar aos “pobres”? As respostas às perguntas acima me parecem óbvias, o que mais uma vez me leva a concluir pela solução de menor custo e de maior eficiência relativa: como essas entidades continuariam operando das mesmas formas e com os mesmos objetivos que sempre tiveram, concluo que seria infinitamente mais fácil, prático e eficiente atuar no aumento das “economias de escala” dos sistemas e mecanismos existentes de financiamento ao desenvolvimento. Pode-se, obviamente, atuar para reforçar ainda mais o papel das ONGs humanitárias, que justamente buscam eliminar a burocracia, as comissões e a eventual corrupção dos empréstimos e concessões efetuados por meio das entidades financeiras internacionais e dos correspondentes órgãos nacionais nos países mais pobres. Mas, sinceramente, não vejo nenhum sentido prático em pretender criar uma nova burocracia para simplesmente fazer “more of the same”: recolher dinheiro de um lado, para aplicálo depois em projetos de infraestrutura, em investimentos em saúde, educação, saneamento etc. Por isso, me parece algo inócuo deixar de lado o BIRD, o BID – que ambos mantêm fundos concessionais – e as entidades públicas e privadas devotadas aos países mais pobres – como a AID, o Programa Mundial de Alimentos e tantos outros fundos já existentes –, para criar mecanismos para socorrer os mais desvalidos. 73

Talvez pouca gente saiba, mas o Brasil já vem colaborando com esse esforço de “promoção social” dos países mais pobres, tanto diretamente – mediante seu papel de contribuinte líquido para a Associação Internacional de Desenvolvimento, do BIRD – como indiretamente, ao abater amortizações de devedores mais pobres em foros como o Clube de Paris. Os custos são “socializados” internamente, via orçamento geral ou via Tesouro. O Brasil pode e deve fazer mais nessa vertente, sobretudo se aspira alcançar uma posição de relevo no sistema da política mundial, mas sempre haverá algum deputado de uma região desfavorecida no próprio Brasil que questionará a racionalidade de se ajudar países pobres quanto o país já ostenta várias “Áfricas” e alguns “Haitis” internamente a suas próprias fronteiras. Caso se decida por uma Tobin Tax, qual seria, ademais, a vantagem de se criar mais uma fonte de aprovisionamento externo em capital brasileiro (sim, porque o capital internacional repassará o custo da nova taxação ao tomador, que somos nós), que não repercutirá minimamente para o Brasil, uma vez que o esforço não refletirá diretamente nos mecanismos nacionais de política financeira externa? Não poderíamos sequer contabilizar essa nova “ajuda” em nossos programas de ajuda externa. Sinceramente, não vejo nenhuma vantagem em uma taxa “universal” desse tipo. Resumindo, portanto: primo, a Tobin Tax não diminui a volatilidade dos capitais: apenas agrega um custo extra a uma transação necessária, especialmente, para o Brasil. Secundo, ela nunca conseguiria dispor de uma base universal de aplicação e teria de depender de autoridades nacionais para sua (in)eficiência relativa. Tertio, ela não acrescentaria nada de mais, em termos de recursos e esquemas redistributivos, do que já pode ser feito através dos mecanismos e instituições multilaterais existentes, que poderiam ser induzidas a captar (ou disporem de) mais recursos financeiros dos doadores tradicionais. Admito, no entanto, que ela presumivelmente conseguiria aumentar a arrecadação sobre determinados fluxos de capitais para fins de redistribuição burocrática, o que é próprio de toda punção fiscal adicional. Ainda assim, pode-se “especular” – o verbo se justifica inteiramente – com o provável desvio de transações financeiras para os paraísos fiscais. A menos que se elimine o sacrossanto princípio westfaliano da soberania absoluta dos Estados independentes, não seria possível mandar uma tropa de fuzileiros navais para eliminar, do dia para a noite, esse tipo de comportamento oportunista de algumas ilhas que vivem de vender facilidades contábeis para os conhecidos sonegadores de receitas. 74

Mas, mesmo que uma Tobin Tax fosse possível e de fato introduzida nas relações financeiras internacionais: pergunto em que isto mudaria dramaticamente o panorama do desenvolvimento mundial? Os países mais pobres deixariam por milagre de ser mais pobres, apenas porque passariam a receber um volume adicional de recursos, com todos os efeitos já conhecidos de meio século de remessas caritativas? Pergunto, ademais: já se assistiu, historicamente, a um legítimo processo de desenvolvimento socioeconômico com base unicamente em recursos externos de tipo concessional? Do ponto de vista do Brasil, nada se resolve com a eventual introdução de uma Tobin Tax: os capitais ficariam mais caros, não deixariam por isso de ser voláteis (essa característica é determinada internamente, não externamente) e os benefícios seriam todos carreados para fora do país. Para o interesse nacional, o retorno político de uma Tobin Tax não é sequer marginal, ele é próximo de zero.

1274. “Interessa ao Brasil uma taxa sobre os movimentos de capitais?”, Brasília, 1 jun. 2004, 5 p. Reformulação do trabalho n. 816, em vista do debate em torno de uma taxa sobre transações financeiras para a constituição de um fundo mundial contra a fome e a pobreza. Publicado no Meridiano 47 (Brasília: IBRI; ISSN: 1518-1219; n. 47, jun. 2004, p. 12-15; link: http://www.mundorama.info/Mundorama/Meridiano_47_-_1100_files/Meridiano_47.pdf). Ensaio incorporado ao livro: Paralelos com o Meridiano 47: Ensaios Longitudinais e de Ampla Latitude (Hartford, 2015). Relação de Publicados n. 465.

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9. A distribuição mundial de renda: caminhando para a convergência? 1. De volta ao problema (aliás equivocado) do crescimento da pobreza mundial Uma das mais propagadas alegações dos chamados “altermundialistas” – designação totalmente imerecida, uma vez que eles não ainda não revelaram a receita desse “outro mundo possível” – contra a globalização é a de que esse processo aprofunda a miséria e a desigualdade distributiva do mundo capitalista, contribuindo para o aumento da concentração de riqueza nas mãos de uns poucos privilegiados e reservando apenas pobreza e desemprego para a maior parte das pessoas, seja nos países pobres, seja ainda para os pobres dos países ricos. Em poucas palavras: a pobreza mundial teria aumentado de maneira constante e acelerada com o processo de globalização. Seria isto verdade? Nada mais distante da realidade. Como tem demonstrado – com base em dados estatísticos verificáveis e oficiais, como podem ser os da ONU, do Banco Mundial ou de entidades congêneres –, o economista catalão, da Columbia University, Xavier Salai-Martin, os dados da distribuição mundial da renda e sua evolução ao longo dos últimos trinta anos contradizem totalmente os argumentos desprovidos de fundamentos empíricos dos antiglobalizadores. Essas três décadas correspondem ao deslanchar da globalização, isto é, a fase final do socialismo (anos 1970-80) e o desaparecimento das últimas “terras incógnitas” para o capitalismo, com a incorporação da China e exsatélites soviéticos à divisão mundial do trabalho (anos 1990 e início do novo milênio). Em seu trabalho “The World Distribution of Income: Falling Poverty and... Convergence, Period” (in The Quarterly Journal of Economics, vol. 121, nº 2, may 2006; p. 351-398; ISSN: 0033-5533; link: www.mitpressjournals.org/doi/pdf/10.1162/qjec.2006.121.2.351), Sala-i-Martin demonstra que não apenas que a pobreza tem diminuído, mas que a distribuição mundial de riqueza também tem melhorado. Na verdade, eu também tinha partido da idéia de que a globalização aumentava a riqueza, de modo global – ao alocar investimentos em regiões antes não integradas à economia mundial –, mas aprofundava as desigualdades distributivas, dentro dos países e entre eles, sobretudo entre ricos e pobres. No ensaio “A globalização e as desigualdades: quais as evidências?”, (in A Grande Mudança: conseqüências econômicas da transição política no Brasil. São Paulo: Códex, 2003; cap. 8: p. 11776

122; link: http://www.pralmeida.org/05DocsPRA/859GlobalizDesig.pdf), argumentando com base em estudos do PNUD – que depois se revelaram errôneos –, também declarei adesão à tese da “divergência” e da “concentração de renda”, isto é, o distanciamento cada vez maior entre os países e a concentração de renda dentro dos países, nos estratos mais ricos da população. Tentei, no entanto, separar os fatores causais propriamente domésticos – isto é, derivados de políticas econômicas nacionais – daqueles que poderiam ser eventualmente atribuídos à globalização. Revisei logo depois essa linha analítica ao tomar conhecimento de um dos trabalhos de Xavier Sala-i-Martin, “The Disturbing ‘Rise’ of Global Income Inequality” (NBER Working Paper 8904, April 2002; link: http://www.nber.org/papers/w8904), que resumi e discuti em meu trabalho “Três vivas ao processo de globalização: crescimento, pobreza e desigualdade em escala mundial” (Espaço Acadêmico, ano 3; 1ª parte: nº 29, outubro de 2003; link www.espacoacademico.com.br/029/29pra.htm; 2ª parte: nº 30, novembro de 2003; link: http://www.espacoacademico.com.br/030/30pra.htm; 3ª parte: nº 31, dezembro de 2003; link: http://www.espacoacademico.com.br/031/31pra.htm; arquivo único: link: www.pralmeida.org/05DocsPRA/1011VivaGlobaliza.pdf). Não vou retomar todos os pontos enfocados em meus dois ensaios citados, nem expor novamente o artigo de Sala-i-Martin, mas desejo, aqui, apresentar resumidamente os argumentos do economista catalão no seu novo ensaio, “A distribuição mundial de renda: pobreza declinante e... convergência, ponto”. Procurarei não entrar em detalhes técnicos (ou seja, econométricos), mas apresentarei sua metodologia e discutirei suas principais conclusões, que podem ser conferidas no original acima indicado. Esclareço, desde logo, que Sala-i-Martin em nenhum momento trata de políticas econômicas e que do seu texto sequer consta a palavra globalization. Na verdade, ele não está preocupado em provar nenhuma tese pré-concebida, a favor ou contra quem quer que seja, de qualquer tendência ideológica, política ou econômica. Ele simplesmente se ocupa de expor dados e deduções a partir dos números pesquisados e processados, como bom number-cruncher que é. Ele estima a distribuição da renda em bases individuais, calcula os indicadores de concentração de renda com base em diferentes metodologias e conclui, concretamente, que a pobreza tem diminuído de modo verificável no planeta, embora não em todos os lugares e não com a mesma constância ou rapidez. 2. A diminuição da pobreza mundial: velhas e novas evidências 77

No trabalho precedente aqui referido, “The Disturbing ‘Rise’ of Global Income Inequality”, Sala-i-Martin tinha utilizado dados agregados dos PIBs dos países e dados relativos aos estratos de renda dentro dos países, provando, em seguida, que essa suposta ascensão das desigualdades globais não tinha, de fato, ocorrido. À diferença de muitos outros estudos nessa área, ele trabalhou com o conceito de renda individual e não com a renda média nacional, que tende a distorcer os fluxos. Essa metodologia faz sentido, uma vez que o objetivo é medir efetivamente a pobreza, e não a renda per capita, tal como ela aparece nos indicadores nacionais. Ele computou as linhas de pobreza e descobriu que a taxa de pobreza situada no limite estimado de US$ 1/dia tinha declinado de 20% para 5% da população mundial nos 25 anos anteriores a 1998. Na linha de US$ 2/dia, o declínio foi de 44% para 18%. Em termos de volume, isso significa que houve uma diminuição de 300 a 500 milhões de pobres entre os anos que vão de 1970 a 1998. Ele calculou indicadores de concentração de renda com sete métodos diferentes – coeficiente de Gini, a variância log-renda, dois índices de Atkinson, o desvio logarítmico mediano, o índice de Theil e o coeficiente de variação –, todos eles demonstrando redução na desigualdade global da renda entre 1980 e 1998. Ele também descobriu que a maior parte das disparidades distributivas se davam entre os países, não sendo resultante do crescimento das desigualdades dentro dos países. Dentro dos países as disparidades cresceram ligeiramente no período, mas não o suficiente para eliminar o fator de redução das disparidades entre os países. Este último fenômeno se deveu principalmente, mas não inteiramente, ao rápido crescimento da renda de 1,2 bilhão de chineses. Em outros termos, ocorreu convergência e não divergência entre os países, como muitos argumentavam, inclusive os economistas do Banco Mundial (e eu com eles, uma vez que considerei que seus estudos eram fiáveis). Mas, alertava Sala-i-Martin, a menos que a África comece a crescer no futuro próximo, podemos esperar um novo crescimento das desigualdades mundiais. Se a África não retomar o processo de crescimento, então a China, a Índia, os países da OCDE e o resto dos países de renda média e alta vão “divergir” do continente africano e a desigualdade global voltará a crescer. Ele terminava recomendando que o crescimento agregado do PIB dos países africanos deveria constituir a prioridade de todos aqueles preocupados com o crescimento das desigualdades de renda no mundo. 78

O que nos traz agora este segundo ensaio de Sala-i-Martin sobre a diminuição da pobreza em nível mundial, desta vez utilizando dados até o início de 2000? Ele estimou a distribuição de renda mundial (WDI, na sigla em inglês) mediante a integração da distribuição das rendas individuais – sempre é bom frisar este ponto – para 138 países entre 1970 e 2000. A distribuição nacional (por países) foi construída mediante a combinação dos PIBs nacionais per capita para “ancorar” a mediana, utilizando dados de pesquisa por amostragem para identificar a dispersão distributiva. As taxas de pobreza e as contagens individuais foram registradas segundo quatro diferentes linhas de pobreza: US$ 1; 1,5; 2 e 3. Ele descobriu que as taxas de pobreza no ano 2000 eram entre um terço e uma metade menores do que tinham sido em 1970, para as quatro linhas: ou seja, havia entre 250 e 500 milhões de pobres a menos em 2000 do que em 1970 (e isso, caberia registrar, a despeito do crescimento da população mundial, bem maior, presumivelmente, nos países pobres do que nos ricos). Desta vez, ele estimou oito índices de desigualdade de renda para a distribuição mundial de riqueza, e todas elas mostraram redução na desigualdade global nos anos 1980 e 1990. Este é o “resumo da ópera”, mas caberia, talvez, refazer o caminho percorrido por Sala-i-Martin para ver como ele chegou a essas conclusões, o que implica um pouco de metodologia e de transcrição de números, para o que peço a indulgência dos leitores. No final, pretendo discutir como se desenvolveu esse “fenômeno” – na verdade, um processo muito “natural”, a despeito da descrença dos antiglobalizadores nas virtudes “normais” da economia de mercado para gerar e distribuir riquezas – e como esse processo global está moldando o mundo contemporâneo. Essa parte não tem muito a ver com a metodologia de Sala-i-Martin, mas respeita o espírito e o sentido de suas conclusões. 3. Os dados do problema: questões metodológicas e descobertas empíricas A distribuição da renda entre os países e dentro dos países tem sido um problema recorrente dos economistas desde longo tempo, em todo o mundo. A divergência entre os países pode ser medida em duas dimensões: as taxas de crescimento econômico em países pobres têm sido menores do que as dos países ricos e a dispersão de rendas entre os países tem aumentado ao longo do tempo. O problema é que a maior parte da literatura nesse campo utilizou-se de dados nacionais: isso pode até ser válido para testar teorias do crescimento econômico, uma vez que essas teorias tendem a “explicar” o crescimento em função de “fatores nacionais”, como políticas, 79

instituições e outros elementos que são determinantes em nível agregado. Na medida em que essas variáveis são independentes entre as nações, cada país pode ser tratado corretamente como um “número” independente num estudo econômico. O mesmo não se aplica, porém, quando se trata de medir o bem-estar das pessoas, uma vez que diferentes países têm diferentes “volumes” de população. Como diz Sala-i-Martin, “não há razão para desvalorizar o bem-estar de um camponês chinês em relação a um agricultor senegalês apenas porque a população da China é maior do que a do Senegal” (p. 352). Ou seja, a análise agregada em nível nacional não ajuda a responder questões como estas: quantas pessoas no mundo vivem na pobreza?; como mudaram as taxas de pobreza nas últimas décadas; ou então, as desigualdades distributivas entre os cidadãos estão crescendo ao longo do tempo? Este problema pode ser parcialmente resolvido recorrendo a uma ponderação da distribuição de renda em função do tamanho da população. Com base nesse tipo de abordagem, o economista T. Paul Schultz, (“Inequality and the Distribution of Personal Income in the World: How it is Changing and Why”, Journal of Population Economics, 11(3) (1998), 307-344), descobriu que não era verdade que a distribuição de renda tendia a divergir e que, ao contrário, a renda dos cidadãos mais pobres tinha crescido mais rapidamente (ou seja, a desigualdade distributiva tinha declinado). Mas, o problema é que nem todos os cidadãos de um mesmo país participam da mesma forma na distribuição nacional de riqueza, ou seja, a pobreza geral da população pode estar sendo reduzida, mas a desigualdade na distribuição efetiva de renda pode estar aumentando. Sala-i-Martin tentou superar esse problema estimando a distribuição da renda mundial (WDI) para cada um dos anos entre 1970 e 2000 e integrando as distribuições de renda para 138 países. As medianas das distribuições nacionais de renda para cada país são os níveis de PIB per capita ponderados pela população de cada um deles, dados então combinados com pesquisas por amostragem (micro-surveys) para cada um deles, quando disponíveis (ou aproximados aos de regiões próximas). Ele então usa a WDI para estimar as taxas de pobreza individuais para o mundo assim como para as várias regiões do planeta, registrando a partir daí as medidas de desigualdade derivadas da WDI, segundo oito indicadores selecionados. “Todas as medidas apontam na mesma direção: não apenas a desigualdade mundial de renda não cresceu tão dramaticamente como muitos temiam, mas, ao contrário, ela caiu desde os altos níveis do final dos anos 1970” (p. 356). 80

Para a estimativa da renda individual, Sala-i-Martin utiliza o PIB per capita segundo o critério conhecido como PPP (paridade de poder de compra), ponderado pelo tamanho da população. Uma vez obtida a mediana, os dados são complementados com informação sobre a distribuição interna de renda (por estratos), a partir de pesquisas detalhadas (microeconomic income surveys), segundo quatro grupos de países: A= países para os quais o PIB per capita e pesquisas de renda estão disponíveis para vários anos (grupo no qual o Brasil se insere e que perfaz 5 bilhões de pessoas, ou 84% da população mundial); B= países para os quais o PIB per capita está disponível e apenas uma pesquisa foi registrada para todo o período entre 1970 e 2000 (29 países, com um total de 329 milhões de pessoas em 2000, ou 5% da população total); C= países para os quais o PIB per capita é disponível, mas para os quais não existem pesquisas microeconômicas (28 países, com população de 242 milhões, ou 4% do total); D= países sem informação de PIB per capita (excluídos do tratamento estatístico e econométrico). No total, os 138 países compreendidos no estudo perfazem 93% da população mundial em 2000. Estimativas específicas foram conduzidas para os 15 países resultando da fragmentação da União Soviética, bem como para o Congo-Zaire, para o qual dados tiveram de ser estimados em vista da importância desse país na África (50 milhões de pessoas) e da amplitude da queda estimada da renda (de US$ 1.000 em 1970 para cerca de $230 em 2000). Os exercícios econométricos conduzidos por Sala-iMartin foram intensos e complexos, mas indicaremos apenas alguns resultados. Assim, por exemplo, a evolução da distribuição de renda na China, a partir da definição oficial de pobreza do Banco Mundial (US$ 1/dia a preços de 1985): a “moda” da distribuição de renda em 1970 era de US$ 750 ao ano. Um terço da população da China, aproximadamente, naquele ano se situava abaixo da linha da pobreza, volume que vai se deslocando com o correr dos anos, ao mesmo tempo em que a desigualdade aumenta. Em 2000, a moda já se situava em US$ 2.400 e a fração da população abaixo da linha da pobreza de US$ 1/dia era significativamente menor. As estimativas feitas para o segundo país mais populoso do planeta, a Índia, indicam um deslocamento similar de pessoas para cima da linha de pobreza, de forma dramática, tendo em vista o crescimento da população total. Para os Estados Unidos, o terceiro país mais populoso (depois do implosão da União Soviética), as estimativas de distribuição são feitas para os estratos mais altos (entre US$ 1.000 e 100.000, em lugar de US$ 100 a 10.000, como para os demais 81

países), mas não existem pessoas abaixo da linha de pobreza. A Indonésia foi igualmente um país que conheceu uma enorme redução da pobreza: um terço da população se situava abaixo da linha em 1970 e, mesmo com a crise financeira em 1997 e a queda na renda, os dados são eloqüentes, ao contar aquele país com apenas 0,1% de pobres em 2000. Os dados para o Brasil constam de um gráfico (II.E) e demonstram que a renda dos estratos mais elevados se movimenta para cima muito mais rapidamente do que a dos estratos inferiores. Para Sala-i-Martin isso “reflete um nível crescente de desigualdade. Este é um fenômeno que tendemos a observar em toda a América Latina. A redução da pobreza no Brasil parece ter sido muito pequena, tendo ocorrido principalmente nos anos 1970. Na verdade, os estratos mais baixos da distribuição parecem se deslocar para a esquerda entre 1980 e 1990, o que indica um crescimento da pobreza durante a ‘década perdida’ dos anos 1980. Pouco progresso foi feito no decorrer dos anos 1990” (p. 364). O caso da Nigéria é, segundo Sala-i-Martin, um dos mais “interessantes”, ou talvez dramático, no sentido próprio da palavra: o PIB per capita não cresceu ou teve crescimento negativo nesse período e tanto a pobreza quanto a desigualdade aumentaram. “As implicações dramáticas desses dois fenômenos são que, enquanto a fração da população vivendo com menos de US$ 1/dia aumentou de 1970 a 2000, o estrato superior da distribuição moveu-se na verdade para a direita. Em outras palavras, apesar de que o cidadão médio ficou pior em 2000 do que estava em 1970, os nigerianos mais ricos estavam bem melhor. Este fator tem implicações políticas importantes porque esses ricos nigerianos formam a elite econômica e política que tem de tomar decisões sobre as reformas possíveis. Infelizmente, a despeito de que esse fenômeno é único entre os maiores países estudados, ele não é incomum na África” (p. 366). Para a antiga União Soviética (Rússia em 2000) e suas repúblicas constitutivas, os resultados são os esperados: um aparente deslocamento para a direita até 1990, com base nos dados de “crescimento” soviético, seguido de uma dramático deslocamento para a esquerda a partir dos anos 1990: em 2000, a distribuição se move para a esquerda, refletindo uma nítida queda na renda e registra um aumento na dispersão, o que significa obviamente o crescimento na desigualdade. Há uma aumento na proporção da população abaixo da linha da pobreza, mas como esta se situa bem acima de US$ 1/dia, o aumento geral na pobreza é pequeno. 82

Dados agregados ao nível mundial, calculados por Sala-i-Martin, revelam uma moda mundial de US$ 850 em 1970, com um pico de US$ 9.600, o que reflete os altos níveis de renda dos EUA e da Europa. Parte substancial das diferenças distributivas da renda mundial em 1970 derivava das diferenças de renda per capita entre os países, mais do que dentro dos países. “Em outras palavras, a distância entre as distribuições nacionais de renda (ou seja, a diferença entre a mediana dos EUA e da China) parece ser muito maior do que as diferenças entre ricos e pobres americanos ou do que entre ricos e pobres chineses” (p. 368). 4. A pobreza no mundo: diminuindo, a despeito de tudo Como estimativas globais, Sala-i-Martin calcula, em primeiro lugar, que a WDI moveu-se para a direita nesse período de 30 anos, ou seja, que a pobreza diminuiu, o que está obviamente refletido no fato de que a renda per capita é muito maior em 2000 do que em 1970. Não é imediatamente visível, em segundo lugar, que a dispersão é maior agora do que trinta anos atrás, ou seja, de que a desigualdade distributiva aumentou. Em terceiro lugar, uma mudança maior ocorreu na China, cuja distribuição de renda moveu-se dramaticamente para a direita – os chineses se tornando ricos – mas com uma dispersão maior – ou seja, uma distribuição da renda mais desigual. O estrato mais alto da população chinesa em 2000 situava-se em torno de US$ 10.000 ao ano, o que significa a renda média de países como México, Polônia ou Rússia e um pouco abaixo da Grécia. Em quarto lugar, a Nigéria – e outros países africanos – parece estar preenchendo o vácuo deixado pela China, Índia e Indonésia: enquanto as três nações asiáticas cresceram – e suas distribuições de movimentaram para a direita –, o maior país africano tornou-se mais pobre e mais desigual ao longo do tempo. Assim, em 2000, ele permanece como o único grande país com uma parte substancial de sua população abaixo da linha da pobreza. Sala-i-Martin resume suas evidências para todo o período. “Agora se tornou claro que a distribuição se move para a direita, refletindo o fato de que as rendas da maioria dos cidadãos do globo cresceram ao longo do tempo. Também é claro que a fração da população que ficou à esquerda da linha de pobreza declinou (o que indica uma redução nas taxas de pobreza) e que a área absoluta que ficou para trás da linha da pobreza também diminuiu (o que indica uma redução geral do número de pessoas pobres no mundo). Os dados não mostram claramente se a desigualdade na renda mundial cresceu ou diminuiu, o que demonstra a necessidade de números mais exatos 83

de desigualdade distributiva no mundo se quisermos discutir a evolução da desigualdade nas últimas três décadas” (p. 368-369). Utilizando diferentes definições e estimativas para as linhas de pobreza – entre US$ 1,5 e 3/dia –, Sala-i-Martin calcula as diferentes funções distributivas cumulativas para a evolução da diminuição da pobreza no mundo entre 1970 e 2000. Escolhendo a linha inferior, uma renda equivalente a $570 ao ano (ou US$ 1,5/dia), tem-se que as taxas de pobreza diminuem de 20% da população mundial para 16% em 1980, 10% em 1990 e 7% em 2000. Se escolhermos a renda de $2.000 ao ano, a taxa de pobreza cai de 62% da população mundial em 1970 para 41% em 2000. Para uma renda de $5.000 ao ano, a taxa declina de 78% para 67%. “Usando os dados originais do Banco Mundial (definição de uma renda anual de $495), a linha de pobreza declinou de 15,4% da população mundial em 1970 para 5,7% em 2000, um declínio de quase três vezes! Isto é especialmente impressionante levando em consideração que, no mesmo período, a população mundial cresceu quase 50% (de 3,5 para 5,5 bilhões de pessoas). A conseqüência é que o número total de pessoas pobres passou de 534 para 322 milhões, uma queda de 50%” (p. 373 e 375). Estimativas comparáveis quanto ao número de pessoas pobres em 2000 situavam-no ao redor de 1,2 bilhão de pessoas. O papel da China na redução da pobreza mundial foi e é, sem dúvida alguma, importante. Estimativas do Banco Mundial baseadas em pesquisa local indicam que a pobreza, definida como a linha de consumo de US$ 1/dia, foi reduzida de 53% da população em 1980 para apenas 8% em 2000. As estimativas do próprio Sala-i-Martin dão cifras menores, de 48% em 1980 para 11% em 2000, o que representa, de toda forma, cifras impressionantes para um espaço de vinte anos. Em termos globais, a região da Ásia Pacífico, sendo a mais populosa, foi a que mais reduziu o número de pobres no planeta: de uma proporção de 30% em 1970, a taxa de pobreza tinha caído para menos do 2,4% em 2000, para um total de 1,7 bilhão de pessoas (ou seja, um corte por um fator de 10). Em números absolutos, os pobres caíram de 350 milhões em 1970 para 41 milhões em 2000, sendo que 114 milhões de pessoas foram alçadas da linha da pobreza nos anos 1990. Essa realização impressionante significou que enquanto 54% dos pobres do mundo viviam na Ásia oriental em 1970, em 2000 a região passou a abrigar apenas 9,4% do total. Evolução similar foi conhecida na Ásia do Sul, região com 1,3 bilhão de pessoas em 2000: a pobreza caiu de 30% da população para 2,5% em 2000, sendo que a maior parte do sucesso pode ser atribuída à 84

reformas econômicas na Índia pós-1980 (já que na década anterior os pobres indianos tinham aumentado em 15 milhões). A descrição oferecida por Sala-i-Martin do caso africano é patética. “O grande sucesso asiático contrasta dramaticamente com a tragédia africana. Com uma população total apenas superior a 608 milhões de pessoas, a África subsaárica é a terceira região mais habitada no nosso conjunto de dados. (…) A maior parte (dos 41 países) teve um desempenho tão catastrófico que a pobreza aumentou em todo o continente. De maneira geral, a pobreza em 1970 era similar à da Ásia: 35%. Em 2000, as taxas de pobreza na África alcançaram 50% enquanto as da Ásia declinavam para menos de 3%. (…) O número total de pobres subiu de 93 milhões em 1970 para mais de 300 milhões em 2000. (…) Este desempenho decepcionante, ao lado do grande sucesso das duas outras regiões pobres do mundo (Ásia oriental e meridional), significa que a maioria dos pobres do mundo vive agora na África. De fato, a África contava com apenas 14,5% dos pobres do mundo em 1970. Hoje, a despeito do fato de que a África totaliza apenas 10% da população mundial, ela é responsável por 67,8% dos pobres do mundo. A pobreza, que antes era essencialmente um fenômeno asiático, tornou-se essencialmente um fenômeno africano” (pp. 377 e 380). O caso da América Latina é de meios tons, ao longo das três décadas cobertas pelo estudo. Com cerca de 500 milhões de habitantes – 9% da população mundial –, as taxas de pobreza foram cortadas pela metade em três décadas: de 10,3% em 1970 para 4,2% em 2000. “Isto poderia parecer um quadro otimista, se não fosse pelo fato de que todos os ganhos ocorreram durante a primeira década. Pouco progresso foi obtido depois disso. De fato, a taxa de pobreza na América Latina cresceu de 3% em 1980 para 4,1% em 1990 e para 4,2% em 2000. O volume de pobres caiu em cerca de 17 milhões de pessoas durante os anos 1970, mas cresceu em 10 milhões nos vinte anos seguintes. Esse desempenho misto significou que, apesar de que a América Latina começou numa posição relativamente superior à da Ásia oriental e meridional (onde as taxas de pobreza eram superiores a 30% em 1970), vemos que as taxas de pobreza são superiores às das duas regiões em 2000. A parte dos pobres do mundo que vive na América Latina caiu de 4,0% do total em 1970 para 1,5% em 1980. Ela então cresceu para 3,5% em 1990 e para 5,3% em 2000” (p. 380-381). Os cenários para o Oriente Médio e para os ex-países socialistas não é dos mais otimistas, mas prefiro remeter à leitura do original de Sala-i-Martin do que resumir, uma vez mais, dados que soam um pouco repetitivos em relação aos da América Latina. 85

Talvez seja melhor adentrar no debate relativo à natureza das desigualdades e o problema da comparação entre países e situações diferentes. 5. O mundo é menos desigual: como isso ocorre, e por quais razões? Os pesquisadores sempre se preocuparam com as desigualdades distributivas no plano mundial, pois aí se situa o coração do debate sobre a divergência ou convergência da economia mundial. Trata-se de uma questão complexa, tanto no plano metodológico quanto empírico, que pode induzir a interpretações errôneas da realidade, como eu mesmo experimentei em meu citado capítulo do livro A Grande Mudança. O Relatório do Desenvolvimento Humano de 2001, do PNUD, por exemplo, argumenta, segundo o texto de Sala-i-Martin, que a desigualdade na distribuição mundial da renda aumentou com base na seguinte lógica: Suposição 1: “As desigualdades distributivas dentro dos países aumentaram.” Suposição 2: “As desigualdades distributivas entre os países aumentaram.” Conclusão: “A desigualdade distributiva mundial também aumentou.” (p. 382) Para sustentar a primeira suposição, os analistas coletam os coeficientes de Gini de certo número de países, constatando então que esse coeficiente aumentou em 45 países e declinou em 16. Para apoiar a segunda suposição, os analistas recorrem à literatura sobre convergência e divergência e demonstram que o coeficiente de Gini do PIB per capita entre os países cresceu de forma demonstrável nos últimos 30 anos. Essa diferença crescente das rendas per capita entre os países é um fenômeno bem conhecido chamado de “divergência absoluta” pelos economistas do crescimento. Mas, como indica Sala-i-Martin, “a despeito de ser verdade que as desigualdades dentro dos países estão crescendo, na média, e que é também correto que as rendas per capita entre os países vêm divergindo, a conclusão de que a desigualdade distributiva mundial aumentou não deriva logicamente das premissas estabelecidas. A razão está em que a primeira suposição se refere à renda de ‘indivíduos’ e a segunda suposição se refere à renda per capita de países. Ao adicionar dois conceitos diferentes de desigualdade para analisar a evolução da desigualdade de renda mundial, o PNUD cai na falácia de comparar maçãs com laranjas. O argumento estaria correto se o conceito de desigualdade implícito na segunda suposição não fosse o ‘nível de desigualdade de renda entre os países’, mas, ao contrário, a ‘desigualdade entre os indivíduos que existiria no mundo se todos os cidadãos em cada país tivesse o mesmo nível de renda, mas países diferentes tivessem diferentes níveis de renda per capita” (p. 382-383). 86

A base do argumento é que se deve reconhecer que existem 4 cidadãos chineses para cada americano, assim que a renda per capita da China tem de ser ponderada e receber o peso correspondente (4 vezes). “Em outras palavras, em lugar de usar uma medida de desigualdade na qual a renda per capita de cada país constitui um valor, a medida correta deve ponderar o tamanho do país. O problema, para o PNUD é que medidas da desigualdade de renda ponderadas pela população demonstram uma tendência declinante nos últimos 30 anos. A questão, então, é saber se o declínio na desigualdade individual entre os países (ponderada pela população) mais do que compensa o crescimento médio da desigualdade individual dentro dos países, ponderada pela população” (p. 383). Sala-i-Martin expõe, então, as diferentes medidas de desigualdade distributiva – num total de oito metodologias – e passa a expor sua constatação de que a desigualdade global de renda diminuiu entre 1970 e 2000. Depois de ter permanecido mais ou menos estável no decorrer dos anos 1970, atingindo um máximo de desigualdade em 1979 (um índice de 0,662, segundo o coeficiente de Gini), ela conheceu uma tendência declinante nas duas décadas seguintes, com um coeficiente de Gini, em 2000, de 0,637. No total, o índice de Gini caiu 4% desde 1979. As tendências não foram obviamente uniformes. Ocorreu, por exemplo, uma queda brusca em 1975, no seguimento do primeiro choque do petróleo, quando os ricos sofreram e a China e a Índia cresceram, respectivamente, em 3,6% e mais de 7%. Em 1988, outro exemplo, a tendência para a melhoria do coeficiente reduziu-se ligeiramente, em função de uma recessão na China. Ou seja, os ciclos de negócios nos grandes países ou em grupos de países estão associados a mudanças de curto prazo nas tendências mundiais de desigualdade, o que recomendaria desconfiar de estudos de curto prazo. O fato é que todos os demais indicadores são concordantes em apontar um lento declínio nas duas últimas décadas, depois da relativa estagnação dos anos 1970. A dimensão do declínio depende da medida exata: a maior queda observada ocorreu na relação entre o estrato de renda de 20% superior e o estrato de 20% inferior, uma queda de quase 30% ente 1979 e 2000. “A despeito de pequenas diferenças entre as medidas, a desigualdade diminuiu nos últimos vinte anos” (p. 386). Parafraseando um autor precedente – Lant Pritchett, “Divergence, Big Time”, Journal of Economics Perspectives, 11(3), Summer (1997), 3-17 –, que tinha proclamado a abertura de um grande período de “divergência” no mundo, Sala-i-Martin 87

considera que, com base em sua análise baseada não no PIB per capita, mas nas rendas individuais das pessoas, as duas últimas décadas testemunharam um inegável processo de “convergência, ponto!” (p. 386). A tendência é de certa forma surpreendente na medida em que a desigualdade na distribuição da renda mundial tem aumentado continuamente no século e meio que se passou. O que teria causado essa inversão de tendência? “A resposta é a taxa de crescimento de alguns, até agora, grandes países pobres do planeta: China, Índia e o resto da Ásia” (idem). De forma geral, no início da revolução industrial, o mundo todo era pobre, igual e pobre. Lentamente, a renda de um bilhão de pessoas – em proporção atual – dos países que pertencem à OCDE cresceu e divergiu da renda dos demais cinco bilhões de pessoas que fazem parte do mundo em desenvolvimento. As taxas de crescimento dramáticas da China, da Índia e do resto da Ásia a partir dos anos 1970 determinaram que a renda de 3 a 4 bilhões de pessoas começou a convergir em direção à renda dos cidadãos dos países da OCDE. Essa redução na desigualdade mundial de renda pela primeira vez em séculos se dá a despeito da renda divergente dos 608 milhões de africanos. “O problema, agora, é que se a renda dos cidadãos africanos não começa a crescer rapidamente, a desigualdade de renda mundial vai começar novamente a aumentar” (p. 386-387). As tendências recentes se mantêm mesmo excluindo-se dos cálculos a China, de um lado, e os Estados Unidos e a África, de outros, que constituem, respectivamente, os grandes “convergentes” e “divergentes” nas estimativas, o que demonstra o peso de todos os demais participantes do jogo global. Esses três grandes atores perfazem 2,1 bilhões de pessoas – 38% do total – mas o coeficiente de Gini continuaria ainda assim a demonstrar uma queda, de 0,599 em 1970 para 0,591 em 2000. Finalmente, Sala-i-Martin decompõe os dados em função das diferenças entre os países e dentro dos países, obtendo uma evidência interessante. A variável “dentro dos países” representa o grau de desigualdade que existiria no mundo se todos os países tivessem a mesma renda per capita (ou seja, a mesma distribuição mediana) mas as diferenças correntes existentes dentro dos países entre os indivíduos. Esta medida é uma média ponderada pela população das desigualdades dentro de um país. Já a variável “entre os países” representa o grau de desigualdade que existiria no mundo se todos os cidadãos em cada país tivessem o mesmo nível de renda, mas persistindo as diferenças de renda per capita entre os países. Esta medida corresponderia à desigualdade 88

ponderada pela população (ou a medida agregada de desigualdade ponderada pela renda). A conclusão a que ele chega, utilizando a metodologia do “desvio logarítmico mediano, é que mais de 71% da desigualdade de renda entre os cidadãos do mundo se deve a diferenças entre os países e que apenas 29% deriva de diferenças de renda internas aos países. Empregando outras metodologias, as conclusões são similares: a maior parte das diferenças se dá entre os países, não dentro dos países. Mas, a segunda conclusão interessante do seu estudo é a de que as diferenças dentro dos países estão aumentando com o decorrer do tempo, ao passo que as diferenças entre os países declinam. O efeito combinado dessas duas tendências resulta em que a fração da desigualdade global que pode ser explicado pelas diferenças entre os países está declinando. Uma outra conclusão geral de Sala-i-Martin é a de que o declínio na desigualdade entre os países tem sido maior do que o crescimento da desigualdade dentro dos países, com o que o resultado final é positivo. “Em outras palavras, a despeito do fato de que a desigualdade dentro da China, dentro da Rússia, dentro dos EUA, e dentro de vários outros países tem aumentado, o crescimento de alguns dos maiores e mais pobres países do mundo (mais notavelmente a China, a Índia e o resto da Ásia) tende a reduzir a desigualdade geral de renda entre os cidadãos do mundo” (p. 389). Sala-i-Martin conclui o ensaio com uma reflexão sobre os objetivos do milênio da ONU, à luz dos números que ele revelou em seu estudo bem documentado. O primeiro objetivo, estabelecido em 2000, era o de reduzir à metade, em 2015, a pobreza existente em 1990. Nesse ano, as pessoas vivendo com menos de um dólar por dia representavam 10% da população mundial. O objetivo será atingido, portanto, se a taxa de pobreza for de 5% em 2015. Mas, de acordo com seus dados, essa taxa já era de 7% em 2000, ou seja, o mundo já tinha alcançado 60% da meta (o que, obviamente, nada diz da condição dos países africanos, tomados individualmente). Em outros termos, o mundo pode estar em melhor condição do que se acredita. 6. Uma palavra final: os antiglobalizadores precisam mudar o discurso... As evidências trazidas por Sala-i-Martin, que tinham sido expostas em seu ensaio anterior e discutidas em meus próprios artigos, já citados, traduzem uma realidade que poderia ser diferente: sim, o mundo poderia estar se tornando mais 89

desigual e mais “divergente”, com o crescimento das desigualdades distributivas dentro e entre os países. A bem da verdade, ele demonstra que as desigualdades internas têm crescido nas últimas décadas, mas que isso não foi suficiente para eliminar os maiores fatores de convergência entre os países. Essa convergência vem sendo assegurada, na prática, por alguns grandes países pobres que experimentam, desde os anos 1970, um extraordinário processo de crescimento econômico e de aumento da renda disponível em todos os estratos da população (ainda que com um relativo aumento das desigualdades distributivas entre os estratos da população). Estes são dados de “conjuntura”, mas que também traduzem uma lenta evolução “estrutural” que se pensa poder consolidar nos próximos anos: o mundo conheceu, por certo, uma longa divergência a partir da primeira revolução industrial, e vem agora passando por uma lenta convergência, à medida que caminhamos para a quarta revolução industrial (a da nano e da biotecnologia). Nada disso é inevitável ou apresenta caráter fatal: como sempre ocorre na história humana, decisões erradas adotadas por homens que estão em posição de decidir – as chamadas elites – podem, e em vários casos efetivamente o fizeram, colocar tudo a perder, escolhendo caminhos errados no processo de desenvolvimento. Assim ocorreu com a China, em algum momento entre os séculos XVI e XVIII: ela decidiu isolar-se do mundo, concluindo – naquele momento com certa razão – que ela não tinha nada a aprender com os “bárbaros” do exterior, uma vez que estava à frente deles em muitas coisas. Decisão fatal, pois ela foi invadida, esquartejada, espoliada e humilhada, graças à superior tecnologia guerreira das potências ocidentais, aliás obtida em grande medida a partir da própria China, nos séculos anteriores. Em nenhum momento, Sala-i-Martin recorre ao conceito de globalização em seu estudo, nem apresenta as taxas de crescimento desiguais entre os países, que “explicam” a convergência de alguns e a divergência de outros, mas é isso, obviamente, que está em causa no trabalho que acabamos de resumir. Ainda que um processo consistente de crescimento da renda disponível possa se dar, hipoteticamente, unicamente em um plano nacional, isto é, tendo como base o crescimento da produtividade total de fatores em bases inteiramente nacionais, ou seja, self-contained e autárquicas, não é crível, ainda que seja teoricamente possível, que China, Índia e tantos países asiáticos tivessem logrado o desempenho extraordinário que conseguiram nas últimas duas décadas em uma situação de “descolamento” da economia mundial. Isso não é verossímil e não seria 90

possível, não, em todo caso, com as altas taxas de crescimento econômico sustentadas pela China nas últimas duas décadas. O que isto tem a nos ensinar? Em primeiro lugar, que o crescimento econômico, quaisquer que sejam as políticas econômicas empregadas para torná-lo consistente e sustentável, é uma condição sine qua não se podem alcançar os demais objetivos das políticas macroeconômicas e setoriais, em especial as de cunho social ou tecnológico. Em outros termos, não adianta pensar em distribuir, mesmo de forma modesta, se não há crescimento da produtividade e se a economia não alcança patamares mais elevados de valor agregado. Em segundo lugar, que esse crescimento precisa alcançar os vários setores da economia e ser sustentado ao longo do tempo, de preferência a taxas bem superiores ao crescimento populacional, para que a distribuição seja mais ou menos bem repartida entre a população. Esse processo precisa se dar no bojo de transformações estruturais que atingem os diferentes setores, subsetores e ramos da economia, de maneira a transformar o crescimento econômico em vetor do desenvolvimento social. Estas são lições “teóricas” que podem ser extraídas a partir dos dados disponíveis. As lições “práticas” são as de que esse crescimento pode ser facilitado por um ambiente internacional favorável à expansão das exportações, que está inquestionavelmente na base do crescimento observado nas duas últimas décadas nas economias dinâmicas da Ásia. Parafraseando uma conhecida frase sobre a “mudança na geografia comercial do mundo”, pode-se dizer que essa mudança já ocorreu e ela mobiliza, essencialmente, os centros produtores da Ásia oriental e meridional e os centros consumidores da Europa e da América do Norte, como de resto um pouco todo o mundo. Nem a América Latina ou o Oriente Médio, nem a fortiori a África têm sabido aproveitar essas novas oportunidades criadas com essa “nova geografia comercial”. Outra lição de natureza prática seria a de que as políticas econômicas nacionais não precisam se conformar a um padrão único, alegadamente mainstream ou ortodoxo, de comportamento econômico, que seria aquele supostamente ditado pelas regras do chamado “consenso de Washington”. Ou seja, as políticas econômicas não precisam ser liberais ou, em sentido contrário, “dirigistas”, mas elas têm de se conformar ao padrão de abertura aos mercados e aos investimentos e de inserção na chamada economia global. A China e a Índia seguem padrões bastante diferentes de reforma econômica e de inserção econômica internacional, mas, em ambos os casos, as conexões efetuadas 91

pelos sistemas produtivos locais com os mercados externos e a abertura de cada um desses países aos investimentos diretos estrangeiros são patentes e determinantes no sucesso obtido. Na ausência desses traços definidores dos modelos “nacionais” de crescimento econômico e de inserção na economia internacional, nem a China nem a Índia teriam, possivelmente, logrado as altas taxas de crescimento conhecidas nas últimas duas décadas. Voltando à acusação dos antiglobalizadores contra o duplo processo de inserção das economias nacionais ao sistema econômico mundial e de sua integração aos mercados capitalistas, como sendo, supostamente, causadores de miséria, de pobreza e de desigualdades crescentes, creio que não caberia mais insistir na desqualificação desse tipo de alegação, sem qualquer fundamento empírico, teórico ou histórico. Desse ponto de vista, os antiglobalizadores vão precisar refinar o discurso ou encontrar outros demônios para combater. Resta, como afirmado, a questão do tipo ou da qualidade das políticas econômicas colocadas em prática, terreno no qual os mesmos personagens bizarros insistem em condenar as chamadas regras do “consenso de Washington”, sem provavelmente ter a menor idéia do que estão falando. Trata-se de uma questão mais complexa, que poderá ser abordada em outro contexto. No momento, creio que os dados estão bem apresentados quanto à convergência econômica de todas as economias que logram manter um processo de crescimento econômico sustentado, no contexto da economia global. 1574. “Sorry, antiglobalizadores: a pobreza mundial tem declinado, ponto!”, Brasília, 9 abril 2006, 18 p. Texto apresentando, resumindo e discutindo o estudo de Xavier Sala-i-Martin, “The World Distribution of Income: Falling Poverty and... Convergence, Period” (in The Quarterly Journal of Economics, vol. 121, nº 2, may 2006; p. 351-398; ISSN: 0033-5533; link: www.mitpressjournals.org/doi/pdf/10.1162/qjec.2006.121.2.351), com comentários adicionais sobre o processo de globalização. Revisão geral em 6 de janeiro de 2007, sob o título de “A distribuição mundial de renda: caminhando para a convergência?”; publicado em Meridiano 47 (Brasília, nº 74, setembro 2006, p. 20-29; ISSN: 1518-1219; link: http://www.mundorama.info/Mundorama/Meridiano_47_-_1100_files/Meridiano_74.pdf e http://boletim.meridiano47.googlepages.com/Meridiano74.pdf). Ensaio incorporado ao livro: Paralelos com o Meridiano 47: Ensaios Longitudinais e de Ampla Latitude (Hartford, 2015). Relação de Publicados n. 637 e 707.

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10. Contra a antiglobalização: contradições, insuficiências e impasses do movimento antiglobalizador

1. Uma longa (mas necessária) introdução metodológica e de princípios Se posicionar contra ou a favor de coisas em geral, sejam elas idéias, processos, movimentos, pessoas ou princípios, dá um pouco mais de trabalho do que simplesmente ser acomodado, passivo ou mesmo indiferente. Decidindo ser contra ou a favor de algo, o dono da posição tem, em geral, de se justificar perante outros, explicar os motivos de sua postura, defendê-la de ataques ou contestações que possa julgar equivocados, enfim, fazer qualquer coisa que torne suas idéias não apenas “melhores” do que outras, que são concorrentes ou alternativas, mas também compatíveis com os princípios pelos quais ele afirma pautar sua vida, sob risco, em não o fazendo, de ser acusado de inconsequente ou, simplesmente, de contraditório. Ser contra ou a favor de um conjunto de idéias dá, portanto, um certo trabalho, pois que em geral se é obrigado a deixar a acomodação monótona dos slogans rápidos ou o simplismo redutor das idées reçues – isto é, as velhas crenças, sem fundamentação empírica ou validade prática – para pesquisar sobre os fundamentos das posições que se está defendendo, investigar suas causas e consequências, examinar a validade dos argumentos em favor de posições opostas – do contrário como seria possível recusá-las, tão simplesmente? –, bem como destrinchar as “fortalezas” de suas próprias posições e tornar evidentes as “fragilidades” das idéias alternativas. Isso parece complicado e trabalhoso demais? Seria preferível, talvez, a placidez de algum consenso geral? Isso não existe: concordância de opiniões não é uma realidade muito presente nas sociedades democráticas, sobretudo em relação a fenômenos ou processos que são inerentes à própria dinâmica social na qual se vive, como é o caso da globalização. É assim inevitável que sobre ela persistam tantos debates e tanta polêmica. Não tenho, portanto, a mínima intenção de interromper esse fluxo enriquecedor, preferindo, ao contrário, alimentar o debate com meus próprios argumentos, que como indica o título deste ensaio, tende a colocar-me em oposição aos partidários da antiglobalização, cobrando-lhes consistência na idéias e racionalidade de propósitos. Sinto muito por trazer algumas angústias aos que têm suas causas a defender no partido da anti, mas este é o preço da coerência que deve existir entre as idéias gerais e as ações 93

na vida prática: é preciso ter um mínimo de racionalidade e de consistência intrínseca, se se pretende fazer com que as idéias próprias, ou as do movimento a que se pertence, tenham aceitação geral, sejam triunfantes na vida social e sejam, não apenas adotadas pelos que nos governam, como implementadas na prática. Não é isso afinal o que pretendem todos os que têm idéias a defender?: que elas sejam disseminadas, o mais amplamente possível, e convertidas em realidade? Creio que sim, e é isso também que me anima a escrever, em primeiro lugar para mim mesmo – afinal, trata-se de excelente método para afinar as próprias idéias –, em segundo lugar para alunos, leitores ocasionais ou os simples curiosos que frequentam eventualmente as páginas de meu site, ou que podem ler o que escrevo em boletins eletrônicos. Como sabem alguns desses leitores, não sou de fazer concessões políticas, não costumo ceder a argumentos ilógicos, nem sou levado por modismos ideológicos. Apenas cultivo a modesta racionalidade dos argumentos que fazem sentido, que não ofendem os dados da realidade e que se conformam a testes de validação empírica. Meu único partido é a falta de partido, justamente. Com o perdão dos leitores por esta longa digressão introdutória, eu escrevi tudo isto como forma de abrir um debate – que, sei, não terá seguimento – sobre um dos mais curiosos e surpreendentes fenômenos destes tempos de globalização e que conforma, ao mesmo tempo, um paradoxo: o fato de pessoas medianamente inteligentes – posto que, todas, da classe média para cima –, ou mesmo de indivíduos tidos como de inteligência superior – já que ostentando títulos universitários, livros publicados, espaços na imprensa, homenagens recebidas, enfim, credenciais reconhecidas pela mídia – se posicionarem de forma veementemente contrária ao processo de globalização (refirome, obviamente a “esta” globalização, que eles costumam chamar de “capitalista”). A curiosidade está em que, contra tantos argumentos contrários às suas posições, eles façam sucesso, e o paradoxo (ou a ironia) é que esse sucesso se deve inteiramente ao processo de globalização, que eles condenam com tanta veemência. Com efeito, não há fenômeno mais disseminado, mediatizado e de maior sucesso público nos últimos anos do que o chamado altermundialismo, também chamado de antiglobalização, termo que prefiro e já explico por quê. O altermundialismo, como ele mesmo se proclama, é um movimento que defende que um outro mundo é possível, ou seja, um mundo diferente do atual, talvez oposto, ou em todo caso melhor do que o que agora temos: injusto, desigual, contraditório, cheio de misérias e tragédias, feito de exploração do homem pelo homem, de dominação política, de guerras imperialistas, 94

mas também de guerras civis, guerras tribais, limpezas étnicas, degradação da natureza, esgotamento de recursos, bref, um mundo horrível, capitalista e desigual, que caberia eliminar, ou pelo menos substituir por outro melhor. Mas é um fato, também, que o mundo está sempre mudando: já não temos tantas guerras como antigamente, menos pessoas morrem de fome ou doenças, hoje temos penicilina, saneamento básico, um pouco mais de direito e, certamente, mais justiça e democracia também. Enfim, o mundo mudou, embora talvez não no ritmo e na extensão que seriam desejáveis, mas ele mudou, e para melhor, nos últimos dois ou três séculos de revolução industrial e de globalização capitalista (usemos este adjetivo que incomoda muita gente, mas que expressa a realidade que os altermundialistas querem recusar). Se o mundo mudou, e continua mudando a cada dia, a caracterização usada pelos altermundialistas é, no mínimo, tautológica, ou redundante, motivo pelo qual devemos recusar esse conceito. Mas, há um motivo a mais pelo qual esse conceito é inoperante, pouco prático e no mínimo carente de significado. É porque ele promete coisas que é incapaz de entregar, ou seja, a própria definição prometida em sua caracterização enquanto grupo. Se esse movimento é a favor de um outro mundo, que já indica ser possível sem qualquer tipo de demonstração positiva, ele deveria dizer, de imediato, qual é, como se organiza, quais são os fundamentos materiais, espirituais, arquitetônicos e conceituais desse outro mundo que seus proponentes proclamam de modo contínuo na internet e nos encontros ruidosos nos quais eles martelam um pouco mais a ideia, sem desenvolvê-la de fato. Portanto, o conceito não nos serve, até que ele venha recheado de algo mais e, por isso, estou jogando-o na lata de lixo da história. Fiquemos, portanto, na antiglobalização, que ela, sim, é um movimento de sucesso, aliás, muito mais ruidoso e organizado do que o dos altermundialistas (que são apenas um pequeno bando de irredutíveis gauleses), posto que constituído, o movimento antiglobalizador, para se opor a algo de concreto, a globalização que “está aí, aos nossos olhos”, e contra a qual se mobilizam todos aqueles que têm algumas idéias na cabeça (partimos da presunção de que todas são consistentes até prova em contrário). Também partimos do pressuposto de que os antiglobalizadores têm algumas soluções alternativas que eles gostariam de propor aos demais, esperando, em algum momento, que elas sejam aceitas pelos que decidem e que possam, assim, converter-se algum dia em realidade. Como se pode ver, parto do pressuposto de que os antiglobalizadores têm algo a dizer, que esse algo faz sentido, que seus argumentos merecem ser considerados e que vale a pena, a despeito do seu caráter heteróclito, debater com esse movimento 95

ruidoso, ainda que ela me pareça marcado por uma certa cacofonia conceitual. Confesso, também, que tenho tido uma certa dificuldade em identificar precisamente as “idéias” dos anti, na medida em que eles parecem mais propensos a fazer manifestações do que em colocar no papel, de forma ordenada, seus argumentos anti, ou mesmo a favor de alguma coisa, qualquer coisa que permita substituir “esta” globalização por outra. Rendendo modesta homenagem à minha tribo de origem, os sociólogos, considero, de minha parte, que o movimento antiglobalizador é uma ideologia, e que, como todas as ideologias, parte de uma certa concepção do mundo e da realidade, concepção que recusa o mundo como ele é e que pretende mudar-lhe os fundamentos ou o seu modo de funcionamento, de modo a torná-lo mais conforme aos princípios e idéias defendidos por esse movimento. Chamemos a esse movimento “ideologia da antiglobalização”, se me permitem o empréstimo de sabor levemente marxista. Não há nenhum preconceito nesta caracterização, pois eu aceito que chamem à minha própria concepção do mundo “ideologia da globalização”, com todas as consequências que isto implica, isto é, o desejo de fazer com o que o mundo também se conforme àquilo que eu julgo ser bom e desejável para seus habitantes, isto é, um pouco mais, ou bem mais, na verdade doses maciças de globalização, com todos os seus efeitos “devastadores” (no bom e no mau sentido). Admitamos, portanto, que somos ambos “ideólogos”, eu e os adeptos da antiglobalização, e nisto não vai nenhum julgamento preliminar negativo; trata-se apenas de uma constatação. Há uma diferença, porém, entre eu e os antiglobalizadores: eu não pertenço a nenhum movimento, grupo, partido, seita, igreja, confraria, clã ou tribo; não costumo frequentar fóruns pró- ou antiglobalização e não admito nenhum argumento de autoridade que se interponha entre a informação que busco e recebo – de todas as fontes possíveis – e minhas próprias reflexões independentes. Sou um ser livre, tanto quanto me permite a minha condição de assalariado do Estado e atividades acadêmicas à margem da jornada na burocracia pública. Sou eu e meu computador, apenas, no qual escrevo e no qual recolho as informações que me chegam de todas as partes sobre a globalização e o seu contrário, isto é, o quixotesco movimento antiglobalizador. Faço aqui um último parágrafo introdutório para me desculpar pelo adjetivo usado acima, isto é, “quixotesco”, em relação aos adeptos da anti, mas é que considero, de verdade, esse movimento como sendo quixotesco, isto é, uma figura (neste caso 96

coletiva) levantada de lança em riste contra alguns moinhos de vento que só existem na cabeça dos que esgrimem argumentos antiglobalização, como agora passo a discutir. 2. Contradições da antiglobalização: carência de fatos, de método, de análises Não é fácil, como disse acima, debater com o pessoal da anti, a começar pelo fato de que não se consegue saber direito o que pensam sobre os temas da globalização e o quê, exatamente, pretendem colocar no “lugar” desse processo. Por mais que eu tenha me esforçado na busca, navegando de site em site, de documento em documento, encontrei poucas propostas concretas desse movimento, alguma sistematização que contivesse as principais idéias, se alguma, sobre a “globalização realmente existente” e esse “outro mundo possível”. Slogans à parte, a consistência analítica desses “escritos” é deficiente, para dizer o mínimo, e sua adequação aos dados da realidade é inexistente. Para dizer a verdade, existem inúmeros documentos, geralmente de caráter retórico, conclamando a manifestações antes e durante as datas e locais dos encontros oficiais da assim chamada globalização capitalista: o Fórum Econômico Mundial de Davos, em primeiro lugar, obviamente, considerado a bête noire do processo (mas agora que eles têm o seu próprio foro, Davos foi relegado a uma posição secundária), mas também as reuniões do FMI e do Banco Mundial, da OMC, da Alca, e até da UE e da UNCTAD. O tom geral é de indignação, de revolta, mas um exame ponderado dos fatos, que é o mínimo que se requer de qualquer trabalho universitário digno de nota (no sentido de pontuação, mesmo), é algo raro, senão inexistente nos textos da anti. Como, nessas circunstâncias, debater com o movimento?: seria preciso antes dispor da matériaprima essencial a qualquer debate: idéias sistematizadas, claramente expostas, método. Não só não é fácil, como na verdade não é permitido debater com esse pessoal, na medida em que, pelas próprias regras estatutárias dos anti, só participam dos encontros do Fórum Social Mundial – o arauto le plus en vue da antiglobalização (junto com a ATTAC e outros foros menores) – aqueles movimentos e entidades da sociedade civil que se declaram de acordo com sua Carta de Princípios. Ou seja, não é permitido ser a favor da globalização, ainda que eles o sejam, na prática, ao usarem e abusarem de todas as facilidades permitidas pela globalização para se informar, se reunir e debater. Qualquer outra pessoa física ou movimento, todavia, só pode participar se declarar-se a favor de um documento extremamente vago em seu conteúdo e definições. Alguém que seja um anti da anti, como eu mesmo, não apenas está sumariamente excluído, ab initio, como jamais será cogitado para comparecer em algum 97

foro. Registro aqui, ipsis litteris, o que figura nos procedimentos do FSM: “Poderão ser convidados a participar, em caráter pessoal, governantes e parlamentares que assumam os compromissos da Carta de Princípios.” Para participar, portanto, é preciso primeiro comprometer-se com posições dos próprios organizadores, o que não apenas configura um reducionismo absurdo, um verdadeiro cerceamento à liberdade de expressão, como também uma manifestação brutal de “pensamento único”, que eles dizem condenar. Essa cláusula de participação restrita contradiz, portanto, o primeiro princípio do FSM, que afirma ser ele “um espaço aberto de encontro para o aprofundamento da reflexão, o debate democrático de idéias, a formulação de propostas, a troca livre de experiências…”, já que só se pode participar sendo a favor das idéias do movimento. E quais são essas idéias? Na verdade, muito poucas, e que já vem consignadas no seguimento desse primeiro princípio acima transcrito: o FSM visa “…a articulação para ações eficazes, de entidades e movimentos da sociedade civil que se opõem ao neoliberalismo e ao domínio do mundo pelo capital e por qualquer forma de imperialismo…”; isto pelo lado negativo. Pelo lado positivo, continua o texto: as entidades participantes “estão empenhadas na construção de uma sociedade planetária orientada a uma relação fecunda entre os seres humanos e destes com a Terra”. Se eu fosse impaciente, eu diria: so what?, só isso? De fato é muito pouco para definir um vasto movimento que mobiliza centenas de milhares de pessoas, talvez milhões, em todo o planeta, e que se propõe a grandiosa tarefa de mudar esse mesmo planeta (não esqueçamos a “sociedade planetária”). Mas o 4º princípio – numa carta que alterna, de forma algo anárquica, procedimentos, regras e definições – vai um pouco mais adiante: “As alternativas propostas no Fórum Social Mundial contrapõem-se a um processo de globalização comandado pelas grandes corporações multinacionais e pelos governos e instituições internacionais a serviço de seus interesses, com a cumplicidade de governos nacionais. Elas visam fazer prevalecer, como uma nova etapa da história do mundo, uma globalização solidária que respeite os direitos humanos universais, bem como os de tod@s @s cidadãos e cidadãs em todas as nações e o meio ambiente, apoiada em sistemas e instituições internacionais democráticos a serviço da justiça social, da igualdade e da soberania dos povos.” Aqui chegamos um pouco mais perto do que seriam as propostas propositivas – com perdão pela redundância – do movimento. Para minha frustração, no entanto, não encontrei alternativas dignas desse nome, ou pelo menos não de forma sistemática e organizada, de maneira a permitir um diálogo racional com essas “alternativas”. 98

Existem dezenas, provavelmente centenas, de documentos, na “Biblioteca das Alternativas”, mas, à diferença das bibliotecas normais, a dos anti não está classificada, não possui seções, nem “fichas catalográficas” que nos habilitem conhecer as idéias, as propostas e as alternativas apresentadas pelo movimento. Figuram nela tão somente os títulos e a indicação da língua em que se encontram os documentos: percorri vários, muitos deles e, com pesar, recolhi apenas uma sensação de déjà vu again. De 2001 até os dias que correm, esses documentos são monotonamente repetitivos: eles condenam sempre, em termos ásperos, a globalização capitalista, conclamam à mobilização ativa contra as reuniões das organizações internacionais que supostamente pretendem facilitá-la – aquelas mesmas já mencionadas – e terminam pelas promessas de sempre: os antiglobalizadores, por ocasião dos seus próprios encontros, “não vêm manifestar, nem protestar, mas sugerir correções e propor soluções para que, finalmente, de fato, um outro mundo seja possível” (“Antiglobalização”, Ignacio Ramonet, do Le Monde Diplomatique, da ATTAC francesa e um dos “papas” do movimento, em texto de 4.09.2002). Busquei, em vários outros documentos, essas soluções, essas “correções” prometidas, mas confesso minha frustração: não encontrei nada digno desse nome. Não que não existam propostas ou “idéias” a respeito da globalização, ou sobre como ela poderia ser mais humana, solidária, economicamente equitativa, socialmente justa e ecologicamente responsável. Mas é que, em minha análise, as propostas ou alternativas à globalização apresentadas pelos anti me parecem desumanas, muito pouco solidárias, economicamente desastrosas, socialmente catastróficas e ecologicamente poéticas, mas insustentáveis no plano prático. Talvez eu esteja sendo apressado demais, ao condenar as alternativas antiglobalizadoras, mas esta é a sensação que me deixou a leitura de praticamente todos os documentos do site www.forumsocialmundial.org.br. Para ser honesto, comigo mesmo e com os representantes da anti, existe sim uma condição geral para que essa globalização deixe de ser tudo aquilo que ela aparenta ser, aos olhos dos anti: que ela deixe de ser capitalista. Isto, pelo menos, é o que eu deduzo do 11º princípio da Carta de Princípios, que define o fórum como sendo “um movimento de idéias que estimula a reflexão, e a disseminação transparente dos resultados dessa reflexão, sobre os mecanismos e instrumentos da dominação do capital, sobre os meios e ações de resistência e superação dessa dominação, sobre as alternativas propostas para resolver os problemas de exclusão e desigualdade social que o processo de globalização capitalista, com suas dimensões racistas, sexistas e destruidoras do meio 99

ambiente está criando, internacionalmente e no interior dos países”. Em outros termos, se a dominação do capital fosse eliminada, metade (ou pelo menos grande parte) dos problemas da humanidade estaria resolvida. Ou muito me engano, ou a reflexão não vem sendo muito estimulada nesses encontros, já que não consigo atinar como se pretende eliminar um dos mais poderosos fatores de produção criados com o processo civilizatório, desde a revolução agrícola: o capital (ou talvez mesmo desde o paleolítico inferior, uma vez que armas de pedra ou de madeira são uma forma de “capital”). Seriam os antiglobalizadores astronautas? São eles de outro planeta, ainda não tocado pelo modo de produção capitalista? Acredito que não, o que nos deixaria uma única conclusão: eles são simplesmente anticapitalistas, o que tampouco é consenso entre eles. Com efeito, muitos proclamam não ser contra o modo de produção capitalista, apenas pretendendo melhorar o seu funcionamento. De fato, ao ler os documentos da “Biblioteca das Alternativas”, constatei que alguns ostentam um anti-capitalismo visceral, ao passo que outros são apenas levemente anticapitalistas. Seriam os antiglobalizadores marxistas, socialistas ou de alguma forma pessoas de esquerda? Dificilmente, pois nada existe de mais antimarxista e de antissocialista do que o pensamento nacionalista, chauvinista ou contrário ao saudável internacionalismo proclamado pelo autor do Manifesto Comunista e d’O Capital. Marx proclamava, antes de mais nada, as virtudes do capital enquanto redutor das diferenças entre sociedades, em suas diversas etapas de desenvolvimento: ele pretendia que o capital unificasse rapidamente as forças produtivas e as relações de produção nos cantos mais recuados do planeta para que o exército dos proletários pudesse, finalmente, não recusar o capitalismo, mas sim superá-lo a partir de seu acabamento enquanto modo de produção, cedendo lugar a uma etapa superior de organização social da produção. Mas isto eu não preciso relembrar, pois que constitui o “beabá” de qualquer marxista digno desse nome. O que me surpreende, apenas e tão somente, é que, ao constatar a presença de vários “marmanjos” marxistas no movimento – com isso eu quero me referir aos mais velhos, que ainda leram Marx, já que os mais novos parecem simplesmente ignorar as obras do velho barbudo –, eles não tenham atinado para a existência dessa “contradição insuperável” em seu seio: um marxista consequente deveria estar lutando em favor de mais, não de menos, globalização, pois apenas ela é capaz de trazer para mais perto de nós o dia da derrocada final do capitalismo e sua superação pelo socialismo. 100

A posição da antiglobalização não é, portanto, marxista ou sequer socialista. O que de fato transparece nos muitos documentos compilados, como indicado no já citado 4º princípio, é um posicionamento dos anti contra o “processo de globalização comandado pelas grandes corporações multinacionais e pelos governos e instituições internacionais a serviço de seus interesses, com a cumplicidade de governos nacionais”. Ou seja, o mal absoluto são as grandes empresas multinacionais, e quem não se posicionar contra elas fica proibido, portanto, de frequentar os encontros do movimento. No longo prazo, esse posicionamento pode representar uma contradição nos termos, na medida em que o movimento antiglobalizador já se transformou, de fato, em uma grande corporação multinacional, com representação em quase todos os países e com várias “instituições internacionais a serviço de seus interesses”. Assim, se ele, por acaso, numa hipótese não de todo irrealizável, conquistar governos – como parece que já conseguiu convencer alguns e dispõe de muitos aliados em outros, inclusive perto de nós –, ele se tornará uma força irresistível, capaz de mudar de verdade a face do planeta. Apenas não sei se para melhor, como uma análise de algumas de suas propostas alternativas pode demonstrar. 3. Pensando o impensado: existem idéias concretas sobre temas concretos? Para facilitar o debate e a confrontação de idéias, entre as minhas próprias e as que parecem defender os anti, resolvi organizar o restante deste texto em torno de algumas questões práticas que costumam concentrar o interesse do movimento. Escrevi “parecem” pois que o movimento não ostenta idéias oficiais, o que é compreensível, pois que não pretende ser ou parecer “autoritário”, e não consolidou suas propostas em um conjunto de alternativas que mereçam ter esse nome. O fato é que eles não apresentam os meios e modos pelos quais suas “idéias” poderiam ser testadas na prática, ou pelo menos ser objeto de simulações econométricas ou de elegantes equações de equilíbrio ao estilo de Keynes (um profeta frequentemente invocado nesses meios). Como os anti não apresentam esse corpus conceitual, fica muito difícil, o que já é pouco compreensível, considerá-los pelo que eles pretendem ser, um movimento, e não apenas um ajuntamento heteróclito de individualidades, ostentando um conjunto heterogêneo de idéias dispersas. Apresento minhas desculpas antecipadas aos autores de trabalhos dotados de idéias sensatas, mas a reunião de todos esses textos num mesmo barril de baixa coerência intrínseca dá uma horrível impressão de sopa de letras. 101

Arriscando-me, portanto, a ser injusto com os detentores de idéias menos estapafúrdias (mas, humildemente, eu os convido a me contradizer), aqui estão algumas “idéias” defendidas pelos antiglobalizadores e meus próprios comentários a respeito. 1) Protecionismo agrícola e vantagens comparativas dos mais pobres Vários documentos dos anti insistem numa pouco definida segurança alimentar: segundo esses textos, se deve dar prioridade à alimentação do povo a partir da própria região ou país, e não às exportações ou importações. Para eles, a segurança alimentar e a sustentabilidade rural só podem existir quando um país é capaz de satisfazer uma parte significativa de suas próprias necessidades alimentares. Esta posição transparece em vários documentos franceses, por exemplo, e eu mesmo assisti, pessoalmente, ao representante mais eloquente desse tipo de proposta, Bernard Cassen, da ATTAC, defender esse absurdo na Câmara dos Deputados, em Brasília, sem que nenhum dos parlamentares brasileiros presentes ousasse responder a tamanha sandice econômica e a tão evidente atentado aos interesses exportadores do Brasil. Parece evidente, aos observadores isentos, que não há qualquer “insegurança alimentar” no mundo como um todo. Desde os tempos de Malthus, a produção agrícola cresceu muito mais rápido do que a “produção” de indivíduos, e ainda que possa haver, ocasionalmente, carências produtivas numa região localizada – geralmente por motivo de guerra civil ou desastre natural –, elas podem ser rapidamente supridas via comércio internacional ou assistência alimentar de emergência. A tese da “segurança alimentar” e a da “multifuncionalidade agrícola” constituem disfarces canhestros do mais egoísta protecionismo agrícola, que tanto mal faz aos povos mais pobres da Terra. Estes não podem utilizar-se de suas vantagens comparativas, que estão todas localizadas no setor primário, para alçar-se da miséria mais vergonhosa, mantida em grande medida graças à concorrência desleal de um punhado de ricos agricultores subsidiados dos países mais avançados. De resto, a indústria e ainda mais os serviços são muito mais “multifuncionais” do que a agricultura, já que estão presentes em todas e cada uma das nossas atividades diárias, não se podendo argumentar sobre sua localização espacial ou eventual isolamento do mercado externo, como se faz em relação à agricultura, sem cometer novos atentados pueris à mais simples racionalidade econômica. Não tenho nada contra a existência da agricultura familiar, assim como nada tenho a opor a que os países ricos subsidiem suas populações da forma como desejarem, mas eles não podem fazê-lo opondo-se ao livre comércio de produtos agrícolas como 102

vem fazendo e sabotando a comercialização externa da produção agrícola dos países mais pobres por meio de subvenções às suas próprias exportações não competitivas. O protecionismo hipócrita dos países mais ricos está assim roubando, literalmente, os mais pobres de oportunidades de desenvolvimento. A hipocrisia nesse terreno é inaceitável e o movimento antiglobalizador não poderia se fazer cúmplice desse vil atentado aos direitos humanos de milhões de pobres ao redor do mundo. Espero que pelo menos os antiglobalizadores brasileiros saibam desvencilhar-se dessa armadilha que os torna coniventes com um dos piores atentados aos direitos econômicos dos mais pobres. 2) Dívida externa, movimentos de capitais e globalização financeira Um traço que unifica as mais diversas correntes do movimento antiglobalizador é, sem dúvida alguma, sua oposição ao pagamento da dívida externa dos países mais pobres e, de modo geral, à livre movimentação de capitais financeiros. Outra medida, de caráter propositivo e não simplesmente negativo como a do cancelamento das dívidas – traduzidas na prática por “plebiscitos” tão canhestros quanto viciados em sua indução automática ao não-pagamento, sustentado de forma piegas na “miséria do povo” –, é a que apresenta uma taxação sobre a movimentação de capitais, dita Tobin Tax, como sendo o remédio milagre tanto à volatilidade financeira quanto ao problema do não desenvolvimento dos países mais pobres. Rejeitada pelo próprio economista, James Tobin, que sugeriu um modesto controle sobre as aplicações cambiais no momento da derrocada do sistema de Bretton Woods, essa taxa, patrocinada especialmente pela vertente gaulesa do movimento anti – de onde retira o acrônimo ATTAC –, não apenas não resolveria o problema da volatilidade e da especulação, como se colocaria frontalmente contrária aos interesses de países emergentes tomadores de recursos, como o próprio Brasil. Neste terreno das finanças internacionais, as simplificações dos anti são tantas e tão risíveis que resulta difícil sequer “dialogar” com representantes desse movimento, que parecem não ter idéias mínimas sobre como funcionam os mercados financeiros e que partes de responsabilidade compartilhada devem ser atribuídas em momentos como os das graves turbulências financeiras dos anos noventa do século XX. Já escrevi o suficiente sobre as crises financeiras – em especial em meu livro Os Primeiros Anos do Século XXI, em especial cap. 10, “O Brasil e as crises financeiras internacionais, 1929-2001” – para voltar agora em detalhe sobre seus determinantes, as consequências econômicas de curto prazo e as possíveis lições do ponto de vista da globalização financeira (inclusive quanto aos necessários cuidados que se há de ter em 103

relação a esse aspecto da globalização, necessariamente diferente da liberalização comercial, que sempre provoca efeitos positivos). Não pretendo, em todo caso, contestar argumentos infantis e desprovidos de qualquer fundamentação histórica ou factual, como os alinhados por organizações como o “Jubileu 2000”, que promove uma sistemática campanha em prol da eliminação da dívida externa dos países mais pobres. Registro aqui apenas um exemplo desse tipo de argumento: “Resolver os problemas da dívida externa implica buscar saldar uma dívida histórica que os países do norte têm com os povos do sul como conseqüência do saque e da devastação que neles realizaram durante mais de 500 anos”. Como se diz: contra esse tipo de afirmação não há argumento. Sem dúvida que a dívida externa dos países mais pobres pode e deve ser diminuída ou mesmo eliminada, em certos casos, mas uma ação generalizada de cancelamento dessas dívidas faria mais mal do que bem ao conjunto dos países em desenvolvimento e emergentes, já que os retiraria dos mercados voluntários de capital por um tempo considerável, acumulando mais prejuízos do que benefícios. Em relação aos movimentos de capitais puramente especulativos, vilipendiados tanto pelos antiglobalizadores como por alguns “globalizadores” – como por exemplo o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso – pode-se simplesmente relembrar que eles estão em todas as partes, em especial nos países mais avançados, mas são capazes de provocar prejuízos apenas naquelas economias que já enfrentam desequilíbrios, nas quais a volatilidade é um dado intrínseco, não extrínseco, ao sistema. Controles podem ser utilizados, mas não são certamente a panaceia que alguns apregoam, sobretudo na forma permanente de restrições às entradas e saídas, de suposta paternidade keynesiana. Movimentos mais livres de capitais, assim como maior grau de competição no sistema financeiro contribuem para o bom funcionamento de qualquer sistema econômico, mas níveis adequados de liquidez podem ser regulados por instrumentos tributários ao alcance de qualquer país. Apenas a ojeriza atávica em relação aos mercados financeiros ostentada em certos círculos esquerdistas pode justificar algumas das medidas propostas pelos grupos antiglobalizadores: elas pertencem mais ao reino da paixão política do que ao terreno da administração sensata das relações econômicas internacionais. 3) Competição aberta contra mercados regulados e fechados Outro dos objetos mais frequentes da demonologia dos antiglobalizadores é o livre-comércio, invariavelmente acusado de provocar perdas para os países mais pobres e de concentrar ainda mais as riquezas em escala planetária. Nada poderia estar mais 104

distante da verdade. Se existe algum tipo de consenso entre os economistas, há mais de dois séculos, é justamente o que defende os efeitos benéficos do livre-comércio para todos os participantes da relação. Os argumentos são tão convincentes a esse respeito que não caberia insistir na argumentação em favor da liberdade de comércio, e sim aguardar provas mais evidentes, dos anti, de que ela provoca miséria e desigualdade. Bastaria considerar os dados mais elementares da história e das estatísticas atuais confrontando níveis de renda e coeficiente de abertura externa (isto é, a participação do comércio no produto bruto) para constatar o óbvio: há uma nítida correlação entre renda per capita e abertura ao comércio. Como ocorre nesses casos, apenas dirigentes sindicais e agricultores dos países do norte, de um lado, e “intelectuais” do sul, de outro, atacam o livre-comércio: os primeiros estão, é claro, interessados nos empregos industriais ou nos mercados agrícolas protegidos em seus países, ao passo que os segundos defendem teses abstratas, em total contradição com os interesses de seus próprios trabalhadores. Os argumentos em favor do livre-comércio são tão poderosos que mesmo o PT, no Brasil, aderiu à tese, como se deduz desta afirmação, do seu candidato presidencial em plena campanha de 2002: “Somos a favor do livre-comércio, desde que os países possam competir em igualdade de condições” (carta-compromisso de 23.07.02), Na verdade, a frase deveria receber um ponto final na primeira vírgula, já que a condicionalidade proclamada não tem nenhuma razão de ser: competição em igualdade de condições nunca existirá. Os países exibem assimetrias naturais ou criadas que se manifestam de forma recorrente e que sustentam justamente o comércio, sendo ilusório acreditar que elas serão eliminadas. Aliás, elas não podem ser eliminadas pois que constituem o que se chama de base estrutural das vantagens comparativas relativas, que é o fundamento do próprio ato de comerciar. O livre-comércio, de verdade, é sempre unilateral, nunca condicional e restrito ao princípio de reciprocidade. 4) Instituições de solução de controvérsias em face do arbítrio comercial Não contentes em despejar sua fúria contra o FMI e o Banco Mundial, acusandoos de serem sustentáculos do neoliberalismo – quando as instituições de Bretton Woods são, na verdade, instrumentos que corrigem imperfeições dos mercados –, os antiglobalizadores ingênuos também pretendem eliminar ou paralisar a OMC, vista como mais uma defensora das grandes multinacionais e da liberalização selvagem, o que constitui, obviamente, outra grande bobagem. Longe de fazer pressão em favor de 105

uma completa liberalização comercial – o que, aliás, seria um grande benefício para os países mais pobres – a organização de Genebra contribui, antes de mais nada, para administrar de modo relativamente imparcial as formas modernas de mercantilismo, que os países insistem em promover em lugar de aderir resolutamente aos princípios de Adam Smith. Na verdade, se a OMC não existisse, seria preciso inventá-la, na medida em que ela constitui uma das poucas defesas, por meio do sistema de solução de controvérsias, de que dispõem os países menos poderosos para lutar contra o arbítrio dos mais fortes. A oposição consistente dos antiglobalizadores contra as rodadas multilaterais de negociação comercial da OMC – como de resto contra a Alca e outros processos em curso de escala mais restrita – afastam as possibilidades de que países mais pobres possam se integrar mais rapidamente à economia mundial e daí extrair crescimento e riqueza. Desse ponto de vista, os antiglobalizadores são altamente irresponsáveis. 5) Crescimento e pobreza, ou o que a globalização pode fazer por eles A acusação, sempre frequente nos manifestos do movimento anti, de que a globalização reduz o crescimento nos países mais pobres e aprofunda neles a pobreza, não é apenas risível e desprovida de fundamentação empírica: ela é totalmente ridícula, em face dos exemplos mais conspícuos em sentido contrário. China e Índia, dois países pobres e dotados de instituições econômicas socialistas e dirigistas, foram os que mais cresceram quando, justamente, se inseriram no processo de globalização, explorando suas vantagens naturais (mão-de-obra barata) ou adquiridas (educação de qualidade, em certas categorias de trabalhadores, e facilidades logísticas e de comunicações). Nos dois, milhões de pessoas se alçaram de uma miséria ancestral e puderam desfrutar de uma primeira sensação de progresso social desde gerações imemoráveis. Na outra ponta, os dois países mais abertos ao processo de globalização, de fato os promotores históricos desse processo desde a era da primeira revolução industrial, o Reino Unido e os Estados Unidos, são também aqueles que apresentaram as maiores taxas de crescimento de todos os desenvolvidos durante a terceira onda da globalização, nos anos noventa, ostentando igualmente as menores taxas de desemprego entre os países da OCDE. Por acaso são também os mais globalizados financeiramente e os que mantêm o menor número de restrições aos investimentos ou em termos regulatórios. No que se refere aos investimentos diretos, justamente, observa-se uma virtual contradição entre, de um lado, a oposição retórica e o soberanismo vazio proclamado 106

pelos anti e, de outro, os ativos esforços de atração de capitais de risco que vêm sendo feitos pelos países em desenvolvimento, que se mostram indiferentes ao discurso contra as multinacionais dos primeiros. Pode parecer razoável proclamar-se a intenção de reservar “espaços nacionais” para políticas de desenvolvimento, mas a menos de se dispor de políticas setoriais definidas e concretas, o alerta pode parecer inócuo ou simples manifestação de prevenção contra o investidor estrangeiro, que ele vem em busca de objetivos muito objetivos: liberdade de ação e o maior lucro possível, nessa ordem. 6) Concentração da renda e desigualdades A concentração e a desigualdade na distribuição da renda podem ocorrer mesmo na ausência do processo de globalização, como prova o Brasil na era do protecionismo industrial e de fechamento comercial. A globalização, ao contrário, ao provocar uma maior taxa de crescimento da economia em países menos avançados, tende a favorecer o crescimento e, portanto, a criação de riquezas. A distribuição da renda adicional assim criada pode não ser a mais equitativa possível, mas isso depende de um conjunto de fatores políticos e sociais que ultrapassam a capacidade operacional da globalização. Esta questão, de toda forma, está ligada ao papel que o Estado desempenha no sistema econômico. Os antiglobalizadores costumam afirmar que não existe nenhuma experiência histórica que demonstre que o mercado, por si só, logre alcançar níveis satisfatórios de repartição de benefícios e muito menos justiça social, o que é no mínimo uma generalização indevida. Ainda que o Estado tenha sido importante ao administrar mecanismos tributários, compensatórios e de benefícios indiretos – escolas, hospitais e saneamento básico, por exemplo – em favor dos mais desfavorecidos, em praticamente todos os países, as evidências mais eloquentes em termos de crescimento da renda e de repartição eqüitativa das riquezas geradas no setor privado estão justamente naqueles países onde os mercados funcionaram de forma mais desimpedida e livre, não nos mais estatizados ou controlados pelo setor público. Privatizações podem tanto concentrar como desconcentrar a renda, dependendo da forma como são conduzidas, sem esquecer que uma das formas mais iníquas de concentração da renda em países pobres é aquela operada em favor de certas categorias de privilegiados estatais – funcionários da ativa ou pensionistas – que logram transferir para si uma parte substancial da riqueza social sob a forma de investimentos em empresas estatais ou pensões abusivas.

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7) Tecnologia proprietária e dependência tecnológica Da mesma forma como os capitais financeiros, patentes e direitos proprietários em geral têm o dom de despertar paixões exacerbadas nas hostes do movimento. Talvez seja porque aqui estão concentrados alguns dos símbolos considerados nefastos para os antiglobalizadores: grandes multinacionais lidando com segredos industriais, extração de lucros abusivos sobre determinadas categorias de produtos, a começar pelo remédios, enfim, monopólio tecnológico dos ricos e dependência dos mais pobres. As demandas, em conseqüência, vão da proibição de patentes em certas áreas (ligadas à vida e saúde), ao licenciamento compulsório de patentes devidamente registradas de remédios de larga utilização pública, passando pelo controle extensivo do setor pelo Estado. De fato, o regime de patentes consagra o monopólio do detentor dos direitos durante um certo tempo, que vem sendo paulatinamente aumentado (atualmente de 20 anos para patentes e bem mais para direitos do autor) e estendido a novas áreas, até aqui inéditas, do conhecimento e da engenhosidade humanas. Pode-se, efetivamente, constatar um certo exagero na proteção patentária, atualmente, mas como disse uma vez Churchill em relação à democracia, trata-se do pior regime, à exceção de todos os demais. Sem a promessa de ganhos trazidos pelo regime “monopólico” das patentes, seria difícil assegurar os investimentos necessários à introdução de novos remédios nos mercados. A existência de um regime abrangente de proteção tornou-se, assim, uma condição do próprio desenvolvimento tecnológico nessas áreas de ponta, razão pela qual países dotados de “baixa cultura patentária” têm sido notoriamente deficientes no registro e na exploração de inovações, a despeito mesmo de seus progressos científicos, como parece ser o caso do Brasil. A dependência tecnológica é um fato, mas ela não será sequer arranhada se os países em desenvolvimento seguirem os conselhos dos antiglobalizadores na condução de suas políticas tecnológicas e de propriedade intelectual. Ao contrário, é provável que a dependência se aprofunde caso suas “prescrições” sejam seguidas, uma vez que elas não correspondem ao itinerário real dos países capitalistas desenvolvidos, e sim são meras teses agitadas no mundo abstrato em que vivem os antiglobalizadores. 8) Meio ambiente e mercado: um instável equilíbrio A degradação ambiental e a diminuição da diversidade biológica são fatos que acompanham a civilização humana desde tempos imemoriais: as sociedades devastaram a natureza e substituíram-na por paisagens humanas, assim como domesticaram animais 108

e agora tentam interferir no próprio ato de criação de novos seres vivos, desta vez ao nível molecular, quando já o vinham fazendo há milhares de anos ao nível da seleção das espécies. Acreditar que tais fenômenos se reduzem a um problema de mercado ou que está ligado exclusivamente ao modo de produção capitalista é de um reducionismo atroz e, no entanto, é isso que vêm fazendo os antiglobalizadores ecológicos. O que eles pedem, em essência, é o afastamento dos critérios de mercado das questões vinculadas ao meio ambiente – na OMC, por exemplo –, quando os sinais de mercado são os únicos capazes de, ao precificarem os custos relativos de utilização e de conservação, estabelecer um justo meio termo, por certo sempre instável, entre a preservação ambiental e o uso sensato dos recursos naturais. A experiência das últimas décadas, em especial nos ex-países socialistas, indica que a ausência de sinais de mercado e a presença avassaladora do Estado na regulação do uso de recursos comuns pode andar de par com os piores atentados ao meio ambiente de que se tem notícia. Parece claro que a livre disposição desses recursos também pode conduzir a abusos por parte das empresas privadas – sempre tentadas a atuarem segundo um comportamento free-rider –, mas justamente a combinação de mecanismos regulatórios com adequados estímulos de mercado parece mais condizente com as necessidades sociais do que um preservacionismo radical que parece impedir, atualmente, os povos dos países mais pobres de fazerem uso adequado de seus ainda vastos recursos naturais. Como também indicado pela experiência histórica, as piores degradações ambientais tendem a ocorrer nas regiões mais pobres dos países em desenvolvimento. Desse ponto de vista, as posições assumidas pelos antiglobalizadores tendem, na prática, a perpetuar miséria e degradação ambiental nesses países. 4. Diagnóstico de duas enfermidades precoces: autismo e esquizofrenia Ao percorrer os inúmeros escritos – caóticos, desiguais, geralmente carentes de método e ainda menos apoiados em estudos empíricos – dos antiglobalizadores, a sensação que se retira é a de uma estéril e inócua anarquia mental. Aliás, uma única conclusão parece possível a partir da leitura (penosa) dos textos dos anti: o que os anima, na verdade, não é a criação de um “novo mundo”, ou a indicação de alternativas reais e credíveis aos problemas deste velho mundo em que vivemos, por certo desigual e iníquo, sob muitos aspectos, mas ainda assim infinitamente melhor do que aquele no qual viveram nossos avós e bisavós, e assim sucessivamente até tempos recuados, e bem mais sombrios, da história da humanidade. O que os mobiliza, de fato, são duas tomadas 109

de posição que cabe aqui considerar: um anti-capitalismo visceral e, o que é mais grave, sua derivação sociológica, um anti-mercadismo filosófico. Não tenho nenhum tipo de mandato para colocar-me na defesa do capitalismo, um sistema que me parece dispensar defensores pagos ou voluntários, já que vem, ao longo dos séculos, resistindo razoavelmente bem aos assaltos continuados de uma horda de bárbaros anticapitalistas, desde os mercantilistas adeptos das reservas de mercado, aos monopolistas das companhias reais de comércio, a socialistas utópicos e soi-disant “científicos”, a coletivistas fascistas e planejadores comunistas, a estatistas disfarçados e outros dispensadores do “bem-estar social”. Pesa em seu favor o fato de não ter sido inventado por nenhum cérebro genial, à diferença de certas soluções “inovadoras” para minorar as misérias e sofrimentos humanos, emergindo de forma imperfeita e sempre incompleta de um processo impessoal, não administrado centralmente, não controlado e não controlável por nenhuma força social particular, mas resultando da combinação de milhares de ações e reações ao longo de uma cadeia de interações sociais que deita raízes em várias correntes constitutivas da civilização ocidental (pois é um fato histórico, não absoluto ou excludente, que o capitalismo emergiu primeiro nas formações sociais criadas a partir do substrato civilizatório comum do Ocidente medieval). Tal como ele existe, o capitalismo é certamente imperfeito e desigual, concentrador e indiferente às especificidades humanas, mas é também o sistema mais dinâmico de criação de riqueza e de disseminação de progresso técnico que já existiu na face da Terra. Não é eterno, certamente, mas vai evoluir gradualmente para formas diferentes – talvez não “superiores”, num sentido moral – de organização social da produção, sem que se possa predizer com alguma certeza como e em que condições ele vai continuar a moldar as sociedades modernas como o fez nos últimos cinco ou oito séculos. É a esse sistema de remuneração pelo mérito, de prêmio pela astúcia individual, de retorno pela dedicação ao trabalho honesto, mas também de acumulação crua (e não raro violenta) de capitais, de genial inventividade e de brutal concentração de riquezas, que os antiglobalizadores pretendem substituir por algum sistema de organização social da produção e de distribuição de renda ainda indefinido, mas idealmente mais justo e menos desigual, feito de solidariedade e de respeito aos direitos humanos, assim como ao meio ambiente e à diversidade natural dos povos. Nada mais singelo e mais irrealista, pois que eles não conseguem sequer entender a lógica de funcionamento do capitalismo, 110

quanto mais fazê-lo ser deslocado por um outro sistema inerentemente mais justo e mais eficiente (por fiat natural?). A principal dificuldade para esse tipo de empreendimento benemérito – e aqui passo à segunda característica dos antiglobalizadores – é que no meio do caminho tinha um mercado. Ainda que eles não queiram ou não possam admitir tal realidade, o fato é que o mercado é muito maior do que o capitalismo, pois que perpassa todas as sociedades, em todas as épocas e lugares. Não há sociedade sem mercados, salvo talvez em povos muito primitivos, mas estes também conhecem formas de divisão social (e sexual) do trabalho, que já são, pelo simples fato de existirem, um embrião dos mercados potenciais. A economia de mercado sobreviverá ao capitalismo, quando este já não mais fizer parte do estoque de modos de produção á disposição dos “engenheiros sociais”, pela simples razão que ela funciona como uma espécie de sistema circulatório, sustentando o conjunto de funções numa sociedade complexa. Que o mercado seja contraditório, incerto, caótico e inerentemente injusto, como parecia interpretar um espírito idealista como Marx, não implica em que possamos nos desvencilhar dele facilmente (ou impunemente). Todas as tentativas realizadas até aqui, a mais notória durante setenta anos, entre as planícies europeias e as estepes asiáticas, redundaram em notórios fracassos, quando não em tragédias humanas incomensuráveis. A recusa filosófica, digamos idealista, do principio do mercado pela maior parte dos antiglobalizadores, sempre prontos a acusar a “mercantilização da vida” em qualquer relação envolvendo intercâmbio de renda ou ativos patrimoniais, é algo preocupante e, eu diria, sintomático de uma doença bem mais grave, que em psiquiatria recebe o nome de “esquizofrenia”. A esquizofrenia, segundo os dicionários médicos, é uma psicose caracterizada pela desagregação da personalidade e por uma perda de contato vital com a realidade. Antigamente conhecida por “demência precoce”, ela afeta mais particularmente os adolescentes ou adultos até os 40 anos. Segundo o psiquiatra suíço que a estudou, Eugen Bleuler (1857-1939), essa doença apresenta-se como uma dissociação mental, ou “discordância”, acompanhada por uma invasão caótica do imaginário, podendo se traduzir por distúrbios afetivos, intelectuais e psicomotores, sentimentos contraditórios em relação ao mesmo objeto (amor e ódio, por exemplo), ou então por incapacidade de agir, por autismo, delírio e até recusa de falar. O autismo, por sua vez, é uma ruptura entre a atividade mental e o mundo exterior e uma introversão mais ou menos total no mundo do imaginário e dos fantasmas (Larousse Médical, 1995). 111

Eu estaria sendo muito cruel e exagerado se acusasse os antiglobalizadores dessas duas enfermidades: esquizofrenia e autismo? Os sintomas e as reações, em todo caso, são muito parecidos. Como os esquizofrênicos, eles recusam ver o mundo como ele é, preferindo descrevê-lo em tintas sombrias e catastróficas, cujos componentes têm um único problema: o de não corresponderem à realidade dos fatos. Como os autistas, eles se reúnem entre eles e recusam dialogar com o exterior, ou com quem não aceitar sua Carta de “Princípios”, tão confusa formalmente quanto desconexa substantivamente. Acredito, pessoalmente, que – à parte um “núcleo duro” de anticapitalistas profissionais, isto é, aqueles sobreviventes do grande desastre do movimento comunista do século XX e que ainda continuam a se perpetuar como uma seita religiosa, através de velhos ritos litúrgicos que só desaparecerão com o passamento do último representante da espécie – a maior parte dos integrantes do movimento antiglobalizador é composta de jovens idealistas que desejam sinceramente a correção da piores desigualdades que ainda dividem a humanidade em um punhado de países ricos e uma imensa periferia de pobres e miseráveis. Eles são devotados à causa e acreditam, por indução daqueles profissionais acima referidos ou por leituras apressadas ou enviesadas, que o velho capitalismo, o neoliberalismo (que muitos confundem com o chamado “Consenso de Washington”) e o sistema de mercado são efetivamente responsáveis pelas misérias do mundo, tal como o vemos de nossas janelas, nas ruas do Terceiro Mundo ou que aprendemos a conhecer em informações disseminadas pela internet. Esse mundo real é realmente inaceitável e algo deve ser feito para paliar suas carências mais gritantes e suas iniquidades mais brutais. Apenas considero que essas misérias, injustiças e iniquidades não se devem, em absoluto, à globalização: elas preexistem, inclusive, ao capitalismo e podem talvez continuar a existir se, por acaso, em uma bela manhã de sol, o mundo decidisse deixar de ser “capitalista” para ser qualquer outra coisa, proposta ou não pelos antiglobalizadores. Os anti se enganam singularmente de inimigo, provavelmente por falta de leituras honestas, de um estudo mais atento da realidade histórica, de um conhecimento mínimo sobre como funcionam os sistemas econômicos e, também, porque se deixam levar por um discurso simplista e simplificador, por parte daqueles já mencionados acima. Não tenho nenhuma restrição mental em acusar os “defensores do culto”, tanto porque eu também já fui um deles, embora de uma vertente não religiosa, muito dada a leituras de todo tipo, onde Marx era combinado a Raymond Aron, Engels a Fernand 112

Braudel e Lênin a Tocqueville. Derivei minha reavaliação dos capitalismos realmente existentes por meio de um conhecimento não apenas teórico, mas sobretudo prático de todos os socialismos realmente existentes (e suas pequenas e grandes tragédias sociais). Aprendi, em especial, a reconsiderar minha análise do sistema de mercado – tal como absorvida precocemente n’O Capital, de Marx – pelo estudo das tribos mais primitivas do planeta, numa antropologia comparada das sociedades que em muito contribuiu para relativizar as críticas mais candentes que os modernos socialistas faziam às iniquidades percebidas e reais desse sistema na moderna economia capitalista. Quero crer, com base nesses estudos e na reavaliação pessoal conduzida ao longo dos anos, que os assim chamados “marxistas” contemporâneos – e que ainda continuam a perpetuar ritos e instrumentos de um culto tão ultrapassado quanto inócuo, do ponto de vista da moderna sociedade globalizada – não merecem na verdade esse epíteto, e sim o de reacionários, pois querem fazer girar para trás a roda da história, segundo a fórmula consagrada de Marx. Aliás, eu me considero marxista e nem por isso deixo de ser “globalizador”, como aliás Marx o seria, se por acaso vivesse atualmente. Por isso acredito, com base em todas as considerações que efetuei neste ensaio, que não só os marxistas, mas também os socialistas de todas as espécies, os humanistas, os ecologistas, as pessoas de esquerda e os progressistas em geral deveriam adotar, sincera e devotamente, uma postura em favor da globalização – atualmente inseparável, mas não para sempre, do capitalismo –, da qual um balanço honesto saberia nela reconhecer o único sistema progressista realmente existente. Por progressista eu entendo, está claro, um sistema capaz de incorporar, progressivamente, contingentes sempre crescentes de pessoas em patamares mais elevados de produtividade, de renda e de bem estar social, não um sistema que atenda a todas as necessidades culturais, educacionais ou de justiça social de todas as sociedades por ele tocadas. Isto a globalização é capaz de fazer, mas ela não poderá, obviamente, dispensar o igualitarismo social com que sonham alguns de seus arautos ou de que a acusam vários, ou maior parte, de seus críticos. Quero crer, também, que a maior parte dos participantes do movimento antiglobalizador seja composta de indivíduos idealistas, que se esforçam sinceramente por encontrar respostas aos problemas do mundo atual, por definir, como proclamado no seu 4º princípio, as chamadas propostas alternativas para uma “nova etapa da história do mundo, uma globalização solidária que respeite os direitos humanos universais, bem como os de tod@s @s cidadãos e cidadãs em todas as nações e o meio ambiente, 113

apoiada em sistemas e instituições internacionais democráticos a serviço da justiça social, da igualdade e da soberania dos povos.” Concordo basicamente com esse objetivo geral, idealista, contentando-me talvez, tão simplesmente, em retirar o adjetivo “solidária” do conceito de globalização, não por discordar da intenção, mas por considerá-la inócua e absolutamente irrelevante do ponto de vista do processo histórico. A globalização seguirá sua marcha impessoal, indiferente às vontades e intenções daqueles que pretenderiam atribuir-lhe qualquer caracterização particular ou específica. Atores sociais e líderes políticos intentarão, obviamente, moldar o processo de globalização, tentando adaptá-lo às suas necessidades nacionais, às suas concepções filosóficas ou a seus projetos políticos. Todas essas ações poderão, ou não, desviar, ainda que de forma moderada, o traçado impessoal e aparentemente indomável do processo de globalização, mas não conseguirão determinar seu curso básico, que é o da unificação progressiva do planeta numa sociedade singular, não totalmente integrada ou dotada de padrões uniformes (como pretendem os defensores do nacionalismo cultural), mas tampouco fechada em arquipélagos nacionais como ocorreu até os nossos dias. As ameaças de eliminação das diferenças culturais entre os povos, devido à importação de bens e serviços de “cultura de massas” do atual centro imperial, são carentes de maior substância efetiva e não deveriam ser consideradas por todos aqueles que trabalham com a identidade nacional desses povos, como a própria experiência brasileira já o demonstrou amplamente. Uma leitura realista das possibilidades e limites da globalização nos permitiria visualizar, sem paixões ou esperanças irrazoáveis, o potencial de realizações que esse processo contraditório e indomável contém no sentido de uma transformação positiva, e progressista, da maior parte das formações sociais integradas, de uma ou outra forma, ao grande caudal da economia mundial. Sempre haverá aqueles que preferirão combater moinhos de vento, em lugar de se lançar, modesta e pragmaticamente, nas pequenas e grandes tarefas vinculadas necessariamente ao processo de globalização: a educação das massas, a qualificação técnica e profissional dos trabalhadores, a melhoria contínua dos padrões culturais e científicos da população, de maneira a prepará-la para usufruir plenamente dos benefícios desse processo irreversível, bem como para fazê-la participar com seus próprios instrumentos dessa grande dinâmica multiforme. Os antiglobalizadores da atualidade me parecem ter adotado, por enquanto, a atitude do avestruz, o que é próprio daqueles que se sentem fragilizados frente a uma 114

realidade que não dominam e que parece dominá-los por sua vez. As manifestações ruidosas que conduzem nos locais e eventos típicos da atual globalização constituem um típico combate de retaguarda, e suas teses estão condenadas a se esvair na vacuidade das idéias mal pensadas, mal conduzidas e mal direcionadas. É de toda forma reconfortante saber, de acordo com Marx, que a humanidade nunca deixa de oferecer soluções aos problemas que ela mesma se coloca. Daí a razão de meu otimismo. 1297. “Contra a antiglobalização: Contradições, insuficiências e impasses do movimento antiglobalizador”, Brasília, 5 jul. 2004, 23 p. Ensaio, de caráter contestador, das principais idéias e princípios do movimento antiglobalizador, discutindo seus fundamentos, demonstrando suas contradições teóricas e insuficiências intrínsecas e expondo sua falta de racionalidade econômica e a ausência de fundamentação histórica. Publicado dividido em sete partes no Colunas de Relnet (n. 10, jul./dez. 2004) sob os títulos respectivos de: 1. Contra a antiglobalização; 2. Contradições, insuficiências e impasses do movimento antiglobalizador; 3. A antiglobalização tem idéias concretas sobre temas concretos?; 4. A antiglobalização e o livre-comércio: angústia existencial; 5. Concentração da renda e desigualdades: a antiglobalização tem razão?; 6. No meio do caminho tinha um mercado: tropeços dos antiglobalizadores; e 7. Tática do avestruz: a antiglobalização à procura do seu mundo. Republicado de forma parcial e sucessiva na revista eletrônica Meridiano 47: (a) “Contradições, insuficiências e impasses do movimento antiglobalizador” (n. 49, jul. 2004, p. 9-11; link: http://www.mundorama.info/Mundorama/Meridiano_47_-_1100_files/Meridiano_49.pdf); (b) “A antiglobalização tem idéias concretas sobre temas concretos?” (n. 50-51, set/out. 2004, p. 15-17; link: http://www.mundorama.info/Mundorama/Meridiano_47_-_1100_files/Meridiano_50_51.pdf); (c) “Contra a antiglobalização” (n. 54, jan. 2005, p. 10-12; link: http://www.mundorama.info/Mundorama/Meridiano_47_-_1100_files/Meridiano_54.pdf); (d) “A antiglobalização e o livre-comércio: angústia existencial” (n. 55, fev. 2005, p. 6-7; link: http://www.mundorama.info/Mundorama/Meridiano_47_-_1100_files/Meridiano_55.pdf); (e) “Concentração da renda e desigualdades: a antiglobalização tem razão?” (n. 56, mar. 2005, p. 9-10; link: http://boletim.meridiano47.googlepages.com/Meridiano56.pdf); (f) “No meio do caminho tinha um mercado: tropeços dos antiglobalizadores” (n. 57, abr. 2005, p. 8-9; link: http://www.mundorama.info/Mundorama/Meridiano_47_-_1100_files/Meridiano_57.pdf); (g) “Tática do avestruz: a antiglobalização à procura do seu mundo” (n. 58, mai. 2005, p. 13-15; link: http://www.mundorama.info/Mundorama/Meridiano_47_-_1100_files/Meridiano_58.pdf). Ensaio incorporado ao livro: Paralelos com o Meridiano 47: Ensaios Longitudinais e de Ampla Latitude (Hartford, 2015). Relação de Publicados n: 487, 495, ??, 506, 518, 535, 541, 544, 550 e 560.

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11. Perguntas impertinentes a um amigo antiglobalizador

Tenho mantido, desde alguns anos, um diálogo absolutamente unilateral, isto é, sem retorno do outro lado, com o movimento antiglobalizador, o que não me impede de conservar bons amigos nessa caótica corrente, que eu me arriscaria em catalogar, em seu conjunto, como razoavelmente autista e passavelmente esquizofrênica. Desde já me desculpo pelas qualificações, que podem parecer desrespeitosas, mas é que não consigo classificar de outro modo um movimento, certamente não homogêneo, que não ostenta argumentos a favor de algo definido – contrariando, aliás, seu slogan preferido, segundo o qual “um outro mundo é possível” –, mas que basicamente se posiciona “contra tudo isso que está aí”, ou seja, contra a globalização capitalista, contra o neoliberalismo, o consenso de Washington, sem no entanto se dignar a indicar, concretamente, quais seriam as vias alternativas. Concedo que o movimento é jovem e ainda não definiu seu perfil exato – o seu nicho na globalização, como diriam os marquetólogos – mas dentro em pouco ele estará completando dez aninhos, e conviria colocar as idéias em ordem. Como eu vejo seus integrantes preparando-se ativamente para o próximo encontro latino-americano desse movimento, a realizar-se em Caracas no final de janeiro de 2006, resolvi sair a campo desta vez, colocando alguns elementos de reflexão que mereceriam algum tipo de discussão nesse evento. Como também sou contra, e nisso estou de acordo com eles, o chamado “pensamento único”, creio que estou no direito de cobrar desse movimento algumas precisões sobre pontos fundamentais de seu “ideário”, se é possível conceituar assim o conjunto bastante confuso de “crenças” e de afirmações principistas que o movimento parece ostentar. Uma única exigência poderia ser feita em termos de “bases para o diálogo”: um mínimo de lógica formal nos argumentos e alguma sustentação na realidade. A academia, à qual pertence a imensa maioria dos antiglobalizadores, herda supostamente seus métodos de trabalho da antiga tradição socrática do contraditório e da procura da verdade, o que pode e deve ser buscado no plano da lógica, mas também, e sobretudo, segundo o velho legado baconiano da comprovação empírica, da exposição honesta dos fatos e das conclusões e inferências que podem resultar da busca incessante de explicações razoáveis para as evidências de que dispomos para tal ou qual problema concreto da natureza ou da sociedade. É o que tenho procurado honestamente fazer em 116

todos os meus textos sobre a globalização (vários dos quais disponíveis no site www.pralmeida.org). É o que me proponho fazer mais adiante, mas quero dar antes ao movimento antiglobalizador o privilégio de primeiro apresentar suas propostas concretas sobre o “outro mundo possível” que tanto pregam. Afinal de contas, ninguém reúne tantas pessoas num único lugar, desta vez aparentemente com a presença de quatro ou cinco presidentes da região, apenas para ficar repetindo slogans ou pelo simples prazer de se encontrar. Deve haver matéria mais substantiva a ser discutida, algo concreto, du pain sur la planche, como diriam os colegas franceses da Attac, o movimento que primeiro deu início a essa onda antiglobalizadora, em meados dos anos 1990. A impressão que tenho, entretanto, é que esses irredutíveis gauleses estão ficando “à court d’arguments”, como diriam os próprios franceses, ou seja, faltam a eles e a seus parceiros latino-americanos argumentos concretos para sustentar o debate em torno das principais questões da globalização contemporânea, e com isso eles pretendem dar por encerrada a discussão. Como, de minha parte, nunca dou por encerrada qualquer discussão – pois sempre considero que os argumentos devam ser todos expostos, para que do debate possa surgir algum esclarecimento mais completo em torno do problema que nos ocupa –, gostaria de continuar esse exercício em torno das supostas idéias liberais, de um lado, e antiglobalizadoras, de outro, propondo algumas perguntas a meus amigos do movimento antiglobalizador, que eles estão gentilmente convidados a responder. Tenho plena consciência de que meus esforços são absolutamente unilaterais, pois que nunca, até o presente momento, obtive resposta ou contestação a meus muitos escritos “antiglobalizadores” – muitos deles absolutamente provocadores, não hesito em confessar –, mas pretendo ainda assim continuar no terreno de luta, armado unicamente de meus instrumentos habituais: os argumentos como elementos essenciais do discurso, a lógica como método irrecusável e a sustentação empírica e as evidências históricas em apoio fático às minhas afirmações e propostas. Voilà, tendo feito esses prolegômenos necessários, vamos às perguntas: 1. Quais são as evidências materiais, ou seja, provas estatísticas, dados quantificáveis, observáveis e verificáveis, de que a globalização, como pretendem os anti, aprofunda a miséria, cria mais desemprego e acarreta mais desigualdades no mundo? Isso vale tanto para dentro dos países, como entre os países, esclareço.

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2. Se as políticas liberais só conseguem produzir recessão e desemprego, privilegiando unicamente os setores financeiros – o capital financeiro monopolista internacional, como se dizia antigamente –, por que, exatamente, os países que mais crescem e que ostentam as menores taxas de desemprego são, justamente, esses ditos “neoliberais”? 3. Se o “consenso de Washington” fracassou redondamente na América Latina, por que os países que mais são contrários às suas regras não são, longe disso, exemplos de crescimento, de dinamismo e de inserção competitiva na economia internacional? E por que, a contrário senso, os países que mais se identificaram com essas medidas “neoliberais”, a começar pelo Chile, conseguem ostentar taxas sustentadas de crescimento, ao mesmo tempo em que fazem progressos no caminho da redução das desigualdades distributivas e da qualificação competitiva de suas economias? 4. Se os processos de abertura econômica e de liberalização comercial significam, ipso facto, sucateamento da indústria e desmantelamento de setores inteiros da economia nacional, como explicar as evidências de que países que adotaram essas medidas de modo unilateral, como o Brasil do início dos anos 1990, por exemplo, registraram, nesses anos justamente, as maiores taxas de crescimento da produtividade, além de ganhos significativos e comprovados de competitividade internacional? 5. Se as regras liberais impõem, como acusam os antiglobalizadores, total liberdade aos movimentos de capitais e a plena abertura cambial, o que facilitaria as atividades especulativas nos mercados de divisas, como explicar o fato que de que a Argentina, no auge do seu “fundamentalismo liberal”, impunha a rigidez cambial, em direção oposta aos regimes cambiais praticados pela maior parte dos países e contrariamente ao que sempre prega o FMI em caso de correção de desequilíbrios de balanço de pagamentos? 6. Se a flexibilização neoliberal do mercado de trabalho produz desemprego e perda de direitos consagrados, resultando em precarização ampliada das relações de trabalho e terceirização, por que os países que mais adotaram essa postura são os que exibem as menores taxas de desemprego e o maior crescimento da produtividade do trabalho? 7. Se o livre-comércio internacional acarreta desigualdades crescentes e dependência de empresas multinacionais, o que compromete políticas públicas, macroeconômicas e setoriais, por que os países, ou melhor, as economias que mais se inseriram nos fluxos internacionais de intercâmbio comercial são as que melhoraram de padrão de vida, viram o surgimento de suas próprias multinacionais e diminuíram, justamente, sua dependência de alguns poucos mercados de matérias-primas ou manufaturados leves, que são dominados por alguns poucos oligopolistas mundiais? 8. Se os direitos de propriedade intelectual são inerentemente injustos, transferindo renda dos países mais pobres para os mais ricos, condenando os primeiros a uma “eterna dependência tecnológica” dos segundos, por que países como China e Índia, que são ainda relativamente pobres para os padrões internacionais, estão aderindo de forma crescente a normas mais elevadas de proteção patentária? 9. Se os investimentos estrangeiros são criadores de maior dependência econômica e de remessa ampliada de divisas e de royalties para o exterior, por que tantos países em desenvolvimento vêm aumentando o volume e a qualidade da proteção dada ao IDE, 118

assinando acordos de garantia de investimentos e assegurando livre transferência dos resultados produzidos? 10. Se já existem evidências concretas de que as políticas agrícolas, subvencionistas e protecionistas, de países desenvolvidos, como os EUA, a União Europeia e o Japão, entre outros, são absolutamente condenáveis, em primeiro lugar em função de sua inerente irracionalidade econômica, em segundo e principal lugar em virtude do enorme prejuízo trazido aos países mais pobres, por que os movimentos antiglobalizadores, que dizem atuar em prol do desenvolvimento e da inserção dos mais pobres e do bem estar de suas populações, não são mais incisivos na oposição a essas políticas? 11. Se os países em desenvolvimento são, por definição e historicamente, importadores líquidos de capitais dos países mais ricos, por que os movimentos antiglobalizadores insistem tanto na adoção de uma taxação internacional sobre os movimentos de capitais, sabendo-se que esse novo imposto irá necessariamente aumentar o custo dos empréstimos e de captação de recursos financeiros nos mercados livres? 12. Finalmente, se mercados livres já provaram, ao longo da história, sua funcionalidade absoluta do ponto de vista da modernização tecnológica, dos ganhos de oportunidade, da distribuição de renda via especialização produtiva e outros benefícios indiretos da livre circulação de fatores, por que os antiglobalizadores, e com eles o contingente bem maior de protecionistas de todos os tipos, insistem tanto na administração política dos mercados internacionais, como se os governos soubessem melhor do que agentes econômicos ou do que os indivíduos consumidores o que é melhor para o bem estar dos cidadãos dos mais diversos países? Voilà: deixo aqui algumas perguntas para as quais eu apreciaria muitíssimo dispor de respostas pelo menos tentativas por parte daqueles que se identificam, de perto ou de longe, com o movimento antiglobalizador. Elas podem também servir de sinalização para o próximo encontro dos anti, a ser realizado neste final do mês de janeiro de 2006. Respostas eventuais para a minha caixa postal, por favor...

1530. “Perguntas impertinentes a colegas que me acusam de ser ‘liberal fundamentalista’”, Brasília, 12 janeiro 2006, 4 p. Perguntas incômodas aos que defendem as posições do movimento antiglobalizador. Feita versão diferente, sob o título “Perguntas impertinentes a um amigo antiglobalizador”, para publicação no boletim Meridiano 47 (n 65, dezembro 2005, p. 2-4; link: http://www.mundorama.info/Mundorama/Meridiano_47_-_1100_files/Meridiano_65.pdf). Ensaio incorporado ao livro: Paralelos com o Meridiano 47: Ensaios Longitudinais e de Ampla Latitude (Hartford, 2015). Relação de Publicados n. 666.

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12. Fórum Social Mundial: nove objetivos gerais e alguns grandes equívocos Os militantes do Fórum Social Mundial já começaram a preparar o próximo conclave anual do movimento. Esse encontro está marcado para a capital do Quênia, Nairóbi, nos dias 21 a 24 de janeiro de 2007. As organizações participantes do FSM – nem todas as que gostariam de ser podem sê-lo, pois todas precisam concordar com a plataforma antiglobalizadora da qual elas se orgulham, o que significa que não se admitem discordâncias e desvios do “pensamento único” que defendem – elaboraram, em 2006, um conjunto de objetivos gerais que expressam, presumivelmente, a visão do mundo de seus militantes, quando não sua filosofia de vida. Pretendo, no presente texto, transcrever esses nove objetivos gerais, tais como expressos no site do FSM, e tecer, em seguida, comentários pessoais sobre cada um deles, agregando a cada vez argumentos de natureza conceitual e histórica sobre o que me parece correto e o que considero serem equívocos dos “ideólogos” desse movimento (“ideólogos”, aqui, no bom sentido da palavra, isto é, como produtores de idéias). Façoo num puro espírito de debate intelectual, que geralmente ocorre de modo unilateral, pois raramente tenho encontrado antiglobalizadores que aceitem debater suas “idéias”. Não importa. Vejamos simplesmente o que eles têm a dizer. Cito, do site e de mensagem recebida em 2 de janeiro de 2007: “Veja a seguir a lista completa dos nove objetivos gerais, que foram definidos a partir de consulta realizada entre junho e agosto de 2006 sobre ações, campanhas e lutas em que estão envolvidas as organizações participantes do FSM: 1. Pela construção de um mundo de paz, justiça, ética e respeito pelas espiritualidades diversas; 2. Pela libertação do mundo do domínio das multinacionais e do capital financeiro; 3. Pelo acesso universal e sustentável aos bens comuns da humanidade e da natureza; 4. Pela democratização do conhecimento e da informação; 5. Pela dignidade, diversidade, garantia da igualdade de gênero e eliminação de todas as formas de discriminação; 6. Pela garantia dos direitos econômicos, sociais, humanos e culturais, especialmente os direitos à alimentação, saúde, educação, habitação, emprego e trabalho digno; 7. Pela construção de uma ordem mundial baseada na soberania, na autodeterminação e nos direitos dos povos; 8. Pela construção de uma economia centrada nos povos e na sustentabilidade; 9. Pela construção de estruturas políticas realmente democráticas e instituições com a participação da população nas decisões e controle dos negócios e recursos públicos.” Fonte: Reunião do Conselho Internacional do FSM, em Parma, Itália, 10-12 de outubro de 2006; link: http://www.forumsocialmundial.org.br/main.php?id_menu=7&cd_language=1. 120

Comentários sobre os objetivos do FSM: Meus comentários serão puramente de natureza sociológica ou econômica, uma vez que a maior parte dos objetivos dos integrantes do FSM tem a ver com a organização social, política e econômica no plano mundial e com as formas de serem encaminhados alguns dos problemas com que se debate a humanidade, em especial a pobreza, a desigualdade, os desequilíbrios ambientais, sociais e de gênero, com seu cortejo de injustiças a serem remediadas. Acredito que a maior parte dos integrantes do FSM seja formada por jovens idealistas, efetivamente preocupados com os problemas que eles dizem pretender combater, embora uma parte significativa dos que poderiam ser identificados como dirigentes, os seus “ideólogos” – aqui no sentido marxista da palavra –, ostente uma nítida postura anticapitalista e antimercado que não pode ser negligenciada. 1. Pela construção de um mundo de paz, justiça, ética e respeito pelas espiritualidades diversas; Irreprocháveis e irretocáveis os três primeiros objetivos, embora o último, o de serem respeitadas as “espiritualidades diversas”, se parece muito com o chamado “relativismo cultural”, um conceito que passou a infestar as universidades ocidentais e as sociedades cristãs no período recente. Ou seja, em nome do respeito ao direito dos povos serem como eles são, pode-se acabar sendo conivente com os piores atentados à dignidade humana que se possa conceber. Refiro-me, concretamente, ao tratamento da mulher e das jovens adolescentes em determinadas sociedades africanas e asiáticas, nas quais não apenas se pratica a ablação do clitóris como se costuma entregá-las compulsoriamente, segundo conveniências familiares, a homens bem mais velhos, em casamentos arranjados (em alguns casos quando elas ainda nem se tornaram adolescentes). Sem mencionar a discriminação educacional e profissional, de modo geral, que elimina as mulheres de uma série de atividades produtivas nessas sociedades, caberia lembrar que o que distingue o progresso humano – ou civilizatório – é justamente o tratamento dado à mulher. Ora, falar em relativismo cultural representa, em determinadas circunstâncias, preservar as piores formas de opressão e de violação dos direitos humanos, culturais e até religiosos (uma vez que essas mesmas sociedades convivem com formas condenáveis de intolerância religiosa), sem que se possa avançar, por exemplo, a causa da universalidade e da indivisibilidade desses mesmos direitos humanos (individuais ou 121

coletivos). De resto, o respeito às “espiritualidades diversas” é bem mais praticado nas sociedades ocidentais do que nessas sociedades implicadas nas formas mencionadas de discriminação, sem que se levante, contra elas, o mesmo princípio do “relativismo cultural” (uma vez que o que as caracteriza, justamente, é um absolutismo a toda prova na afirmação de suas particularidades espirituais e culturais). Em resumo, a defesa da ética pode não combinar com o respeito de “espiritualidades” que ofendem a dignidade humana. 2. Pela libertação do mundo do domínio das multinacionais e do capital financeiro; Incompreensível, impraticável ou simplesmente quimérico, para não dizer totalmente irracional, na sua forma e na substância. O modo de produção capitalista, que se disseminou em todo o mundo nos últimos cinco séculos, aproximadamente, está justamente baseado numa forma de organização social da produção que tem nas empresas – eventualmente convertidas em grandes conglomerados – o seu principal vetor de inovação produtiva, de distribuição de produtos e de propagação de hábitos de consumo que derivam diretamente da atividade dessas instituições de mercado. Ainda que as formas individuais de criação de conhecimento e de tecnologia possam representar uma parte significativa do engenho humano aplicado produtivamente, ainda que as empresas cooperativas – que certamente são defendidas pelos militantes do FSM – possam ser um tipo de empreendimento socialmente recomendável, nenhuma pessoa sã de espírito negaria o fato de que, hoje em dia, parte significativa das inovações e dos sistemas produtivos se dão num contexto dominado por grandes empresas, as multinacionais aparentemente vilipendiadas pelos militantes do FSM. Não considerando o fato de que eles também pertencem, atualmente, a um grande empreendimento multinacional – que, de certa forma, também apresenta o seu lado financeiro (do contrário eles não poderiam realizar seus vistosos encontros em capitais “alternativas”) –, esses militantes parecem viver num universo paralelo, que não tem nada a ver com o mundo real. Para esse tipo de objetivo ser cumprido, eu só teria uma única recomendação a fazer: os militantes do FSM precisariam parar, imediatamente, de usar celulares, de se comunicar por internet, de se locomover pelos meios habituais de transporte, de ir ao cinema, de ver televisão, enfim, parar de fazer a maior parte das coisas que eles fazem no seu dia-a-dia, uma vez que, inevitavelmente, eles estão “patrocinando” uma ou outra multinacional de algum setor qualquer de atividade. Ou seja, eles deveriam se retirar do mundo globalizado – no qual eles 122

parecem se inserir tão bem – e se refugiar como eremitas nas montanhas do Afeganistão, onde a globalização aparentemente ainda não penetrou (nem, aliás, o tal de “capital financeiro”). Como esse objetivo deve ter sido inculcado nos jovens idealistas que frequentam os foros da antiglobalização por velhos militantes da causa socialista, deve-se alertar esses jovens que eles estão embarcando numa causa perdida antecipadamente. O mundo não será “libertado” das vis multinacionais porque, simplesmente, não existe força humana, sequer coletiva, capaz de realizar tal tarefa impossível. Sugiro, simplesmente, borrar completamente esse objetivo da lista do FSM. 3. Pelo acesso universal e sustentável aos bens comuns da humanidade e da natureza; Simples e elogiável, dito assim, de modo generoso e não utilitarista; ou difícil de ser realizado na prática, se olharmos mais de perto cada um desses conceitos. “Acesso universal” significa que todas as sociedades possam ser colocadas num mesmo patamar de consumo e de dispêndio de energia. Algo difícil de ser realizado efetivamente, em vista das diferentes dotações de fatores naturais e dos diferentes níveis de produtividade do trabalho humano. O “acesso” é o resultado de certa capacitação técnica – que pode ser inerente ou importada, mas aqui isso depende de meios adequados – no atendimento das necessidades humanas, triviais e não triviais, o que as sociedades conhecidas ainda não conseguiram assegurar de modo igualitário mesmo depois de cinco mil anos – ou mais – de civilização material. Infelizmente esse acesso é desigual, a despeito, mesmo, da disseminação quase universal das técnicas mais elementares de cultivo, de saneamento básico e de produção de alimentos: a privação ainda é um traço muito comum em pelo menos metade da população do planeta em pleno segundo milênio da chamada era comum. Esse acesso desigual não resulta, como gostariam de acreditar alguns simplistas do pensamento socialista, da exploração colonial ou da dominação imperialista, mas sim dos diferenciais de produtividade do trabalho humano, o que depende basicamente de educação ou, simplesmente, de capacitação técnica. Acesso “sustentável” significa que os sistemas produtivos nacionais não destruam os recursos naturais, além da capacidade de reprodução ou de manejo do meio ambiente, o que justamente não é assegurado nas sociedades dotadas de baixa produtividade. Trata-se de um circulo vicioso, no qual a pobreza amplia a destruição dos recursos existentes. A elevação dos padrões produtivos, em geral vinculada à 123

inovação trazida por grandes empresas (às quais se opõem os militantes do FSM), pode contribuir para diminuir o grau de “insustentabilidade” dos processos produtivos “rústicos”. Desse ponto de vista, os militantes do FSM deveriam patrocinar ativamente essa elevação a padrões sustentáveis de produção, por quaisquer meios disponíveis, o que implicaria, em princípio, a aprovação da “penetração” das multinacionais nos sistemas produtivos nacionais, algo aparentemente inaceitável aos seus olhos. Finalmente, o conceito de “bens comuns” está associado a dois elementos cada vez mais presentes em nossas vidas: por um lado, os grandes espaços naturais (ainda) não delimitados politicamente por soberanias exclusivas, o que inclui oceanos, atmosfera e o meio ambiente, de modo geral, mas também o chamado estoque acumulado de conhecimento humano, o que inclui as descobertas, a produção científica, os saberes e as artes, que podem constituir patrimônio comum da humanidade; por outro lado, aumentam progressivamente os bens culturais colocados voluntariamente à disposição do público, conhecidos pela sigla “cc”, os creative commons, ou “coletivos”, no lugar dos direitos proprietários, vinculados ao copyright. Não existe, a priori, nenhuma objeção técnica a que essa apropriação de “bens comuns” se faça de modo mais amplo, mas no plano prático isso depende de meios de “delivery” – ou seja, internet, computadores e logística, de modo geral –, que sempre apresentam custos que devem ser assumidos por alguém (a coletividade ou instituições privadas, que não costumam trabalhar de modo gracioso). Talvez os militantes do FSM pudesse começar contribuindo para essa causa colocando “em comum” as suas discussões e foros, hoje restritos apenas aos que concordam com suas posições e políticas. 4. Pela democratização do conhecimento e da informação; Este objetivo tem muito a ver com o anterior e, como ele, depende da disseminação das informações – o que depende, mais uma vez, de meios técnicos de acesso – e da disponibilidade dos conhecimentos. Os conhecimentos que resultam de descobertas e da produção científica estão prática e livremente disponíveis, de modo direto e imediato, nas bases de dados abertos colocados na internet. Existe, porém, uma outra parte do conhecimento, com aplicações diretas no sistema produtivo – que é tecnologia ou know-how –, que exige grandes investimentos para sua elaboração, sendo geralmente protegida por regimes proprietários (patentes e outros títulos). Supõe-se, portanto, que por “democratização” os militantes do FSM queiram dizer, de modo direto, o maior acesso possível, não necessariamente de modo gratuito, 124

mas eventualmente por via do mercado, a instituição humana – não inventada – mais eficiente que já se descobriu para alocar recursos e fatores produtivos e para distribuir bens e serviços (inclusive informação). Pode-se propor, mais uma vez, que os militantes do FSM comecem democratizando a informação e o conhecimento de que já dispõem, criando escolas para formação básica em disciplinas elementares para aquela parte da humanidade hoje excluída dos sistemas formais de ensino. 5. Pela dignidade, diversidade, garantia da igualdade de gênero e eliminação de todas as formas de discriminação; Nada, absolutamente nada, a objetar, a não ser o mesmo tipo de argumento implícito ao primeiro objetivo, que consiste na proclamação praticamente universal de direitos e garantias individuais, sem um mínimo de perspectiva crítica quanto à diversidade “estrutural” existente no mundo. As desigualdades remanescentes – ou melhor, existentes, de fato – entre os homens (entre os gêneros, sobretudo) e as sociedades não são, apenas, produto da vontade dos homens e das sociedades, mas resultam de causas estruturais muito lentas a se implantarem e ainda mais lentas a se dissolverem. Esse objetivo está implícito a um dos grandes objetivos do milênio, tal como definido pela conferência da ONU para sua redução até 2015; mas ele será, provavelmente, o de mais difícil erradicação da face da Terra, em especial naqueles territórios e sociedades pouco afetados pelo processo de globalização, o mais poderoso indutor de modernização econômica e social que se conhece na história da humanidade. Pena que os militantes e as organizações do FSM sejam tão acidamente contrários a este processo, em nome da preservação, justamente, da diversidade dos povos, esquecendo, talvez, que essa “diversidade” é muitas vezes produtora de discriminações que têm suas raízes em costumes ancestrais que caberia extirpar, em nome, por exemplo, da dignidade da mulher. 6. Pela garantia dos direitos econômicos, sociais, humanos e culturais, especialmente os direitos à alimentação, saúde, educação, habitação, emprego e trabalho digno; Mais uma vez, nada a objetar, a não ser, igualmente, o fato de que esses “direitos” têm de ser “produzidos” de alguma forma, o que coloca novamente na agenda dos militantes do FSM a difícil questão de nos explicar a origem da “cornucópia” fantástica que vai “garantir” esses bens de modo semiautomático. Em geral há uma tendência, nesses meios, a considerar que basta determinar que os Estados sejam 125

organizados de forma a “prover” o acesso de toda a população a esses direitos básicos, independentemente do seu modo efetivo de provimento, para que isso ocorra, como que por fiat divino. É o que Marx e Engels chamavam de “socialismo utópico”. Trata-se de uma carência lamentável na “economia política” desses movimentos, uma vez que eles estão sempre invocando o slogan mágico de que “um outro mundo é possível”, sem jamais, porém, avançar os rudimentos, que seja, desse mundo alternativo. Dele não se conhecem seus contornos arquitetônicos, sua localização no tempo ou no espaço e, mais importante, suas engrenagens essenciais, ou seja, seu modo de funcionamento interno. A não ser que ele funcione por moto perpétuo, como no velho sonho dos reformistas utópicos, não existe nenhuma maneira factível (conhecida dos economistas, em todo caso) que seja capaz de assegurar o livre provimento desses bens de maneira ampla e indiscriminada, a não ser distribuindo os custos e as penas do processo produtivo por toda a sociedade. Como o Estado, em si, não produz absolutamente nada – a não ser, obviamente, déficit público – e como tudo o que ele recolhe sob forma de recursos teve de ser previamente produzido pelos agentes econômicos (que são os trabalhadores e seus patrões), supõe-se que os militantes do FSM já tenham pensado em modos alternativos de “dar” ao Estado o poder mágico de dispensar favores sem custo para a sociedade. Curiosamente, pelo que se conhece da experiência histórica – dos últimos 150 anos, pelo menos –, as sociedades menos aptas a prover seus cidadãos de quantidades ilimitadas desses bens materiais (e alguns “espirituais”, como a cultura ou a liberdade) são justamente aquelas mais dominadas pela presença econômica do Estado enquanto agente ativo do processo produtivo. Ao contrário, as sociedades mais produtivas – e as que desfrutam de maior liberdade, também – foram e são aquelas cujos princípios organizadores dão menos ênfase ao papel do Estado e maior à própria sociedade civil, no seu sentido estritamente produtivo. A objeção de que as sociedades mais avançadas do mundo, no plano do IDH, por exemplo, são as escandinavas ou nórdicas, nas quais o Estado desempenha um preeminente papel redistributivo, não pode ser considerada como uma denegação dessa tese, uma vez que o direito à propriedade privada, em sua expressão plena, e a capacidade de iniciativa individual estão nelas totalmente asseguradas. O próprio Estado está nelas integralmente controlado pelas forças vivas da nação, como sabem reconhecer todos os que conhecem o modo de funcionamento das sociedades nórdicas. 126

7. Pela construção de uma ordem mundial baseada na soberania, na autodeterminação e nos direitos dos povos; No plano jurídico, tampouco haveria algo a objetar a esse objetivo inatacável do ponto de vista democrático, praticamente kantiano em sua inspiração. Ocorre, porém, que a ordem mundial não está baseada na representação dos povos, mas sim na organização dos Estados, e aqui começa todo o problema. Como sabem aqueles que já leram a Carta da ONU, ela começa invocando no preâmbulo os “povos das Nações Unidas” – que são aqueles que derrotaram as “potências do mal”, no caso, a Alemanha e o Japão – mas todos os seus enunciados ulteriores referem-se, não a “povos”, mas aos “Estados membros”. O Estado nacional é a forma política até aqui insuperável que a humanidade encontrou para organizar esse arremedo de “ordem mundial” que temos hoje. Em outros termos, a soberania que temos hoje é a westfaliana, baseada no velho princípio da não-subordinação de um Estado a um outro (em teoria, pelo menos). Da mesma forma, a autodeterminação tem mais a ver com o direito dos governos decidirem em toda legitimidade a ordem interna em suas respectivas jurisdições do que com os direitos dos povos em exercer, diretamente, esse direito, do contrário a ONU não poderia aceitar em seu seio governos não democráticos (ou ditaduras execráveis), o que sabemos que tampouco é o caso. Os “direitos dos povos”, por fim, poderiam estar consubstanciados na Declaração de 1948, mas ela se refere aos direitos do homem, tão facilmente negados em certos regimes que integram, de pleno direito, a ordem mundial regida pela ONU. A soberania nacional tem sido justamente invocada como um biombo muito cômodo para a violação dos mais elementares “direitos dos povos”, a começar pela segurança e pela liberdade. Os militantes do FSM dariam um grande passo adiante, na defesa dos “direitos dos povos”, se eles se decidissem a lutar, justamente, pelo fim da soberania absoluta dos Estados como próxima fronteira na construção do direito internacional, colocando como princípios organizadores dessa “ordem mundial dos povos” o respeito à democracia política e a defesa absoluta dos direitos do homem (e do cidadão) como critérios de “inclusividade” na nova ordem onusiana. Movimentos que não pretendem representar os Estados, mas os cidadãos, precisamente, deveriam pensar nesse tipo de progresso conceitual no terreno do direito internacional. (Eles não precisam me agradecer pela ideia, basta usar, sem qualquer tipo de copyright.)

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8. Pela construção de uma economia centrada nos povos e na sustentabilidade; Pelo que eu conheço dos princípios econômicos elementares, toda e qualquer economia é baseada nos povos e na sustentabilidade, do contrário ela já teria desaparecido da face da Terra. Em outros termos, esse objetivo geral não quer dizer absolutamente nada, a não ser que os velhos “ideólogos” do FSM – não os seus jovens idealistas, entre os quais podem estar alguns que já estudaram o seu manual de economia, o famoso text-book Economics 101 –, queiram significar com isso que a economia não pode se sustentar nos mercados, nas trocas mercantis e na busca desenfreada de lucro, o que é muito mais provável, se eu conheço a fauna do FSM. Não é segredo para ninguém que as organizações que militam no FSM abrigam um número considerável – preponderante mesmo, eu diria – de pessoas que rejeitam, quase como um anátema, a peste em pessoa, o capitalismo, os mercados, o lucro, enfim, tudo aquilo que se assemelhe, de perto ou de longe, a formas de apropriação privada dos meios de produção e a formas mercantis de distribuição de bens e serviços. Seu ideal seria um mundo que funcionaria sem mercados, sem dinheiro, sem capitalismo e, sobretudo, sem capitalistas, o que seria o máximo de genialidade possível. Infelizmente para os órfãos do socialismo estatal e para os viúvos do planejamento centralizado, o embate entre modos de produção já se deu nos bastidores da história e, pelo que eu sei, o capital venceu. Tudo isso pode não ser muito agradável para os idealistas de sempre (e para alguns rancorosos irredentistas), mas a história tem dessas coisas que, de vez em quando, resultam no soterramento definitivo de paquidermes pouco adaptados às novas condições ambientais. Pode-se até chorar uma lágrima pelo desaparecimento desses monstros simpáticos do passado, mas não se pode pretender sua sobrevivência em contradição com os novos dados da história (ou até da “geologia” econômica). Quero crer que os que redigiram este objetivo geral estejam entre a dor pungente de terem perdido um ente querido e a confusão mental de não terem absolutamente nada para colocar em seu lugar, do contrário não teriam formulado um objetivo tão “sem pé nem cabeça” como esse. Eu proponho simplesmente que os militantes do FSM retirem esse objetivo da sua lista, refaçam o dever de casa e voltem depois com algo melhor, isto é, algum objetivo que tenha consistência econômica ou, pelo menos, sustentabilidade lógica.

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9. Pela construção de estruturas políticas realmente democráticas e instituições com a participação da população nas decisões e controle dos negócios e recursos públicos. Nenhuma objeção, no terreno dos princípios. Ocorre, porém, uma pequena dificuldade que esse princípio, plenamente assegurado em polities relativamente diminutas, como aquelas que se reuniam na ágora grega dos tempos de Péricles – ou, ainda hoje, em algumas aldeias de cantões recuados da Suíça moderna –, é um pouco mais complicado de ser assegurado em alguns países de dimensão continental: experimente reunir a população da China, ou que seja da cidade do México, para uma discussão “democrática” sobre o uso dos recursos públicos. Complicado, não é mesmo? Esse democratismo de base é muito fácil de ser proclamado, mas muito complicado de ser implementado nos modernos regimes democráticos, que organizam povos disseminados por um vasto território. Foi, aliás, por isso mesmo que se inventou a instituição da representação política, plenamente assegurada na maior parte das democracias modernas. Justamente, as organizações que militam no FSM são as menos propensas a pregar esse tipo de controle democrático sobre as decisões e quanto ao uso dos recursos, uma vez que, elas mesmas, raramente se submetem ao princípio que pregam: estruturas democráticas pressupõem voto aberto, respeito aos direitos da minoria e equilíbrio de poderes, com controle independente das decisões adotadas e escrutínio externo quanto ao uso de recursos (tribunais constitucionais e cortes de contas, segundo as regras dos checks and balances). No Brasil, sobretudo, onde grande parte das ONGs vivem de recursos públicos – segundo pesquisas confiáveis –, a chamada accountability dos movimentos ditos “sociais” é algo ainda mais difícil de ser assegurado. Proponho, então, que os militantes do FSM refinem esse último conceito, consultem o seu Norberto Bobbio em algum fim de semana mais folgado – depois do próximo encontro, talvez – e voltem a se reunir em Parma para redigir um novo objetivo geral que seja menos “democratista” em seus princípios básicos e mais realista em suas aplicações práticas. De modo geral, comparando-se o mínimo de estruturação conceitual que se registra hoje em alguns dos textos dos militantes do FSM com a grande confusão mental que reinava em seus primeiros encontros – da fase de Porto Alegre –, percebe-se que os chamados altermundialistas (que eu prefiro chamar de antiglobalizadores) estão fazendo 129

um grande esforço para afinar as suas idéias, tanto quanto se percebe, e tentam, honestamente, se ouso dizer, fazê-las encontrar-se com a realidade do mundo. Mas, eles ainda estão bem longe da “realidade efetiva das coisas”, como diria um outro filósofo italiano (totalmente globalizado, cabe registrar). Atualmente, em todo caso, em lugar dos jamborees anuais, nos quais o maior esforço de transpiração consistia em xingar o imperialismo, em lugar de uma saudável inspiração mental, nota-se o sincero desejo de oferecer algumas respostas mais ou menos estruturadas aos problemas complexos com que se defrontam os povos (que eles dizem representar). Mais algum esforço e um pouco mais de organização – porque globalizados eles já estão, talvez até mais do que os seus odiados “primos” capitalistas de Davos –, os altermundialistas justificarão finalmente o nome pelo qual pretendem ser chamados: eles ainda precisam oferecer uma forma alternativa, mas factível, de organização social da produção que não seja inerentemente injusta e desigual como atualmente o é a capitalista. Eu, pessoalmente, desconfio que, antes disso, muitos desses militantes se converterão em sisudos capitalistas alternativos. Mas isso faz parte do processo. Em todo caso, eu desejo a todos um bom encontro em Nairóbi. Continuem sonhando! 1708. “Fórum Social Mundial: nove objetivos gerais e alguns grandes equívocos”, Brasília, 3 janeiro 2007, 10 p. Comentários aos nove objetivos gerais dos antiglobalizadores do FSM, para o encontro de Nairóbi (21-24/01/2007). Publicado no boletim eletrônico Meridiano 47 (n. 78, janeiro 2007, p. 7-14; ISSN: 1518-1219). Ensaio incorporado ao livro: Paralelos com o Meridiano 47: Ensaios Longitudinais e de Ampla Latitude (Hartford, 2015). Relação de Publicados nº 738.

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13. Fórum Surreal Mundial: pequena visita aos desvarios dos antiglobalizadores 1. Globalizados contra a globalização: reação freudiana? Os participantes do próximo conclave do Fórum Social Mundial, a realizar-se em Belém, de 27 de janeiro a 1° de fevereiro de 2009, podem congratular-se por serem os mais globalizados do planeta: eles desfrutam, provavelmente, de 100% de inclusão digital por meio da internet (sem considerar celulares e outros gadgets do mundo moderno), ou seja, fazem uma utilização plena das possibilidades abertas pela atual sociedade da informação. Todo o processo de informação preliminar sobre o FSM, de convocação e de mobilização preventivas, assim como o registro simultâneo e instantaneamente disseminado de suas ruidosas reuniões, colocadas (escusado dizer) sob o signo da antiglobalização, todo ele terá sido assegurado e efetivamente realizado 100% online, isto é, sob o signo do mundo virtual, que é praticamente um sinônimo da globalização. E, no entanto, os alegres participantes do piquenique anual da antiglobalização se reunirão para, entre outros objetivos, conspurcar, atacar e combater os próprios mecanismos que possibilitaram, viabilizaram e permitiram todas essas facilidades de informação, de comunicação e de interação recíproca. Não é contraditório? Aliás, não parece completamente estapafúrdia essa revolta irracional contra os seus meios de expressão? Eu – como não pretendo usufruir de minha cota permitida de ilogismo e de irracionalidade – respondo imediatamente que SIM. Sim, me parece totalmente ilógico e contraditório que pessoas normalmente constituídas, bem informadas, geralmente alfabetizadas (inclusive até o nível universitário) e (que se acredita serem) cidadãos razoáveis no contexto do mundo em que vivemos – ou seja, estudantes e trabalhadores honestos, cumpridores de seus deveres cívicos, promotores de um mundo melhor, ativos na defesa do meio ambiente e dos direitos humanos – consigam revoltar-se contra aquilo mesmo que lhes permite serem exatamente o que são: cidadãos bem informados, participantes, defensores de um mundo melhor para si mesmos e para todos os habitantes do planeta. Em vista disso, apenas posso sorrir ante a perspectiva de ver tantos jovens (e alguns velhos também) reunirem-se para combater a globalização capitalista, logrando, aliás, pleno sucesso em seus empreendimentos antiglobalizadores, justamente tendo como suporte material tudo o que a globalização capitalista lhes ofereceu de melhor. São uns ingratos, para dizer o 131

mínimo. Eu acho que eles também são ingênuos, provavelmente equivocados em suas concepções e intenções e, talvez mesmo, um pouquinho desonestos, pois que se eximindo – como não deveria ocorrer na academia e nas organizações mais sérias – de trazer as provas de suas afirmações tão contundentes contra o capitalismo e a globalização. Deixamos esses aspectos de lado, por enquanto, pois voltaremos a eles no momento oportuno. Podemos perdoar a inconsequência política e cultural desses jovens – que parece ser o simples resultado da ignorância e ingenuidade típicas da juventude, ou seja, daquilo que os franceses chamam de naïveté; mas certamente não o tremendo equívoco em que incorrem os mais velhos, que induzem esses jovens a protestar contra o mesmo sistema que lhes permitiu tanta eficiência comunicativa, tanta modernidade organizativa, tanta interação virtual para, finalmente, empreenderem iniciativas ruidosas e totalmente inconsequentes contra a própria base material de seu tremendo sucesso globalizado. Os jovens antiglobalizadores constituem o mais vibrante exemplo e sustentáculo daquilo mesmo que pretendem combater: a globalização capitalista (forçosamente assimétrica). Digo equívoco, porque quero acreditar que esses velhos órfãos da globalização, esses escolhos do anticapitalismo militante, esses falidos profetas de um socialismo ultrapassado, hoje quase surrealista – entre os quais podemos identificar vários acadêmicos de sucesso, todos eles monotonicamente adeptos do pensamento único do altermundialismo, de origem francesa – não sofram de um mal bem mais grave e infinitamente mais prejudicial aos mais jovens, que eu chamaria de desonestidade intelectual. Consiste em desonestidade intelectual o ato de acusar a globalização capitalista de (quase) todos os males do planeta, quando na verdade é a falta de globalização capitalista que provoca os próprios males que os mais jovens dizem pretender combater. Para ser direto, eu sequer preciso provar a desonestidade intelectual desses que proclamam as misérias do capitalismo: basta olhar ao redor de si, ou consultar as tabelas estatísticas de qualquer organismo internacional, para ver onde estão os melhores indicadores de bem estar e de liberdade política e individual, e comparar o quadro com os países que não são, justamente, capitalistas e globalizados. Mas examinemos a questão com um pouco mais de detalhe, por meio dos argumentos dos antiglobalizadores e altermundialistas (esta última designação é a preferida dos próprios interessados; mas como eles ainda não conseguiram dizer do que seria feito o outro mundo possível, prefiro chamá-los pelo nome que melhor os 132

identifica). De certa forma, eles já nos facilitaram a tarefa, ao enunciar seus argumentos em dois conjuntos de “teses”, que contêm aquilo que pensam sobre o mundo, seus problemas (os do mundo) e as suas propostas (as deles) para salvar esse mesmo mundo do capitalismo perverso e da globalização assimétrica. 2. Objetivos reciclados nos últimos três anos: falta de ideias? O primeiro conjunto é formado por uma espécie de decálogo que eles vêm digerindo há algum tempo e que são definidos como os “objetivos de ação para o evento de 2009”. Ora, isso revela preguiça intelectual dos antiglobalizadores, posto que esses objetivos não são novos, tendo sido elaborados anteriormente, mas apenas em número de nove objetivos, por ocasião de reunião do Conselho Internacional do FSM, realizada em Parma, Itália, de 10 a 12 de outubro de 2006. Na época, esses nove objetivos se destinavam a servir como documento preparatório ao FSM de 2007, realizado em Nairobi, no Quênia, nos dias 21 a 24 de janeiro de 2007. Eles foram objeto de meus comentários (mas também podem ser lidos por inteiro) em texto já publicado sob o título: “Fórum Social Mundial: nove objetivos gerais e alguns grandes equívocos”, in Meridiano 47 (n. 78, janeiro de 2007, p. 7-14; link: http://boletim.meridiano47.googlepages.com/Meridiano78.pdf). Para poupar trabalho aos mais preguiçosos, ou aos membros do MSI – movimento dos sem internet –, reproduzo novamente aqui abaixo as propostas dos antiglobalizadores. Permito-me, todavia, convidar os interessados a ler os meus comentários a cada um deles no trabalho acima indicado. Aqui estão os nove objetivos de 2006-2007: 1. Pela construção de um mundo de paz, justiça, ética e respeito pelas espiritualidades diversas, livre de armas, especialmente as nucleares; 2. Pela libertação do mundo do domínio do capital, das multinacionais, da dominação imperialista patriarcal, colonial e neocolonial e de sistemas desiguais de comércio, com cancelamento da dívida dos países empobrecidos; 3. Pelo acesso universal e sustentável aos bens comuns da humanidade e da natureza, pela preservação de nosso planeta e seus recursos, especialmente da água, das florestas e fontes renováveis de energia; 4. Pela democratização e descolonização do conhecimento, da cultura e da comunicação, pela criação de um sistema compartilhado de conhecimento e saberes, com o desmantelamento dos Direitos de Propriedade Intelectual; 5. Pela dignidade, diversidade, garantia da igualdade de gênero, raça, etnia, geração, orientação sexual e eliminação de todas as formas de discriminação e castas (discriminação baseada na descendência); 133

6. Pela garantia (ao longo da vida de todas as pessoas) dos direitos econômicos, sociais, humanos, culturais e ambientais, especialmente os direitos à saúde, educação, habitação, emprego, trabalho digno, comunicação e alimentação (com garantia de segurança e soberania alimentar); 7. Pela construção de uma ordem mundial baseada na soberania, na autodeterminação e nos direitos dos povos, inclusive das minorias e dos migrantes; 8. Pela construção de uma economia centrada em todos os povos, democratizada, emancipatória, sustentável e solidária, com comércio ético e justo; 9. Pela ampliação e construção de estruturas e instituições políticas e econômicas – locais, nacionais e globais – realmente democráticas, com a participação da população nas decisões e controle dos assuntos e recursos públicos. Pois bem: confirmando o torpor mental dos antiglobalizadores – ou a sua completa falta de novas idéias, mesmo desinteressantes –, esses nove objetivos são reproduzidos ipsis litteris num post que li no site do FSM, sob o título de “Rumo a Belém”; são apresentados como “Os 10 objetivos de ação para o Fórum Social Mundial 2009”. Claro, está faltando um, que eles prepararam em consulta aos seus membros, e que vai reproduzido aqui abaixo, imediatamente seguido de meus comentários, com o que ficamos todos quites: você, leitor, que conhece agora todos os dez objetivos de ação do FSM para seu piquenique de Belém, e eu, que termino assim meus comentários a esses objetivos vagos e ingênuos. Digo isto, confesso desde logo, sem qualquer preconceito contra os objetivos dos antiglobalizadores, pois que as suas propostas são realmente vagas, o que não as impede se serem, também, equivocadas e nocivas – em sua maior parte – para o mundo de bem estar geral para cuja construção eles pretendem contribuir. 3. Pelo menos um objetivo novo: alguma grande contribuição intelectual? Como não podia deixar de ser, o único objetivo novo formulado para o encontro de Belém tem a ver – nada mais apropriado – com a realidade amazônica e aqui vai ele: 10. Pela defesa da natureza (amazônica e outros ecossistemas) como fonte de vida para o Planeta Terra e aos povos originários do mundo (indígenas, afrodescendentes, tribais, ribeirinhos) que exigem seus territórios, línguas, culturas, identidades, justiça ambiental, espiritualidade e bom viver. A primeira coisa que se pode afirmar, em relação a este objetivo, é que ele está mal redigido, continua vago e indefinido sobre o que se deve fazer para alcançar todos os elementos nele inscritos e revela, mais uma vez, preguiça mental, pois que contém, inequivocamente, uma grande dose de conservadorismo social e econômico, o que é 134

surpreendente para pessoas e grupos que se pretendem progressistas e avançados. O que pode significar “defesa” sem que se defina, exatamente, onde estão os perigos? O conceito de defesa sempre implica uma ação contra algo ou alguém que ameaça a sua segurança ou a própria vida. Mas isto não está claro no objetivo acima. Que a natureza seja fonte de vida é algo totalmente tautológico, como sabem os adeptos da lógica formal ou aqueles que lidam com a biologia elementar. Não existe, aliás, outra fonte de vida (salvo para os criacionistas). A segunda coisa que se pode dizer é que o Português dos antiglobalizadores anda tão estropiado quanto a floresta amazônica, pois não é possível admitir que esse “aos” seja o equivalente funcional de “para os”, referindo-se aqui aos “povos originários do mundo”. Fonte de vida “aos” povos originários? Recomendo uma revisão estilística antes de publicar oficialmente esse décimo e último objetivo. Mas indo à substância da matéria, parece-me que os antiglobalizadores têm se mostrado tremendamente preconceituosos contra todos os habitantes da Amazônia que não se encaixem em nenhuma das categorias inscritas nesse objetivo, aliás, contra eles mesmos, que virão das grandes metrópoles do Brasil e do mundo e que não são, em sua grande maioria, povos originários. A Amazônia comporta hoje um bocado de gente que não é nem originária, nem indígena, nem afrodescendente, nem tribal, nem ribeirinha, sendo cidadãos emigrados de outras regiões do Brasil e de outros países e que ali vivem e trabalham honestamente. Reivindicar todas aquelas coisas apenas para esses “originários” me parece um tremendo reducionismo étnico ou racial, um pouco como ocorre com esses movimentos racialistas pelos direitos de certas minorias e que pretendem introduzir oficialmente o apartheid no Brasil. Coisa feia, antiglobalizadores! Mas o quê, mesmo, eles pretendem reivindicar? Está lá, dito claramente assim: “territórios, línguas, culturas, identidades, justiça ambiental, espiritualidade e bom viver”. Território implica a noção de direitos sobre um patrimônio fundiário e isso parece que já está regulado na Constituição e na legislação pertinente, bastando fazer apelo a um advogado ou aos cartórios de registro para assegurar esses direitos. Língua é algo tão vivo que me parece supérfluo ou inócuo reivindicar direitos sobre qualquer uma delas: enquanto existirem povos usando uma língua como instrumento de comunicação ela será preservada; mas é também algo que se transforma com o tempo, acompanhando os destinos de seus detentores. É certo que as línguas indígenas – ou dos “povos originários do mundo” como preferem os antiglobalizadores – vêm sendo submetidas a um duro processo de enxugamento, que corresponde, também, à própria 135

transformação cultural das sociedades originárias, como resultado da pressão terrível sobre elas exercida pela cultura materialmente dominante, que é a do homem urbano (ou talvez capitalista, como prefeririam os antiglobalizadores). Este é um desafio partilhado por quase todos os “povos originários do mundo” em qualquer canto do planeta, e ele corresponde a forças históricas quase irresistíveis, já que é difícil colocar esses “povos originários” numa redoma e impedi-los de manter contato com outras culturas e civilizações, sobretudo quando estas chegam a eles pela via da invasão territorial ou dos meios de comunicação. Por outro lado, o próprio ato de pretender preservar esses povos originários em seu estado “originário” pode não representar algo progressista ou desejável; ao contrário, pode ser algo regressista ou mesmo reacionário, já que implicando o congelamento desses povos numa das fases evolutivas do seu desenvolvimento cultural – geralmente correspondendo, em linguagem pré-histórica, à era do paleolítico superior –, o que, por outro lado, provocaria muita “injustiça ambiental” e muito “mau viver”, para usar, no sentido inverso, outros dois conceitos dos antiglobalizadores. Constatemos, em primeiro lugar, que quem está, exatamente, determinando essa defesa contra toda e qualquer mudança nos meios de vida, nas identidades e na cultura não são, para ser mais preciso, os “povos originários do mundo”, mas sim uma tribo de brancos intelectualizados que se reúnem todo ano para proclamar objetivos para o mundo todo, inclusive para os “povos originários do mundo” (que, obviamente, não são eles). Questionemos, em segundo lugar, o direito desses brancos exóticos de traçar uma lista de objetivos para os “povos originários do mundo”, sem que estes tenham se reunido e decidido democraticamente o que pretendem fazer: ficar com suas culturas, línguas e identidades originais, ou integrar-se progressivamente ao chamado mainstream civilizacional, que significa, simplesmente, o Brasil do século XXI, com todas as suas misérias e grandezas, realizações e frustrações, justiças e injustiças. Assim é o mundo, e a nós cabe tomá-lo como ele é, para melhorá-lo progressivamente, em favor de todos, e não apenas dos “povos originários do mundo”. Deixo de lado, por fim, o objetivo da “justiça ambiental”, posto que ela não está definida positivamente e não deve ser clara em que consiste, mesmo para o mais tarimbado antiglobalizador. Talvez algum jurista altermundialista possa elaborar a respeito, e eu me reservo o direito de comentar sua inovação jurídica posteriormente. Quanto aos termos “espiritualidade e bom viver”, deixo à imaginação dos leitores tentar descobrir o que é isso, exatamente, pois não me parece que mereçam maiores 136

comentários, pela indefinição conceitual ou substantiva. Pergunto, aliás, como “exigir” espiritualidade de alguém? 4. Os “sábios” da antiglobalização: mais bem dotados que os jovens? Eu mencionei, ao final da primeira seção deste meu texto, dois conjuntos de “teses”, que conteriam aquilo que os antiglobalizadores pensam – verbo sério, este – sobre os problemas do mundo e suas propostas para salvar esse mesmo mundo do capitalismo perverso e da globalização assimétrica. Mas me concentrei, até aqui, nos componentes de apenas um bloco de argumentos altermundialistas. Estes são, de toda forma, os objetivos oficialmente aprovados para o encontro de Belém, e são eles que devem ser considerados no debate atual. Creio que meus comentários, antes e agora formulados, bastam quanto a esse primeiro bloco de argumentos. Em todo caso, como já escrevi bastante sobre os anti e suas idéias surrealistas, permito-me remeter os interessados no aprofundamento de minhas contestações a essas propostas ingênuas a vários outros trabalhos meus que se encontram livremente disponíveis numa pequena bibliografia pessoal que elaborei a partir dos meus escritos dos últimos anos. Eles não esgotam, obviamente, tudo o que tenho a dizer (e já disse) sobre o processo de globalização e seus descontentes; mas podem dar uma ideia de quão longe da realidade se encontram os antiglobalizadores “originários” (que precisariam ser reciclados ou substituídos por representantes mais inteligentes ou intelectualmente mais preparados). Eis a compilação a que me refiro: “Pequena Bibliografia Pessoal sobre a Globalização (e seus descontentes)”; (no link: www.pralmeida.org/05DocsPRA/1964BiblioGlobalizacao.pdf). Pois bem, como são poucas (e inconsistentes, como vimos) as “idéias” dos antiglobalizadores, vou me permitir ajudá-los neste momento de tensão pré-encontro, retomando – e praticamente “desenterrando” – algumas outras propostas de alguns dos seus mais lídimos representantes, que tinham sido formuladas e apresentadas cerca de quatro anos atrás, mais exatamente no dia 1o. de fevereiro de 2005, sob a forma de um “manifesto” sob o titulo de “Doze Propostas para Outro Mundo Possível” (procurem nos arquivos do FSM, por favor, que eu já perdi o link original). Esse manifesto era apresentado como “produzido por ativistas e intelectuais durante o Fórum Social Mundial com propostas para a construção de um outro mundo”. Os signatários desse manifesto “para um outro mundo” foram 19 eminentes antiglobalizadores (ou que passam por tal), personalidades que continuam a freqüentar 137

os conclaves do FSM a cada ano e que continuam a pontificar sobre a globalização assimétrica e o capitalismo perverso. São eles: Adolfo Pérez Esquivel; Aminata Traoré; Eduardo Galeano; José Saramago; François Houtart; Armand Matellar; Boaventura de Sousa Santos; Roberto Sávio; Ignácio Ramonet; Ricardo Petrella; Bernard Cassen; Samuel Luis Garcia; Tariq Ali; Frei Betto; Emir Sader; Samir Amin; Atílio Borón; Walden Bello e Immanuel Wallerstein. À época eu não comentei suas doze sugestões, seja por falta de tempo, seja porque eu já tinha feito em julho de 2004 (preventivamente, portanto), um texto “Contra a antiglobalização: contradições, insuficiências e impasses do movimento antiglobalizador”, publicado de forma fragmentada nas Colunas de Relnet , de julho a dezembro de 2004, e depois, de forma parcial, em diversos números do Meridiano 47, de julho de 2004 a maio de 2005 (vide recomendações de leitura, ao final). No ano seguinte, em janeiro de 2005, o FSM foi realizado, como todos sabem, em Caracas, ocasião na qual eu também perpetrei um texto contendo os “Resultados antecipados do Foro de Caracas: um exercício de futurologia garantida...”, elaborado obviamente antes da realização do jamboree bolivariano e publicado em um dos meus blogs em 15 de janeiro (link: http://paulomre.blogspot.com/2006/01/165-resultadosantecipados-do-foro-de.html). Como eu tinha ficado devendo, portanto, meus comentários às doze propostas dos antiglobalizadores eminentes, eu me permito neste momento completar a lacuna pela transcrição integral dessas propostas, seguidas imediatamente de meus comentários sintéticos, reservando a uma outra ocasião uma elaboração mais sofisticada intelectualmente, à altura da respeitabilidade dos sábios antiglobalizadores (mas que não me parecem melhor dotados do que os jovens que costumam produzir mais transpiração do que inspiração nesses conclaves aborrecidos pela repetição das mesmas idéias surrealistas). Resumindo suas (poucas) idéias, os sábios propunham o cancelamento da dívida pública dos países do sul, a taxação internacional das transações financeiras e o desmantelamento progressivo dos paraísos fiscais, jurídicos e bancários. Pediam, ainda, a proibição de todo o tipo de patente do conhecimento e seres vivos, assim como da privatização de bens comuns da humanidade, em particular a água. Diziam que estavam se expressando a título estritamente pessoal e que não pretendiam falar em nome do FSM, afirmação que pode ser tomada pelo seu valor face (mas que cabe receber cum grano salis, posto que eles são considerados os maîtres-à-penser do movimento antiglobalizador). Mas como o Fórum tem se notabilizado por uma notável falta de 138

idéias, pode-se considerar que suas propostas representam, sim, propostas do FSM, mesmo que não tenham sido distribuídas oficialmente para discussão no conclave amazônico. Como imagino que vários desses sábios ali comparecerão, permito-me comentar agora suas idéias de 2005, esperando que elas não tenham piorado desde então. 5. Mais uma dúzia de propostas para um outro mundo possível: será possível? Vejamos o que seria possível dizer, sinteticamente, sobre cada uma das propostas: 1) Anular a dívida pública dos países do Hemisfério Sul, que já foi paga várias vezes e que constitui, para os Estados credores, os estabelecimentos financeiros e as instituições financeiras internacionais, a melhor maneira de submeter a maior parte da humanidade à sua tutela; Ocorre, em primeiro lugar, uma imprecisão conceitual: trata-se, obviamente, da dívida externa, posto que nenhum país estrangeiro tem algo a ver com a dívida pública de qualquer país soberano; esta geralmente se refere à dívida mobiliária interna, criada exclusivamente em âmbito nacional. Em todo caso, a proposta é redundante, chega tarde e traz a marca de uma visão equivocada do que constitui a dívida externa. Desde meados dos anos 1980, pelo menos, os países do G7, os membros do Clube de Paris e os sócios mais influentes das instituições de Bretton Woods vêm aprovando – aprofundando a cada ano – mecanismos de redução negociada e menus de redução unilateral da dívida dos países mais pobres. Dizer que ela já foi paga várias vezes constitui, obviamente, uma visão totalmente política do problema, que não corresponde às condições contratuais. A relação, obviamente, é recíproca e não se tem notícia de países tomadores de crédito que tenham contraído dívidas para se submeter voluntariamente à tutela dos credores. Os juros da dívida pública, inclusive, ostentam os menores níveis do mercado e podem ter aspectos concessionais, como é o caso da relação entre muitos credores e os países mais pobres. A anulação da dívida pública comprometeria um sistema que ocupa um nicho não atendido pelo sistema de mercado de créditos a taxas comerciais. Os propositores, provavelmente, não têm ideia de como funcionam os diversos mercados de créditos, e o atendimento de sua proposta simplesmente prejudicaria o conjunto dos tomadores públicos, que são todos os países em desenvolvimento que não possuem sistemas de financiamento sofisticados ou abastecidos. Para o Brasil, por 139

exemplo, que é um país ao mesmo tempo tomador e credor, a implementação dessa medida representaria um enorme prejuízo nos negócios empreendidos por empresas brasileiras no exterior, que contam com financiamento público (BNDES ou outro). 2) Aplicar taxas internacionais às transações financeiras (especialmente a Taxa Tobin às transações especulativas de divisas); Essa iniciativa, especialmente na forma proposta originalmente pelo seu suposto patrono, já foi inclusive renegada pelo economista James Tobin, que deu, involuntariamente, o nome à associação francesa que está na origem do movimento antiglobalizador, a ATTAC (Association pour la Tobin Tax en Appui aux Citoyens). Tobin havia feito a proposta no quadro dos movimentos cambiais erráticos que se seguiram à quebra do sistema de Bretton Woods de taxas estáveis, mas logo constatou sua inaplicabilidade prática, em virtude da impossibilidade de se separar os fluxos de ativos reais voltados para o investimento e a produção, daqueles puramente especulativos. Este é o problema central de toda taxação sobre transações financeiras: ela pune indistintamente movimentos positivos e outros de qualquer natureza, o que introduz, simplesmente, não um fator dissuasivo aos movimentos erráticos – que se realizam de qualquer maneira – mas um custo adicional aos legítimos tomadores de recursos nos mercados de créditos. O Brasil, decididamente, seria prejudicado pela introdução desse tipo de medida mal concebida e impossível de ser aplicada em bases universais, como aliás já escrevi em um pequeno texto (“Interessa ao Brasil uma taxa sobre os movimentos de capitais?”, Meridiano 47, n. 47, junho 2004, p. 12-15; link: http://www.mundorama.info/Mundorama/Meridiano_47_-_1100_files/Meridiano_47.pdf). Considerando-se que existem brasileiros entre os 19 sábios do FSM, se a proposta fosse introduzida, eles estariam, conscientemente ou não, prejudicando a posição do Brasil enquanto tomador de recursos nos mercados financeiros internacionais. Ingenuidade ou simples ignorância? 3) Desmantelar progressivamente todas as formas de paraísos fiscais, jurídicos e bancários, por considerá-los como um refúgio do crime organizado, da corrupção e de todos os tipos de tráficos; De fato, os paraísos fiscais constituem um problema para governos e empresas e cidadãos honestos, na medida em que eles não apenas subtraem recursos que, de outra forma, poderiam estar integrados aos circuitos normais da vida econômica, como 140

também podem ser utilizados pelo crime organizado e pelos habituais defraudadores das administrações tributárias nacionais. O problema está em que, num sistema de soberanias ilimitadas, cada país está livre para determinar seu sistema tributário e as alíquotas a serem aplicadas às operações financeiras conduzidas em suas jurisdições. Nenhum outro Estado ou organização pode obrigar os paraísos fiscais a incorporar mecanismos ou alíquotas contra sua vontade e interesse nacional (que é, obviamente, o de ganhar alguns trocados – ou milhões – à margem dessas operações fictícias). Eles podem, teoricamente, ser submetidos a sanções por iniciativa dos Estados que se sentirem prejudicados por sua atitude oportunista e desleal no plano fiscal. Mas o fato é que esse tipo de prática vai continuar enquanto Estados predadores pretenderem manter níveis impositivos e mecanismos extratores intrusivos e extorsivos do ponto de vista das empresas e cidadãos; daí a “utilidade” dos paraísos fiscais como válvulas de escape, mesmo para contribuintes honestos na maior parte do tempo. O desmantelamento sugerido pelos sábios do FSM pode significar alguma iniciativa truculenta da parte dos Estados “normais” da comunidade internacional, o que obviamente apresenta problemas no plano da legalidade internacional e do direito soberano de cada Estado adotar a estrutura tributária que melhor lhe convenha. Aliás, eles querem atuar bem mais sobre os efeitos do que sobre as causas: existem paraísos fiscais para responder a certas “necessidades” econômicas, assim como existem traficantes de drogas para responder à proibição oficial e para atender os “clientes”. Talvez a solução mais conveniente, ou pelo menos mais racional, esteja numa coordenação fiscal internacional apontando na direção de alíquotas moderadas e mecanismos menos intrusivos do ponto de vista dos agentes econômicos primários. A experiência ensina que medidas truculentas como as sugeridas pelos sábios acabam resultando em mais fraudes fiscais, fuga de capitais e outras práticas nefastas no plano fiscal nacional. Os sábios confirmam, indiretamente, sua visão autoritária, dirigista e estatizante do sistema econômico, o que em todos os lugares levou a distorções e à exportação de riquezas. Eles provavelmente acham que os sistemas ultra-intrusivos e centralizados ao extremo conformam o modelo ideal de governança: a História ensina que o contrário costuma ser o verdadeiro. 4) Cada habitante do planeta deve ter direito a um emprego, à proteção social e à aposentadoria, respeitando a igualdade entre homens e mulheres;

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Talvez os sábios pudessem acrescentar também: uma casa, um carro, conta em banco, milhas ilimitadas, vale-refeição, uma visita por ano a Paris e outra a Nova York. Incrível como esse pessoal tem uma capacidade imitativa extraordinária: eles são capazes de imitar o discurso de qualquer político em campanha eleitoral. Como não dizem absolutamente nada sobre como pretendem conceder todas essas bondades e benesses aos felizes habitantes do seu outro mundo possível, podemos ignorar totalmente esta quarta proposta, por inoperante e puramente demagógica. 5) Promover todas as formas de comércio justo, rechaçando as regras de livre comércio da Organização Mundial do Comércio (OMC). Excluir totalmente a educação, a saúde, os serviços sociais e a cultura do terreno de aplicação do Acordo Geral Sobre o Comércio e os Serviços (AGCS) da OMC; Os sábios estão mal informados: a OMC é tão capaz de impor regras de livre comércio quanto a Igreja é capaz de assegurar a castidade ou a abstinência de seus seguidores. A expressão “todas as formas de comércio justo” é completamente vazia de significado no mundo do comércio real, o que talvez não seja do conhecimento dos sábios, já que eles vivem exclusivamente no âmbito universitário ou das ONGs, sem contato de qualquer tipo com a esfera econômica. Quanto aos temas para os quais eles pedem exclusão dos acordos de liberalização, provavelmente não sabem que vários deles já fazem parte das ofertas ou da situação real de “exploração” de serviços em muitos dos países membros da OMC. No campo da educação, por exemplo, nenhuma regra constitucional poderia impedir as universidades de Harvard ou de Yale de se instalarem no Brasil, se assim o desejassem (o que seria excelente para a competição entre instituições de qualidade), bastando uma autorização do MEC e a conformidade dessas universidades com as regras em vigor no Brasil. Incrível como mesmo os mais reconhecidos sábios têm horror à competição no mundo da ciência e cultura e preferem manter sistemas fechados e excludentes, o que, por si só, já constitui um insulto à inteligência e à universalidade do conhecimento. Esses sábios deveriam ser coerentes com o que propõem e começar por não aceitar mais nenhum convite das universidades europeias ou americanas que os cortejam (talvez indevidamente, ou por excesso de generosidade com figuras “exóticas”). 6) Garantir o direito à soberania e segurança alimentar de cada país, mediante a promoção da agricultura campesina. Isso pressupõe a eliminação total dos subsídios à exportação dos produtos agrícolas, em primeiro lugar por parte dos Estados Unidos e da União Européia. Da mesma maneira, cada país ou conjunto de países 142

deve poder decidir soberanamente sobre a proibição da produção e importação de organismos geneticamente modificados destinados à alimentação; O que eles propõem é absolutamente contraditório com o que dizem defender. Os EUA não vão retornar à “agricultura campesina”, seja lá o que isso queira dizer, nem os europeus vão renunciar aos gordos subsídios que sustentam artificialmente sua agricultura, em detrimento dos verdadeiros campesinos africanos ou asiáticos. Por outro lado, os subsídios à exportação não são, ao contrário das subvenções internas, os mais importantes nem os mais nocivos a um comércio agrícola verdadeiramente “justo” (para empregar um conceito que eles apreciam). Os sábios também parecem contraditórios com seu apego à ciência, ao rejeitar a priori, sem qualquer fundamento científico, os OGMs ou outras inovações que possam ser introduzidas para melhorar a produtividade agrícola de capitalistas e campesinos e atender à segurança alimentar de todos os povos do planeta. Seu obscurantismo nessa matéria revela preconceito e uma atitude propriamente reacionária em relação aos avanços responsáveis da ciência. 7) Proibir todo tipo de patenteamento do conhecimento e dos seres vivos, assim como toda a privatização de bens comuns da humanidade, em particular a água; Os sábios não devem conhecer legislação de propriedade intelectual, pois em nenhum país do mundo o conhecimento é patenteável. Seres vivos podem, sim, ser objeto de proteção, por instrumentos adequados, se cumprirem os requisitos fixados na legislação. Tecnologias proprietárias têm sido responsáveis pela maior parte dos novos medicamentos, que salvam a vida das pessoas e melhoram suas vidas. Talvez os sábios pretendam ou possam pessoalmente ficar à margem dessas possibilidades de bem-estar e se abster de usar novos medicamentos. Quanto aos bens comuns, eles certamente se submetem a alguma regulação, nacional ou multilateral, o que não impede sua exploração em regime de concessão, cujos termos são a rigor estabelecidos com vistas ao bem comum, justamente. Apenas um preconceito contra empresas privadas leva os sábios a excluírem preventivamente essa possibilidade de exploração eficiente, cost-effective, de certos bens comuns. Não se sabe de uma empresa privada que não esteja interessada em ampliar sua clientela, mesmo para “bens comuns”. O que os sábios refletem, implicitamente, é um tremendo preconceito contra o lucro, obviamente, o que totalmente ridículo em pessoas que são supostamente razoavelmente instruídas em matéria econômica (ou não?).

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8) Lutar por políticas públicas contra todas as formas de discriminação (sexismo, xenofobia, antissemitismo e racismo). Reconhecer plenamente os direitos políticos, culturais e ambientais (incluindo o domínio de recursos naturais) dos povos indígenas; Nada a objetar quanto ao primeiro objetivo. Sérias preocupações quanto ao segundo, posto que esses povos não permanecerão eternamente indígenas, a menos que os sábios pretendam fazer deles objetos de museu, preservados em uma redoma que os impeça de se integrarem às sociedades nacionais. Esses sábios se consideram tutores dos povos indígenas. 9) Tomar medidas urgentes para pôr fim à destruição do meio ambiente e à ameaça de mudanças climáticas graves. Implementar outro modelo de desenvolvimento fundado na sobriedade energética e no controle democrático dos recursos naturais; Nada a objetar. Os sábios só ficam nos devendo uma descrição mais acurada do que eles entendem por “outro modelo de desenvolvimento”, sem o que fica difícil criticar, mais uma vez, suas “idéias” surreais. Sobriedade energética pode querer dizer muitas coisas, inclusive com novas tecnologias desenvolvidas por empresas privadas, que eles tão zelosamente querem expulsar de todo e qualquer domínio “público”. O controle democrático dos recursos naturais é uma frase generosa, que pode tanto querer dizer parlamentos nacionais, quanto ONGs, mas estas geralmente escapam de qualquer controle democrático, pois são de caráter privado e não costumam prestar contas à sociedade. 10) Exigir o desmantelamento das bases militares estrangeiras e de suas tropas em todos os países, salvo quando estejam sob mandato expresso da Organização das Nações Unidas; Tremendo autoritarismo, pois existem países que definem sua segurança com base em alianças militares e que preferem delegar certas tarefas a tropas estrangeiras, instaladas em bases nacionais. Japão e Alemanha, por exemplo, não pretendem se nuclearizar e preferem se colocar ao abrigo do guarda-chuva nuclear dos EUA. Os sábios vão exigir que esses dois países deleguem sua segurança a tropas da ONU? 11) Garantir o direito à informação e o direito de informar dos cidadãos mediante legislações que ponham fim à concentração de veículos em grupos de comunicação gigantes; Os sábios deveriam encaminhar sugestões detalhadas aos órgãos nacionais de regulação audiovisual ou apresentar casos concretos de abuso nas instâncias de defesa

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da concorrência. Atitude louvável essa, embora a mesma postura não se aplique no caso de entidades puramente estatais, sempre julgadas benéficas por princípio. 12) Reformar e democratizar em profundidade as organizações internacionais, entre elas a Organização das Nações Unidas (ONU), fazendo prevalecer nelas os direitos humanos, econômicos, sociais e culturais, em concordância com a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Isso implica a incorporação do Banco Mundial, do Fundo Monetário Internacional e da Organização Mundial do Comércio ao sistema das Nações Unidas. Caso persistam as violações do direito internacional por parte dos Estados Unidos, transferir a sede da ONU de Nova Iorque para outro país, preferencialmente do Sul. Reformar essas instituições deve fazer permanentemente parte da agenda dos governos responsáveis, já que essas instituições tendem a se converter em dinossauros esclerosados, cuidando unicamente do seu próprio interesse e do seu pessoal. Curiosamente, as instituições de Bretton Woods e a OMC não estão entre as mais mal geridas, bastando constatar que os piores casos de má administração de recursos, excesso de pessoal e desvios de função – quando não duplicação de iniciativas nas mesmas áreas – se encontram bem mais nas organizações da área social e cultural e nas de assistência aos países pobres. Quanto à segunda sugestão, acredito que poucos delegados do Sul estariam de acordo em retirar a maior parte das organizações internacionais de suas sedes em países do Norte. Mas sempre se pode tomar a iniciativa de consultar os interessados. Enfim, concluímos por aqui mais este “diálogo” com os antiglobalizadores, na verdade uma iniciativa totalmente unilateral e unidirecional, posto que nunca recebi nenhum comentário dos interessados a respeito de minhas críticas – algo contundentes, reconheço – a suas idéias surrealistas. É da minha natureza exercer o pensamento crítico, como também imagino que deva ser a postura acadêmica dos antiglobalizadores e seus representantes autorizados, em primeiro lugar os sábios. O que constato, de fato, é que os antiglobalizadores, e seus sábios, adoram o pensamento único, pois que nenhuma entidade, ou personalidade individual, que não concorde com seus princípios algo esquizofrênicos é convidada a falar ou debater em seus conclaves sempre ruidosos e inconclusivos. Deve fazer mais de dez anos que eles nos prometem um outro mundo possível, e na verdade a única coisa que eles conseguem aprovar, como resultado desses encontros, é uma agenda que conseguiria tornar o mundo atual pior do que ele já é. Com efeito, todas as suas recomendações vão a 145

contrário senso das tendências econômicas e científicas contemporâneas, tal como observadas no mundo real; não nesse outro mundo possível de que eles falam, mas do qual não conseguem entregar a receita. Eu espero, no que me concerne, que este pequeno manual das irrealidades dos antiglobalizadores possa contribuir para que eles reflitam sobre a realidade do mundo concreto, não daquele imaginado por eles e que pouco tem a ver com as relações sociais, políticas e econômicas efetivamente existentes na maior parte dos países. O que deveriam fazer os antiglobalizadores (mas o que eles provavelmente não farão) seria aproveitar o Fórum Social Mundial de 2009, em Belém, para fazer um balanço honesto dos seus dez anos de pregações surrealistas e tirar as lições de por que suas receitas e recomendações – com exceção, obviamente, das mais óbvias, relativas a direitos humanos e sustentabilidade ecológica – não vêm sendo implementadas por praticamente nenhum governo do planeta, mesmo aqueles supostamente mais comprometidos com as suas causas. Pode-se, a rigor, estabelecer um benchmark com base em suas recomendações – tal como examinadas neste trabalho e em textos anteriores – e verificar em que medida os governos aparentemente mais comprometidos com os princípios e causas do FSM implementam, de fato, as medidas preconizadas pelos antiglobalizadores. O primeiro teste é, evidentemente, o da própria globalização. Ninguém há de recusar a realidade, por exemplo, de que Cuba e Coréia do Norte são países pouco globalizados – junto com outros, como Síria e Iran, que também controlam a internet e a imprensa –, comparativamente com Costa Rica e Coréia do Sul, e isso poderia servir de benchmark para um balanço do bem estar social, dos direitos à livre informação e de todas as demais liberdades individuais ou coletivas em todos esses países. O contraste seria tão flagrante que eu não tenho nenhuma dúvida quanto ao resultado desse teste. Em face desse tipo de realidade, eu me pergunto o que é que os sábios e seus seguidores da antiglobalização aprovarão em Belém. Talvez uma repetição maquiada das teses aqui examinadas. Creio que teremos mais do mesmo (até o próximo Fórum Surreal Mundial), posto que eles sairão convencidos de que suas propostas podem funcionar na prática. Ainda não se viu nada disso, mas eles não perdem a esperança. Imagino que os mais jovens o façam por ingenuidade ou ignorância das coisas do mundo. Imagino também que os mais velhos – sindicalistas, professores e outros últimos crentes na verdade revelada – o façam por autismo político e incapacidade de enfrentar a realidade. Quanto aos sábios, que teoricamente podem dispor de todo o 146

conhecimento acumulado desde sempre nas academias e centros de pesquisa, acredito que eles continuam a repetir as mesmas idéias surrealistas e os mesmos equívocos na área econômica, não por acreditarem em seus argumentos, mas apenas para disporem de uma tribuna fácil para suas perorações inúteis. Isto não constitui apenas uma forma de auto-engano; mas se trata, provavelmente, de desonestidade intelectual, o que é imperdoável a cidadãos escolarizados além do terceiro ciclo. Enfim, ninguém gosta de desmantelar seus sonhos e utopias. Acho que os sábios também não...

Algumas recomendações de leitura: “Contra a antiglobalização: Contradições, insuficiências e impasses do movimento antiglobalizador”. Publicado de forma fragmentada em Meridiano 47 (disponível em formato integral no link: www.pralmeida.org/05DocsPRA/1297ContraAntiGlobaliz.pdf). “Fórum Social Mundial: nove objetivos gerais e alguns grandes equívocos”, Meridiano 47 (n. 78, janeiro 2007, p. 7-14; link: http://boletim.meridiano47.googlepages.com/Meridiano78.pdf). “A distribuição mundial de renda: caminhando para a convergência?”, Meridiano 47 (n. 74, setembro 2006, p. 20-29; link: http://boletim.meridiano47.googlepages.com/Meridiano74.pdf). “A globalização e seus descontentes: um roteiro sintético dos equívocos”, Espaço Acadêmico (n. 61, junho 2006; link: http://www.espacoacademico.com.br/061/61almeida.htm). “A globalização e seus benefícios: um contraponto ao pessimismo”, Espaço Acadêmico (n. 37, junho 2004; link: http://www.espacoacademico.com.br/037/37pra.htm). “A globalização e as desigualdades: quais as evidências?”, In: Paulo Roberto de Almeida, A Grande Mudança: consequências econômicas da transição política no Brasil (São Paulo: Códex, 2003; link: www.pralmeida.org/05DocsPRA/859GlobalizDesig.pdf). 1966. “Fórum Surreal Mundial: Pequena visita aos desvarios dos antiglobalizadores”, Brasília, 22 dezembro 2008, 17 p. Consolidação das críticas às ideias surreais do FSM. Publicado em Mundorama, divulgação científica em relações internacionais (27.12.2008; link: http://mundorama.net/2008/12/27/271220081129/). Publicado em Meridiano 47 (n. 101; 27 Dezembro 2008; link: http://mundorama.net/2008/12/31/boletim-meridiano-47-no-101-dezembro2008/); Republicado em Espaço da Sophia (Tomazina – PR, ISSN: 1981-318X, Ano 2, n. 22, p. 1-20, janeiro de 2009). Ensaio incorporado ao livro: Paralelos com o Meridiano 47: Ensaios Longitudinais e de Ampla Latitude (Hartford, 2015). Academia.edu (https://www.academia.edu/attachments/32900639/download_file). Relação de Publicados 886, 887.

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14. O Brasil e o G20 financeiro: alguns elementos analíticos

1. Introdução: escopo da análise e resumo do conteúdo Este breve ensaio efetua uma análise de conjuntura da economia brasileira, mais pelo lado das políticas econômicas do que propriamente pelos principais indicadores setoriais. Foram focalizadas a situação econômica previamente e no decorrer da crise, as principais respostas das autoridades econômicas e as perspectivas que se oferecem ao Brasil no pós-crise, relativamente favoráveis no conjunto do G20. São também tecidas considerações sobre as principais propostas brasileiras para uma nova arquitetura financeira internacional, em torno de posições que o país partilha com os demais Brics, cujo teor essencial é o aumento da participação dos emergentes nos processos decisórios mundiais. 2. O Brasil no G20: ativos políticos e limitações econômicas Embora não imune a seus efeitos mais graves, no seu pico recessivo – entre o terceiro trimestre de 2008 e o primeiro semestre de 2009 – o Brasil parece ter resistido bem à crise financeira internacional iniciada no setor imobiliário americano e que logo se propagou para todo o sistema bancário e, daí, para uma crise econômica internacional. Ele foi um dos primeiros países a demandar reuniões internacionais de coordenação, tanto para conter os efeitos mais devastadores da crise, como para impulsionar o que considera ser uma agenda inconclusa das relações econômicas internacionais: a rodada Doha de negociações comerciais multilaterais da OMC. Suas demandas favoráveis à maior regulação do setor financeiro. Em virtude de sua diplomacia hiperativa – em grande medida derivada da exposição internacional de seu presidente – o Brasil possui, prima facie, ativos políticos para sugerir questões para a formulação da agenda financeira internacional, muito embora, no plano estritamente econômico, seus ativos sejam bem mais limitados, em função da baixa intensidade de seu comércio internacional, sua situação de importador liquido de capitais e o caráter não conversível de sua moeda.

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3. A situação macroeconômica pré-crise e as respostas à crise O Brasil vinha numa trajetória relativamente satisfatória de crescimento e estabilidade no período anterior à crise, graças à demanda internacional por seus produtos primários de exportação, os altos preços alcançados por estes, a descoberta de gigantescas jazidas off shore de petróleo e a vasta atração de investimentos estrangeiros. Os canais de propagação da crise internacional no Brasil foram, principalmente: a exaustão dos créditos para o comércio exterior; a retração dos mercados externos e dos investimentos estrangeiros; a queda brusca nos preços dos principais produtos de exportação, o que gerou desemprego setorial no Brasil e revisão completa dos planos de investimentos na base produtiva nacional. O momento mais dramático foi a queda brutal da produção industrial no último trimestre de 2008, com o aumento concomitante do desemprego no setor, fazendo com que as estimativas dos analistas quanto aos indicadores de crescimento passassem do pessimismo ao catastrófico. As respostas do governo, mais especificamente do Banco Central, foram adequadas ao momento, embora o lado monetário e financeiro tenha sido bem mais coerente do que o lado fiscal. No plano das autoridades monetárias, o que se fez foi classicamente keynesiano: injeção de liquidez na veia do sistema, com redução dos depósitos compulsórios; extensão dos créditos ao setor bancário; atuação na frente cambial e de comércio exterior, com a redução concomitante dos juros de referência. No que se refere às autoridades fiscais, as medidas não tiveram quase nada de verdadeiramente anticíclicas: a despeito da redução de impostos indiretos em alguns setores – mas atingindo apenas aqueles que teriam de ser transferidos aos estados e municípios, e não as contribuições devidas unicamente ao poder central – houve uma elevação generalizada de gastos em rubricas que são permanentes – como aumentos nos salários do funcionalismo e promessas renovadas no que se refere ao salário mínimo e Bolsa-Família – com muito pouco acréscimo nos investimentos em infra-estrutura e quase nenhum alívio na carga fiscal da massa dos contribuintes-consumidores. Por outro lado, o aumento exagerado do crédito através dos bancos públicos – que já concentram uma grande proporção dos empréstimos no Brasil – pode vir a provocar insuficiência de oferta produtiva e pressões inflacionárias, o que poderá obrigar o Copom a elevar novamente os juros, quebrando o ciclo de baixa iniciado em janeiro de 2009 (até um patamar inédito na história do Brasil: 8,75%). 4. As respostas dos membros do G20 e a posição do Brasil 149

Os membros do G20 também atuaram segundo as linhas clássicas do keynesianismo aplicado. No caso do Brasil, os fundamentos macroeconômicos são bem mais sólidos do que por ocasião de crises passadas, o que justifica a manutenção, pelas principais agências de avaliação de risco, do investment grade atribuído anteriormente ao Brasil, e o fluxo ascendente de capitais externos, tanto de investimento direto como de cunho puramente financeiro. Por outro lado, a demanda da China – convertida em principal parceiro comercial no começo de 2009 – por produtos primários de exportação brasileira atuou no sentido da revalorização dos seus preços, o que pode minimizar o impacto negativo da crise internacional sobre nossa balança de transações correntes. O setor financeiro, por sua vez, não foi sequer arranhado, a despeito do retraimento de fontes externas de financiamento, graças à aplicação judiciosa por parte do Banco Central das regras prudenciais de Basiléia e à herança do Proer, que eliminou completamente o perigo de bancos privados e públicos administrados de maneira irresponsável na primeira metade da década passada. O grande mérito do governo atual no plano econômico foi, justamente, o de ter preservado o núcleo essencial das políticas adotadas antes do seu início, quais sejam: flutuação cambial, metas de inflação e responsabilidade fiscal, tanto pelo lado da preservação do superávit primário como da vigência da Lei de Responsabilidade Fiscal, que o partido atualmente no poder pretendia desmantelar quando era oposição. Na frente cambial, após uma paradoxal valorização do dólar (em meio à crise de confiança na economia americana) e uma desvalorização sensível da moeda brasileira entre setembro de 2008 e fevereiro de 2009 (que atingiu quase 50% entre seu pico de valorização, em julho de 2008, e o fundo do poço, em dezembro), o real voltou a conhecer o mesmo fenômeno da valorização gradual, que tanto preocupa os exportadores e os industriais de modo geral. O Banco Central tem respondido com novas compras de divisas, tendo as reservas ultrapassado o pico de 209 bilhões de dólares do período anterior à crise. Mas as autoridades financeiras têm resistido sensatamente às demandas de setores dirigistas por ativismo cambial e controles dos fluxos de capitais. Pouco se fala, porém, do enorme custo fiscal do carregamento dessas reservas – quase 20 bilhões de dólares por ano – ademais da enorme concentração das divisas em títulos do Tesouro americano, com juros negativos e perspectivas de desvalorização ulterior do dólar americano. 5. Perspectivas brasileiras para Pittsburgh: a ação através dos Brics 150

Desde a primeira reunião de cúpula do G20 em Washington (em novembro de 2008), passando pela reunião de Londres (de abril de 2009) e, provavelmente também nesta próxima reunião de Pittsburgh (setembro de 2009), o Brasil vem mantendo posições relativamente próximas do grupo de “regulacionistas keynesianos”, como poderiam ser assim designados aqueles que pretendem introduzir medidas mais rígidas de controle dos fluxos de capital, que pretendem criar mecanismos que possam “coibir” a “especulação financeira”, inclusive no sentido de reforçar e ampliar os instrumentos prudenciais e regulatórios sobre as atividades das instituições financeiras – concebidas num sentido amplo. No plano da conjuntura econômica e da luta pela recuperação da economia mundial pós-crise, o Brasil advoga a manutenção das medidas fiscais de estímulo à economia pelo tempo que for necessário para a retomada plena do ritmo de atividade. Ele também acha que os países precisam introduzir sanções contra os paraísos fiscais, considerados um dos condutos da especulação. No plano das relações econômicas internacionais, o Brasil prega a retomada e a conclusão da Rodada Doha de negociações comerciais multilaterais como um dos componentes da retomada ordenada da atividade econômica. Finalmente, no que tange a nova “arquitetura” do sistema financeiro internacional, o Brasil propõe uma redistribuição e ampliação do sistema de cotas das duas instituições de Bretton Woods, no sentido de fazer a participação dos países em desenvolvimento (ou, na nova linguagem, os emergentes) elevar-se à proporção de 47% sobre o capital total, reduzindo-se de maneira concomitante a participação dos países avançados (atualmente de 60% sobre o total). A sugestão é que o processo se dê em detrimento dos pequenos países europeus, como aliás já sugerido pelos próprios Estados Unidos. Todo o ativismo reformista brasileiro se dá, atualmente, em conjunção com os Brics, muito embora a China – a despeito de ter lançado inicialmente a idéia – não tenha aderido, no encontro de Londres, à sugestão de que os países do G20 e as instituições financeiras multilaterais concebem um novo instrumento de reserva internacional (e possivelmente de troca também), baseado numa cesta de moedas dos países mais relevantes. Contraditoriamente, porem, os quatro Brics possuem imensas reservas em dólar e não teriam, assim, interesse, numa rápida desvalorização da moeda americana. As reservas brasileiras em divisas ascendem atualmente a mais de 215 bilhões de dólares, das quais aproximadamente três quartos estão aplicadas em T-bonds. 6. Conclusões: visões contraditórias sobre a crise e a gestão econômica 151

O Brasil se encontra relativamente preparado para uma nova fase de crescimento, à condição que o mau comportamento fiscal do governo, exibido atualmente, não seja exacerbado e que sua voracidade tributária seja contida em limites razoáveis, para permitir que o setor privado possa investir e criar riquezas, emprego e renda, atividades que apenas ele pode fazer. Dada a propensão governamental ao gasto excessivo, muitos temem a formação de uma bomba-relógio fiscal, a explodir em algum momento da próxima década, a despeito de um contexto de provável retomada do crescimento mundial. O Brasil, em todo caso, é o país de menor crescimento entre os emergentes, uma característica que ele deveria tentar superar. O setor privado já fez a sua parte, no sentido de se ajustar às novas condições dos mercados internacionais; cabe ao governo, agora, tentar fazer a sua, sobretudo atuando de modo responsável no plano fiscal. No plano internacional, finalmente, o Brasil deve continuar a se articular com os três outros membros do Bric, bem como com outros países relevantes dentre os emergentes – como a África do Sul, país com o qual o Brasil constitui um outro grupo, junto com a Índia (o IBSA) – no sentido de oferecer propostas reformistas das instituições financeiras que contemplem o aumento do poder decisório desses países nessas instituições.

2044. “O Brasil e o G20 financeiro: alguns elementos analíticos”, Brasília, 10 setembro 2009, 5 p. Considerações sobre a conjuntura econômica brasileira e a agenda do G20. Postada no Blog Diplomatizzando (15.09.2009; link: http://diplomatizzando.blogspot.com/2009/09/1373-o-brasil-e-o-g20-financeiroartigo.html). Publicada em Mundorama (14.09.2009; link: http://mundorama.net/2009/09/14/o-brasil-e-o-g20-financeiro-alguns-elementosanaliticos-por-paulo-roberto-de-almeida/). Republicado na Meridiano 47 (n. 110. Setembro 2009, p. 5-8; link: http://sites.google.com/a/mundorama.net/mundorama/biblioteca/meridiano47/sumariodaedicao110-setembro2009/Meridiano_110.pdf?attredirects=0&d=1). Relação de Publicados n. 922.

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Terceira Parte

Regionalismo, Integração

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15. Mercosul e Alca na perspectiva brasileira: alternativas excludentes? Cenário econômico e político do debate hemisférico Ao mesmo tempo em que o processo negociador de um acordo hemisférico de livre comércio parecia ter entrado, após a reunião de cúpula de Québec, em abril de 2001, em sua fase decisiva, o Mercosul lutava para preservar sua unidade de propósitos, em meio a uma crise de identidade como nunca vista em sua história de dez anos. Os persistentes problemas políticos e econômicos enfrentados pela Argentina levaram seu novo ministro da economia, Domingo Cavallo, a realizar um ataque frontal ao próprio conceito de união aduaneira, num momento em que o futuro do Mercosul era colocado em dúvida por diferentes observadores de dentro e de fora da região. Essa conjuntura de “revisão de expectativas” no âmbito do Mercosul coincidiu, no primeiro semestre de 2001, com movimentos preocupantes nos cenários econômico e político mundiais. Os efeitos combinados de uma recessão potencial nos Estados Unidos, de crises político-econômicas em pontos diferentes do globo (débâcle da moeda na Turquia, persistência da estagnação no Japão, percepção de um esgotamento “técnico” do modelo cambial da Argentina), ademais de um sentimento de ausência de liderança, de manifestações de arrogância imperial e de relutância em assumir os custos da hegemonia por parte da nova Administração americana, tornaram pública a sensação de que o mundo se encaminhava para a retomada dos surtos de instabilidade financeira e cambial. No plano dos acordos de comércio, parecia evidente que o Mercosul agregava aos antigos contenciosos comerciais um elemento de crise “psicológica”, ao serem reveladas, pela primeira vez, diferenças fundamentais de opinião entre seus principais parceiros quanto aos destinos do processo integracionista. O projeto da Alca, por sua vez, encaminhava-se para suas duas etapas finais – presidência equatoriana até outubro de 2002, co-presidência americano-brasileira em 2003 e 2004 – em meio a uma latente indefinição quanto aos termos precisos do mandato negociador que o Congresso dos EUA precisava atribuir ao Executivo para o fechamento dos acordos de liberalização. Diferenças táticas e desacordos formais entre os Estados Unidos e o Brasil já se tinham manifestado na reunião ministerial de Buenos Aires, em 6 de abril, quando o Governo Bush tentou subordinar o calendário das negociações às suas conveniências eleitorais. A III Cúpula das Américas, realizada em 21 e 22 de abril em Québec, 155

confirmou porém as grandes linhas do cronograma estabelecido de maneira difusa em Miami, em dezembro de 1994, e detalhado em San José, em março de 1998, com uma diferença: as negociações devem encerrar-se em janeiro de 2005 e a Alca começar a ser implementada, após aprovação dos parlamentos nacionais, em dezembro desse ano. A perspectiva concreta de uma área de livre comércio hemisférica a partir de 2006 gerou reações opostas e contraditórias em todos os países da região. Grandes corporações na América do Norte e alguns governos no Cone Sul (Chile e Uruguai, por exemplo) apoiavam sem restrições a rápida implantação da Alca, ao passo que grupos não-governamentais e sindicatos de todas as latitudes manifestavam sua oposição ao esquema, que também era olhado com desconfiança por governos e empresários de países dotados de uma visão crítica em relação ao projeto liderado pelos Estados Unidos, como no Brasil e na Venezuela, entre outros. Em todos e em cada um dos países, argumentos pró e contra a Alca eram esgrimidos com a paixão das querelas ideológicas, quando não com o ardor das guerras de religião. A razão de tantos desencontros era o caráter ainda difuso dos compromissos a serem alcançados ao cabo do esforço negociador hemisférico. Nesse cenário de incertezas externas e de dúvidas internas, a opinião pública brasileira foi finalmente apresentada ao grande debate que, na área da política externa, deverá permear a campanha eleitoral no escrutínio presidencial de 2002. As grandes perguntas pareciam ser: quais são as grandes opções estratégicas de política comercial e industrial para o Brasil nos primeiros anos do século XXI?; será possível garantir a soberania nacional numa área de livre comércio dominada pelos EUA?; os ganhos serão maiores que os custos?; o que acontecerá com o Mercosul? Em relação ao contexto subregional, estavam em causa, de um lado, a sobrevivência do Mercosul, de outro o espectro de sua diluição na Alca, aliás ao mesmo tempo em que a própria economia nacional poderia perder sua última “reserva de mercado” representada pelo esquema do Cone Sul, tendo de conviver diretamente com o Big Brother econômico do Norte. De fato, quais são as grandes questões em jogo nesse cenário aparentemente maniqueísta e dicotômico prometido pela aparente oposição entre Mercosul e Alca? Quais são os limites e condicionalidades impostos ao Mercosul pelas fragilidades reveladas pelos países membros? Quais são as oportunidades e desafios colocados pela Alca a uma economia em transição como a brasileira? O que existirá (ou permanecerá) depois de uma eventual conclusão exitosa do processo negociador da Alca, com sua implantação a partir de 2006? São esses dois esquemas integracionistas excludentes do 156

ponto de vista da economia política da inserção regional e internacional do Brasil? Há esperança dentro do Mercosul? Existirá vida (econômica) depois da Alca? O presente texto pretende discutir esses problemas e tentar responder a algumas dessas questões não mediante uma análise separada e pormenorizada de cada um dos aspectos da problemática, mas destacando em forma breve, na próxima seção, os elementos característicos de cada um dos processos e estimando, em seguida, os elementos “estruturais” do cenário hemisférico tal como decorrente de uma eventual negociação hemisférica bem sucedida, isto é, ao terem sido hipoteticamente cumpridos alguns dos objetivos “maximalistas” do Mercosul e ao terem sido atingidos alguns dos objetivos “minimalistas” da Alca. Pretende-se, assim, examinar o “caso econômico” do Brasil e do Mercosul em face da promessa (ou ameaça) da Alca, no quadro de um exercício especulativo sobre o “day after”, ou seja, o Mercosul depois de uma eventual Alca. Não é preciso alertar que essa problemática será examinada de uma perspectiva exclusivamente brasileira, refletindo, obviamente as opiniões pessoais do autor, que não se confundem, nem necessariamente refletem as da burocracia governamental para a qual trabalha. Estado do problema: o caso do Mercosul e o projeto da Alca O Mercosul, com todos os seus problemas de união aduaneira imperfeita e de zona de livre comércio inacabada, apresenta-se como um dado da realidade econômica e política da América do Sul, ao mesmo tempo em que representa um processo real de aproximação de posições entre países que já partilham de uma história comum. A Alca, por sua vez, é uma hipótese de trabalho, ao mesmo tempo em que a expressão de um processo negociador que se apresenta como de difícil realização, por envolver nações de tradições diversas e que seguiram itinerários contrastantes ao longo do tempo. O Mercosul é uma decisão fundamentalmente política que se realiza apoiado em decisões de caráter econômico. A Alca é uma proposta essencialmente econômica que seus proponentes originais tentam implementar de forma política. O Mercosul emerge como um exercício de convergência de interesses entre países situados, grosso modo, num mesmo patamar de desenvolvimento econômico e social, a despeito de diferenças de tamanho entre eles. A Alca tenciona nivelar o terreno de jogo – level the playing field – entre economias e sociedades ostentando enormes diferenças estruturais entre si, uma vez que confronta a principal potência planetária, de fato a única superpotência 157

existente, a três dezenas de outros países que não chegam a perfazer um quinto de sua própria “massa atômica”. O Mercosul vem praticando um esforço de auto-contenção nos litígios internos, utilizando-se basicamente de um mecanismo de administração política das controvérsias ligadas ao comércio recíproco e só então recorrendo a um tipo de solução arbitral ad hoc. A Alca deveria normalmente ostentar instâncias resolutivas dos conflitos comerciais marcadas pela sua relativa automaticidade e independência dos governos, com efeitos econômicos mais ou menos imediatos. Em suma, o Mercosul é uma modesta construção integracionista que funciona em regime de condomínio, com relativa permeabilidade e associativismo entre os seus, até agora, poucos membros. A Alca apresenta-se como um imenso edifício de escritórios, onde a impessoalidade de trato e a frieza das regras padronizadas prometem poucos momentos de excitação e muitos anos de aborrecimento. Os mais otimistas acreditam que quaisquer que sejam os resultados do processo negociador da Alca, o Mercosul irá necessariamente sobreviver, ainda que não se saiba exatamente como e em que condições. Seu desempenho comercial pode tornar-se francamente medíocre, a depender da profundidade e extensão da Alca, assim como sua saúde econômica pode retroceder significativamente em relação aos prognósticos realizados no início dos anos 1990. Ele poderá, obviamente, sair fortalecido e confirmar o acertado da decisão original de se construir progressivamente um mercado comum com base numa metodologia inovadora em relação às experiências existentes no gênero, na verdade restritas ao precedente da União Europeia. Mas, ele poderia também caminhar para a erosão e ser reduzido a um mero arranjo para consultas políticas de fachada, sem maiores efeitos comerciais efetivos, já que hipoteticamente absorvido ou diluído numa Alca bem mais ambiciosa do que os exemplos tradicionais de zonas de livre comércio. No caso da Alca, subsistiam, na primeira metade de 2001, incertezas quanto ao desenvolvimento do próprio processo negociador, como a ausência e a indefinição de conteúdo em relação ao necessário mandato a ser atribuído pelo Congresso ao Executivo dos EUA. Outras limitações de natureza política – como a ausência de consultas regulares entre os líderes dos países membros, como ocorre hoje a cada semestre no Mercosul – e alguns fatores condicionantes – como a desproporção de peso comercial entre os países participantes – atuavam para converter a implementação efetiva da Alca em um cenário de incertezas. Se o processo negociador não resultar em 158

acordo até o final de 2004 ou o início de 2005, o cenário hemisférico não será muito diferente do atual, com a proliferação quase anárquica de esquemas sub-regionais, convivendo com as tentativas multilateralistas de “convivência pacífica” ao abrigo da ALADI ou da OMC. Se por acaso as negociações se revelarem exitosas, o Mercosul terá de adaptar sua arquitetura institucional e sua agenda interna à nova realidade da Alca. A Alca pode ser complementar aos arranjos sub-regionais já existentes no Cone Sul, dependendo de seu grau de aprofundamento e dos compromissos específicos contraídos pelos países participantes. Ela não é, portanto, necessariamente excludente em relação ao Mercosul, mas a substância deste último conhecerá, é óbvio, inflexões econômicas importantes em função da disposição dos países membros em preservar essa construção política em face de um poderoso concorrente comercial. O “day after”: o Mercosul depois da Alca Admitindo-se que a opção pelo estabelecimento de um espaço integrado em seu imediato entorno geográfico, tal como evidenciado na experiência do Mercosul, constitui uma das principais vertentes da estratégia brasileira de inserção econômica internacional na atualidade, pode-se perguntar em que o desenvolvimento dessa modalidade restrita de interdependência econômica contribui para o fortalecimento de sua economia e como a irrupção da proposta da Alca pode, ao contrário, enfraquecer a “soberania” econômica do Brasil e colocar em perigo as fundações do Mercosul. Registre-se que as questões acima já comportam uma opção de princípio pelo Mercosul e uma recusa apriorística da Alca, como parece ocorrer com a maior parte dos atuais comentaristas da economia brasileira. Com efeito, muitas das questões que cercam o debate sobre as vantagens e desvantagens da Alca para o Brasil e o Mercosul vem sendo contaminadas por uma espécie de parti pris ideológico, ou seja, uma posição de princípio que, por um lado, tende a recusar, em caráter absoluto, os fundamentos e as implicações econômicas da zona de livre-comércio hemisférica, aceitando, por outro lado, a estratégia política de “menor custo” do Mercosul para a economia brasileira ou a opção pela associação deste bloco com a supostamente mais benigna União Européia. São politicamente realistas ou economicamente racionais tais pontos de vista e correspondem eles aos interesses bem pensados da sociedade brasileira, que parece ter chegado a uma nova etapa de sua transição para a modernidade? 159

Esta não é a postura assumida neste ensaio, que propugna um exame ponderado de cada um dos elementos em jogo, tendo em vista exclusivamente a formulação da melhor estratégia possível de inserção econômica internacional do Brasil. Caberia discutir cada um dos argumentos favoráveis ou contrários à Alca, tentando separar o que se apresenta como realidade econômica decorrente da liberalização, ou seu possível desdobramento, daquilo que se poderia classificar como posicionamento político em relação ao projeto proposto pelos EUA para o continente. Outra distinção importante a ser feita é aquela que se refere ao que se poderia chamar de “componentes estruturais da Alca” – seus elementos “imanentes”, em linguagem kantiana – e a simples mecânica do processo negociador, que vem se desenvolvendo desde a segunda metade dos anos 90 e promete estender-se até o início de 2005, pelo menos, segundo o que foi acordado em nível ministerial em Buenos Aires e ratificado na cimeira de Québec, em abril de 2001. Com efeito, até a conclusão dessas negociações, cujos contornos específicos dependem muito do conteúdo do mandato negociador a ser atribuído pelo Congresso ao Executivo dos Estados Unidos, torna-se difícil especular sobre benefícios e ameaças da Alca para a economia do Brasil e para o esquema do Mercosul. Pode-se no entanto antecipar, com base nas evidências até aqui demonstradas, que o legislativo e os negociadores americanos tendem a ver a construção da Alca como um mero resultado da derrubada de barreiras latino-americanas aos produtos e serviços dos EUA, cabendolhes muito pouco fazer em termos de suas próprias barreiras, senão a eliminação geral, com as exceções de praxe, das tarifas normalmente baixas aplicadas na importação de produtos. Essa não tem sido a visão da diplomacia brasileira, que vem buscando colocar na mesa de negociações outros elementos importantes com vistas a lograr um acordo final mais equilibrado, não apenas em termos de acesso a mercados – onde são evidentes diversos focos setoriais de protecionismo americano – mas também no que se refere a normas e disciplinas de política comercial, terreno no qual são igualmente claras as restrições aplicadas a produtos estrangeiros no mercado americano. Um ponto precisa ficar claro no debate que se vai seguir. A compreensão do que seja um acordo de livre-comércio varia muito de perspectiva, segundo se faça uma análise acadêmica dos resultados da abertura econômica e da liberalização dos mercados ou se parta de evidências mais empíricas resultantes de um processo negociador concreto. Na primeira visão, geralmente de cunho economicista, a liberalização comercial, quaisquer que tenham sido sua amplitude e distribuição entre os parceiros, é vista como positiva, pois que conduzindo a uma alocação ótima de recursos 160

e uma utilização mais eficiente da dotação em fatores. Na segunda perspectiva, pode-se dizer que não existe, para a maior parte dos negociadores, essa figura utópica do “livrecomércio”, um conceito puramente imaginário que só se materializa nos escritos dos teóricos acadêmicos, mas na verdade dotado de pouco embasamento prático; para eles, se trata de lograr a melhor situação possível de reciprocidade no processo de abertura comercial, administrando áreas de liberalização progressiva em função das vantagens percebidas ou aparentes. Trata-se de um dilema teórico-prático que não poderá ser resolvido no presente texto, que tem apenas o objetivo de oferecer alguns elementos de reflexão sobre as opções do Brasil e do Mercosul na presente fase de discussões sobre a consolidação interna e o aprofundamento do bloco sub-regional em face da opção hemisférica representada pela Alca. A discussão pode ser organizada em torno de algumas perguntas fundamentais, as mesmas que vêm sendo repetidamente colocadas pelos representantes dos meios de comunicação aos negociadores e estudiosos acadêmicos do processo hemisférico. A Alca é desejável, benéfica ao Brasil, funcional para seus objetivos de desenvolvimento econômico e social? A Alca representa uma espécie particular no gênero integracionista, tratando-se de um processo de liberalização controlada dos mercados e de abertura administrada da economia que já vem sendo aplicado pelo Brasil desde que ele assumiu compromissos negociais nesse sentido em princípios dos anos 60 (criação da Alalc) e, com maior ênfase, a partir dos esquemas bilaterais de integração com a Argentina (1986-88) e, de forma quadrilateral, com os demais parceiros do Mercosul (1991). Os cálculos sobre custos e benefícios desse gênero de abertura foram conduzidos de forma mais ou menos empírica pelos responsáveis políticos e econômicos em cada uma dessas oportunidades e julgados compatíveis com as necessidades de desenvolvimento do Brasil, ainda que em nenhum dos casos se tenha alcançado a liberalização total e a integração completa dos mercados. Do ponto de vista estrito da otimização das oportunidades econômicas, toda experiência de integração, ainda que na forma simplificada da eliminação de barreiras aduaneiras sob um regime de livre-comércio, é desejável, relativamente a uma situação de plena autonomia econômica, pois que correspondendo a uma etapa inicial de liberalização de mercados e de inserção nos circuitos da interdependência mundial, 161

mesmo num âmbito geográfico mais restrito. Os economistas, procedendo a uma simulação teórica de caráter extremo, recomendariam aliás uma liberalização unilateral erga omnes, isto é, conduzindo à plena integração com o mundo, pois que permitindo nesse caso o livre fluxo de fatores e uma alocação ótima das dotações econômicas. Esse tipo de exercício ricardiano não foi contudo tentado por nenhum país da era moderna, tendo apenas se manifestado de maneira mais ou menos abrangente sob o capitalismo de vanguarda da Inglaterra vitoriana. Desde então, as experiências de liberalização tem sido conduzidas sob forma condicional e restrita, tendo alcançado maior desenvolvimento na Europa ocidental, nos diversos esquemas ali conhecidos desde o final dos anos 1940 (no Benelux, na Ceca, na Comunidade Européia, na Aelc, na União Européia, notadamente). Todos esses exemplos têm confirmado empiricamente os pressupostos teóricos traçados pelos economistas sobre os benefícios da liberalização ampliada. Não deveria, portanto, ser diferente para o Brasil, tanto no formato mais restrito do Mercosul como no esquema ampliado de uma futura Alca, ainda que não se possa arriscar previsões mais positivas quanto a seu caráter funcional, ou não, para seus objetivos de desenvolvimento econômico e social. Em princípio, a resposta é positiva, ainda que de forma indireta, uma vez que a integração e a liberalização produzem situações de maior eficiência alocativa, conduzindo ipso facto ao aumento da produtividade, à expansão do emprego e à elevação dos níveis de remuneração. Deve-se no entanto observar que o processo de liberalização comercial, estrito senso, não tem como missão histórica “produzir” desenvolvimento, isto é, provocar transformações estruturais na formação social que envolve o sistema econômico, mas tão somente produzir uma maior eficiência produtiva, o que por si só não gera distribuição de riqueza ou justiça social. A agenda desenvolvimentista é algo mais ampla que a forma de organização social da produção, implicando em um complexo jogo de fatores políticos e sociais que ultrapassam em muito as possibilidades transformadoras da abertura econômica e comercial. Resumindo: a Alca pode ser benéfica para o Brasil, mas não se deve esperar que ela resolva todos os nossos problemas de desenvolvimento econômico e social no curto ou médio prazo; estes só podem ser encaminhados internamente, com a mobilização de outros vetores de transformação estrutural – educação, capacitação profissional, investimentos em ciência e tecnologia, modernização institucional etc. –, não de maneira exógena a partir de um impulso originado no entorno econômico externo. 162

Mercosul e Alca são compatíveis entre si?; a Alca não pode simplesmente dissolver o Mercosul e condená-lo ao desaparecimento enquanto experimento sub-regional? Em princípio, Alca e Mercosul são plenamente compatíveis entre si e até complementares, uma vez que os esquemas de livre-comércio, mesmo baseados em processos negociais autônomos e independentes, tendem a se reforçar mutuamente e a produzir eficiências dinâmicas que potencializam os ganhos alocativos. No que se refere especificamente ao caso desses dois esquemas americanos, pode-se argumentar que uma zona de livre-comércio maior tende a absorver e a diluir a menor, que foi o que ocorreu, comparativamente (no gênero união aduaneira), entre o Benelux e a Comunidade Européia no decorrer dos anos 70 e 80. Este não deveria ser o destino, porém, do Mercosul, que corresponde a uma etapa superior da família integracionista, suplementando seu compromisso de livrecomércio com as obrigações de uma união aduaneira (tarifa externa comum, política comercial comum) e visando alcançar, num horizonte histórico ainda indeterminado, uma situação de mercado plenamente unificado. Em outros termos, o Mercosul sobreviveria e até poderia aumentar seu grau de coesão interna ao enfrentar o desafio de uma zona de livre-comércio envolvente, mesmo se no caso da Alca se trata, potencialmente, de uma “super” zona de livre-comércio, compreendendo aspectos pouco usuais nesse gênero de exercício (como compromissos em matéria de propriedade intelectual, política da concorrência, compras governamentais e outros compromissos setoriais não estritamente comerciais). Na prática, é evidente que o “mercado comum do Sul” não passa, atualmente de uma zona de livre-comércio deficiente e incompleta, pois que prejudicada pela existência de alguns setores restritos à abertura interna recíproca e de outros funcionando sob regime de comércio administrado. Sua união aduaneira “em fase de implementação” tampouco é consistente com os pressupostos teóricos e empíricos desse tipo de esquema, pois que tendo de conviver com exceções nacionais à tarifa externa comum, regimes comerciais específicos a algumas situações nacionais “temporárias e excepcionais” e de fato carente de uma administração aduaneira uniforme e dotada de regras claras (falta de um código aduaneiro ou disposições quanto à arrecadação fiscal, por exemplo). Ainda assim, mesmo que o comércio intra-Mercosul seja absorvido e dissolvido no esquema mais amplo da Alca, o Mercosul tenderá a sobreviver enquanto construção 163

institucional, pois que resultando de uma decisão política no mais alto nível, que aponta no sentido de sua progressão contínua, ainda que lenta e por vezes intermitente, em direção de um mercado comum e talvez até mesmo de uma união econômica, a exemplo da Europa de Maastricht (pelo menos no que se refere à união monetária). Os perigos que cercam sua evolução comercial derivam mais dos desafios competitivos associados ao polo econômico dominante e da força centrífuga do dólar dos EUA, do que da Alca em si, que seria pouco relevante se fosse hipoteticamente subtraída a potência hegemônica. Mas, mesmo nessa situação extrema de eventual inoperância econômica do Mercosul em razão da preeminência absoluta dos EUA no esquema hemisférico, o projeto sub-regional do Cone sul tende a sobreviver, pois que ele compreende bem mais do que simples compromissos liberalizadores, estendendo-se a entendimentos sociais, administrativos e de políticas setoriais outras que as meramente econômicas (justiça, turismo e cultura, ciência e educação, previdência social, entre várias outras), o que justificaria a continuidade desse projeto político e societal. Resumindo: a Alca representa um enorme desafio para a continuidade e para a afirmação da personalidade do Mercosul, mas a dissolução deste só se daria por expressa decisão e vontade dos dirigentes políticos dos países membros, não em função da criação e implementação plena de uma zona de livre-comércio hemisférica, que forma alguma eliminará, ao contrário até estimulará, o desenvolvimento de outras vertentes integrativas entre os países membros e associados do Mercosul. Este tem um capital político e uma cultura própria que jamais serão alcançados no plano hemisférico, por mais poderosa e abrangente que venha a ser a Alca no domínio econômico e comercial. O projeto da Alca não representa uma ameaça fundamental às economias do Brasil e do Mercosul, pelo fato de que sua vocação liberalizadora vai além da agenda tradicional de uma zona de livre-comércio, ou devido a que os elementos de assimetria estrutural são extremamente relevantes quando confrontados ao cenário mais homogêneo da América do Sul ou à dimensão mais modesta de todas as outras economias hemisféricas, à exceção dos EUA? Sem dúvida que a pauta negociadora da Alca vai muito além do que vinha sendo aceito como a agenda “normal” de uma zona de livre-comércio – compreendendo apenas liberalização do intercâmbio de bens, mais algumas disposições de caráter 164

aduaneiro para evitar triangulação indevida –, abrangendo serviços, propriedade intelectual, compras governamentais, investimentos e outros aspectos menos relevantes, segundo um programa de abertura e de regulação que já se convencionou chamar de “OMC plus”. Pode-se no entanto argumentar que a Alca apenas antecipa, ou acelera, esses aspectos pouco usuais das “velhas” zonas de livre-comércio e que tanto o Brasil como o Mercosul encontrariam a mesma pauta de reivindicações liberalizantes numa próxima rodada de negociações comerciais multilaterais ou se decidissem empreender esforço similar com outros esquemas regionais (como a CAN, a UE ou outros grupos de países). Nem tudo porém é tão somente uma questão de tempo, já que a ambiciosa agenda da Alca certamente coloca desafios de monta aos países do Cone Sul, em especial no que se refere aos diferenciais de competitividade nos diferentes setores que serão presumivelmente incorporados ao esforço liberalizador hemisférico (serviços, compras governamentais, investimentos, por exemplo). Mas, deve-se observar que os mesmos temas encontram-se previstos no exercício interno ao Mercosul, processo extremamente complexo e tematicamente diversificado, a despeito mesmo do pequeno número de países engajados e da dimensão mais modesta de seus aparelhos produtivos e de serviços, em grande medida voltados para os próprios mercados nacionais. Mais uma vez neste caso, a Alca coloca ao Mercosul o desafio de seu próprio aprofundamento interno, preservando áreas de preferência sub-regional num cenário mais amplo de liberalização progressiva no plano hemisférico. A homogeneidade cultural e a intensidade de vínculos intra-Mercosul deve atuar em seu benefício, estimulando negócios no âmbito sub-regional mesmo em face de oportunidades ou desafios potenciais no cenário continental mais vasto. Alternativamente, os perigos presumidos ou efetivos para o Mercosul derivados do esquema da Alca poderiam ser pressentidos a partir das assimetrias fundamentais que caracterizam as economias do hemisfério, não apenas em termos de dimensão bruta (a chamada economia de escala), mas essencialmente em razão dos diferenciais intrínsecos de produtividade e de capacidade de penetração mercadológica. Ainda aqui, os perigos são mais supostos do que reais, uma vez que algumas vantagens comparativas naturais e dinâmicas dos países do Mercosul podem servir de contrapeso ou atuar em seu benefício, no confronto com a potência avassaladora do gigante do Norte. É de se esperar, por exemplo, que mesmo depois de empreendido sério esforço de modernização produtiva e de aggiornamento tecnológico por parte dos países do 165

Mercosul, os diferenciais de produtividade permanecerão importantes em relação àqueles observados em setores de serviços e ramos industriais nos quais os EUA já detêm uma liderança incontestável. Mesmo neste caso, os diferenciais de custos de mão-de-obra para serviços associados, particularidades dos mercados locais, diferenças ou especificidades culturais, assim como o simples fator da proximidade geográfica atuarão em benefício do Brasil e do Mercosul para uma ampla gama de bens e serviços, produzindo portanto atração de investimentos e transferência de tecnologia num horizonte de tempo indeterminado depois de começada a implantação da Alca. Numa análise puramente econômica, aliás, a “ameaça” das assimetrias não apresenta a mesma relevância estrutural, se pensada fora de um esquema de capitalismo “nacional”. Com efeito, os economistas deduzem uma situação de maior racionalidade econômica intrínseca quando um país industrialmente menos desenvolvido se associa, num esquema de livre-comércio, a um parceiro mais poderoso, não quando dois ou mais países igualmente “subdesenvolvidos” empreendem a construção de um “mercado comum”. Daí as frequentes críticas de economistas “liberais” ao esquema do Mercosul, manifestando eles a opinião de que o Brasil deveria abrir-se diretamente aos EUA num exercício de comércio preferencial, pois tal situação conferiria mais vantagens a sua economia menos avançada, ademais de permitir o desenvolvimento das especializações produtivas. Na prática, como já constatamos, as situações de livre-comércio nunca são perfeitas, persistindo espaços de liberalização restrita e diversos mecanismos de proteção setorial que inviabilizam o pleno jogo da movimentação de fatores idealizada pelos economistas teóricos. Não se trata aqui de uma questão que possa ser resolvida in abstracto, podendo apenas ser equacionada no terreno concreto das negociações para a definição das regras da futura zona de livre-comércio hemisférica, assim como no domínio bem mais prático (e microeconômico) das associações produtivas que serão promovidas voluntariamente pelas próprias empresas, independentemente da vontade dos governos. Com efeito, as empresas, conhecendo o cenário ambiental em que terão de atuar num determinado setor, antecipam-se às medidas governamentais de “imposição” de novas regras, construindo alianças táticas e acordos pragmáticos com competidores e parceiros no seu setor de atividade, atuando assim para reduzir progressivamente tais assimetrias. Esse processo será tão mais rápido quanto mais desregulado e aberto for o mercado setorial em questão. 166

Não é certo, por exemplo, que as empresas brasileiras e as do Mercosul sejam invariavelmente menos performantes do que as dos EUA em todos os setores abertos à competição, assim como não é seguro que o diferencial mercadológico em favor das empresas multinacionais seja válido em todas as situações de acesso e de penetração em novos mercados. Segmentação da demanda, disponibilidade de fatores, apresentação dos produtos, identificação cultural e sobretudo capacidade adaptativa e imaginação criadora podem atuar em proveito de empresas locais em certas áreas de bens e serviços. O Brasil, historicamente, já demonstrou possuir uma enorme capacidade de “digestão” de novas tendências e de novas técnicas produtivas, não havendo razão para acreditar que ele não saberá responder ao desafio que a Alca coloca para o seu sistema produtivo e para a sua capacidade inovadora. A passividade e o fatalismo nunca foram traços da personalidade brasileira. Resumindo: a Alca possui, sem dúvida, um certo potencial “destruidor” de empregos, em função das diferenças reais ou presumidas, de escala e de produtividade, entre as economias hemisféricas, assim como pelo fato de ela estender-se a uma gama tão ampla de setores que ultrapassa, por vezes, a capacidade “balanceadora” e a missão “restauradora” das condições “normais” de competição por parte dos governos nacionais. Sem embargo, os perigos são mais aparentes do que reais, na medida em que o próprio setor privado encontrará soluções pragmáticas a tais assimetrias, que representam outras tantas oportunidades para ganhos temporários antes que a liberalização regional se converta em verdadeiro processo de globalização. Neste caso, o excesso, ou a tentativa, de regulação governamental pode dificultar, mais do que facilitar, o processo de superação das assimetrias existentes. Meio ambiente e normas laborais são fatores limitantes e negativos no esquema de negociações hemisféricas?; tais cláusulas vão bloquear a expansão do comércio ou o livre fluxo dos investimentos? Tais normas, a exemplo das barreiras técnicas e outras medidas não-tarifárias que limitam ou obstaculizam o pleno acesso aos mercados, podem efetivamente constituir fatores limitantes a uma verdadeira liberalização hemisférica, pois que confirmando, se implementadas a partir de uma visão exclusivamente nacional da questão, o sistema de “arquipélago de economias” que caracterizou, durante muito tempo, a economia internacional. A dificuldade não está tanto na fixação de um 167

determinado padrão, supostamente mais elevado, para equacionar problemas no campo trabalhista e na proteção do meio ambiente – algo continuamente tentado nos foros multilaterais –, mas em sua utilização abusiva, de forma unilateral, para bloquear a livre movimentação de bens, serviços e de capitais e tecnologias, inclusive mediante o recurso a sanções de natureza comercial. Essa possibilidade deve ser simplesmente vetada na mesa de negociações, pois que correspondendo a uma reação protecionista daqueles que desejam “fazer girar para trás a roda da história”, ou seja, impedir que o capital se dissemine pelo planeta, aproveitando as melhores chances de custo-benefício para uma alocação “ótima” de recursos. Parece ocorrer, nesse particular, uma curiosa colusão de interesses e de propósitos entre sindicalistas do Norte e seus contrapartes do Sul, entre ONGs de ecologistas das duas pontas do continente americano, entre refratários pragmáticos (por definição de direita) e opositores ideológicos (geralmente de esquerda) ao livrecomércio, ademais da já conhecida (e pouco santa) aliança entre anti-globalizadores de todos os quadrantes do hemisfério. Normas laborais e ambientais converteram-se no terreno comum de luta de todos aqueles que se posicionam contrariamente à Alca, seja pelos nobres motivos da defesa efetiva do meio ambiente e dos direitos humanos, seja por aqueles bem mais interessados (e por vezes mais mesquinhos) da defesa do emprego local ou de uma idílica produção saudável (e subsidiada), em fazendas familiares supostamente protegidas da concorrência selvagem introduzida pelas variedades geneticamente modificadas. O mais estranho, certamente, é ver sindicalistas do Sul defendendo empregos no Norte – uma vez que a introdução de normas laborais tem precisamente como objetivo impedir a “fuga” do capital, e portanto a transferência de empregos ao sul do Rio Grande – ou ecologistas normalmente contrários à desigualdade inerente às estruturas econômicas internacionais promovendo o protecionismo agrícola nos países desenvolvidos ou a manutenção involuntária de populações inteiras de coletores-extrativistas nas regiões tropicais em níveis próximos da miséria absoluta. A formulação tentativa e a promoção ativa de normas e padrões ambientais e laborais mais avançados, quando combinada aos estímulos adequados para a livre circulação de fatores, inclusive da mão-de-obra, pode no entanto atuar como elemento de melhoria nos padrões de vida da maioria da população, sobretudo nos países ainda em desenvolvimento, servindo para elevar a produtividade do trabalho e a performance geral das economias mais atrasadas. Sua vinculação a acordos de comércio tem a virtude, porém, de bloquear a disseminação desses mesmos padrões que seus 168

promotores querem ver implementados, uma vez que dificultando a mobilidade do capital e a transferência de tecnologia pela simples razão de inibir os fluxos de comércio, em lugar de estimulá-los. Resumindo: Um sistema de códigos de conduta, de caráter voluntário mas de adesão progressiva, para padrões ambientais e laborais pode permitir superar situações de bloqueio “psicológico” que vêm contribuindo para contaminar o ambiente negociador da Alca. Quanto ao Brasil, consciente das limitações, mas também dos enormes progressos realizados nessas áreas, ele não parece ter algo a temer a partir da fixação de metas mais ambiciosas nos terrenos social e ambiental. A fixação de metas indicativas para a adesão progressiva dos países, mais do que a determinação de padrões uniformes para todos numa escala sincrônica de tempo, pode servir para reconciliar o capital e o trabalho, assim como ecologistas e empresas. Práticas abusivas de salvaguardas comerciais e de antidumping, assim como políticas deliberadamente distorcivas das condições de comércio, a exemplo das medidas de apoio interno na área de agricultura, podem falsear os resultados da Alca, tornando o exercício liberalizador meramente retórico e desequilibrado? Certamente, e aqui o Brasil e o Mercosul devem atuar com toda a determinação possível para eliminar as práticas mais danosas à liberdade de comércio nos terrenos em que ele apresenta uma competitividade “natural” bastante superior à do parceiro supostamente mais poderoso. Os EUA, com efeito, já declararam que pretendem deixar intocada, no processo de negociações da Alca, sua panóplia de medidas de defesa comercial, numa postura contraditória com o espírito de qualquer negociação multilateral, na qual todos os elementos possuindo incidência nos fluxos de comércio devem ser honestamente objeto de exame e eventual discussão quanto a sua adequação ao novo espaço econômico integrado. Esse posicionamento tem menos a ver com a suposta consistência desses mecanismos nacionais de defesa comercial com as regras do GATT do que com o elemento de chantagem política exercido pelo Congresso contra a liberdade de ação dos negociadores do Executivo dos EUA. Trata-se de elemento puramente político, não sustentável em qualquer critério econômico de competição leal e de abertura negociada de mercados, e inteiramente dependente do exercício de uma efetiva capacidade negocial que deve poder manifestar-se no caso do Mercosul e do Brasil em particular. 169

Resumindo: Um acordo de livre-comércio hemisférico no qual determinados componentes da agenda permanecem unilateralmente inegociáveis – uma reprodução econômica do conhecido aforismo orwelliano segundo o qual no “socialismo comercial” todos são iguais, mas alguns são “mais iguais do que outros” – não parece corresponder aos princípios aprovado em Belo Horizonte, em 1997, quanto ao equilíbrio de resultados e ao compromisso indivisível em benefício de todos. A Alca conduzirá à desnacionalização da economia brasileira? Subsistirão políticas setoriais em nível nacional, diminuirá a margem de liberdade alocada à política econômica governamental? A eventual “desnacionalização” – não de setores, mas de frações de mercados setoriais – a partir da venda ou fusão de empresas brasileiras a gigantes estrangeiros nãonão será diferente ou em todo caso maior do que já ocorre no âmbito do processo de globalização atualmente em curso, que foi voluntariamente assumido pelo Brasil como um desafio importante a ser vencido, não como uma ameaça a ser evitada. Em nenhum dos processos conhecidos de ativa interdependência econômica, como são os existentes no âmbito da OCDE e a fortiori no seio da UE, diminuiu o papel do Estado ou enfraqueceu-se a economia nacional, pela simples razão de que o capital estrangeiro passou a participar com maior intensidade dos esquemas produtivos internos e dos circuitos locais de produção e distribuição. Ao contrário, as “pequenas” empresas locais adquirem dimensão nacional e a partir daí passam a atuar no plano internacional, constituindo um “capitalismo multinacional” que foi até agora o apanágio dos países mais avançados. Ocorreu assim nos casos de Portugal e Espanha, assim como da Itália, e não há porque descartar que tais processos venham a ocorrer igualmente no âmbito do Brasil e do Mercosul. O Brasil tem, por certo, um crônico problema de déficit em transações correntes e de desequilíbrio na balança de pagamentos, que acompanharam todo o seu processo de industrialização. Mas tais fragilidades estão igualmente associadas ao ambiente geral dos negócios, mais do que à ausência de capacidade reguladora do Estado, que assumirá formas novas num cenário mais previsível de planejamento microeconômico. O fato de que parceiros estrangeiros passem a atuar em setores antes vedados ou mais limitados à presença de multinacionais não se traduz necessariamente numa desintegração automática das cadeias produtivas, antes numa integração destas a circuitos mais amplos nos planos hemisférico ou mundial. 170

É evidente, por outro lado, que qualquer acordo internacional que se faça em áreas ainda inéditas de regulação multilateral ou regional, como é o caso da Alca — que parece apontar para um instrumento relativamente “intrusivo” em termos de políticas setoriais ou de mecanismos regulatórios — redunda numa diminuição da esfera da soberania absoluta dos Estados nacionais e na redução ulterior dos poderes regulatórios dos legisladores econômicos e, na outra vertente, num aumento do grau de interdependência das economias e da margem de liberdade alocada aos agentes econômicos privados. Mas, isso é próprio das tendências atuais tanto do regionalismo, como do multilateralismo econômico, assim como da própria agenda negociadora internacional, das quais participa o Brasil em plena consciência de causa e tendo sempre como critério absoluto de atuação o interesse nacional na matéria. Entre esses critérios não se situa o de privilegiar o capital estrangeiro em detrimento do capital nacional, mas sim em atribuir a ambos um ambiente regulatório relativamente uniforme quanto às regras gerais de exercício da atividade, o que é conhecido em terminologia “gattiana” como tratamento nacional. Resumindo: a internacionalização da economia brasileira e a constituição de firmas nacionais de dimensão internacional – algo presumivelmente desejado, mesmo pelo mais ferrenho opositor da Alca e do capitalismo norte-americano – se dará, não no quadro de um suposto processo de “preparação” da economia brasileira para “enfrentar a concorrência externa” – período de tempo que é sempre indefinido e invariavelmente dependente de condições “ótimas” de políticas macroeconômicas, comercial e industrial, que nunca se realizam na prática –, mas no próprio bojo da globalização, seja ela restrita ao hemisfério ou ampliada em escala planetária. Processos de “acumulação primitiva” nunca ocorreram de fato, a não ser nas análises ex-post que tendem a racionalizar a experiência histórica e a oferecer como “modelo” o que nunca passou de um processo único e original em termos de desenvolvimento socioeconômico de uma determinada formação nacional. 1 O Brasil estaria isolado se decidisse permanecer fora da Alca?

1

Este último ponto apresenta uma certa importância (teórica) do ponto de vista da sociologia do desenvolvimento econômico, mas tem pouca relevância prática do ponto de vista do negociador governamental ou do estadista, que precisam responder às preocupações de suas respectivas clientelas, sempre inquietas com qualquer tipo de penetração estrangeira na economia nacional.

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Trata-se de uma decisão inteiramente política, a partir de uma hipótese extrema, mas que terá de ser tomada com base numa análise econômica e diplomática no curso do processo negociador. A Alca não é o único processo negociador de que participam ou participarão o Brasil e o Mercosul, bastando com mencionar o processo bi-regional com a União Europeia, os entendimentos no contexto da África austral e a opção preferencial no âmbito da América do Sul. As opções para o Brasil e para o Mercosul não estão fechadas, como alguns cenários mais pessimistas parecem antecipar. É bem mais provável, aliás, não existir uma Alca, por razões que não teriam nada a ver com a oposição ou relutância brasileira (mas mais provavelmente com a relutância do Congresso e do próprio Executivo dos EUA), do que ser concluída uma Alca sem a participação do Brasil. Uma revisão de meio século do multilateralismo econômico e político revela que nenhum país de dimensões “respeitáveis”, seja ele “atrasado” ou desenvolvido, permanece isolado no cenário internacional. A experiência histórica da China, da Índia, da Rússia, e dos próprios países desenvolvidos ocidentais, a começar pelos EUA e passando pelos grandes da Europa – hoje unidos no mais exitoso experimento de integração já conhecido – confirma que o isolamento é uma fase temporária e passageira de qualquer processo de emergência e consolidação de novas estruturas de poder econômico e político mundial. A posição do Brasil em relação ao sucesso – ou fracasso – das negociações da Alca não deveria fugir a essa regra não escrita da diplomacia contemporânea. O Congresso dos EUA, aliás, teriam provavelmente maior responsabilidade nesse eventual fracasso, do que uma suposta “intransigência” do Itamaraty ou do Governo brasileiro. Muito depende, em todo caso, da capacidade negociadora da diplomacia brasileira no terreno da barganha concreta em torno da Alca, bem como de sua capacidade “explicativa” em direção dos públicos externo e interno. Nesse particular, o Brasil – dotado de uma diplomacia econômica que deita raízes nas primeiras décadas do século XIX – pode considerar-se bem servido e dispondo de enormes vantagens comparativas em relação a vários outros países do continente.

792. “Mercosul e Alca na perspectiva brasileira: alternativas excludentes?”, Washington, 17 mai. 2001, 20 p. Artigo analítico, derivado do trabalho n. 791, integrado ao livro organizado por Marcos da Costa Lima, O Lugar da América do Sul na Nova Ordem Mundial (São Paulo-Recife: Cortez Editora-FAPEPE, 2001, p. 53-69). Divulgado em partes no Meridiano 47 (n. 13, jul. 2001, p. 2-6; link: 172

http://www.mundorama.info/Mundorama/Meridiano_47_-_1100_files/Meridiano_13.pdf) sob o título “Cenário econômico e político do debate hemisférico”, e n. 14-15 (ago. 2001, p. 11-15; link: http://www.mundorama.info/Mundorama/Meridiano_47_-_1100_files/Meridiano_14_15.pdf), sob título “Mercosul e ALCA: liaisons dangereuses?”. Revisto em 31.10.01, para publicação nos anais do seminário “O Brasil e a Alca” (Brasília: Câmara dos Deputados, org. do Dep. Marcos Cintra). Disponível no site pessoal: http://www.pralmeida.org/05DocsPRA/798MSulAlca.html. Publicado sob o título “O Mercosul e a Alca na perspectiva do Brasil: uma avaliação política sobre possíveis estratégias de atuação”, In Marcos Cintra e Carlos Henrique Cardim (orgs.), O Brasil e a Alca: seminário. (Brasília: Câmara dos Deputados, Coordenação de Publicações: Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais, 2002, p. 97-110, ISBN: 85-7365-188-1). Ensaio incorporado ao livro: Paralelos com o Meridiano 47: Ensaios Longitudinais e de Ampla Latitude (Hartford, 2015). Relação de Publicados ns. 266, 275, 276, 278, 281, 285, 335.

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16. O Mercosul não é para principiantes: sete teses na linha do bom senso Introdução Vou formular algumas “teses” sobre a posição do Brasil em relação ao Mercosul que, aparentemente, têm a pretensão de ser de “bom senso”, ou seja, tratam do óbvio. Mas, elas também são, num certo sentido, iconoclastas, uma vez que nem sempre o óbvio e o necessário são observados na vida real. Em momentos considerados de “ruptura” ou dominados por políticas e práticas “inovadoras”, determinadas posturas diplomáticas não necessariamente refletem o que se poderia chamar de racionalidade econômica stricto sensu, e sim posições e políticas momentaneamente dominantes. Alguma coisa poderia ser agregada em relação aos interesses nacionais, mas esse aspecto pode ser deixado momentaneamente de lado para fins desta discussão puramente conceitual e exploratória. Apresento resumidamente a seguir minhas teses e depois tentarei elaborar sobre cada uma delas. 1. O Mercosul não é, nem pode ser um fim em si mesmo. 2. O Mercosul não contém, não pode conter, não responde e não pode responder a todos os interesses nacionais brasileiros. 3. Os benefícios do Mercosul precisariam, em algum momento, ser confrontados aos seus custos. 4. O Mercosul não é um instrumento de desenvolvimento nacional; é um mecanismo de liberalização. 5. O Mercosul não é uma instituição de caridade (e nem se deveria cogitar de criar uma). 6. As instituições do Mercosul não devem definir-lhe a forma e sim responder a funções reais do processo de integração; por isso não se deve constituir instituições que não respondem a funções concretas. 7. Não se deve temer retrocessos, desde que seja para avançar de maneira mais segura, mais adiante, segundo a conhecida fórmula: reculez pour mieux sauter, recuar para melhor saltar. Vejamos agora cada uma dessas “teses” com maior grau de detalhamento e dotadas das devidas explicações. 1. O Mercosul não é, nem pode ser um fim em si mesmo. O Mercosul, salvo algum entendimento secreto e não sabido entre os negociadores diplomáticos dos países membros, não foi feito com intenções jurídico-conceituais e não se destinava a provar nenhuma tese de cunho acadêmico, para maior glória e 174

excelência de uma integração econômica em si e por si. Ele foi feito para alcançar determinados objetivos que estão explicitados no Tratado de Assunção (TA), de1991. Entre esses objetivos podemos citar: (a) a necessidade de ampliar as dimensões dos mercados nacionais dos países membros, requerimento considerado como “condição fundamental para acelerar seus processos de desenvolvimento econômico com justiça social”. “Justiça social” entra aqui como uma invocação tipicamente política, mas o argumento econômico é claro: ampliar os mercados nacionais, ou seja, lograr economias de escala para suas empresas. (b) Esse objetivo deveria ser alcançado “mediante o aproveitamento mais eficaz dos recursos disponíveis, a preservação do meio ambiente, o melhoramento das interconexões físicas, a coordenação de políticas macroeconômicas da (sic!) complementação dos diferentes setores da economia”, o que também deve ser visto como uma finalidade essencialmente racional do ponto de vista econômico. A metodologia a ser seguida para alcançar esses objetivos toma como base os princípios de “gradualidade, flexibilidade e equilíbrio”, o que em nada diminui a qualidade essencialmente ricardiana dos objetivos propostos. (Nota: o TA padece de erros de redação que não foram corrigidos até hoje.) (c) Uma das justificativas para se avançar no processo de integração foi apresentada como sendo a “evolução dos acontecimentos internacionais, em especial a consolidação de grandes espaços econômicos”, daí “a importância de lograr uma adequada inserção internacional” para os países membros. O processo de integração foi considerado como constituindo “uma resposta adequada a tais acontecimentos”. (Na verdade, não se trata de acontecimentos, ou eventos, mas de processos e fenômenos com prazos mais delongados de maturação e de desenvolvimento do que os eventos a ele associados.) (d) Outros objetivos da decisão dos países membros de firmarem o TA remetem à “necessidade de promover o desenvolvimento científico e tecnológico dos Estados Partes e de modernizar suas economias para ampliar a oferta e a qualidade dos bens de serviços disponíveis, a fim de melhorar as condições de vida de seus habitantes”. Em outros termos, de todos os requerimentos alinhados para justificar o TA, pode-se observar que a integração não é, nem nunca foi, no TA e em outros instrumentos, considerada como um fim em si mesmo. Ela sempre apareceu como um meio para alcançar objetivos relevantes do ponto de vista econômico, social, político, tecnológico e diplomático; em todo caso, ela é mobilizada enquanto instrumento funcional para o 175

atingimento de outros fins que não a integração em si e por si, que deve ser um simples meio ou instrumento para o atingimento daqueles objetivos já explicitados. Ora, o que vem sendo observado, desde alguns tempos para cá, é que a integração parece ter virado um objetivo em si e por si, como se estivéssemos em busca de algum padrão de perfeição estética no campo da integração, ou necessitados de mais uma instituição burocrática que se justificaria por si mesma, apenas por ter o compromisso de realizar a integração. Esta é proclamada prioridade estratégica de diplomacia brasileira (aliás, desde muito tempo), sem que uma avaliação realista tenha sido feita para separar o que aparecia como “necessidade histórica”, numa determinada conjuntura, e o que pode, realisticamente ser feito hoje para inserir o Brasil na economia mundial e nos fluxos mais dinâmicos do comércio internacional e das demais transações financeiras, tecnológicas ou de investimentos. O que pretendo dizer é que, se a integração regional aparecia como funcional para o atingimento de determinados objetivos, numa fase específica do itinerário econômico do Brasil – e isso depende do julgamento dessa época sobre ela mesma e do julgamento que hoje podemos fazer sobre aquele momento, com o benefício da chamada avaliação retrospectiva -, pode perfeitamente ocorrer, atualmente, que ela não mais o seja. Ou então que a forma “modelar” dessa integração, tal como escolhida pelos “pais fundadores”, atendendo eles a requisitos e percepções de uma determinada conjuntura, já não mais corresponda às necessidades da presente fase. Essa avaliação deve ser conduzida com toda isenção política e econômica, com toda independência analítica, separando idéias e princípios pré-concebidos das tarefas e práticas que devemos conduzir hoje, para alcançar os objetivos que são os nossos, nacionais, antes dos objetivos regionais ou multilaterais. Nossa realidade, dispensável dizê-lo, é a da realidade nacional, das necessidades de desenvolvimento da sociedade nacional, e nesse sentido qualquer projeto integracionista deve, antes de mais nada, subordinar-se aos interesses nacionais. Se estes puderem ser combinados aos interesses nacionais de outros países, muito bem, caso contrário, aqueles devem prevalecer. Este deve ser, sempre, o critério básico através do qual devemos abordar o fenômeno integracionista. 2. O Mercosul não contém, não pode conter, não responde e não pode responder a todos os interesses nacionais brasileiros. Pela sua própria definição, enquanto projeto de liberalização comercial e de integração de atividades econômicas de âmbito regional, o Mercosul é uma parte, e 176

apenas uma parte, da economia, do comércio, dos intercâmbios mantidos pelo Brasil com o exterior. Essa parte cresceu tremendamente no curso dos primeiros dez anos da integração, passando grosso modo de menos de 5% dos intercâmbios externos para algo como 14 ou 15% desses intercâmbios na fase presente. Não é certo que esse crescimento das trocas estaria ausente na falta de um projeto integracionista, mas é certo que o projeto ajudou nesse crescimento, tanto quanto ele estimulou certo número de trocas externas, isto é, com terceiros países. O Mercosul – e os países associados e os demais vinculados por acordos de comércio – representa um aporte significativo de mercados adicionais e complementares que podem estar à disposição das empresas brasileiras, tendo em vista os mecanismos preferenciais existentes. Ou seja, ele é uma espécie de reserva de mercado ampliado ou, em certo sentido, uma mini-globalização, que destaca uma parte dos mercados externos para melhor usufruto das competências nacionais. Os economistas debatem, ainda e sempre, se nesse processo não existiria algum desvio de comércio e de investimentos, criando, portanto, situações de third best no quadro das possibilidades das trocas externas. Esse debate continuará, mas cabe reconhecer que, independentemente do maior ou menor grau de desvio de intercâmbios externos, estes, no quadro global, sempre representarão uma pequena parte, apenas, da soma total dos intercâmbios externos. Em algumas áreas eles poderão ser importantes, em outras menos, mas sempre de modo parcial e incompleto. Ora, a melhor das situações, do ponto de vista da racionalidade econômica, é dispor o país, qualquer país, de todas as possibilidades abertas para si. Isso nem sempre é possível, mas trata-se certamente de objetivo a ser perseguido. Não é por outra razão, por exemplo, que Chile e México, em nossa região, e mesmo os EUA, tentam multiplicar as chances de acordos comerciais com todo e qualquer parceiro disponível e aberto a esse tipo de empreendimento, na ausência da situação de first best, que seria a abertura multilateral, incondicional e irrestrita, de todas as economias a todos os tipos de intercâmbios. Não é por exemplo do Paraguai ou do Uruguai que as empresas brasileiras retirarão mercados importantes, financiamento adequado, tecnologias avançadas e sobretudo desafios competitivos para sua melhor e maior inserção na economia mundial. O Mercosul é bom para algumas coisas, mas não o é para outras, ou para todas, e como tal deve ser considerado. Sendo parcial e limitado, ele não deveria delimitar ou definir os parâmetros externos para a inserção competitiva do Brasil na economia mundial. 177

3. Os benefícios do Mercosul precisariam, em algum momento, ser confrontados aos seus custos. A despeito de todos os argumentos que destacam ou enfatizam, com maior ou menor grau de sinceridade ou racionalidade, as bondades do Mercosul, cabe reconhecer que toda situação de comércio preferencial, de exclusividade, portanto, comporta aspectos positivos e negativos. O que deve ser feito é uma avaliação honesta e objetiva desses prós e contras do processo integracionista, de qualquer processo de integração, aliás. O que não pode ser feito, seguramente, é ressaltar e elogiar os benefícios desse processo e deixar de lado os aspectos ou elementos menos positivos, que têm a ver, justamente, com a preferência artificial criada em favor de determinados setores ou ramos da economia, em detrimento de uma competição ampliada. A competição, desde o final do mercantilismo, sempre foi reconhecida como uma das mais poderosas alavancas de progresso material e de inovação tecnológica, algo que depende, intrinsecamente, da liberdade dos mercados e da estabilidade de regras para gerar confiança nos parceiros e interventores desses e nesses mercados. Ora, ao definir regras de competição não tão amplas – ou livres – quanto desejável, os processos de integração diminuem o quantum de liberdade e de “multilateralidade” necessário para assegurar que a competição seja realmente levada ao ponto ótimo possível. Esse ponto é difícil de definir, uma vez que as situações de abertura unilateral e incondicional também apresentam certos custos que devem ser medidos em termos de empregos perdidos e de destruição de competidores iniciantes, o que geralmente é resolvido na prática por práticas e políticas de protecionismo à la List, isto é, de caráter temporário e de tipo moderado. Nem sempre os governos, ou os lobbies que fazem pressão em torno deles, adotam a curva ideal de protecionismo decrescente, como geralmente praticado nos processos de desenvolvimento gerado e gerido de forma autônoma: pode ocorrer de essas práticas serem prolongadas indefinidamente, com perdas para o país e os consumidores. O fato é, porém, que os processos de integração, todos eles, tendem a gerar impulsos protecionistas, para dentro e para fora do próprio processo em causa. A esses custos diretos, em termos de segmentação e cartelização de mercados, devem ser acrescentados os custos indiretos da burocracia regulacionista, nos planos nacional e regional, que tendem a congelar situações competitivas que não são as do maior bem-estar possível, mas sim as existentes no momento da negociação da abertura recíproca de mercados. Isso gera um baixo dinamismo econômico que tende a ser cumulativo, descolando o 178

bloco em questão das pressões competitivas de outra forma advindas da economia mundial. Em resumo, excessos integracionistas, em contraposição à abertura unilateral ou negociada, ainda que moderada e restrita, podem representar custos reais para os sistemas produtivos nacionais, ademais de reduzirem os ganhos de bem-estar dos consumidores nacionais. Pode-se dizer, portanto: integração, OK, ma non troppo, sobretudo aquela do tipo exclusivo e excludente. 4. O Mercosul não é um instrumento de desenvolvimento nacional; é um mecanismo de liberalização. Parece evidente que um processo de integração não pode substituir, por seu próprio mérito, projetos ou processos de desenvolvimento nacional. Esses processos atuam na interface do comércio exterior, dos investimentos, de acesso a novas tecnologias, mas a dinâmica principal do desenvolvimento tem a ver com a capacitação (sempre interna) dos recursos humanos e materiais engajados na definição de políticas adequadas de criação de novas oportunidades de emprego e, portanto, de crescimento da produção e da renda. Tentar fazer do processo de integração um instrumento de desenvolvimento, em sua dimensão própria, representa exigir em demasia desse processo, tentar fazê-lo cumprir uma missão histórica que não é a sua. Políticas de desenvolvimento devem ser definidas pelas autoridades econômicas e políticas nacionais, de acordo com um leque, ou um coquetel, de medidas do mais variado sabor: políticas macro e micro, medidas setoriais, sobretudo aquelas que incidem sobre os fatores principais de crescimento e de desenvolvimento: o aumento das taxas de produtividade do trabalho humano, o que tem a ver, basicamente, com o incremento da qualidade da educação e da formação técnicoprofissional da mão-de-obra do país em causa. O Mercosul deveria ficar restrito, tanto quanto possível, aos objetivos fixados originalmente no TA: liberalização comercial, formação de um mercado comum, coordenação de políticas macroeconômicas e setoriais, enfim, objetivos limitados, que têm a ver mais com o bom desempenho das políticas globais e setoriais (sobretudo comerciais), do que com a mudança social e redistributiva implícita a todo e qualquer processo de desenvolvimento.

5. O Mercosul não é uma instituição de caridade (e nem se deveria cogitar de criar uma). 179

Transferência de renda dos mais ricos para os mais pobres pode e deve ser feita, desde que obedecendo a certos critérios redistributivos que levem em conta as disparidades reais entre indivíduos – o que geralmente é medido pela renda per capita – e desde que exista, de fato, recursos disponíveis para esse tipo de política assistencial. Do contrário seria melhor basear-se em velhos mecanismos de mercado, bem mais eficientes do que os governos, para gerar maiores oportunidades de emprego e de criação de riqueza. Fundos de desenvolvimento, quaisquer que sejam suas regras específicas, dependem de um provedor principal de recursos, que aceite a relativa assimetria implícita nesses mecanismos de transferência de renda, geralmente alguma economia mais poderosa que consinta, democraticamente, nessa transferência. Não parece existir tal situação no Mercosul, região onde as disparidades entre os países são menos importantes do que aquelas existentes, por exemplo, entre regiões brasileiras – entre o Nordeste e o Sudeste e o Sul, para ser mais claro – e onde os indicadores sociais e de renda per capita dos países supostamente beneficiários da ajuda – os menores - superam amplamente aqueles existentes nessas regiões mais atrasadas do Brasil. A suposta “generosidade” de políticas assistencialistas desse tipo não contribui necessariamente para gerar riquezas permanentes ou situações de equilíbrio dinâmico no processo de integração. De resto, assimetrias são inerentes a toda e qualquer situação sistêmica, confrontado sempre países e economias com dotações desiguais, diferentes entre si, que conformam precisamente a base das vantagens ricardianas existentes (e adquiridas, dinamicamente), bem como as alavancas necessárias ao estabelecimento de relações de intercâmbio entre eles. 6. As instituições do Mercosul não devem definir-lhe a forma e sim responder a funções reais do processo de integração; por isso não se deve constituir instituições que não respondem a funções concretas. Em princípio, as instituições integracionistas devem seguir as necessidades ditadas pelos processos reais de integração econômica e adaptar-se aos seus requerimentos, não moldarem elas mesmas o formato, o ritmo e as características básicas desses processos. Instituir uma nova organização, digamos um Parlamento, para só depois tentar encontrar funções para ele, pode significar colocar o carro na frente dos bois, o que não é uma receita para fazer avançar o processo histórico. Da mesma forma, criar um instituto monetário para especular sobre as melhores condições de se instituir uma moeda única pode representar certo lirismo acadêmico na busca de progressos da integração, mas não 180

faz avançar um milímetro o processo, se inexistirem condições reais para a efetivação desse ambicioso projeto de renúncia de soberania monetária. Cabe, com efeito, chamar a atenção para o tremendo potencial de renúncia de soberania – tanto estatal, stricto sensu, como econômica, no sentido amplo – desses projetos que tendem a exigir uma burocracia “extranacional” muito extensa ou que geram instituições que adquirem vida própria, uma vez criadas. O mundo – sobretudo o mundo onusiano, dos últimos 60 anos – é pródigo em novos órgãos e carente, de um modo terrível, de um real processo de desenvolvimento de povos ditos “atrasados”. No último meio século são muito poucos, pouquíssimos os países que saltaram a barreira do desenvolvimento real, que significa um processo endógeno de crescimento sustentado com transformação produtiva e redistribuição de riqueza. Se a maior parte não o fez, não foi exatamente pela falta de órgãos, nacionais e internacionais, dedicados à nobre missão do desenvolvimento. Ao contrário: há uma verdadeira pletora deles, em todos os setores de atividades (nacionais e regionais) que se pode desejar, inclusive vários para acabar com a fome e a miséria. Não se tem notícia de que os problemas sociais nos países mais pobres ficaram menos dramáticos devido à existência desses órgãos, que continuam existindo décadas depois que foram criados, atuando nas mesmas bases. Aliás, um exemplo nacional bastaria: vinte anos de “criança esperança”, com milhões sendo arrecadados a cada ano, diz alguma coisa do ponto de vista da ajuda ao desenvolvimento? 7. Não se deve temer retrocessos, desde que seja para avançar de maneira mais segura, mais adiante, segundo a conhecida fórmula: reculez pour mieux sauter, recuar para melhor saltar. Persistir no erro de soluções requentadas pode ser uma forma burra de consolidar respostas erradas para problemas que foram mal diagnosticados. A América Latina, de modo geral, é subdesenvolvida, ou pouco desenvolvida, devido à inexistência ou à insuficiência dos processos de integração? Não creio, pois o desenvolvimento responde, como já referido, a processos e políticas de maior escopo e abrangência do que a simples liberalização dos mercados e a abertura econômica, que são medidas consubstanciais aos processos de integração. Não há nada de errado na integração, que deve ser considerada como o vestíbulo de uma integração mais ampla, das economias nacionais com a economia mundial, uma espécie de mini-globalização provisória, até que a globalização mais vasta englobe de verdade os países participantes. O erro seria concebê-la de maneira exclusiva e 181

excludente. No caso dos projetos de mercado comum, o timing do processo deve ser tão importante quanto à forma ou as peculiaridades desse processo, pois ele implica, de fato, na renúncia de soberania implícita ao ordenamento interestatal de políticas econômicas, de caráter macro ou setorial. Por questões atinentes ao timing de seus próprios processos de estabilização macroeconômica, os países do Mercosul não parecem prontos para adentrar nas tarefas e requerimentos de um mercado comum, aliás, sequer naqueles de uma união aduaneira. Talvez uma solução de menor custo, para evitar a perda de credibilidade do bloco, seria terminar a construção da zona de livre comércio antes de passar às etapas mais avançadas do processo de integração. Não há nenhum problema em admitir insuficiências do processo real; é bem melhor, aliás, do que manter a ficção de uma construção inacabada e inacabável, por insuficiência de meios e de vontade política para tanto. Grandes saltos podem ser obtidos por aceleração gradual, mas também por recuos táticos ou estratégicos. Talvez seja o caso de repensar o Mercosul enquanto projeto comercial, apenas comercial. Como conclusões provisórias e puramente circunstanciais, eu alinharia as seguintes: (a) o Mercosul deveria concentrar-se no essencial e voltar às suas origens, que estão num mandato de liberalização precipuamente comercial, dedicando-se ao acabamento de uma integração, stricto sensu, dos espaços econômicos regionais; (b) não se deveria entupir a agenda do Mercosul de temas acessórios, de escassa relevância econômica ou comercial, ainda que de suposto interesse “social”; (c) também não caberia sobrecarregar o “barco” institucional do Mercosul, que poderia adernar, e sim fazer funcionar o que já foi acordado, com base nas instituições criadas até aqui; (d) atenção especial deveria ser dada, mas isso é óbvio também, à defesa dos interesses comerciais brasileiros, o que, atualmente, passa pela defesa dos exportadores nacionais submetidos a demandas ilegais por salvaguardas; (e) finalmente, não se deveria fazer do Mercosul um cadáver embalsamado, estilo Lênin na Praça Vermelha, mas ter a coragem – e eventualmente a iniciativa – de rever posturas diplomáticas e compromissos políticos do passado, se a atual realidade assim o impõe. Esquema: São Paulo-Brasília, 29 de junho de 2005. 182

Elaboração: Brasília, 15-17 de agosto de 2005. 1458. “Mercosul: sete teses na linha do bom senso”, Brasília, 15 de agosto de 2005, 9 p. Considerações sobre o Mercosul, apresentadas em seminário sobre o Mercosul organizado pela CNI (Brasília, 16/08/2005). Reformulado sob o título “O Mercosul não é para principiantes: sete teses na linha do bom senso” e publicado na revista Espaço Acadêmico (a. V, n. 53, out. 2005; http://www.espacoacademico.com.br/053/53almeida.htm). Dividido, em 4/10/2005, em versão resumida, em três partes, e publicado no Colunas de Relnet: “Mercosul para principiantes, I: Objetivos e interesses” (n. 12, jun/dez. 2005 [12/10/2005]; “Mercosul para principiantes, II: Custos e benefícios” (n. 12, jun/dez. 2005 [19/10/2005]; e “Mercosul para principiantes, III: Instituições e regras básicas” (n. 12, jun/dez. 2005 [29/10/2005]). Republicado em ordem dispersa no boletim Meridiano 47 (n. 64, novembro 2005, p. 2-3; link: http://www.mundorama.info/Mundorama/Meridiano_47__1-100_files/Meridiano_64.pdf; Mercosul para principiantes: Custos e benefícios: n. 63, outubro 2005, p. 9-10; link: http://www.mundorama.info/Mundorama/Meridiano_47__1-100_files/Meridiano_63.pdf). Ensaio incorporado ao livro: Paralelos com o Meridiano 47: Ensaios Longitudinais e de Ampla Latitude (Hartford, 2015). Relação de Publicados n. 590, 597, 602, 609, 614 e 619.

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17. Problemas da integração na América do Sul: a trajetória do Mercosul Depois de anos, ou décadas, de tentativas bem intencionadas, mas relativamente infrutuosas, para conformar um espaço econômico integrado na região, desde o início da antiga Alalc – Associação Latino-Americana de Livre-Comércio, derivada do primeiro tratado de Montevidéu, de 1960 – até a atual Aladi – Associação LatinoAmericana de Integração, constituída pelo segundo tratado de Montevidéu, em 1980 –, o processo integracionista na América Latina ingressou, na segunda metade dos anos 1980, numa fase de sub-regionalização, ou seja, de diluição em experimentos parciais e geograficamente mais limitados, o que foi seguido de características novas em suas modalidades operacionais. Afastando as linhas mais rígidas dos grandes projetos do passado, os países voltaram-se para esquemas mais graduais e flexíveis, com uma abordagem setorial e mais equilibrada dos principais eixos da integração. Estas foram, em todo caso, as principais características do mais exitoso projeto de integração dos anos 1990, o Mercosul, que tinha começado por adotar aquela metodologia mais cautelosa em meados da década anterior, mais exatamente a partir de 1985, com os esquemas bilaterais conduzidos pelos novos regimes democráticos da Argentina e do Brasil. Um tratado bilateral de integração, de 1988, vinha coroar esse esforço de constituição de um mercado comum, em dez anos, pelo método dos acordos setoriais, ou protocolos de integração complementar, numa visão relativamente dirigista e administrada desse processo. No início dos anos 1990, entretanto, duas novas administrações mais comprometidas com uma visão liberal da economia e do mundo, decidiram acelerar e aprofundar esse processo, julgado excessivamente cauteloso ou lento, ademais de submetido às limitações intrínsecas a cada setor objeto de acordos de complementação. O novo esquema Brasil-Argentina de liberalização comercial e de construção do espaço integracionista, logo consagrado no esquema quadrilateral do Mercosul e o seu tratado de Assunção (março de 1991), passou a ser automático, geral e de características fundamentalmente livre-cambistas, em lugar do relativo “dirigismo” do esquema anterior, baseado nos protocolos setoriais. Os novos prazos de integração foram praticamente reduzidos pela metade – devendo-se alcançar a etapa do “mercado comum” até o inicio de 1995 –, mas as rebaixas automáticas de barreiras tarifárias deixaram ao sabor do mercado o que os estrategistas anteriores da integração sub184

regional pensavam administrar segundo um processo gradual de especialização e de complementação produtiva. Colocou-se, no mesmo momento – segundo semestre de 1990 –, a questão da possível adesão do Chile ao novo bloco de integração, que passou então a contar com as presenças do Paraguai e do Uruguai. Desde aquela época, porém, assim como em tentativas ulteriores de sua associação mais estreita ao Mercosul, o obstáculo básico a essa adesão do Chile ao esquema sub-regional reside na estrutura linear e única da tarifa comercial chilena, já então bem mais limitada em sua alíquota máxima – e descendente, a partir de apenas 11% -- do que o leque tarifário que o Brasil e a Argentina pretendiam estabelecer como Tarifa Externa Comum. A despeito de problemas conjunturais bastante graves que então marcavam os respectivos processos de estabilização macroeconômica no Brasil e na Argentina – esta recentemente saída de dois dramáticos surtos hiperinflacionários, aquele ainda batendose para eliminar a desindexação generalizada da sua economia –, a liberalização comercial pode caminhar de forma mais ou menos rápida, abrindo espaço para um poderoso aumento do comércio bilateral, que não chegou, entretanto, a desviar os fluxos de terceiros países, uma vez que esse impulso correspondeu a um aumento generalizado das correntes de comércio em várias direções. Não obstante, não foram corrigidas algumas das chamadas “assimetrias estruturais” que conduziram o Brasil a uma crescente especialização industrial e a Argentina a uma ênfase nas indústrias ligadas ao setor primário de sua economia. Numa primeira fase, a abundância dos investimentos internacionais, acoplada a processos de privatização e de desmonopolização em ambas as economias, permitiu ao Brasil e à Argentina sustentar o aprofundamento da integração comercial, ocorrendo mesmo investimentos recíprocos nos dois países. Movimentos cambiais diferenciados de um lado ou outro do rio da Prata também contribuíram para manter os fluxos de comércio, sendo que o Brasil foi, praticamente, um dos únicos provedores de saldos comerciais para a Argentina, numa fase em que o Plano Cavallo de conversibilidade impunha uma paridade cambial fixa para o peso em relação ao dólar, o que diminuía bastante sua competitividade nos mercados internacionais. O comércio dentro e fora do Mercosul cresceu bastante – inclusive o comércio intra-ramos e intra-firmas –, observando-se, em particular, a criação de uma “Brasildependência” na Argentina, uma vez que esta tinha no seu maior vizinho o destino para mais de um terço de suas exportações totais e um volume praticamente similar nas 185

importações. A “bonança” dos superávits comerciais não pôde, contudo, sustentar-se durante muito tempo, uma vez que a Argentina entrou em uma fase de baixo crescimento no final dos anos 1990, situação ainda agravada pelo aumento dos déficits orçamentários, pela baixa na atração dos investimentos externos – e o consequente apelo a emissões importantes nos mercados financeiros internacionais – e pelos violentos tremores financeiros dessa época, que terminaram por atingir de modo dramático o Brasil. Não é preciso dizer que, a despeito dos avanços logrados no comércio intrarregional, nunca se chegou a estabelecer o prometido “mercado comum”, assim como a união aduaneira, virtualmente existente a partir de 1995, comportava inúmeras exceções à Tarifa Externa Comum, sem mencionar os produtos ainda fora da zona de livre-comércio sub-regional, como o açúcar e a importante indústria automotiva, base, aliás, de grande parte do comércio bilateral entre o Brasil e a Argentina (que incluía ainda certo volume de fluxos administrados, como trigo e petróleo). Tampouco foi possível lograr a coordenação de políticas macroeconômicas e cambiais, inclusive porque a manutenção da paridade fixa do peso no caso argentino impedia qualquer exercício de fixação de alguma banda de flutuação com o novo real do Brasil. O protocolo de Ouro Preto, assinado no final de 1994 para “completar” o tratado de Assunção, não criou instituições novas para administrar o processo de integração, nem estabeleceu mecanismos para facilitar a coordenação de políticas macroeconômicas ou para aprofundar a integração no plano microeconômico. A despeito da associação ao Mercosul, em 1996, do Chile e da Bolívia como parceiros da “zona de livre-comércio”, não se conseguiu avançar na prometida ampliação do espaço integracionista no âmbito sul-americano, que deveria comportar ainda os países membros da Comunidade Andina de Nações, cuja união aduaneira ostentava mais deficiências do que o próprio Mercosul. Por outro lado, a suposta “ameaça” da Alca – projeto arquitetado pelos EUA desde a conferência de Miami, em dezembro de 1994, para unificar numa mesma zona de livrecomércio todos os países do hemisfério até 2005 – fez com que os países do Mercosul desenvolvessem uma estratégia comercial basicamente defensiva, interrompendo-se os movimentos de abertura para dentro e para fora até que se pudessem negociar todos os compromissos de liberalização, inclusive nas áreas mais difíceis da agricultura (para os Estados Unidos) e dos serviços e dos investimentos (para o Brasil). A moeda brasileira manteve-se numa banda relativamente estreita e alinhada ao dólar durante a primeira fase do processo de estabilização conduzido pela administração 186

FHC entre 1995 e 1998, o que levou a uma relativa valorização do real, ao agravamento dos déficits comerciais e aos já referidos saldos positivos acumulados pela Argentina no intercâmbio comercial bilateral durante todos esses anos. A partir de 1997, a sucessão de crises financeiras na Ásia, seguida pela moratória russa em agosto de 1998 conduziu ao primeiro programa de ajuda financeira por parte do FMI ao Brasil no final desse ano. O acordo então concluído – por um montante total de US$ 41,5 bilhões – previa a continuidade da estabilidade cambial, a despeito de discretas pressões do FMI para a desvalorização do real, o que foi obtido de maneira mais espetacular em janeiro de 1999 quando da inauguração de um novo mandato para o presidente Cardoso. Esta conjuntura representou também um choque para a Argentina e o início de uma fase crítica para o Mercosul que se prolonga, praticamente, até os nossos dias. Mesmo se os saldos comerciais favoráveis não desaparecem de todo, no seguimento imediato da crise do real, as condições de competitividade estrutural se alteraram de modo sensível, com perda de confiança na capacidade da economia argentina de recuperar-se e enfrentar os novos desafios do regime de flutuação da moeda brasileira. A Argentina ainda arrastou-se por dois anos na ficção do seu plano de conversibilidade, acumulando uma enorme dívida externa e sucessivos planos de ajuda com o FMI que apenas remediavam, sem resolver definitivamente, o que agora parecia uma crise terminal. Esta ocorreu no final de 2001, não sem antes obrigar o Brasil a negociar um segundo acordo de sustentação financeira com o FMI que, como o primeiro, teve função essencialmente preventiva. Mais ainda do que na fase anterior (meados dos anos 1990), o Brasil passou a atrair investimentos nos setores industriais e de serviços, deixando a Argentina numa incômoda posição de “sócio menor”, o que provavelmente afetou o esquema de integração mais pelos seus efeitos propriamente “psicológicos” do que pelo real impacto nas correntes bilaterais de comércio. Tentativas de “coordenação macroeconômica”, de um lado, e ameaças de dolarização completa, de outro, não resolveram os problemas conjunturais do Mercosul, que se viu mergulhado em profunda crise de identidade, ademais do próprio decréscimo brutal dos fluxos totais de comércio intrarregional nos primeiros anos da presente década. O processo eleitoral no Brasil, no decorrer de 2002, aliás coincidente com mais uma pacote de ajuda do FMI – desta vez pela quantia historicamente inédita nos registros da instituição de Washington, de USS 30 bilhões –, e a transição política altamente volátil observada na Argentina durante esse período, não contribuíram para 187

diminuir o clima de crise no Mercosul, a despeito das promessas da nova administração de Luís Inácio Lula da Silva de dar toda prioridade ao esquema sub-regional e de reconstruir a relação especial com a Argentina. Em especial na área industrial, os déficits setoriais começaram a se acumular, ameaçando inverter a bonança dos anos 90, o que efetivamente se consolidou a partir de 2003. A Argentina começou a utilizar-se, de modo cada vez mais frequente e sem a devida consulta bilateral, de mecanismos permitidos ou abusivos de defesa comercial, em especial salvaguardas unilaterais e processos de antidumping em vários setores ameaçados de “desindustrialização”. Não é preciso dizer que o setor automotivo nunca logrou conhecer o prometido livre-comércio. Uma violenta crise financeira no Uruguai e problemas persistentes no Paraguai também atuaram para conduzir o Mercosul a um estado de “anemia integracionista” jamais visto em sua história. A despeito de uma volta ao crescimento dos fluxos intrarregionais de comércio a partir de 2003, sobretudo entre as duas grandes economias, permaneceram os desequilíbrios setoriais, motivando demandas por proteção por parte da União Industrial Argentina, geralmente atendidos pela nova administração de Nestor Kirchner. A Argentina voltou a acreditar que o Brasil pretendia reduzi-la a um mero papel de fornecedor de produtos primários, reservando para si todas as cadeias de maior valor agregado, o que de certo modo era confirmado em quase todas as áreas, devido ao tremendo esforço de adaptação produtiva conduzida pela indústria brasileira no curso do processo de liberalização comercial dos anos 90 e, depois, em virtude dos novos ganhos de competitividade adquiridos a partir da desvalorização de 1999. As autoridades argentinas, ademais, acusavam repetidamente o Brasil de competição desleal na atração de investimentos, graças a incentivos fiscais que se somavam às economias de escala de um mercado quatro vezes superior ao da Argentina. Esse efeito pode ter ocorrido de forma concreta no setor automotivo, base essencial do comércio bilateral e poderoso fator de impulso ao crescimento dados seus efeitos em cadeia. Mas, tampouco pode ser descartada a razão da queda dos investimentos diretos estrangeiros na Argentina ao seu dramático rompimento com a comunidade financeira internacional e o tratamento duro que a administração Kirchner passou a conceder aos investidores já instalados no país. O essencial dos desequilíbrios comerciais, contudo, se deu por incapacidade da indústria argentina de se modernizar rapidamente, levando ao que foi chamado de “invasão industrial brasileira”, evidente na linha branca – aparelhos eletrodomésticos – e em vários outros insumos industriais. Em 2004 a Argentina começou a pressionar pela 188

adoção de um instrumento de salvaguardas automáticas, eufemisticamente caracterizado como sendo um “mecanismo de adaptação competitiva”, que ela pretendia implementar de maneira unilateral. Anteriormente, ela já tinha insistido numa espécie de “gatilho cambial”, que deveria produzir os mesmos efeitos a partir da desvalorização do real, o que foi contudo abandonado em face da persistente valorização da moeda brasileira em face do dólar a partir de 2003. O crescimento persistente do comércio exterior brasileiro – que praticamente dobrou de 1995 a 2005 – também fez diminuir o peso e a importância do Mercosul no intercâmbio global do principal país da América do Sul, ao mesmo tempo em que novas oportunidades se abriam dentro e fora da região. Um acordo de associação do Peru ao Mercosul, em 2003, ademais de novos acordos de liberalização comercial com os demais sócios da CAN em 2004, ainda que pouco significativos em termos de aumento do volume de comércio no curto prazo, podem contribuir para a expansão comercial brasileira na América do Sul no futuro de médio prazo. Do lado argentino, o peso do Brasil continua determinante, o que configura novos motivos de preocupação para os industriais da nação platina. No plano político, pode-se dizer que ambos os governos, brasileiro e argentino, desconfiam, bem mais que seus predecessores, das virtudes do livre-comércio, o que os levou a privilegiar, novamente, uma conformação integracionista baseada no velho método dos protocolos setoriais e das negociações de complementaridade recíproca. Finalmente, no início de 2006, ambos os países concluíam o tão ambicionado projeto argentino de um mecanismo de salvaguardas setoriais, recebido com entusiasmo naquele país e com imensos reclamos por parte da indústria brasileira. Ainda no plano político, diversos outros projetos não comerciais foram impulsionados, com o apoio declarado do governo brasileiro, como a criação de um fundo “corretor” de assimetrias estruturais – a ser utilizado sobretudo pelos dois sócios menores, mas com maior volume de financiamento por parte do Brasil – e a instituição de um “parlamento” do Mercosul, considerado um aperfeiçoamento institucional. Não se voltou mais a falar de uma “moeda comum”, mas permanece viva a demanda por mecanismos de coordenação de políticas macroeconômicas, na prática tornados difíceis em virtude das diferenças operacionais entre os tipos de políticas seguidas em cada um dos países. Permanecem as demandas pelo estabelecimento de “cadeias produtivas setoriais conjuntas”, iniciativas inviabilizadas na prática pela incapacidade dos governos de cada um dos países de prestar assistência financeira ou empreender investimentos em base a 189

recursos públicos. Mas voltou-se a dar bastante ênfase, sobretudo sob impulso político do governo brasileiro, aos projetos de integração física continental, objeto principal do grande empreendimento iniciado pelo governo Lula de constituição da “Comunidade Sul-Americana de Nações”, ela mesma herdeira da iniciativa anterior do governo de FHC, conhecida como IIRSA (Iniciativa de Integração Regional Sul-Americana). Assim, ao mesmo tempo em que todos os esforços de “relançamento comercial” do Mercosul foram sendo sucessivamente frustrados, cresceram as iniciativas políticas de integração física continental, em especial no setor energético, projeto ainda mais ampliado a partir do ingresso “político” da Venezuela no Mercosul, em dezembro de 2005. Com a diluição da “ameaça” da Alca – inclusive a partir de sua virtual paralisação na terceira cúpula hemisférica, em Mar del Plata, no final de 2005, por atuação conjunta da Argentina, do Brasil e da Venezuela –, os países sul-americanos tentam construir, com estratégias e objetivos muito diversos, uma nova agenda integracionista para a região, menos voltada para a liberalização comercial e mais orientada para a cooperação política e o estabelecimento de ligações físicas. Eles acreditam que, assim fazendo, conseguirão atrair os investimentos externos necessários para viabilizar imensos projetos de infraestrutura nos terrenos da energia, comunicações e transportes. Não é totalmente seguro de que o consigam, inclusive porque o atrativo principal, em termos de comércio, investimentos e financiamento, ainda continua sendo a economia dos EUA, único país que possui o mercado suscetível de absorver os produtos ainda pouco sofisticados da maior parte desses países. Não obstante a viabilidade de vários desses projetos, o principal fator limitativo parece continuar sendo a volatilidade política na região, dramatizada ao extremo na região andina nos últimos três ou quatro anos. A despeito da dimensão relativamente modesta de sua economia, o Chile é o país que tem confirmado sua vocação para a estabilidade e o crescimento, com redução paulatina das desigualdades sociais – ainda relativamente elevadas – e uma disposição continuada para a abertura comercial e sua incorporação plena nos circuitos da globalização. Num momento em que vários dos líderes da região ainda insistem em manter uma postura de recusa da interdependência global, preferindo fazer vibrantes discursos anti-imperialistas em encontros do Fórum Social Mundial, o Chile confirma sua agenda liberal e desponta com um perfil de membro da OCDE, se tal fosse possível no horizonte previsível. Trata-se do único “tigre asiático” numa região que continua ainda a apresentar, com algumas exceções, os traços típicos da América Latina desde 190

tempos recuados, feitos de pobreza, desigualdades sociais, instabilidade política e especialização em produtos primários. A América do Sul continua a mover-se lentamente no cenário internacional.

1549. “Problemas conjunturais e estruturais da integração na América do Sul: a trajetória do Mercosul desde suas origens até 2006”, Brasília, 13 fevereiro 2006, 8 p. Artigo elaborado para o relatório do World Economic Forum, Latin America, a realizar-se em São Paulo (5-6 abril 2006). Feita versão resumida em inglês para publicação no relatório. Publicado em inglês, sob o título “Mercosur’s Identity Crisis” in The Latin America Competitiveness Review: Paving the Way for Regional Prosperity (Geneva: World Economic Forum, 2006, p. 63-65, link: http://www.weforum.org/pdf/Latin_America/Review.pdf). Publicado, em português, no boletim Meridiano 47 (Brasília, IBRI, n. 68, mar. 2006, ISSN 15181219, p. 4-9; link: http://www.mundorama.info/Mundorama/Meridiano_47_-_1100_files/Meridiano_68.pdf). Versão original, em português, disponível no site pessoal: http://www.pralmeida.org/05DocsPRA/1549mercosul15anos.pdf). Ensaio incorporado ao livro: Paralelos com o Meridiano 47: Ensaios Longitudinais e de Ampla Latitude (Hartford, 2015). Relação de Trabalhos ns. 635, 651 e 667.

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18. Acordos regionais e sistema multilateral de comércio: a América Latina

1. Introdução: os acordos regionais ameaçam o sistema multilateral? Uma questão recorrente nos debates sobre a evolução atual (e futura) do sistema multilateral de comércio é a de saber se a profusão de acordos bilaterais de comércio, tal como observada atualmente, representa uma ameaça ao multilateralismo. A resposta mais direta, e mais simples, poderia ser traduzida num sonoro sim. Sim, a profusão, uma verdadeira proliferação diriam alguns, de acordos bilaterais, ou minilaterais, de comércio constitui, de fato, uma ameaça ao sistema multilateral de comércio.2 A segunda observação que poderia ser feita, imediatamente, seria esta: não há nada a ser feito de imediato, pois esses acordos continuarão a se disseminar no futuro previsível. Observando-se a evolução do sistema multilateral de comércio, nos últimos vinte anos pelo menos, a constatação que pode ser feita é essa mesma: esses acordos seletivos e restritos – tanto no sentido geográfico como em seu conteúdo substantivo – têm assumido um espaço cada vez mais importante na arquitetura institucional do sistema multilateral de comércio, bem como na composição dos fluxos reais de bens e serviços que são intercambiados diariamente num planeta hoje quase inteiramente globalizado. Pode-se dizer “quase”, porque ainda permanecem algumas “terras incógnitas” do ponto de vista da abrangência das trocas capitalistas e no que se refere às regras que presidem a alguns tipos de intercâmbio. Mas, elas estão diminuindo cada vez mais. Com efeito, a evolução do sistema multilateral de comércio foi notável, desde a entrada em vigor – provisória, relembre-se – do velho GATT-1947, negociado em um dos antigos locais da Sociedade das Nações, em Genebra, até a atual rodada multilateral de negociações, cujo título, o de uma capital de um minúsculo emirado árabe, traduz bem esse sentimento de sucesso pela amplitude da obra realizada. Os founding fathers do GATT, em primeiro lugar os americanos, podem, justificadamente, sentir-se orgulhosos pelos bons resultados atingidos em pouco mais de meio século. De algo perto da metade do comércio internacional no imediato pós-Segunda Guerra, as regras multilaterais do renovado GATT-1994 cobrem, hoje, mais de 95% dos 2

De acordo com dados da OMC, existiriam, atualmente, mais de 160 acordos regionais em vigor, havendo ainda outros 70 não notificados. Dos mais de duzentos acordos “minilaterais”, nada menos do que três quartos foram assinados a partir de 1995.

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intercâmbios, com tendência ao crescimento próximo da saturação. A Rússia deve entrar no sistema multilateral da OMC nos próximos meses, senão semanas, com o que o quadro multilateral estará virtualmente completo, pois mesmo um dos dois únicos bastiões do socialismo, Cuba, dele faz parte (desde a origem, aliás, como confirmado pela Carta de Havana de 1948, natimorta, mas prometedora). Dele ficarão ausentes alguns pequenos países, se tanto, que representam menos de dois por cento das trocas globais, mas o sistema é hoje praticamente mundial, senão universal. O sistema multilateral de comércio pode, portanto, ser considerado um tremendo sucesso, provavelmente mais do que a própria ONU ou o tão vilipendiado FMI, seus mais próximos concorrentes em termos de importância e de abrangência política e geográfica. Como essas duas entidades, o sistema hoje presidido pela OMC pode, talvez, ser acusado de ineficiência relativa, já que ele não consegue eliminar as ameaças potenciais à sua arquitetura institucional provavelmente imperfeita, mas insubstituível, no gênero, como tampouco consegue eliminar os muitos focos de instabilidade sistêmica, de assimetrias estruturais, de desigualdades históricas, remanescentes ou criadas ao longo desse último meio século. Sua responsabilidade é basicamente econômica, ou melhor, simplesmente comercial, não cobrindo aspectos da paz e da segurança internacionais, como a ONU, ou o mundo das finanças mundiais, como os dois irmãos mais velhos de Bretton Woods. O comércio sempre foi fonte de riqueza, de prosperidade, de bem-estar, de transferência de tecnologia, de avanços sociais, enfim. O comércio é, sobretudo, um propagador de causas avançadas, de liberdade de pensamento, como confirmado nesta frase de um grande historiador econômico, David Landes: “...se os ganhos derivados do comércio de mercadorias são substanciais, eles são pequenos quando comparados com o intercâmbio de idéias”.3 2. O sistema multilateral de comércio: um sucesso aparente O mundo é, por certo, mais próspero, hoje, do que era em meados do século XX. Ele é também, em seu conjunto, bem mais industrializado, comparativamente à primeira metade do século XX, quando as zonas industriais estavam quase todas restritas ao norte desenvolvido e eram desigualmente e esparsamente espalhadas por alguns “arquipélagos” no hemisfério sul. Desse ponto de vista, ele aparece, portanto, como 3

Cf. David M. Landes, A Riqueza e a Pobreza das Nações. Rio de Janeiro: Campus, 1996, p. 149.

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mais homogêneo tecnologicamente, mas ele também parece ser mais desigual na repartição dos benefícios dessa industrialização “tardia”. Alguns economistas arriscam dizer que o mundo atual é menos convergente, do ponto de vista das tendências de desenvolvimento e das oportunidades de bem-estar, do que ele foi durante o ativo esforço desenvolvimentista do imediato pós-guerra, quando estiveram em vigor políticas macroeconômicas e setoriais bem mais intervencionistas do que na atual fase de globalização. Os antiglobalizadores não hesitam em atribuir à integração dos mercados as tendências – não provadas – à concentração de renda e ao crescimento das desigualdades entre os países e dentro dos países. As origens dos processos paralelos e contraditórios de convergência e de divergência na economia mundial – e, portanto, entre as economias nacionais, se esse conceito ainda for válido - não foram ainda determinadas com precisão pelos economistas e historiadores. Há certa hesitação quanto às responsabilidades relativas do progresso tecnológico de base interna, por um lado, e da disseminação, por outro lado, das inovações industriais, de modo geral, a partir, justamente, do comércio internacional. A construção normativa do sistema multilateral de comércio registrou, de certo modo, uma evolução paradoxal. De um lado, houve o reforço dos princípios tradicionais de nação-mais favorecida, de tratamento nacional, de reciprocidade, de transparência e de igualdade de direitos e de obrigações, este último temperado parcialmente pelo tratamento diferencial e mais favorável para as partes contratantes menos desenvolvidas. De outro, ocorreu o aprofundamento e a disseminação dos esquemas minilateralistas e dos arranjos geograficamente restritos, ofendendo a primeira dessas cláusulas, a de NMF. Parte da convergência observada entre os mais ativos participantes do sistema econômico mundial – na renda, nos modelos de política econômica, nos mecanismos de atuação do Estado - pode ser atribuída à homogeneização progressiva e à coordenação tentativa, mas real, das políticas macroeconômicas nacionais. Esse modelo poderia ser catalogado como sendo “OECD-like”, sendo também disseminado em foros como os do G-7, das instituições de Bretton Woods, no vilipendiado “Consenso de Washington”, ou em encontros do World Economic Forum, em Davos. Quanto dessa prosperidade é devido à existência e à ampliação progressiva do tradicional sistema multilateral de comércio pode ser atestado pelos níveis incomparavelmente mais altos de bem-estar registrados nos países ativamente participantes do sistema do que naqueles que se mantiveram à margem de suas regras e princípios. Quanto das iniqüidades e das 194

desigualdades persistentes na distribuição de renda e riqueza em escala mundial pode ser atribuído às próprias regras do sistema, como gostam de apregoar os antiglobalizadores, ainda é matéria sujeita a debate entre os especialistas. Mesmo os melhores economistas ainda divergem a esse respeito, mas as evidências empíricas acumuladas nessa área militam em favor das tendências essencialmente integradoras da globalização, voltadas, portanto, para a homogeneização, a largo prazo, dos sistemas econômicos nacionais.4 O que é certo – e poucos disputarão as evidências – é que o comércio traz consigo prosperidade, e quanto mais comércio ocorrer, as possibilidades de bem-estar são ainda melhores e maiores. Isso pode ser matematicamente aferido mediante uma simples tabela comparativa que coloque em contraste, lado a lado, o PIB per capita de países selecionados e seus respectivos coeficientes de abertura externa, isto é, a proporção do comércio exterior na formação do produto.5 Com algumas poucas exceções, explicáveis pela importância excepcional do mercado interno na composição do produto bruto, há uma correspondência imediata entre renda per capita e abertura comercial externa (para não mencionar a abertura aos investimentos e ao intercâmbio de idéias). Não deveria, normalmente, ocorrer mais qualquer tipo de disputa em torno dessas questões, pelo menos não desde que Adam Smith golpeou decisivamente os bastiões intelectuais do mercantilismo e do protecionismo comercial, ou seja, quase 230 anos atrás. O mercantilismo, ou seja, a doutrina que visava a encorajar a exportação, a desestimular a importação e a transacionar em moeda forte –isso se fazia, antigamente, pela acumulação de ouro e de metais preciosos – encarava o comércio exterior como um instrumento de poder – em prejuízo das demais nações – e em benefício dos segmentos

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Remeto ao trabalho de Xavier Sala-i-Martin, “The disturbing ‘rise’ of global income inequality”, National Bureau of Economic Research, Working Paper w8904, abril de 2002, disponível no link: http://www.nber.org/papers/w8904 (acesso em 11.02.04), e ao livro de Surjit Bhalla, Imagine There’s No Country: Poverty, Inequality and Growth in the Era of Globalization. Washington: Institute for International Economics, 2002, ambos comentados em meu artigo “A globalização e o desenvolvimento: vantagens e desvantagens de um processo indomável”, in Roberto Di Sena Júnior e Mônica Teresa Costa Cherem (orgs.), Comércio Internacional e Desenvolvimento: uma perspectiva brasileira. São Paulo: Saraiva, 2004, disponível no link: www.pralmeida.org/05DocsPRA/1205GlobalizDesenv.pdf. 5 Efetuei uma análise desse tipo no artigo “O Brasil como sócio menor da globalização: insuficiente interdependência econômica e pequena participação comercial”, Revista de Economia e de Relações Internacionais, vol. 1, nº 2, janeiro-junho 2003, p. 5-17; link: http://www.faap-mba.br/revista_faap/rel_internacionais/socio.htm.

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ligados à exportação, aliás, o único setor que liberava recursos reais, sob a forma de impostos, para a autoridade política. 3. Protecionismo na prática: industrialização à la List O mercantilismo já se foi, mas ele deixou vários órfãos inconsoláveis e algumas viúvas não convencidas. A despeito das lições de Smith e de David Ricardo, muitos ainda apelam para doutrinas protecionistas e mercantilistas, seguindo no caso os ensinamentos de Friedrich List, que publicou sua obra principal, O Sistema Nacional de Economia Política, em meados do século XIX. Para testemunhar sobre a permanência das idéias de List e sua teoria a respeito da proteção da indústria infante basta referir-se ao sucesso intelectual, em pleno século XXI, do livro de Ha-Joon Chang, Chutando a Escada,6 que reproduz, aliás, em seu título, uma frase do citado economista alemão. List era, no plano teórico, um defensor moderado do protecionismo comercial, que ele via como transitório, parcial e estritamente limitado às necessidades de industrialização de um país atrasado como a Alemanha do início do século XIX. O jovem Marx, o mesmo do Manifesto Comunista, que nada mais constitui senão um hino em louvor da globalização, era um defensor pragmático do livre-comércio, que considerava uma poderosa alavanca para a disseminação do modo capitalista de produção nos reinos bárbaros do Oriente e no mundo todo, o que poderia apressar o advento do socialismo. Desde meados do século XIX, quando List e Marx começaram a escrever, o livre-comércio fez progressos inquestionáveis, mesmo se os seus fundamentos teóricos e as suas bases empíricas continuaram a ser atacados continuamente, tanto por economistas teóricos como por políticos pragmáticos. No primeiro grupo podemos colocar o romeno da primeira metade do século XX Mihail Manoïlescu, cuja Teoria do Protecionismo7 foi traduzida no Brasil nos anos 1930 e muito lida e apreciada pelos industriais paulistas. Entre os políticos, são poucos os que proclamam sinceramente as virtudes superiores da liberalização comercial unilateral, como poderia fazer qualquer economista ricardiano.

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Cf. Ha-Joon Chang, Chutando a escada: a estratégia do desenvolvimento em perspectiva histórica. São Paulo: Editora Unesp, 2003. 7 Cf. Mihail Manoïlescu, Théorie du Protectionnisme et de l’Échange International. Paris: M. Giard, 1929.

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Os desenvolvimentos posteriores não foram muito gratificantes: depois da ativa política industrial praticada pela Alemanha bismarckiana, a Grã-Bretanha voltou a recorrer ao protecionismo assim que se sentiu ameaçada pela concorrência de potências comerciais mais poderosas. A França e outras nações seguiram o mesmo caminho, para desespero dos economistas liberais. O desastre se completou com a adoção da Tarifa Smoot-Hawley dos EUA, em 1930, e a política seguida naquele país de acordos bilaterais com tarifas seletivas e estritamente bilateralizadas. Depois dos desastres comerciais, cambiais e monetários dos anos 1930, as bases do sistema multilateral de comércio foram estabelecidas de modo mais ou menos sólido no imediato pós-Segunda Guerra, graças à liderança demonstrada pelos Estados Unidos na elaboração das regras que presidiram ao GATT durante mais de meio século e que foram paulatinamente sendo “absorvidas” por outros acordos gerais ou parciais de comércio – como o GATS, por exemplo –, até serem incorporadas no edifício da OMC a partir de 1995. Na verdade, o sistema convive, desde sua origem, com a derrogação minilateralista, consagrada no artigo 24 e consubstanciada no único modelo que existia então de bloco comercial, o do Benelux.8 Ele foi acompanhado, a partir dos anos 1950, pelo processo de integração europeu, e pelas diversas tentativas feitas nesse sentido na América Latina, mas estas últimas nunca tiveram, como o exemplo mais robusto da Europa, condições de afetar significativamente o sistema multilateral de comércio, que começou a ser erodido parcialmente pelos próprios países desenvolvidos nos setores de têxteis e agricultura desde muito cedo. Depois de muitas rodadas liberalizantes de comércio, a maior parte dos países desenvolvidos ostenta hoje uma baixa proteção tarifária, mas que é compensada com um sistema restritivo e subvencionista na área agrícola (quotas de importação, altas tarifas e sistema extensivo de apoio interno e subvenções às exportações) e algumas restrições setoriais, como em tecidos e vestuário. O setor têxtil libertou-se, depois de quase meio século, das práticas mercantilistas adotadas no regime Multifibras desde os anos 1960, mas demandas por salvaguardas continuam a frequentar os círculos 8

Criado pelo Tratado de Londres de 1947 e implementado pelo Protocolo da Haia de 1947, a união aduaneira reunindo a Bélgica, os Países Baixos e o Luxemburgo foi o modelo prático que serviu de apoio para a redação do artigo 24 do GATT, explicando-se assim a impossibilidade “constitucional” de se ter, na América Latina de final dos anos 1950, um simples acordo de preferências tarifárias, como seria mais recomendável, tendo de se passar diretamente ao esquema da zona de livre-comércio que criou, mediante o primeiro Tratado de Montevidéu (1960), a Associação Latino-Americana de Livre-Comércio (depois substituída pela Aladi, em 1980, esta sim, um mera zona de preferências tarifárias).

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decisórios em todos os países importadores de tecidos e roupas. O recurso abusivo a sistemas antidumping e outras medidas de defesa comercial colocam obstáculos continuados à liberalização ampliada do comércio, da mesma forma como a alegação indevida de outras formas de concorrência desleal, como nos casos do custo da mão-deobra ou o respeito inadequado ao meio ambiente. 4. O minilateralismo entra em cena: regionalização e globalização na atualidade O movimento “minilateralista”, iniciado em sua versão moderna a partir dos progressos da integração europeia, em meados dos anos 1980, foi paradoxalmente impulsionado pelas tendências globalizadoras da década seguinte, o que não deixa de colocar novos desafios, tanto do ponto de vista teórico, em especial para os “liberais institucionalistas”, como no plano das práticas econômicas, em função das supostas virtudes “multilateralizantes” da globalização.9 Esse movimento pode dar-se, em parte, como resultados dos núcleos duros de proteção setorial, em especial na área agrícola, nos próprios países desenvolvidos, motivando a busca de aberturas seletivas com preservação de áreas fechadas e impermeáveis à liberalização. Ele pode ser explicado, também, como o produto tardio das novas facilidades criadas pela chamada “cláusula de habilitação” da Rodada Tóquio (1979), bem como das tendências renitentes às políticas de substituição de importações praticadas pelos países em desenvolvimento. O fato de que as políticas nacionais tratando dos investimentos diretos estrangeiros não tenham sido liberalizadas tanto quanto as políticas comerciais dos países participantes do sistema multilateral de comércio pode também explicar algo desse movimento em favor do minilateralismo. Não custa lembrar que os fluxos de investimentos diretos adquiriram, ao lado do intercâmbio comercial, o papel de alavanca principal do processo de globalização não-financeira. Muitos analistas argumentam, entretanto, que o fator mais importante que poderia explicar essas novas tendências do sistema comercial multilateral tem a ver com o problema da “liderança”, isto é, do exemplo dado pelo “hegemon” (os EUA), ou pelos “hegemons” (incluindo, portanto, a UE e o Japão), no estabelecimento de um novo ambiente, favorável a esses arranjos restritos, em detrimento do sistema como um

9

Cf. Diane Tussie e Ngaire Woods, “Trade, Regionalism and the Threat to Multilateralism”, Red Latinoamericana de Comércio (LATN), 2000, link: www.latn.org.ar/pdfs/tussie_woods.pdf (acesso em 18.11.05).

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todo.10 Nos EUA, em particular, os interesses econômicos refletidos no Congresso evoluíram do “novo protecionismo” dos anos 1970, para o unilateralismo agressivo dos anos 1980 e para o minilateralismo declarado da década seguinte, como revelado nas iniciativas no plano hemisférico e mais além.11 O próprio crescimento do GATT, das poucas dezenas de partes contratantes nos anos 1960, para uma centena e meia de membros da OMC no período atual deve ter acarretado, por sua dinâmica de diversificação dos interesses, uma pressão maior em favor dos arranjos geograficamente restritos. O acesso a mercados é sempre mais fácil de ser negociado em bases restritas do que no plano mais amplo do multilateralismo tradicional. Na prática, apenas os grandes atores comerciais internacionais, em primeiro lugar os EUA e a UE, têm condições de atuar em todos os planos possíveis das interações comerciais, adotando, de forma alternada ou sucessiva, estratégias ditas unilateralistas, bilateralistas, minilateralistas ou, enfim, multilaterais, segundo as conveniências de cada momento12. Quando interesses comerciais de curto prazo estiveram ameaçados nos anos 1980 (na área automobilística, com a ameaça japonesa, por exemplo), esses países não hesitaram em recorrer a práticas mercantilistas, mesmo as mais abusivas. O mesmo ocorreu, na década seguinte, na agricultura, com o uso crescente de medidas de apoio interno e de subvenções às exportações em escala jamais vista no comércio mundial. A liberalização competitiva só acontece de fato em acordos bilaterais ou sub-regionais. Atores de segundo plano, como o Brasil ou a Índia, preferem adotar abordagens diferenciadas em política comercial, privilegiando uma ou outra estratégia segundo seus recursos de poder e modos específicos de inserção econômica regional ou internacional. Desde meados dos anos 1980, o Brasil tem demonstrado nítida opção pela abertura lenta e gradual em escala regional, modulando o ritmo e a amplitude da liberalização comercial em função da preferência pelo Mercosul e pela América do Sul. Outros países da região, como México e Chile, têm impulsionado uma estratégia de liberalização mais ampla, voltada para os mais diferentes parceiros comerciais. No caso do Chile, por 10

Cf. Tussie e Woods, op. cit., p. 15. Cf. Jeffrey Frankel, Regional Trading Blocs in the World Economic System. Washington: Institute for International Economics, 1998. 12 Para uma abordagem teórica dessas estratégias, ver Vinod K. Aggarwal, “The Dynamics of Trade Liberalization”, Berkeley APEC Study Center, University of California at Berkeley (3 fevereiro 2005), link: http://istsocrates.berkeley.edu/~basc/pdf/articles/Dynamics%20of%20Trade%20Liberalization.pdf (acesso em 18.11.05). 11

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exemplo, parece evidente a preferência pelo multilateralismo unilateral, materializada em uma política aberturista como opção comercial básica e uma estratégia, não limitada à América Latina, tendente a negociar tantos acordos de livre-comércio quanto possível com o maior número de parceiros, sem discriminação geográfica ou política.13 5. Minilateralismo regional: estratégias diferenciadas de liberalização comercial A América Latina, precisamente, é uma das regiões de maior intensidade e volume de acordos minilateralistas hoje registrados, contraídos tanto dentro, quanto fora da região. De fato, desde a primeira conferência internacional americana de Washington, em 1889 até a recente experiência (até aqui frustrada) da Alca, o hemisfério como um todo tem sido recorrente nas tentativas de unificação comercial, sem que tais esforços tenham sido materializados, até aqui, em esquemas suscetíveis de enquadrar os fluxos existentes nas poucas regras básicas do que veio a ser conhecido como “regionalismo aberto” (que permanece um conceito praticamente vazio). A noção de regionalismo aberto implicaria a interpenetração dos vários arranjos bi- ou plurilaterais feitos pelos países da região, na ausência de tendências excludentes ou regras exclusivas. O que se tem observado, na prática, é o chamado “prato de espaguete” de Jagdish Bhagwati (the spaghetti bowl problem)14, com diferentes formatos de acordos preferenciais sendo servidos com molhos (regras de origem) de diferentes sabores. No caso que nos interessa mais de perto, o do Brasil e do Mercosul, a pergunta recorrente é a de saber se esse esquema minilateralista tem servido para, como afirmado no preâmbulo ao Tratado de Assunção, “lograr uma adequada inserção internacional para os países membros” ou se, ao contrário, ele tem permitido mais desvio do que criação de comércio. O argumento negativo foi oferecido mais de dez anos atrás por Sebastian Edwards, em estudo que utilizou o exemplo da indústria automobilística para confirmar os efeitos potencialmente distorcivos do comércio “induzido” no bloco sub-

13

Cf. Vinod K. Aggarwal e Ralph H. Espach, “Diverging Trade Strategies in Latin America: An Analytical Framework”, Center for Latin American Studies, CLAS Working Papers, University of California at Berkeley (paper 2, 2003), link: http://repositories.cdlib.org/cgi/viewcontent.cgi?article=1010&context=clas (acesso em 18.11.2005). 14 Cf. Jagdish Bhagwati. “The Singapore and Chile Free Trade Agreement”, Depoimento no comitê de Assuntos Financeiros da Câmara de Representantes do Congresso dos EUA (1º de abril de 2003), link: http://www.columbia.edu/~jb38/testimony.pdf (acesso em 18.11.05).

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regional.15 Na época, a dinâmica do crescimento geral de comércio, dentro e fora do Mercosul, superava a tendência ao enclausuramento minilateralista, o que permitiu rejeitar as alegações de Edwards, sob pretexto de que os efeitos criacionistas seriam superiores aos desviantes. Todavia, os conflitos recorrentes em matéria de bens industriais no comércio bilateral Brasil-Argentina, bem como a recondução continuada do comércio administrado no setor automobilístico oferecem, justamente, a comprovação dos problemas potenciais trazidos pelos acordos minilateralistas quando baseados estritamente nos ganhos recíprocos de mercado, num relativo isolamento das pressões competitivas globais. Desde o surgimento desse debate, em meados dos anos 1990, o Mercosul não teve sucesso no estabelecimento do prometido mercado comum e sequer chegou a completar a sua união aduaneira, havendo ainda diversas lacunas em sua zona de livrecomércio. As crises econômico-financeiras respectivas nos seus dois principais membros demonstram, igualmente, que Brasil e Argentina estão dispostos a utilizar o Mercosul para ganhos mercantilistas de comércio ou enquanto plataforma comercial para o exterior, desde que ele não obrigue cada um deles a empreender reformas muito amplas em suas políticas industrial, tributária e mesmo comercial. Dada a menor dependência do Brasil do comércio intrarregional e a maior competitividade de sua indústria, relativamente à modesta capacitação e modernização produtiva da Argentina, o protecionismo moderado do Brasil oferece um menor potencial de risco do ponto de vista das regras multilaterais de comércio, o que não parece ser o caso, atualmente, da Argentina, engajada num sério esforço de reindustrialização. Ambos os países, no entanto, convergem, na presente conjuntura, para uma recusa decidida da proposta de uma Alca, segundo o modelo apresentado pelos EUA, ao mesmo tempo em que se empenham em multiplicar os arranjos preferenciais de comércio contraídos na própria região, ao abrigo da Aladi. Paradoxalmente, essa estratégia tem sido adotada, com maior sucesso relativo, pelos EUA que, desde o início da terceira fase da Alca – depois da cúpula de Québec, em abril de 2001 -, também seguiram a estratégia minilateralista, fracionando suas ofertas para a futura (e agora hipotética) Alca segundo a natureza dos parceiros. Ao Mercosul ficaram reservadas as ofertas mais delongadas e, previsivelmente, as maiores exceções (setorialmente concentradas nas áreas de maior competitividade sistêmica da Argentina e do Brasil). 15

Cf. Sebastian Edwards, “Latin American Economic Integration: A New Perspective on an Old Dream”, The World Economy, 16(3), Maio 1993, p. 317-338.

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Paralelamente, os EUA passaram a negociar bilateralmente (plurilateralmente no caso dos países andinos, com a exceção da Venezuela de Chávez) acordos comerciais que eles chamam de “liberalização competitiva”, dizendo que sua propagação levará, no futuro, à liberalização multilateral. Coincidentemente, nesses acordos bilaterais – com o Chile, com o Marrocos, com a Jordânia e Cingapura, ademais da Cafta, ou seja países da América Central mais República Dominicana –, os EUA logram introduzir a panóplia de temas paralelos que eles têm dificuldades em impulsionar no plano regional e no quadro multilateral: propriedade intelectual, liberalização dos movimentos de capitais, regras laborais e ambientais. Como os pequenos países não têm poder de barganha, essas conquistas que podem ser classificadas propriamente de “imperiais” cumprem seu papel “diversionista” em vários sentidos: elas repercutem bem, politicamente, no Congresso e fazem avançar a causa americana no âmbito das negociações comerciais mais amplas. O minilateralismo brasileiro, a exemplo do americano e do europeu, também é politicamente motivado, mas, além de defensivo, ele tem conotações geopolíticas ainda mais marcadas do que as dos EUA e da UE na presente conjuntura. De fato, a estratégia minilateralista seguida pelos EUA parece ser bem mais preventiva – visando garantir antecipadamente ganhos potenciais que depois serão incorporados em esquemas multilaterais – do que defensiva, seguida pelo Brasil e seus parceiros do Mercosul como uma espécie de compensação, ou de seguro, pelas dificuldades, reais ou percebidas, em concluir acordos comerciais ditos de terceira geração.16 Diversamente dos acordos que tanto o México como o Chile fizeram com seus principais parceiros – que, exatamente como no nosso caso, são os EUA e a UE -, o Brasil persegue metodicamente, tanto por vias próprias como através do Mercosul, uma política de atração de países em desenvolvimento, na América do Sul, na África, no Oriente Médio e na Ásia. Esses objetivos políticos, parte da estratégia de relacionamento “Sul-Sul”, têm adquirido preeminência especial em face dos requerimentos estritamente comerciais que acordos desse tipo deveriam ostentar, podendo inclusive afetar de modo negativo a estratégia microeconômica das empresas exportadoras, forçadas a buscarem elas mesmas os mercados e os parceiros que o governo não lhes tem sabido garantir. 16

Cf. Jennifer Pédussel Wu, “Trade Agreements as Self-Protection”, Review of International Economics, vol. 13, nr. 3, disponível em: www.zei.de/download/zei_wp/B02-29B.pdf (acesso em 18.10.05).

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6. Conclusões: o futuro do minilateralismo A geopolítica político-comercial do Mercosul, tal como impulsionada pelo Brasil, tem sido complementada pelo projeto de integração sul-americana, consubstanciada na Comunidade Sul-Americana de Nações, outra estratégia minilateralista que deveria, em princípio, fechar o arcabouço de acordos comerciais desse tipo na região. As preferências até aqui trocadas entre os países membros da CAN e do Mercosul não têm acrescentado ganhos substanciais em relação aos tradicionais acordos aladianos – universo ao qual eles pertencem, diga-se de passagem -, contribuindo ainda mais para a conformação de um cenário tipicamente “prato de espaguete”, tão temido por partidários do livre-comércio como Jagdish Bhagwati. O ingresso da Venezuela no Mercosul, no final de 2005, pode contribuir para agregar outros elementos de “anomia comercial” ao quadro de relativo abandono dos objetivos iniciais, essencialmente comerciais, do bloco do Cone Sul. De resto, a ênfase política na aproximação, mais do que na liberalização econômica, bem como a aceitação de regras específicas e prazos mais delongados, com um forte viés de introversão comercial, parecem atualmente caracterizar esses projetos ou esquemas voltados para a própria região, contradizendo o espírito mais universalista que animava antigamente o conceito de “regionalismo aberto”. Esses exemplos americanos, ao lado da estratégia assistencialista desenvolvida pela UE em direção da clientela periférica dos países de menor desenvolvimento relativo – os PMDRs, do chamado grupo ACP -, configuram, portanto, a confirmação cabal de que o multilateralismo atual tem de conviver com um regionalismo disforme, oportunista e basicamente disfuncional em relação aos princípios do sistema econômico multilateral definido no imediato pós-Segunda Guerra. O sistema econômico multilateral terá, provavelmente, de enfrentar uma longa travessia do deserto antes de reencontrar terreno mais favorável para seu florescimento e expansão.

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1499. “Acordos minilaterais de integração e de liberalização do comércio: Uma ameaça potencial ao sistema multilateral de comércio”, Brasília, 24 nov. 2005, 12 p. Ensaio sobre a proliferação de acordos regionais e seu impacto no sistema regido pela OMC, para livro organizado por Sidney Guerra (org.), Globalização: desafios e implicações para o direito internacional contemporâneo (Ijuí: Ed. Unijuí, 2006; ISBN: 85-7429522-1, 458 p.), p. 187-203. Serviu de base para palestra em seminário sobre negociações comerciais da AmCham-SP, em 28/11/2005 (Disponível no site pessoal: www.pralmeida.org/05DocsPRA/1499Minilateralismo.pdf). Publicado sob o título “Acordos minilaterais de integração e de liberalização do comércio: o caso da América Latina” no Cebri Artigos (Rio de Janeiro, v. 3, a. 1, jul./set. 2006, 16 p.). Republicado sob o título de “Os acordos regionais e o sistema multilateral de comércio: o caso da América Latina” em Meridiano 47 (n. 75, outubro 2006, p. 6-14; link: http://www.mundorama.info/Mundorama/Meridiano_47_-_1100_files/Meridiano_75.pdf). Ensaio incorporado ao livro: Paralelos com o Meridiano 47: Ensaios Longitudinais e de Ampla Latitude (Hartford, 2015). Relação de Publicados n. 706.

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19. Contexto geopolítico da América do Sul: visão estratégica da integração

1. O contexto geopolítico da América do Sul na visão brasileira O continente sul-americano constitui a segunda grande prioridade da política externa brasileira, sendo a primeira, obviamente, o Mercosul. O direcionamento do Brasil para a área geográfico-econômica da América do Sul e seu desdobramento na dimensão político-institucional da Comunidade Sul-Americana de Nações, conformada em dezembro de 2004, constituem, na verdade, o prolongamento econômico natural e a complementação lógica dos esforços integracionistas empreendidos pelo Brasil no nível sub-regional do Cone Sul desde o início da década passada. A América do Sul é o espaço natural de atuação do Brasil, enquanto economia industrial mais avançada da região e enquanto país geograficamente situado em duas das três principais vertentes do continente, a amazônica e a platina (cuja junção se faz na região do Pantanal) e vizinho direto, igualmente, de quase todos os países andinos, à exceção do Chile e do Equador. A economia brasileira constitui, pela dimensão do seu mercado, pela ampla base agrícola já integrada aos mercados mundiais e pelo avanço de seu parque industrial, bastante competitivo em nível regional, a base de um amplo espaço econômico integrado no continente. Independentemente da natural posição de liderança regional que exerce por seus atributos físicos e econômicos, tema de extrema sensibilidade nesse âmbito, interessa ao Brasil consolidar esse espaço econômico e político como uma área de normalidade democrática, inserida na economia internacional e dotada dos requisitos de progresso tecnológico e de desenvolvimento social que até agora limitaram a presença e a afirmação internacional da região, hoje caracterizada por agudas desigualdades sociais. As principais questões estratégicas que enquadram o itinerário do continente sulamericano, na visão geopolítica brasileira, são, respectivamente, os de sua consolidação enquanto espaço político plenamente democrático, enquanto evolução para economias desenvolvidas e integradas à interdependência global e enquanto sistemas sociais caracterizados por graus os mais reduzidos possíveis de desigualdades sociais, marcas ainda características de seu desenvolvimento socioeconômico nos últimos séculos, aliás, desde a formação dos Estados nacionais. A América do Sul é uma região excêntrica aos grandes eixos de poder e encontra-se, felizmente, ao abrigo de possíveis cenários de 206

conflito, mas ela possui potenciais – naturais, demográficos e econômicos – para inserir-se de modo mais ativo nas grandes correntes de intercâmbios dos mais diversos tipos que caracterizam o mundo contemporâneo. A América do Sul enfrenta, desde a descoberta, obstáculos físicos de grande amplitude à sua plena integração, o que acarretou, justamente, um baixo grau de interdependência entre as economias nacionais, ainda hoje marcadas por grande extroversão econômica (fluxos financeiros e intercâmbios comerciais prioritariamente vindos ou dirigidos à América do Norte e à Europa, e, crescentemente, à Ásia-Pacífico). Trata-se igualmente de região marcada por grande instabilidade política e social e pela volatilidade e baixa sustentabilidade de seu processo de crescimento, derivados do quadro de desigualdades agudas que marcam o seu desenvolvimento. O grande desafio da região, em relação ao qual o Brasil possui uma responsabilidade especial, é justamente a superação dos obstáculos físicos, econômicos, tecnológicos, políticos e sociais à plena inserção da região sul-americana na interdependência global, de maneira a colocá-la no mesmo compasso de outras regiões, notadamente a Ásia, que têm desempenhado papel de destaque no novo ordenamento global pós-Guerra Fria. Uma das alavancas definidas como essenciais a esse processo de inserção competitiva da região no mundo é o processo de integração econômicocomercial, que tem apresentado progressos no período recente. Esse processo de integração em nível sul-americano não deveria, em princípio, contrapor-se a outros projetos de conformação de um espaço comercial integrado no nível hemisférico, contando inclusive com a participação dos Estados Unidos (embora as opiniões a este respeito, não apenas no Brasil, sejam fortemente divergentes). Mas, para o Brasil, consolidar uma identidade própria numa região da qual ele é naturalmente uma espécie de pivô geopolítico constitui um empreendimento de grande significado diplomático, em sua dimensão própria, e dotado de relativo impacto internacional. Esse empreendimento possui evidentes implicações econômico-financeiras, políticodiplomáticas, culturais e mesmo estratégico-militares, para as quais o Brasil tem de preparar-se adequadamente nos próximos anos. 2. A importância estratégica da América do Sul A América do Sul apresenta-se como uma imponente massa física de âmbito continental, fragmentada, dispersa e mesmo dividida em sub-regiões dotadas de características ecológicas muito diversas, desde a independência politicamente dividida 207

em nações independentes e autônomas entre si, inclusive do ponto de vista de suas principais relações econômicas e políticas intra e extra-região, mas que guardam, na diversidade dos meios físicos e humanos que as caracterizam, certa identidade cultural, religiosa e social. Esforços de integração existiram desde a época da liberação do jugo espanhol, consubstanciados, por exemplo, no projeto bolivariano de uma federação de países dotados de instituições similares e animados do mesmo desejo de assegurar a independência em face das ameaças externas de dominação econômica ou política. Essas tentativas sempre sucumbiram às dificuldades naturais existentes ou à trajetória errática da vida política em cada um dos países, marcados de maneira recorrente pela instabilidade institucional derivada de regimes de tipo caudilhista ou incapazes de incorporar social e politicamente grandes massas de cidadãos desprovidos em sua maior parte de educação política e de condições adequadas de subsistência. As desigualdades sociais, a baixa institucionalidade política e a instabilidade econômica animaram golpes militares e mudanças bruscas de regime, até um período ainda recente da história do continente. O processo de redemocratização iniciado em meados dos anos 1980 parece ter se consolidado definitivamente nos países do Cone Sul, mas ainda enfrenta algumas dificuldades na zona andina, agitada de forma ocasional por experimentos populistas e crises econômicas. Trata-se, em todo caso, de região rica em recursos naturais, sobretudo energéticos (gás, petróleo e outros minerais), amplos espaços agricultáveis e de criação (sobretudo nos pampas sulinos e no cerrado central, este predominantemente brasileiro) e com vastíssimos recursos de biodiversidade, fonte potencial de obtenções úteis às agriculturas e às indústrias da região. A capacitação em recursos humanos e sobretudo os níveis de renda são, ainda, notoriamente insuficientes para mobilizar de maneira adequada todo esse vasto potencial natural e as estruturas produtivas, inclusive industriais, construídas ao longo das últimas décadas de industrialização. Este último processo se deu pela via da substituição de importações o que, se permitiu instalar uma base relativamente pujante para aproveitamento pelo mercado interno, também isolou a região da competição internacional, diminuindo sua participação nos grandes fluxos de comércio mundial. Os esforços de integração física e de liberalização comercial recíproca têm por objetivo, justamente, romper o isolamento relativo em que viviam os países da região em relação aos vizinhos e aprofundar os laços de interdependência recíproca, base de sua afirmação autônoma no cenário internacional. Desde que o Brasil propôs uma área 208

de livre-comércio sul-americana (Alcsa) no início dos anos 1990, alguns progressos foram feitos, notadamente em termos de associação de países ao Mercosul (Chile e Bolívia em 1996, Peru em 2003) e de acordos entre grupos de países (Mercosul-CAN em 2004). Novas iniciativas em direção dos países do Caribe devem completar a rede de acordos comerciais de liberalização dos intercâmbios e de ampliação da cooperação regional, como instituído na Comunidade Sul-Americana de Nações (dezembro de 2004). Em que pese a forte dose de retórica integracionista em praticamente todos os países da região e os escassos resultados efetivos, o comércio intrarregional cresceu significativamente ao abrigo dos acordos aladianos durante o final dos anos 1980 e início dos 90. Para isso também contribuiu o arcabouço de blocos sub-regionais, como o próprio Mercosul, a CAN e outros esquemas plurilaterais ou bilaterais mais flexíveis, muitos dos quais protagonizados pelo Chile. Em consequência, não só o volume global, como a parte do comércio regional no conjunto dos intercâmbios externos tendeu a crescer, a despeito mesmo de um certo decréscimo durante a fase mais aguda das crises financeiras, que também atingiram alguns países da região. Como sabido, grande parte dos fluxos comerciais são concentrados no Cone Sul, com destaque para o Brasil e a Argentina e, no que diz respeito ao comércio bilateral, nota-se a grande dependência dos três vizinhos menores dos mercados desses dois grandes parceiros. As instituições de fomento, dentre as quais o Fonplata que financia o Cone Sul, não são muito eficientes, com exceção da CAF, pertencente à CAN, mas da qual o Brasil também é membro e que tem financiado algumas obras de infraestrutura com países vizinhos (como a Venezuela, por exemplo). Para apoiar sua política de integração sul-americana, o Brasil sentiu-se motivado a utilizar mais intensamente a capacidade financeira do BNDES, mas restrições de caráter estatutário tem obstaculizado um engajamento mais intenso desse banco brasileiro de desenvolvimento nos projetos sulamericanos de integração física ou de infraestrutura nacional. A Iniciativa de Integração Regional Sul-Americana (IIRSA), criada como resultado da primeira reunião de presidentes da América do Sul, iniciativa do presidente Fernando Henrique Cardoso em 2000, sofreu de descontinuidade a partir de 2003, mas seu papel deve, em princípio ser recuperado pela nova Comunidade Sul-Americana de Nações, impulsionada de modo decisivo pelo governo do presidente Lula. O Mercosul e, dentro dele, o Brasil constituem os eixos fundamentais da estratégia de constituição de um espaço econômico integrado e democrático na região 209

sul-americana. Tendo em vista, porém, tanto as debilidades relativas do bloco do Cone Sul, como as limitações financeiras do próprio Brasil, esses esforços de integração têm avançado em ritmo mais lento do que o desejável. Seria preciso, nos próximos anos, reforçar os mecanismos de financiamento para grandes projetos de desenvolvimento da infra-estrutura suscetíveis de consolidar os vínculos de comércio e investimentos que já estão sendo feitos a partir da própria região. Não obstante, a maior parte dos países sul-americanos manifesta atração pelo mercado e pelos investimentos dos Estados Unidos, desejos que vem sendo atendidos, depois da paralização das negociações da Alca, parcialmente de modo bilateral, por acordos negociados diretamente com o grande país do Norte, que conseguiu estabelecer, assim, sua própria rede de acordos na região (notadamente com os países centroamericanos e caribenhos e, na América do Sul, com Chile, Colômbia e Peru). Outros aspectos dessa presença são dados pela presença militar dos Estados Unidos em países andinos (Equador e Colômbia, ademais de esquemas especiais de cooperação e assistência com o Peru e a Bolívia), fundamentada no combate ao narcotráfico e na contenção de grupos guerrilheiros ligados igualmente ao comércio ilegal e à lavagem de dinheiro. 3. Conjuntura atual e retrospectiva da evolução da integração sul-americana Não existia, a propriamente dizer, um bloco sul-americano no alvorecer do século XXI, mas ele encontra-se em formação preliminar, graças em grande medida aos esforços da diplomacia brasileira. Depois de anos, ou mesmo décadas, de adesão ao conceito politicamente vago, mas politicamente aceito, de “América Latina”, noção essencialmente cultural antes de converter-se em referência obrigatória na agenda multilateral, a diplomacia brasileira começou a trabalhar, desde o início dos anos 90, com o conceito de América do Sul, cuja realidade antecede de fato à sua formalização prática. Com efeito, datam do Império, os primeiros esforços de intensificação das relações do Brasil com os países vizinhos, projetos dificultados pelas dificuldades do relevo natural e pela baixa densidade dos intercâmbios locais, à exceção da região platina, onde os vínculos sempre foram mais estreitos, legais e ilegais. A penetração dos territórios brasileiros do interior, aliás, era necessariamente feita pelas vias aquáticas, a partir dos dois grandes rios que conectam, a partir do Atlântico, as regiões do hinterland brasileiro, ao sul pelo Prata, ao norte pelo Amazonas, com a diferença do controle 210

fundamental exercido pelo próprio Brasil neste segundo caso e da dependência, no primeiro, da existência de poderes amigos nas duas margens. Daí as diferenças de posicionamento no que tange à navegabilidade dos rios internacionais contíguos ou sucessivos que a diplomacia imperial entreteve numa fase de fronteiras ainda incertas. Toda a primeira diplomacia brasileira, no que tange ao relacionamento com os vizinhos, foi assim ocupada pela fixação e a demarcação das fronteiras, deixadas em grande medida imprecisas depois dos tratados de Madri, de Santo Ildefonso e de El Pardo. Essa obra culminou, no essencial, na gestão do Barão do Rio Branco como chanceler, ao início do século XX. Desde então, o Brasil consolidou seu sistema de segurança regional e de cooperação política com os vizinhos sul-americanos mediante dois grandes tratados-marco que definem a cooperação regional com as duas grandes regiões do continente: o tratado da Bacia do Prata (1974) e o tratado de Cooperação Amazônica (1978). Essa obra de “pacificação” e de consolidação de fronteiras, basicamente política em suas motivações e inclinações, vem sendo complementada pelos acordos de integração regional e de cooperação que foram em grande medida impulsionados pelo Brasil desde os anos 1950: primeiro tratado de Montevidéu (1960), criando a Associação Latino-Americana de Livre-Comércio (Alalc), segundo tratado de Montevidéu (1980), substituindo a Alalc pela a Associação Latino-Americana de Integração (Aladi) e, a partir de meados dessa década, o itinerário político-econômico da integração bilateral Brasil-Argentina, que desdobrou-se no Mercosul, no início dos anos 1990, e novamente num projeto sul-americano, desde essa fase impulsionado pelos acordos entre os países do Mercosul e os da Comunidade Andina de Nações (CAN), em 2003 e 2004. Este último processo, por sua vez, culminou na constituição, em dezembro de 2004, da Comunidade Sul-Americana de Nações (uma declaração presidencial que se fez acompanhar de um série de acordos aladianos), cujas características organizacionais e mandato preciso, em grande medida voltados para a consecução dos processos de integração física e comercial, ainda devem receber configuração institucional mais precisa nos próximos anos. Problemas fronteiriços residuais ainda existem em pontos localizados do continente sul-americano, que de outra forma não mais apresenta potencial significativo de guerras inter-estatais ou de conflitos internos, à exceção da longa guerra civil na Colômbia. Este conflito passou por diversas fases, desde os antigos intentos guerrilheiros de inspiração socialista até sua identificação com o próprio narcotráfico e 211

o crime organizado no período mais recente. Ele se insere, contudo, numa longa tradição de problemas políticos e de tensões sociais, que assistiu, nos últimos anos, ao recrudescimento das tensões institucionais em vários países, com demissão forçada de presidentes, fuga de outros e casos de impeachments. De forma geral, a região é marcada por problemas sociais persistentes, a começar pelos baixos níveis de educação formal e por agudas desigualdades distributivas, que demorarão vários anos para serem superados. A corrupção e o mau funcionamento da justiça são fenômenos endêmicos na maior parte dos países da região, que, à exceção do Chile, também vêm apresentando baixo dinamismo econômico e, consequentemente, baixas taxas de crescimento per capita. O relativo descrédito do sistema político tem, por vezes, alcançado o próprio regime democrático, cuja preservação mereceu cláusula democrática aprovada especialmente pela OEA, confirmando temores remanescentes em relação à sua solidez. Desequilíbrios fiscais, déficits orçamentários e recurso ao endividamento excessivo ainda atormentam vários países da região, que tem apresentado indicadores bastante inferiores aos da maior parte dos países asiáticos em termos de poupança doméstica, competitividade externa e atratividade aos investimentos estrangeiros diretos. A participação nos fluxos mais dinâmicos de comércio internacional ainda é irrisória para a maior parte dos países, a despeito mesmo da boa base industrial consolidada em vários deles, como o Brasil – que tem uma pujante indústria aeronáutica – e o México, este mais vinculado aos ciclos e perfil do comércio exterior dos EUA. 4. Uma visão prospectiva sobre a América do Sul Uma visão prospectiva da evolução do continente sul-americano não pode tomar como garantida a constituição de um bloco político-econômico restrito à região, a despeito mesmo do forte engajamento político, diplomático e econômico do Brasil nesse empreendimento. São muitas as variáveis que deverão influenciar essa evolução, a começar por fatores externos, ou internacionais, representados pelas políticas de abertura a novos acordos comerciais por parte da grande potência hemisférica (e mundial). A possibilidade de acesso a seu próprio mercado, bem como a promessa de investimentos diretos nos países recipiendários, tornam os EUA especialmente atrativos para quase todos os países da América do Sul. Outros fatores internos, como a baixa dinâmica de crescimento econômico ou a alternância de forças políticas de inclinação oposta podem gerar descontinuidades num projeto voltado exclusivamente para a 212

América do Sul, cuja intensidade de comércio recíproco talvez não seja o suficiente para alavancar um bloco relativamente homogêneo num continente ainda caracterizado pelo distanciamento físico, por desigualdades sociais e por assimetrias estruturais. Dentre os eventos ou processos que podem influenciar o destino de qualquer projeto “aliancista” na América do Sul, os seguintes poderiam ser ressaltados: 1) Diferenciais de crescimento entre os vários países da região, o que pode aumentar a distância entre eles e as dificuldades de qualquer projeto integracionista uniforme, cujos membros apresentem grandes assimetrias entre si, como já demonstrado pela experiência dos países do Cone Sul. Nesse particular, o Brasil, por ter a mais forte economia industrial da região e uma capacidade ainda limitada de prestar cooperação ou ajuda financeira, pode ressentir-se do baixo interesse dos vizinhos em aprofundar esquemas que tenham por base a igualdade de direitos e obrigações. 2) Amplitude e extensão de uma futura rede de acordos comerciais (em substituição à Alca), patrocinada pelos Estados Unidos, que tenderá a atrair, quando existir, países fortemente dependentes da relação econômica com o gigante do norte. O mesmo efeito pode ser produzido desde já, pelos acordos bilaterais de comércio já concluídos entre os EUA e países da América do Sul, a exemplo dos já realizados com o Chile, Colômbia e Peru, e dos que eventualmente forem negociados. 3) Tensões ou mesmo conflitos entre países vizinhos por razões de ordem histórica (como nos casos do Chile e a Bolívia e o Peru, ou ainda Colômbia e Venezuela, ou Venezuela e Guiana) ou pelo surgimento de pendências ligadas aos eventuais efeitos externos de instabilidades internas (no caso da Colômbia, por exemplo), o que pode ser igualmente vinculado aos deslocamentos de populações, acesso a recursos estratégicos (água, fontes de energia etc.). 4) Capacidade brasileira de conceder acesso não recíproco a seu mercado, prestar cooperação em escala ampliada, mediar conflitos entre os países da região ou mesmo ter capacidade para alguma projeção de tipo militar. 5) Disponibilidade de fontes de financiamento para viabilizar a integração da infraestrutura física e energética da América do Sul, entre elas o próprio Brasil. 6) Fortalecimento e consolidação do Mercosul, que deve ser necessariamente a base de qualquer projeto integracionista mais amplo na região. 7) Ampliação da capacidade de exportação de capitais por parte do Brasil, em especial via multinacionalização de suas grandes empresas. Um esforço de planejamento estratégico envolvendo os diversos processos regionais ou plurilaterais de integração, como no caso da Comunidade Sul-Americana de Nações, não é facilmente administrável pelos países envolvidos, uma vez que a negociação de regras multilaterais sempre apresenta dificuldades operacionais de uma certa complexidade, a fortiori quando o processo decisório comporta a adoção de definições ou a tomada de decisão com base na unanimidade. As mesmas razões de ordem prática militam contra o estabelecimento de soluções de ruptura, sendo normalmente esperado que os parceiros implementem, “naturalmente”, soluções

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tendenciais, que costumam, igualmente, tardar mais longamente do que soluções bilaterais ou as que mobilizam número restrito de parceiros. O Brasil “adotou” uma descontinuidade em sua política externa, desde o início dos anos 1990, no sentido de privilegiar o conceito e a realidade da América do Sul no quadro de sua diplomacia regional, em lugar da antiga noção de América Latina. Caberia agora primar pela continuidade, no sentido de confirmar essa escolha fundamental – não tão estratégica, talvez, ou absolutamente indispensável, do que a seguida no caso do Mercosul, mas igualmente relevante – e continuar a trabalhar essa nova realidade diplomática pelos anos e décadas à frente, independentemente das dificuldades conjunturais ou obstáculos estruturais (consagrados, uma vez mais, nas famosas assimetrias econômicas, industriais e sociais,s no plano regional). Mais ainda do que no projeto do Mercosul, deve-se falar, no caso da América do Sul, de “regionalismo aberto”, ou seja, perseguir a real abertura econômica – ainda que de forma não-recíproca – com todos e cada um dos países da região, situação a ser complementada, obviamente, pela continuidade da abertura comercial com os parceiros da América do Norte e da Europa. É nesse âmbito sul-americano que o Brasil poderá mobilizar, em toda a sua extensão possível, suas enormes vantagens comparativas dinâmicas e o potencial oferecido pelo seu território conectado a quase todos os países da região. É também nesse âmbito que o Brasil aparece como “gigante natural” e, portanto, como provedor de acesso ao seu próprio mercado e como ofertante competitivo na maior parte dos ramos industriais e de serviços. Esse cenário é ainda mais válido, justamente por força das dificuldades de financiamento dos projetos e sua implementação no terreno, no caso das iniciativas de integração física que foram traçadas a partir da conferência de cúpula da América do Sul, realizada em Brasília em setembro de 2000, e que vêm sendo implementadas no quadro da IIRSA e agora da Comunidade Sul-Americana de Nações. A implementação de projetos nas áreas de transportes, energia e comunicações só pode ser tendencial, uma vez que concepção, desenho e efetivação de cada um desses projetos envolve não apenas a obra de engenharia em si, mas igualmente uma complexa arquitetura financeira. A parte física da integração poderia, em princípio, caminhar até mais rápido do que a parte comercial, pois não existem no primeiro caso as limitações de tipo institucional e os constrangimentos da posição em bloco que são de rigor na segunda modalidade de integração, que existe o formato “4+1” ou os esquemas bloco a bloco. 214

5. O objetivo geoestratégico básico do Brasil na América do Sul O objetivo básico da integração em escala continental, na visão brasileira, é a conformação de um imenso espaço integrado nos planos econômico-comercial e físicologístico, bases indispensáveis de exercícios mais ambiciosos nos terrenos da integração cultural, na “permeabilidade” social e financeira, e até em direção de objetivos mais amplos nos terrenos político e diplomático, com coordenação de posições em matéria de política externa e de segurança estratégica. Não se trata, em princípio, de constituir um “bloco” para se contrapor a outros poderes, em especial ao mais poderoso país do hemisfério, mas tão simplesmente de conformar um espaço integrado para o desenvolvimento integral dos povos da região. O Brasil, pela sua dotação favorável de fatores, geografia “estendida” e regime político aparentemente mais estável do que todos os demais países da região, com a possível exceção do Chile, tem todas as condições de exercer a liderança nesse processo, mas essa posição precisa emergir naturalmente, como sendo uma demanda dos países interessados em nossa capacidade de iniciativa nos mais diversos setores, não como um oferecimento feito de forma isolada e muito menos como uma imposição unilateral, o que possivelmente não seria aceito pelos vizinhos regionais. Dentre as metas e linhas de ação que poderia sustentar esse objetivo estratégico do Brasil estão: (a) a continuidade do processo de acumulação de pequenos avanços institucionais no sentido de ampliar a rede de acordos integracionistas no contexto da América do Sul, completando a cobertura dos acordos econômicos e comerciais, com sua extensão a novas áreas de interesse social e cultural, e, de modo paralelo e até mais intenso; (b) avançar decisivamente no terreno da integração física, para de fato dar o suporte logístico à integração que se pensa promover no campo dos sistemas produtivos e dos intercâmbios financeiros e tecnológicos. O Brasil não deve proclamar sua vocação de ser o centro desse espaço integrado, pois isso ocorrerá naturalmente, e qualquer intenção anunciada pode gerar movimentos contrários que poderão retardar o processo de conformação desse espaço. Uma visão estratégica recomendaria ainda dispor da mais ampla flexibilidade organizacional e política na definição e escolha dos objetivos e instrumentos capazes de lograr a consolidação do espaço integrado sul-americano, o que significa não privilegiar, nem descartar, nenhum dos mecanismos existentes e porventura em formação que facilitem a obra de integração, seja no terreno econômico-comercial, seja 215

no plano logístico e da infra-estrutura, seja ainda na área estratégica e de segurança. Em algumas tarefas, a cooperação poderá inclusive estender-se a parceiros fora do alcance geográfico imediato do espaço em formação, como podem ser os países caribenhos, os centro-americanos, o México e o Canadá, e até mesmo os EUA, que continuarão, no futuro previsível a ser um grande mercado e provedor de bens e serviços, nas áreas de mercadorias, financeira, cultural e educacional e sobretudo tecnológica. Um projeto hemisférico não deveria necessariamente ser visto como contraditório ou oposto a esses objetivos de integração no âmbito sul-americano, tanto porque a maior parte dos países vizinhos têm dele uma visão positiva, tanto em termos de acesso ao mercado dos EUA, como fonte possível de recursos financeiros e de investimentos diretos. Uma outra modalidade de ação implicaria acelerar de modo decisivo o processo de integração física, econômica e social no contexto sul-americano, com o Brasil tendo de assumir os custos iniciais (ou permanentes) desse tipo de investimento, sem que estejam muito claras as condições políticas e financeiras sob as quais o Brasil teria de desempenhar esse papel protagônico (de resto, unilateral e portanto sob risco de rejeição por parte dos vizinhos). A “fuga para a frente”, em todo caso, a supor que ela seja aceita pelos vizinhos, teria de comportar, igualmente, uma “solução financeira” para os intercâmbios regionais, com a moeda brasileira desempenhando um papel complementar ao do dólar nos financiamentos, transferências e créditos dos mais diversos tipos. Em outros termos, o Brasil precisaria estar disposto e em condições de passar a assumir um papel de provedor generoso de ajuda técnica e assistência ao desenvolvimento, de “exportador de capitais” e de “aberturista não-recíproco” aos produtos e serviços dos países vizinhos. Acelerar, relativamente, e consolidar, absolutamente, o processo de integração física e econômica dos países da América do Sul representam grandes empreendimentos econômicos e diplomáticos do ponto de vista do Brasil. Da mesma forma, implementar e garantir o funcionamento ampliado de uma rede de acordos políticos, econômicos e de outra natureza, que diminuam as barreiras existentes entre os países, constituem outros grandes desafios estratégicos para a sua diplomacia. Um objetivo de mais longo prazo, para essa diplomacia, seria tornar a América do Sul um ator, se não global, pelo menos dotado de importância relativa nos cenários hemisférico e nas relações com outros grandes atores do sistema internacional. Adicionalmente, seria importante, no plano setorial, institucionalizar uma rede de acordos plurilaterais relativos à integração física, eventualmente pelo reforço da Comunidade Sul-Americana de Nações (mas não 216

necessariamente através dela, exclusivamente). A diplomacia recomenda, justamente, conservar um grau relativo de liberdade e de flexibilidade para alcançar metas variadas e objetivos diversificados nos diversos planos da integração regional. No caso do Brasil, essa liberdade deve ser confrontada a suas obrigações no âmbito do Mercosul. 6. Conclusão: a estratégia sul-americana do Brasil A América do Sul é o terreno “natural” de atuação da diplomacia e da economia do Brasil, tanto quanto o é o Mercosul, ainda que seu processo de consolidação demande bem mais tempo e maiores esforços do que o projeto de plena conformação do mercado comum no âmbito sub-regional. Não se deve, no entanto, fixar metas irrealistas de mercado plenamente unificado no futuro previsível em escala sul-americana, apenas um cenário de criação de redes comerciais e de esquemas econômicos complementares, inclusive e principalmente na área financeira, com a utilização de mecanismos e instrumentos crescentemente mais sofisticados, como podem ser os da Comunidade SulAmericana de Nações. O Brasil deve estar consciente de que as principais iniciativas, e os maiores esforços de cooperação, devem partir dele mesmo, o que demandará, obviamente, um investimento inicial sem retorno aparente garantido (mas que fatalmente virá em seu devido tempo). No plano da organização estatal interna, o objetivo estratégico deveria ser tornar a área “doméstica” da integração sul-americana não apenas prioritária do ponto de vista diplomático, mas igualmente no que se refere à ação setorial de todos os demais ministérios, que devem passar a encarar os desafios à integração sul-americana como uma extensão e parte constitutiva de suas próprias políticas setoriais.

1709. “O contexto geopolítico da América do Sul: visão estratégica da integração”, Brasília, 5 janeiro 2007, 12 p. Revisão geral, em forma de artigo, do trabalho 1437 (relativo ao bloco econômico-político da América do Sul, concebido como proposta de solução estratégica para a dimensão global do projeto Brasil 3 Tempos). Publicado no boletim eletrônico Meridiano 47 (n. 76, novembro 2006, p. 15-23; ISSN: 1518-1219; link: http://meridiano47.info/2006/11/). Ensaio incorporado ao livro: Paralelos com o Meridiano 47: Ensaios Longitudinais e de Ampla Latitude (Hartford, 2015). Relação de publicados nº 724.

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20. Mercosul: uma avaliação retrospectiva e uma visão prospectiva

O presente ensaio pretende fazer uma revisão histórica do desenvolvimento do Mercosul, bem mais no plano conceitual do que em suas manifestações operacionais, e formular algumas hipóteses quanto a sua evolução futura. A análise será feita no contexto da integração regional e do sistema multilateral de comércio, tendo em conta opções estratégicas do ponto de vista brasileiro, sem entrar no detalhamento de iniciativas ou posições adotadas pela política externa do Brasil. Após considerações iniciais de caráter geral sobre a relevância estratégica do Mercosul para o Brasil, será efetuada uma retrospectiva do bloco do cone sul em suas grandes linhas de desenvolvimento político-comercial. Numa terceira parte serão apresentados alguns elementos da evolução possível desse bloco, seguidos de argumentos quanto à sua possível evolução tendencial, sem desconsiderar algumas hipóteses de aceleração ou de ruptura com as linhas seguidas até o presente momento. Finalmente, serão discutidos alguns dos desafios com que se defronta o Mercosul na presente fase de desenvolvimento, sem necessariamente traçar recomendações quanto às políticas a serem adotadas. O objetivo é bem mais analítico do que propositivo, tendo em vista importantes indefinições políticas que hoje cercam esse processo de integração. 1. A relevância estratégica do Mercosul para o Brasil O objetivo estratégico do Brasil em relação ao bloco político-econômico do Mercosul tem a ver com a consolidação desse agrupamento político-comercial enquanto centro de um espaço econômico integrado na América do Sul e sua projeção ulterior enquanto ator relevante, regional e internacional, nos sistemas político e econômico mundiais. O Brasil assumiu, desde o início do Mercosul, um papel protagônico nesse processo, que tem igualmente na Argentina um parceiro de primeiro plano. O Mercosul também tem sido definido, desde o início dos anos 1990, como um elemento fundamental da política externa brasileira e como um dos objetivos prioritários da estratégia brasileira de inserção internacional. Esse processo, para sua consecução exitosa, deve estar devidamente articulado com os demais elementos da estratégia nacional de desenvolvimento, notadamente nas 218

suas vertentes de gestão macroeconômica e de políticas setoriais de competitividade externa, de comércio exterior e de desenvolvimento tecnológico e industrial, aqui incluído o sistema do agronegócio. O Mercosul representa um importante vetor de modernização econômica e tecnológica e de inserção competitiva internacional da economia brasileira, não tanto pela sua potencialidade stricto sensu, mas pela possibilidade que ele oferece ao Brasil de consolidar um espaço econômico mais amplo do que o próprio território nacional para a atuação das empresas nacionais, em primeiro lugar na sua conformação propriamente platina e do Cone Sul, em segundo lugar no estabelecimento de um espaço econômico integrado ao conjunto da América do Sul. A essa dimensão geoeconômica deve ser agregada uma dimensão diplomática ou mesmo geopolítica, no sentido em que o Mercosul, quando consolidado em seu objetivo fundamental (artigo 1º do Tratado de Assunção, de 1991) de mercado comum, e enquanto base principal de uma zona de livre-comércio sul-americana, constituirá um importante fator de projeção regional e internacional de poder econômico e político, tendo necessariamente o Brasil, ao lado da Argentina, como um dos atores fundamentais no jogo estratégico global. Desde algum tempo e com maior ênfase a partir do final da Guerra Fria, os processos de globalização e de regionalização têm marcado o itinerário histórico de países e regiões inteiras. Na fase anterior, os blocos seguiam uma lógica mais políticomilitar do que propriamente econômica, a despeito da existência de alguns experimentos bem sucedidos nessa vertente, como foi o caso do processo de integração europeia. Deslanchado a partir da Comunidade Europeia do Carvão e do Aço (em 1951), expandido para os objetivos de um mercado comum em 1957 (com os tratados de Roma) e consolidado ao longo dos anos enquanto mercado verdadeiramente unificado (1986-1992), o projeto de uma “União Europeia” foi estendido para a dimensão da união econômica e monetária a partir do Tratado de Maastricht (1991), com sucessivas ampliações dos países membros, a partir dos seis sócios originais da Europa ocidental, até atingir, em 2007, 27 países membros, desde o norte da Europa até o Mediterrâneo e a Europa oriental. Diversos outros países na região postularam suas candidaturas, sendo o mais importante deles a Turquia. Essa trajetória bem sucedida de integração, contando inclusive com moeda única e uma estrutura institucional relativamente homogênea, contrasta com as dificuldades da integração na América Latina, que conheceu diferentes etapas desde a Associação 219

Latino-Americana de Livre-Comércio (1960) até a atual Associação Latino-Americana de Integração (1980), com experimentos sub-regionais paralelos, como o Grupo Andino (1969), hoje Comunidade Andina de Nações (CAN) e o próprio Mercosul (1991), formado a partir das primeiras experiências bilaterais de integração entre o Brasil e a Argentina (Programa de Integração e de Cooperação Econômica, de 1986, Tratado de Integração, de 1988, e Ata de Buenos Aires, de 1990). O processo de integração bilateral Brasil-Argentina, diferentemente dos esquemas anteriores da Alalc e da Aladi, que se limitavam a uma zona de livrecomércio ou mesmo a uma simples área de preferências tarifárias, já estava concebido como um projeto de mercado comum, e foi assim que ele foi “quadrilateralizado” em 1991 para acolher o Paraguai e o Uruguai que, junto com o Chile, negociaram uma extensão dos esquemas integracionistas que vinham sendo implementados pelos dois maiores países do Cone Sul. O Chile não ingressou no Mercosul naquela ocasião, em virtude da incompatibilidade de sua estrutura tarifária (baseada no conceito de tarifa única, então centrada numa alíquota de 11%, posteriormente reduzida à metade) com o projeto de Tarifa Externa Comum do Mercosul, mas tornou-se membro associado, junto com a Bolívia, em 1996. Desde essa época, aliás, existiram projetos de uma área de livre comércio sulamericana, a constituir-se em especial através de esquemas de liberalização comercial entre o Mercosul e a CAN, objetivo finalmente alcançado, ainda que de forma imperfeita, entre 2003 e 2004, ao mesmo tempo em que se dava início à Comunidade Sul-Americana de Nações (lançada no Peru, em dezembro desse ano). Paralelamente foram assinados acordos de liberalização comercial com a maior parte dos países integrantes da CAN, sendo que a Venezuela decidiu aderir ao Mercosul em 2006. Um documento de recomendação ao Conselho, elaborado por um grupo de trabalho que definiu as regras e os prazos da plena incorporação da Venezuela ao bloco foi estabelecido no início de 2007. No início desse ano, estavam em curso tratativas para a incorporação plena da Bolívia – já membro associado desde 1996 – e do Equador, mas ambos países pretendiam obter regras “especiais” de adesão – possivelmente com a dispensa de aplicação plena da Tarifa Externa Comum ou de outras obrigações comuns. Cogitou-se, igualmente, do ingresso de Cuba – que já é membro pleno da Aladi desde 1998 – ao Mercosul, mas este exibe uma “cláusula democrática” – declaração de San Luís e Protocolo de Ushuaia – que pode inibir essa incorporação enquanto o país caribenho funcionar com um modelo político à base de partido único. 220

Para que o processo de fortalecimento do Mercosul se consolide de forma irreversível, o bloco precisaria cumprir os objetivos estabelecidos no artigo 1º do Tratado de Assunção, quais sejam os de constituir um mercado comum unificado e o servir de plataforma para a coordenação de políticas macroeconômicas e setoriais dos países membros, o que implica seu fortalecimento e institucionalização ampliada. As dificuldades que se têm anteposto a esse objetivo podem ser definidas como sendo de duas ordens: conjunturais e estruturais. No plano conjuntural, existem as naturais limitações de processos nacionais de estabilização macroeconômica não inteiramente consolidados, depois de anos, ou mesmo décadas, de instabilidades criadas por surtos hiperinflacionários, crises externas de pagamentos associados ao excessivo endividamento e a volatilidade dos movimentos de capitais, debilitamento das moedas nacionais e fases de estagnação ou de baixo crescimento econômico. No plano estrutural, são evidentes as assimetrias entre os países membros, tanto em termos de dimensão econômica própria (com o Brasil representando algo como 70% da “massa” do Mercosul, em matéria de PIB, de comércio intra-regional e externo, de investimentos estrangeiros etc.), como em razão da estrutura e do nível do processo de industrialização e de avanço tecnológico (com as disparidades mais fortes acumuladas, mais uma vez, em favor do Brasil). Daí resultam diferenciais de competitividade e de atração de investimentos que têm provocado reações nos demais sócios e impedido a consolidação e avanço do Mercosul para patamares mais avançados de integração e de inserção internacional. O mesmo cenário pode se reproduzir em escala ampliada, no âmbito sulamericano, o que por sua vez representaria limitações para a consolidação do Mercosul enquanto centro do processo de integração regional. A experiência histórica indica que avanços reais nos planos institucional e político dependem de uma boa base econômica e de infraestrutura na região, razão pela qual os países membros deveriam, se desejam efetivamente consolidar o Mercosul enquanto bloco político-econômico regional, redobrar os esforços para a superação das dificuldades remanescentes para a constituição do Mercosul enquanto mercado comum verdadeiramente unificado. O Brasil tem conduzido esforços para a superação das chamadas “assimetrias” de desenvolvimento, notadamente mediante a constituição de um “fundo” de correção desses desequilíbrios, do qual é o principal financiador líquido, mas as dimensões do 221

problema parecem ultrapassar de muito as possibilidades algo limitadas do novo esquema. 2. Retrospectiva do Mercosul O Mercosul tem uma história que pode ser remontada aos anos 1950, ou mesmo antes. Já em 1941, numa fase de perigos mundiais, Brasil e Argentina assinaram um acordo de constituição de uma união aduaneira, suscetível de ser ampliada a outros países do Cone Sul, que não pode entretanto constituir-se em virtude da ampliação da Segunda Guerra Mundial e das opções distintas que os dois países adotaram pelo restante do período bélico. No pós-Segunda Guerra alguns esforços de aproximação política e de cooperação econômica foram conduzidos, em especial durante os governos Perón e Vargas e depois novamente Kubitschek e Frondizi, que não avançaram em razão das instabilidades internas exacerbadas e também provavelmente em virtude de desconfianças existentes entre os respectivos establishments militares. Ainda assim, os dois governos atuaram no sentido de estabelecer um esquema integracionista no Cone Sul, baseado no conceito de preferências tarifárias, mas que, dadas as circunstâncias da época, só pode ser concretizado mediante o acordo de uma zona latino-americana de livre-comércio do primeiro tratado de Montevidéu (Alalc, 1960). Os anos 1960 e 1970 foram dominados por governos autoritários em quase toda a região, com fases mais ou menos delongadas de regimes militares tanto no Brasil quanto na Argentina, o que inviabilizou esquemas mais amplos ou ambiciosos de integração econômica, ademais de exacerbar certas preocupações com a segurança estratégica em cada um dos países, a ponto inclusive de suscitar projetos paralelos de capacitação nuclear em ambos. A redemocratização política de meados dos anos 1980 permitiu abrir um espaço real de cooperação e de integração bilateral, cobrindo não apenas aspectos propriamente comerciais e de complementação produtiva, mas igualmente protocolos de integração em diferentes áreas da vida nacional, inclusive no terreno nuclear (energia e equipamentos). Foi este entendimento fundamental entre a Argentina e o Brasil, nos governos Raul Alfonsin (1984-1989) e José Sarney (1985-1990), que permitiu o lançamento do ambicioso projeto de integração bilateral com o objetivo de instituir um mercado comum em dez anos (Tratado de Integração de 1988). Este esquema, fortemente embasado numa visão gradualista e flexível, dispondo como instrumentos fundamentais dos protocolos setoriais de complementação econômica, foi posteriormente modificado 222

– nos governos Carlos Saul Menem e Fernando Collor de Mello – pelo esquema livrecambista de integração plena, com a redução à metade do prazo para a formação de um mercado comum (Ata de Buenos Aires, de julho de 1990). A Ata de Buenos Aires deu o quadro institucional e os mecanismos de desgravação comercial para o esquema negociado do Mercosul, então ampliado aos dois outros sócios da vertente platina, Paraguai e Uruguai, e consolidado no Tratado de Assunção, de março de 1991. Baseado num esquema intergovernamental – e não comunitário – de formação de uma união aduaneira e de um mercado comum, o Mercosul conseguiu cumprir, durante a fase de transição (1991-1994), vários dos seus objetivos preliminares, quais sejam, a desgravação comercial recíproca, a adoção de diversos instrumentos constitutivos da união aduaneira – como a definição de uma tarifa externa comum e de um mecanismo de solução de controvérsias –, mas não logrou a constituição do mercado comum anunciado no tratado fundacional. Foram preservadas algumas exceções à zona de livre-comércio – das quais as mais importantes foram o setor automobilístico e o açúcar – e mantidas diversas exceções nacionais à sua Tarifa Externa Comum – com desvios para cima ou para baixo em relação ao que seria a tarifa normal, notadamente em setores como eletroeletrônico e bens de capital. Não foi possível, por outro lado, atingir-se o objetivo de coordenação das políticas macroeconômicas e setoriais, sobretudo em razão de uma defasagem fundamental entre os regimes cambiais da Argentina – então funcionando à base de um regime de convertibilidade que previa a paridade absoluta entre o peso e o dólar – e o do Brasil – que numa primeira fase ainda se encontrava sob um regime de minidesvalorizações, substituído, a partir do Plano Real, por uma âncora cambial, modificada por sua vez por um regime de bandas cambiais a partir da fase de crises financeiras da segunda metade dos anos 1990, até a desvalorização de janeiro de 1999 e a adoção ulterior de um regime de flutuação. O Mercosul foi fortemente atingido por todas as instabilidades nacionais, regionais e internacionais que marcaram a fase de crises financeiras dos anos 1990, mesmo se, numa primeira etapa, o comércio intrarregional e mesmo o comércio dos países membros com o mundo tenha conhecido uma real expansão e não tenha enfrentado desvios notáveis em função da formação da união aduaneira. Desde o período de transição (1991-1994) e mesmo na etapa seguinte, depois da consolidação do esquema intergovernamental do Mercosul mediante o Protocolo de Ouro Preto (dezembro de 1994), o comércio intra e extra-Mercosul cresceu significativamente, para 223

o que também contribuíram as reformas econômicas e as políticas de abertura comercial adotadas no início dos anos 90. O Mercosul atuou, igualmente, no sentido de distender as relações estratégicas entre seus dois grandes parceiros, uma vez que a Argentina e o Brasil tinham historicamente adotado, desde muito tempo, senão o caminho da animosidade ou da hostilidade recíproca, pelo menos uma certa prevenção de princípio contra supostas intenções hegemônicas em cada uma das margens do Prata, postura materializada em táticas eventuais de oposição bélica em possíveis cenários de conflito, chegando inclusive à competição nuclear, ainda que inconfessada. Os programas de cooperação bilateral na área nuclear, desde os anos 80, a aceitação, por ambos os países, de salvaguardas extensivas nesse terreno no início dos anos 90, culminando com a adesão ao TNP, bem como o início de um efetivo programa de consulta e de intercâmbio entre unidades militares dos dois países, contribuíram para uma real distensão no campo estratégico e o início da cooperação entre seus establishments militares, base de uma futura integração doutrinal e operacional. Paralelamente, ao adotar uma concepção de “regionalismo aberto”, o Mercosul abriu-se a negociações com outros parceiros regionais e mesmo de fora da região: a associação do Chile e da Bolívia ao Mercosul deu-se desde 1996, enquanto esforços eram feitos em direção da CAN, finalmente concretizados pela associação do Peru ao Mercosul, em 2003, e mediante acordos com os demais membros da CAN no decorrer de 2004. A Venezuela aderiu mediante protocolo assinado em 2006, mas o esquema negociado delonga durante vários anos – até 2014, praticamente – sua incorporação plena ao regime interno de livre comércio e sua plena aceitação da Tarifa Externa Comum. Bolívia e Equador são dois outros possíveis candidatos. A União Europeia declarou-se parceira do Mercosul desde o início de sua criação, oferecendo programas de cooperação técnica e dispondo-se, desde o acordo de Madri (dezembro de 1995), a negociar um esquema de liberalização comercial entre os dois esquemas de integração, processo deslanchado a partir de 1999 e ainda não terminado. As dificuldades maiores se situam na liberalização agrícola, do lado europeu, e a abertura aos produtos industriais e serviços, do lado do Mercosul. No plano hemisférico, também foram notórios os esforços dos Estados Unidos para lograr uma zona de livre-comércio englobando toda a região (à exceção de Cuba). Esse processo teve início ainda em 1990, através da Iniciativa para as Américas, proposta pelo presidente George Bush (pai) e desdobrou-se em dezembro de 1994 na 224

chamada Área de Livre-Comércio das Américas (Alca), proposta pelo presidente William Clinton durante uma cúpula presidencial realizada em Miami. Depois de intenso processo preparatório, no qual o Mercosul conseguiu defender uma concepção que preservasse o seu próprio bloco de integração – contrariamente à visão dos EUA, que pretendiam uma simples adesão dos demais países ao esquema do Nafta, o acordo de livre-comércio da América do Norte –, as negociações para a formação da Alca foram praticamente paralisadas a partir do final de 2003, em função de desentendimentos entre seus principais protagonistas – isto é, EUA e Brasil – a propósito da amplitude do acesso a mercados (em especial de bens agrícolas) e da extensão a ser dada ao tratamento de alguns temas ditos “sistêmicos” – entre eles, subsídios, antidumping, investimentos, propriedade intelectual, compras governamentais – que os países entendem seriam mais bem discutidos no âmbito multilateral das negociações comerciais da OMC. Uma tentativa de reinício do processo negociador fracassou na cúpula realizada em Mar del Plata em novembro de 2005 e a Alca parece ter saído da agenda americana, tendo Washington colocado em seu lugar o objetivo de concluir uma série de acordos bilaterais dos quais espera retirar concessões mais generosas dos países interessados em seu vasto mercado. A crise na Argentina desdobrou-se, a partir de 1999 e em especial no final de 2001, numa forte recessão e numa aguda crise política, na suspensão do seu regime de convertibilidade cambial e na decretação da moratória dos pagamentos de sua dívida externa, o que, junto com a instabilidade manifestada em outros países da região, entre eles o Brasil, provocou um forte decréscimo nos níveis de comércio recíproco no Mercosul. A despeito de um processo gradual de recuperação do crescimento nos países membros e de uma retomada do comércio e dos investimentos na região, o Mercosul ainda ostenta diversas fragilidades econômicas e comerciais, com a manifestação frequente de impulsos protecionistas em setores fragilizados das economias nacionais dos países membros, como por exemplo a ameaças de imposição de salvaguardas unilaterais contra produtos concorrentes brasileiros por parte de alguns ramos da indústria argentina. Essas práticas argentina de restrição ao comércio bilateral com o Brasil acabaram sendo consolidadas num “Mecanismo de Adaptação Competitiva”, que pode ter diminuído o ímpeto unilateralista do país vizinho. A despeito das dificuldades de ordem econômico-comercial, o Mercosul logrou avançar em diversos outros terrenos de cooperação bilateral e mesmo multilateral no Cone Sul, com a adoção de diversos instrumentos nos terrenos industrial e tecnológico, 225

educacional, previdenciário, de ajuda mútua e de integração nas áreas da justiça e judiciária e em setores de infraestrutura como transportes, energia e comunicações. Também foram dados passos para a cooperação cultural e social, com a multiplicação de mecanismos de coordenação e de cooperação envolvendo não apenas os governos e as instituições públicas dos países membros e associados, mas também representantes da sociedade civil, a começar pelos sindicatos e organizações culturais. Um Parlamento do Mercosul foi criado em 2006, contando com representação paritária dos países membros, a despeito mesmo da enorme diferença de dimensões e de população entre eles. Por fim, e não menos importante, as reuniões ministeriais e encontros presidenciais a cada seis meses pelos menos, mas na prática em ritmo mais intenso, inclusive e principalmente no plano bilateral, têm permitido uma intensa troca de opiniões e a coordenação de posições entre os países membros, seja em relação aos temas propriamente integracionistas, seja no âmbito das negociações hemisféricas e extra-zona, seja ainda no que se refere a diferentes pontos da agenda política e econômica internacional. A superação da crise econômica e a consolidação dos processos de estabilização nos países membros deveria permitir, nos próximos anos, a realização, em princípio, dos objetivos fundamentais do Tratado de Assunção, nomeadamente a constituição do mercado comum pretendido. 3. Um visão de futuro para o Mercosul Uma visão prospectiva do Mercosul, no seu âmbito próprio e no seu contexto regional e internacional, deve levar em conta situações conjunturais, internas e externas, desafios presentes e futuros, bem como processos estruturais ligados às suas características de desenvolvimento. Essas dinâmicas estão por vezes fortemente entrelaçadas, tendo em vista inclusive o fato de ser a região relativamente extrovertida, isto é, dependente de fluxos externos de capitais, know-how e tecnologia e de intercâmbios que se processam em grande medida com parceiros externos, mais até do que na própria região. Diferentes processos ou eventos influenciarão o itinerário futuro do Mercosul, em sua dimensão própria e nos contextos externos, entre os quais podem ser destacados: 1. A evolução propriamente interna, política, institucional e econômica, dos países membros, sem ruptura dos regimes democráticos e pluralistas; 226

2. A disposição de suas lideranças políticas em continuar impulsionando o processo de integração, a despeito de custos setoriais que são inevitáveis; 3. O estabelecimento de uma agenda realista, preferencialmente de forma coordenada, para a superação, no curto prazo, das dificuldades conjunturais e, no médio prazo, das limitações e obstáculos estruturais à plena integração dos mercados; 4. A manutenção do crescimento econômico e da competitividade externa dos países membros, de maneira a continuar a atratividade de capitais externos e mesmo os investimentos recíprocos nos países membros; 5. A continuidade das reformas macroeconômicas e setoriais, com a adoção de uma perspectiva integracionista nas diferentes vertentes desse processo de reformas nos países membros, notadamente nas área tributária, de normas e regulamentos técnicos, de coordenação de legislações setoriais e de integração das políticas regulatórias; 6. A preservação da estabilidade econômica, política e social na região, pelos reflexos desse quadro nas relações externas do Mercosul, em especial no que se refere à consolidação dos acordos com os países membros da CAN e a continuidade dos demais esquemas de integração física e política em âmbito continental, como pode ser a Comunidade Sul-Americana de Nações; 7. A continuidade e eventual conclusão das negociações no âmbito da Rodada Doha, da OMC, fortemente dependentes de êxitos a serem alcançados nos capítulos agrícola e industrial, ademais de serviços e propriedade intelectual; 8. A extensão e profundidade dos acordos de liberalização comercial que vêm sendo negociados pelos Estados Unidos com diversos parceiros da região, o que representa um dupla ameaça para o Mercosul, tanto no plano propriamente regional como no acesso ao mercado americano; 9. A retomada e conclusão de um acordo de liberalização comercial entre o Mercosul e a União Europeia, igualmente dependente das negociações multilaterais da OMC e dos ganhos a serem eventualmente obtidos pelos EUA no plano hemisférico. Não há uma única trajetória futura, ou alternativas antinômicas, para o bloco político-econômico do Mercosul, uma vez que se trata de processo fortemente dependente da vontade política dos países membros. Respondendo a uma dinâmica político-diplomática bem mais forte do que a própria realidade econômica regional, seu processo de desenvolvimento dependerá, assim, das definições de políticas nacionais 227

suscetíveis de serem adotadas pelos diferentes governos dos países membros e associados. Ainda assim, passados quinze anos de sua fundação e implementação, é de se supor que as novas realidades criadas e consolidadas ao longo desse período atuem como forte fator dissuasor de quaisquer retrocessos que possam ser aventados como resultado das dificuldades conjunturais e das limitações estruturais que enfrentam ou enfrentarão, no futuro, os países membros. Elemento importante na sua dinâmica de desenvolvimento institucional refere-se à sua característica básica, qual seja, a de o Mercosul continuar sendo um processo “apenas” intergovernamental, e não comunitário ou supranacional – sem perspectiva de que essa realidade seja mudada no futuro previsível –, com o que esse bloco continuará fortemente dependente das políticas públicas, macroeconômicas e setoriais, que adotem os governos dos países membros nos anos à frente. De toda maneira, se o objetivo básico, tal como identificado na maior parte dos establishments políticos nacionais, é o da consolidação, ampliação e extensão do Mercosul, então algumas problemas têm de ser enfrentados por esses governos com vistas ao atingimento dos objetivos estabelecidos em 1991 no Tratado de Assunção (e ainda não cumpridos em sua maior parte). Consoante uma metodologia que pode ser adotada para a problemática do Mercosul, as soluções estratégicas a esse problema podem ser agrupadas em dois grupos: tendenciais e de ruptura. As soluções estratégicas tendenciais aplicam-se a situações que necessitam de aperfeiçoamentos e de adaptações para lograr-se o atingimento dos objetivos pretendidos. As soluções de ruptura são teoricamente aplicadas em temas que implicam em mudanças estruturais que levem à conquista de alguns dos objetivos pretendidos dentro de prazos que devem ser pactuados entre os países membros. Em relação a essa segunda categoria, soluções de ruptura, deve-se levar em conta que num processo negociado multilateralmente, como é o caso do Mercosul, elas só logram realizar-se quando existe acordo prévio e completo entre todos os parceiros do processo de integração, não cabendo aqui a manifestação da vontade exclusiva de um ou dois dos países membros. Por outro lado, soluções de ruptura nessa temática só podem ser concebidas em dois sentidos antinômicos: ou com uma forte disposição dos países membros e associados em acelerar e fortalecer de modo claro o processo de integração, avançando para etapas ainda mais ambiciosas do que aquelas estabelecidas no Tratado de Assunção – que já se refere a um mercado comum acabado, que deveria 228

estar implementado pelo menos desde 1º de janeiro de 1995 –; ou então, no sentido inverso, uma decisão consciente de reverter ou mesmo abandonar aqueles objetivos, seja retrocedendo o Mercosul à situação de uma mera zona de livre-comércio – que seria, talvez, o estatuto comercial da Comunidade Sul- Americana de Nações, caso esta se realize plenamente em sua vertente comercial –, seja ainda, de maneira dramática, o desmantelamento de qualquer objetivo integracionista no Cone Sul, voltando cada país a recobrar sua autonomia em matéria de políticas setoriais, em especial a comercial e de cooperação econômica regional em escala ampliada. Acrescente-se que, num processo complexo como é o do Mercosul, também dependente de desenvolvimentos externos, seja na própria região (como é o caso dos acordos que estão sendo negociados pelos EUA, em substituição à Alca), seja em outros contextos (avanços ou recuos dos processos multilaterais de liberalização comercial e de abertura econômica), nem todas as dinâmicas são controladas pelos países membros, nem dependem exclusivamente da vontade política de seus governos. Mesmo quando dependessem, a dinâmica da economia internacional e os ciclos de inserção e competitividade externa dos países da região podem vir a influenciar as políticas econômicas e setoriais que serão adotadas pelos países membros nos anos à frente, inclusive levando em conta processos diplomáticos específicos – alianças regionais ou externas privilegiadas ou mudanças no contexto internacional, como o sistema da ONU, por exemplo –, tanto quanto mudanças de orientação política internas aos países membros. Nesse último caso, não é inconcebível, teoricamente, uma orientação política de governo que tenda a ver nas soluções integracionistas geograficamente restritas uma manifestação daquela situação de bem-estar que os economistas chamam de “secondbest solution”, ou seja, um processo de liberalização ou de abertura econômica não necessariamente ideal, dado que parcial, protecionista e discriminatório, passando-se então à rejeição dos esquemas integracionistas e à adoção de uma solução de abertura unilateral e universal. Trata-se, neste último caso, de uma situação de ruptura literal, ainda que pouco provável ou suscetível de ocorrer como tendência política, em função do registro histórico conhecido na região. 4. Possível evolução tendencial do Mercosul O Mercosul tem a ver, basicamente, com uma realidade comercial e econômica, mas que é impulsionada politicamente, estendendo-se em segundo e terceiro lugar a outros terrenos não-econômicos de realização, como podem ser os planos jurídico229

institucional, educacional e cultural, sindical e social etc. Nesse sentido, o Mercosul precisaria consolidar, antes de mais nada, sua zona de livre-comércio e a sua união aduaneira, o que tem a ver com a livre circulação de todos os bens produzidos internamente e com o tratamento uniforme e consolidado de todas as mercadorias transacionadas com terceiros países. O que se constata, atualmente, é a existência de exceções remanescentes ao livre-comércio, que talvez não possam ser acomodadas senão ao cabo de um período adicional de mais de uma dezena de anos: tal pode ser o caso do açúcar da Argentina e o de sua indústria automobilística, setores não competitivos em relação a seus similares brasileiros, o que talvez seja difícil de incorporar sem programas custosos de reconversão setorial. No plano da união aduaneira, as exceções nacionais à TEC expressam as assimetrias existentes, conjunturais e estruturais, entre os sistemas produtivos dos países, o que também pareceria requerer prazos adicionais para sua incorporação ao regime comum da TEC. A inclusão da Venezuela ao Mercosul, por decisão política antes que econômica, pode dificultar ainda mais a aplicação uniforme da TEC no âmbito territorial da união aduaneira. Os países menores, por sua vez, reivindicam derrogação para si de algumas normas comuns – como as regras de origem, que determinam coeficientes elevados de conteúdo local nos produtos transformados e exportados ao bloco – que podem também fragilizar o funcionamento comercial do bloco. A convergência para uma união aduaneira plena tem enfrentado dificuldades seguidas, uma vez que ela implica alterações por vezes significativas no custo dos fatores e insumos de produção – premiados ou penalizados, segundo os casos, por adicionais ou isenções tarifárias, de acordo com o perfil industrial de cada membro – e pode inviabilizar ramos inteiros de alguma indústria nacional. O fato é que prazos já foram concedidos no passado para esse processo de convergência sem que os países membros fizessem progressos substantivos no sentido da eliminação das exceções mais importantes. A solução pode estar numa renegociação da TEC, com a adoção de alíquotas mais realistas numa primeira fase, ainda que diferenciadas (mas legalmente acordadas), seguida de nova convergência progressiva ao longo de um período adicional de tempo. Quanto aos diferenciais de competitividade dentro do próprio bloco, que têm motivado demandas protecionistas no sentido da adoção de salvaguardas automáticas nos setores submetidos a forte concorrência, eles tampouco têm soluções imediatas ou 230

de pronta implementação. Mesmo as recomendações em prol da “integração de cadeias produtivas” entre dois ou mais países, com a adoção concomitante de uma perspectiva de busca de mercados externos, em lugar da concorrência predatória no plano subregional, essas medidas de “política industrial” não logram sua transmutação na prática, em tempo hábil, tendo em vista os instrumentos limitados de que dispõem os governos nos países membros para atuar em estruturas de mercado essencialmente caracterizadas pela existência de grupos privados respondendo de forma independente a realidades setoriais ou microeconômicas. Uma segunda ordem de problemas, que está, aliás, “estruturalmente” ligada à temática econômico-comercial, tem a ver com a dimensão jurídica do Mercosul, ou mais exatamente, com a “internalização” de normas em cada um dos países, numa situação, a do esquema intergovernamental, que depende fortemente da vontade política nacional para o cumprimento das decisões acordadas multilateralmente. A solução tendencial envolve, neste caso, a transparência e o monitoramento das decisões aprovadas e remetidas aos cuidados dos países membros, com talvez a adoção de um protocolo adicional prevendo prazos estritos para que essa internalização e promulgação legal se faça em cada um deles. Um começo de “harmonização constitucional” talvez fosse bem vindo como linha de princípio nessa matéria. Essa menção “constitucional” remete, por sua vez, ao aperfeiçoamento da institucionalidade do Mercosul que também pode ser (e ficar) dependente da efetiva consolidação da integração comercial, uma vez que muitas regras não são cumpridas não por falta de previsão legal, mas pela inexistência de condições objetivas, isto é, econômicas ou sociais, para tanto. Não se menciona, neste particular, a adoção de um outro tipo de processo decisório que não o da unanimidade (ou veto), sem qualquer qualificação majoritária ou “dimensional”, uma vez que qualquer mudança nessa área implicaria uma “solução de ruptura”, e não a via tendencial como abordada nesta seção. Independentemente da consolidação de soluções “constitucionais” ao problema da internalização de normas, há um amplo espaço para a unificação (ou pelo menos harmonização) de legislações nacionais setoriais, logrando fazer com que os establishments legislativos passassem a trabalhar de forma mais integrada e cooperativa. Isto vale, igualmente, para os aparatos nacionais relativos ao poder judiciário, tanto em sua dimensão executiva, de cooperação multilateral, como em sua vertente diretamente judiciária, que pode cooperar ainda mais amplamente do que o realizado até aqui. 231

Uma última ordem de problemas econômicos tem a ver com a chamada questão das “assimetrias”, encaradas como impedimentos absolutos à plena integração dos membros. Se é certo que diferenças importantes existem entre os países membros – de tamanho das economias, de recursos naturais e humanos, de níveis de desenvolvimento industrial ou de sofisticação tecnológica –, o mais correto seria permitir que as assimetrias fossem absorvidas pelas forças de mercado, introduzindo-se, aqui e ali, medidas paliativas ou corretoras de desequilíbrios mais imediatos, sem criar programas custosos de financiamento de iniciativas supostamente redutoras das carências setoriais. Parece claro que financiamentos estatais, por mais importantes que sejam, não apresentam o mesmo impacto “estrutural” que as próprias diferenças reais entre as especializações de cada um dos países, que aliás constituem a base do comércio regional e internacional. O Mercosul “não-econômico”, por sua vez, compreende uma vasta agenda de objetivos sociais, culturais ou educacionais, e até mesmo estratégicos, cujas potencialidades são de certa forma infinitas, mas que parecem depender, igualmente, de avanços na pauta comercial e econômica para sua implementação efetiva. No terreno das conquistas laborais, por exemplo, a obtenção de ganhos adicionais em termos de legislação trabalhista ou sindical depende em grande medida de ganhos constantes de produtividade para que alguma transferência de renda, direta e indireta, se faça como norma multilateral. Em vários outros pontos da agenda não-econômica, a tomada de iniciativa pode depender de fontes externas de financiamento, o que nem sempre é fácil de se lograr em virtude, precisamente, do caráter intergovernamental do bloco e da inexistência de personalidade efetiva de “direito internacional”. Uma solução de menor complexidade pode implicar na boa disposição de um dos países membros em atuar como “emprestador” ou “financiador de última instância”, ou seja, uma espécie de “garantidor benevolente” de algumas metas que representem custos efetivos de implementação. Nas condições atuais, essa personagem teria de ser o Brasil. Finalmente, no terreno estratégico, as perspectivas podem ser bem mais positivas do que a própria marcha da integração no campo econômico e comercial, uma vez que a dinâmica de cooperação já lograda entre as forças armadas dos países membros, em especial entre as do Brasil e da Argentina, permite augurar o desenvolvimento de esquemas mais elaborados de integração militar, sem que esse processo fique dependente de eventuais sucessos alcançados no plano econômico. As 232

instâncias de cooperação política e de coordenação diplomática entre as chancelarias respectivas, para uma atuação conjunta nos foros internacionais, são ainda embrionárias, mas os contatos em matéria de assuntos militares e estratégicos, envolvendo representantes dos estados-maiores dos quatro países membros e sobretudo dos dois grandes parceiros, têm sido suficientemente intensos para justificar a passagem a fases mais elaboradas de coordenação e de integração nessa área. Por certo que parece ainda prematura a possibilidade de algum arranjo mais elaborado do tipo “aliança militar”, mas uma cooperação mais estreita na área da defesa pode contribuir decisivamente para racionalizar orçamentos militares (pela uniformização de determinados equipamentos), diminuir gastos nacionais em P&D militar (pela cooperação ampliada nesse setor), abrir mercados para produções em escala crescente (pela especialização industrial) e, mais importante do ponto de vista militar, ampliar a capacidade de resposta tática e estratégica a ameaças externas (pelo desenvolvimento de perspectivas autônomas de defesa regional, no quadro de exercícios militares conjuntos). Em síntese, seria preciso identificar as causas e as razões da não consolidação do Mercosul enquanto união aduaneira – o que implica, ainda, uma não insistência no mercado comum acabado –, apontando soluções para cada um dos problemas identificados. Tendo em vista os possíveis prazos para a implementação de eventuais acordos a serem alcançados no plano multilateral ou no âmbito da Alca, sugere-se um prazo adicional de sete anos para o cumprimento dos objetivos mais importantes do Tratado de Assunção. Esses objetivos poderiam ser objeto de uma conferência diplomática, que consolidaria num novo instrumento de compromissos formais e de ajustes institucionais, o engajamento dos países membros com os principais objetivos da fase fundacional. No plano operacional, pode-se cogitar da criação de um grupo de trabalho “estratégicoinstitucional”, formado por representantes dos países membros do Mercosul, mais um participante independente de cada um dos países (geralmente da área acadêmica, mas podendo ser, igualmente, representante do setor privado ou de meios sociais), com o objetivo de identificar os obstáculos existentes – estruturais, sistêmicos e conjunturais – à consolidação da união aduaneira e de propor soluções alternativas e de traçar estratégias de eliminação desses obstáculos, sempre numa linha de superação tendencial desses problemas. A pauta de uma conferência diplomática de “refundação” do Mercosul, por sua vez, seria definida exclusivamente entre os países membros. 233

5. Os desafios que se colocam ao Mercosul Uma possível ameaça a este curso de ação seria o não comprometimento dos países membros com o conjunto de soluções estratégicas oferecidas pelo grupo de trabalho e seu não engajamento numa nova pactuação pela consolidação do Mercosul, que perderia, assim, sua credibilidade interna e internacional. Pode-se, simplesmente, não adotar formalmente, as propostas do grupo de trabalho, ainda que trabalhando, paulatinamente, para sua implementação delongada no tempo, à medida que os próprios países membros se sentirem preparados para tanto. Soluções de ruptura são dificilmente implementáveis no Mercosul, uma vez que dependentes do acordo unânime de todos os países membros. Elas só são concebíveis no sentido puramente negativo de um país membro decidir adotar unilateralmente medidas e decisões contrárias ao espírito e à letra do Tratado de Assunção (e seus principais instrumentos complementares), com o que se configuraria uma situação de “inadimplência” temporal ou definitiva, acarretando, previsivelmente, a suspensão dos direitos e obrigações daquele país membro. Mas, isso se daria numa atmosfera de crise política e de ruptura de compromissos diplomáticos, interna e externamente ao bloco em questão. Ainda assim, algumas soluções de ruptura, tendentes a acelerar o curso de determinados objetivos acordados mas ainda não consolidados, são concebíveis e implementáveis, como explicitado a seguir. A assunção de obrigações externas, no quadro hemisférico ou da OMC, por exemplo, pode servir de importante elemento estimulador dos avanços a serem alcançados no interior do próprio Mercosul, com a adoção de uma calendário mais curto no plano interno, de maneira a preservar as preferências de que gozam os países membros em relação a parceiros externos. Por exemplo, para completar a zona de livre-comércio e consolidar a união aduaneira em um prazo determinado, seria útil Estabelecer, por meio de grupos de trabalho setoriais, uma lista consolidada de providências adicionais a estes objetivos e definir uma metodologia, assim como um calendário para sua implementação ulterior. Esses objetivos seriam objeto de registro num compromisso formal quanto ao seu atingimento, a serem ratificados pelos órgãos legislativos nacionais e pelo novo Parlamento do Mercosul. Pode-se, também, pensar em fixar um prazo determinado – digamos entre sete e dez anos – para a criação efetiva do mercado comum estipulado no artigo 1º do Tratado 234

de Assunção. Para que isso se faça, seria preciso propor um prazo (entre seis meses a um ano, por exemplo) para a apresentação de um programa de ações governamentais e multilaterais com vistas ao objetivo do mercado comum. Numa etapa ulterior, seria adotado um novo instrumento político-diplomático estabelecendo calendário e metodologia para o atingimento gradual do objetivo do mercado comum. Paralelamente, seria criada uma comissão de alto nível para monitoramento e recomendações tendentes ao cumprimento daqueles objetivos. Uma outra solução de ruptura, mas na outra direção, seria fazer o Mercosul reverter a uma simples zona de livre-comércio, uma vez constatado ser impossível o objetivo do mercado comum. Para tanto, seria útil analisar, por meio de grupo de trabalho, todas as implicações decorrentes dessa retrocessão, e medir os custos de oportunidade advindos da reversão à situação pretendida, com a ressalva de que mesmo essa situação não pode ser realizada plenamente, em virtude de dificuldades objetivas já identificadas e plenamente conhecidas. Essa opção implicaria negociar um acordo diplomático que formalizaria esse objetivo de reversão ao status de simples zona de livre-comércio, operando a devida comunicação sobre a nova situação à OMC e outras organizações pertinentes (Aladi, por exemplo). O Mercosul ainda assim – isto é, no caso de uma “ruptura negativa”, induzida externamente ou decidida internamente – precisaria decidir o que fazer com o conjunto de acordos não exclusivamente econômicos assinados ao longo da década e meia de existência formal. Da mesma forma, os esquemas formais e informais de consulta e coordenação política, como as reuniões presidenciais que servem a bem mais do que simplesmente acolher decisões do Conselho do Mercosul cumprem uma função não estritamente vinculada à forma (“mercado comum”) assumida pelo bloco nesta fase do esquema integracionista. Assim, mesmo no caso de uma “ruptura negativa” (quanto aos esquemas integracionistas), seria importante preservar os elementos cooperativos na interação entre os atuais países membros, na medida em que a “geografia” apresenta aspectos muito mais “estruturais” do que a simples acomodação ou convivência resultante da história ou da economia. A indefinição quanto às linhas de desenvolvimento futuro do Mercosul, tanto internamente quanto nos contextos regional e multilateral, torna difícil uma previsão do que seria possível estabelecer como metas consolidadas ou “objetivos estratégicos” de curto, médio e longo prazo. Essas linhas são em parte dependentes da vontade política 235

dos líderes dos países membros, mas também derivadas das linhas de força que irão se consolidando ao longo dos próximos anos em função de desenvolvimentos internos e de negociações ou eventos externos, com a presença de grandes atores – EUA, China, UE – cujas respectivas capacidades de influência continuarão superiores ao poder próprio dos países membros do Mercosul. Em todo caso, parece haver um consenso político, entre os dirigentes e a sociedade dos países membros, de que o Mercosul deveria, no decorrer dos próximos anos, ser reforçado e consolidado, de maneira a confirmar seus objetivos de um mercado comum sub-regional no Cone Sul e de base de um espaço econômico integrado na América do Sul.

1710. “Mercosul: uma revisão histórica e uma visão de futuro”, Brasília, 22 de janeiro de 2007; revisão: 30 de março de 2007, 16 p. Revisão geral, em forma de artigo, do trabalho 1434 (relativo ao bloco do Mercosul, concebido como proposta de solução estratégica para a dimensão global do projeto Brasil 3 Tempos). Publicado no boletim eletrônico Meridiano 47 (n. 77, dezembro 2006, p. 7-17; ISSN: 1518-1219; link: http://meridiano47.info/2006/12/). Modificado para apresentação no VII Encontro Nacional de Estudos Estratégicos (Brasília, 68.11.2007). Republicado In: Rubens A. Barbosa (organizador): Mercosul revisitado (São Paulo: Fundação Memorial da América Latina, 2007, 80 p.; Coleção Cadernos da América Latina; p. 57-75). Ensaio incorporado ao livro: Paralelos com o Meridiano 47: Ensaios Longitudinais e de Ampla Latitude (Hartford, 2015). Relação de publicados nº 727.

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Quarta Parte

Política internacional, Questões estratégicas

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21. Camaradas, agora é oficial: acabou o socialismo

A última e definitiva “pá de terra” no caixão do socialismo? O que aparentemente se apresentou como uma simples medida burocrática de tipo regulatório – o anúncio realizado no dia 6 de junho de 2002 pelo Departamento do Comércio dos Estados Unidos, secundado em telefonema dado no mesmo dia pelo Presidente George W. Bush a seu contraparte da Rússia, Vladimir Putin, tendente a confirmar o status de “economia de mercado” doravante atribuído ao país formado a partir do ex-sistema socialista soviético – constitui, na verdade, uma mudança de caráter histórico e fundamental nas relações internacionais contemporâneas. A partir dessa data, terminou, de fato e oficialmente, o regime econômico socialista na face do planeta. Os ainda partidários ou simplesmente saudosistas de uma economia de comando centralizado, do tipo que existia na ex-União das Repúblicas Socialistas Soviéticas e na China há cerca de duas décadas, poderão, finalmente, derramar uma lágrima de crocodilo pela morte, quase sem comemorações, de um regime que, em seus tempos áureos, cobria dois terços das terras emergidas e igual proporção de seres viventes. A geração pós-Segunda Guerra deve ainda lembrar-se que o socialismo se apresentava então como o sucessor natural do capitalismo enquanto organização social de produção e que, em 1959, sob a liderança do ex-primeiro ministro soviético Nikita Kruschev, ele prometia enterrar o próprio capitalismo. Ainda que sem grandes anúncios e funerais, o socialismo, para todos os efeitos práticos, acaba de morrer, sem discurso e sem coroa. Se fosse o caso de escolher algum epitáfio tumular, ele poderia levar a seguinte inscrição, para deleite de alguns e o ódio incontido de vários outros: “Camaradas: o capital venceu”. De fato, o capital, esse instrumento da exploração do homem pelo homem, submetido, há um século e meio, ao bisturi intelectual de um cérebro genial como o de Karl Marx, o vil capital emerge como vitorioso na mais formidável batalha do século XX: aquela travada numa luta sem tréguas entre opressores e oprimidos, entre explorados e exploradores, entre burgueses e proletários, entre capitalistas e assalariados, enfim, entre os portadores do passado e os arautos do futuro. O passado venceu e o velho e carcomido capital acaba de cravar o último prego no caixão mortuário do socialismo, sem que disso se tivessem apercebido os velhos comunistas e os novos socialistas. Marx, que passou toda uma vida percorrendo suas entranhas para 239

desvendar o segredo que explicava a dinâmica do capitalismo – para os não iniciados, o mistério do capital se encontra no processo de extração da mais-valia –, escreveu o nec plus ultra desse sistema opressor em 1867, revelando sua mística nesse magnum opus que é Das Kapital, onde o processo de acumulação é não apenas cientificamente analisado como devidamente vilipendiado. A despeito, porém, de sua visão messiânica sobre o fim do capitalismo e sobre a emergência natural do socialismo no seu seguimento, a morte deste último acaba de ser anunciada no decreto burocrático desse 6º dia do mês de junho de 2002, exatamente 135 anos depois da primeira edição do Capital. Como e porque isso ocorreu, e que implicações isso pode ter para a vida econômica moderna e, pessoalmente, para vários de nós, que ainda acreditamos nas virtudes eventualmente redentoras do socialismo, essas questões constituem o objeto deste ensaio de análise e de reflexão que de certa forma se apresenta igualmente como um balanço intelectual e uma extração de lições. Vejamos, em primeiro lugar e dentro de seu contexto, os fatos singelos que marcam o que chamei de “fim oficial do socialismo” e que motivam, inclusive num sentido de “balanço intelectual de uma época”, a análise de cunho marxista que se pretende oferecer em seguida sobre esse óbito e suas razões profundas. Uma medida simples, mas altamente simbólica: de volta ao mercado capitalista No dia 6 de junho de 2002, no mesmo dia em que na Europa – em presença de vários veteranos americanos – se comemorava mais um aniversário do “dia D”, a data da invasão da Normandia, em 1944, pelas tropas aliadas ocidentais, desafogando um pouco a terrível carga militar até então exercida sobre a União Soviética na sua luta de morte conta a Alemanha nazista, nesse dia simbólico o presidente Bush telefona a seu colega Putin e anunciava que a partir desse dia os Estados Unidos passavam a considerar a Rússia como uma “economia de mercado”. Pouco menos de uma semana antes, a União Europeia tinha tomado atitude similar, respondendo a uma reclamação legítima das autoridades russas, que viam suas empresas e interesses econômicos serem tratados de maneira desigual nas disputas e nas concorrências comerciais. O que isto significava na prática?: medidas antidumping, afastamento de compras governamentais ou de concorrências públicas, assim como tarifas punitivas ou outras práticas discriminatórias podiam ser aplicadas contra as empresas russas sem qualquer tipo de defesa nos foros multilaterais ou mesmo nas instâncias nacionais dos países ocidentais ou, de forma geral, naqueles membros do GATT-OMC, o Acordo Geral sobre Tarifas 240

Aduaneiras e Comércio, atualmente administrado pela Organização Mundial do Comércio. Um exemplo entre outros pode ilustrar o significado prático dessa medida: as recentes salvaguardas americanas aplicadas de maneira ilegal – do ponto de vista da legislação pertinente regulada pela OMC – no setor siderúrgico estão penalizando severamente diversas empresas produtoras de aço da Europa, da Ásia e da América Latina, inclusive diversas companhias competitivas do Brasil. Ora, a União Européia, a China, o Japão e a Coréia estão preparando-se para desafiar as salvaguardas dos EUA na OMC – ao abrigo do acordo pertinente ou no âmbito do sistema de solução de controvérsias –, podendo mesmo chegar à aplicação de medidas retaliatórias. O Brasil considera ainda suas opções nessa matéria, algo que a Rússia dificilmente pode fazer sem o risco de contra-retaliações americanas, uma vez que o país ainda não se tornou parte contratante do GATT e, como tal, membro da OMC. A declaração efetuada pelos dois principais atores do sistema multilateral de comércio abre assim as portas para que a Rússia possa ser aceita na OMC, caminho, é verdade, mais complicado do que parece para ex-economias socialistas, uma vez que a China, a outra grande economia socialista convertida ao capitalismo levou pelo menos 14 anos nesse processo, encerrado pouco tempo antes de ser realizada a quinta conferência ministerial da OMC, em Doha, em novembro de 2001. O que determinou que a UE e os EUA reconhecessem, dez anos depois do final da Guerra Fria e do desmantelamento da finada União Soviética, o caráter de “mercado” da atual economia do velho inimigo socialista? Basicamente o final do controle estatal dos meios de produção, mas também alguns outros critérios de desempenho considerados market friendly, como, por exemplo, conversibilidade da moeda russa, a aceitação de investimentos estrangeiros, práticas salariais compatíveis com uma economia competitiva e, fundamentalmente, a diminuição do controle governamental nos negócios. Segundo análise dos organismos multilaterais, o setor privado controla atualmente cerca de 70% do PIB da Rússia. O fato de que uma boa parte dessa nova “economia capitalista” na Rússia seja caracterizada pela corrupção generalizada das práticas empresariais, que o ambiente legal dos negócios possa ser descrito como “subdesenvolvido” ou que mais da metade dos dirigentes das empresas privadas seja formada pela antiga nomenklatura do PCUS reciclada na gestão de ex-empresas estatais vendidas a preços irrisórios, tudo isso não importa muito do ponto de vista da classificação recém atribuída pela UE e pelos EUA 241

ao sistema econômico da Rússia como um todo: doravante ele será considerado capitalista, ou pelo menos “de mercado”, e tratado como tal, o que obviamente implica implica em custos e benefícios igualmente. Por exemplo, haverá, a partir de agora, menor tolerância dos países ocidentais com medidas governamentais russas que possam ser assimiladas a subsídios oficiais a empresas privadas, sob risco de suspensão unilateral do tratamento não discriminatório normalmente abrigado sob a cláusula de nação-mais-favorecida. Esclarecido o conteúdo das medidas adotadas nesse início de junho de 2002 pelas principais potências econômicas ocidentais, vamos repetir para que fique bem claro seu significado histórico: terminou, de fato e oficialmente, o regime econômico socialista na face do planeta. Ele agora vai resumir-se a um capítulo, se tanto, dos manuais de história econômica, já que não se poderia utilizar, no caso da Albânia, por exemplo, o conceito da Unesco de “patrimônio universal” para tentar preservar – como uma espécie “ameaçada de extinção” – os poucos exemplos remanescentes de socialismo econômico “real”. O fato de que duas pequenas economias isoladas – uma numa ilha bem conhecida no Caribe, a outra num canto recuado da Ásia oriental – continuem a se proclamar socialistas não apresenta a menor relevância para a economia internacional, ainda que isso possa ser um elemento político de heterogeneidade no “padrão normal” do relacionamento entre estados membros da comunidade internacional. Tanto Cuba – que aliás nunca deixou de ser parte contratante, aliás país fundador, do GATT, tendo abrigado a famosa conferência econômica sobre comércio e emprego de 1947-48 que criou uma primeira organização dedicada ao comércio multilateral – como a Coréia do Norte são absolutamente marginais do ponto de vista das trocas comerciais, dos fluxos de investimentos e finanças, enfim, do grande intercâmbio capitalista que agora passou a ser a norma na maior parte do mundo. Mesmo a China ainda formalmente socialista – de fato ostentando o monopólio político de um partido que insiste em se proclamar comunista, quando nada mais é senão uma ditadura de oligarcas, herdeiros de um movimento que restaurou a dignidade do país enquanto nação independente – pratica de fato um capitalismo de Estado, com imensos setores abertos à economia privada, como ocorre aliás em muitos outros países integrados ao sistema econômico mundial. Reduziram-se assim, tremendamente, as últimas terrae incognitae da economia capitalista internacional, operando-se, na última década, um verdadeiro “fim da Geografia”, bem mais completo e definitivo, em todo caso, do que o propalado “fim da 242

História” no plano político e social. Em qualquer hipótese, o comunismo, o mais importante fenômeno da história ideológica contemporânea, terminou por encaminharse ao museu das antiguidades, ao lado do machado de bronze e da roca de fiar, onde Engels havia também previsto um lugar para o Estado. Que análise marxista de seu itinerário propriamente econômico pode ser feita a partir daqui? A longa marcha da Rússia do capitalismo periférico à periferia do capitalismo, com uma torturada (e tortuosa) transição pelo socialismo Todos os estudiosos do marxismo-leninismo, mesmo os trotskistas e os diversos opositores do socialismo de tipo stalinista – mas não necessariamente os socialistas de inspiração democrata, estilo Segunda Internacional –, tendiam a compartilhar da ideia de que a ex-União Soviética, até os anos 1960 pelo menos, a despeito das deformações burocráticas e francamente ditatoriais de seu sistema político e administrativo, constituía, fundamentalmente, um sistema econômico em transição para o socialismo, ou até mesmo para o comunismo, como pareciam acreditar, talvez ingenuamente, os partidários da linha albanesa. O monopólio ideológico das análises do tipo Terceira Internacional era tão completo, mesmo entre os seus opositores, que poucos questionavam a natureza desse “socialismo de Estado” e, de fato, poucos contestavam até mesmo os fundamentos e as premissas conceituais da proposta bolchevique de um sistema econômico “antimercado”, tal como avançado por Lênin nos anos tumultuosos de revolução e de guerra civil e por todos considerado como o sucessor “natural” da economia capitalista. Este foi, numa análise estritamente marxista, o erro mais grosseiro cometido por militantes idealistas, forjados nas lutas democráticas em prol da classe operária mas absolutamente ignorantes na administração econômica da sociedade. Lênin, por exemplo, era um gênio como líder político, mas um péssimo economista, assim como Marx podia ter suas qualidades como economista e historiador, mas era francamente débil enquanto líder político ou administrador de aparatos partidários. O preconceito contra o mercado simplesmente inviabilizou a primeira economia socialista constituída sob a liderança formal das idéias marxistas e destruiu por completo as chances de preservação histórica do “primeiro Estado operário” da humanidade. Como isso foi possível? Não creio, pessoalmente, que a responsabilidade principal pelo insucesso histórico do sistema econômico de tipo soviético esteja com o próprio Marx, ainda que a 243

maior parte das idéias defendidas pelos epígonos remetam a uma ou outra de suas afirmações contraditórias sobre o funcionamento de um “regime socialista ideal”. O fato é que foi Lênin, o gênio politico a quem já nos referimos, que conseguiu “inventar”, num país atrasado como a Rússia czarista, um regime social e político que, apresentando-se como o “sucessor natural” do capitalismo, passou a servir de exemplo à Europa e a todo o mundo, na continuidade de uma história ocidental plena de crises econômicas e de revoluções políticas. A revolução iniciada por ele se congela em seguida no “socialismo em um único país”, quando Stalin consegue consolidar-se no poder e apimentar seu leninismo com algumas pitadas de nacionalismo e grandes doses de brutalidade. Tem assim início a construção de um sistema econômico profundamente irracional, operando a um enorme custo social e humano, que apenas conseguiu se manter graças às desventuras econômicas e políticas do próprio capitalismo – crises e depressões a partir dos anos 20, ascensão dos fascismos, guerras entre impérios – e ao fascínio intelectual que idéias econômicas estatizantes e a concepção de um Estado administrador exercia em lideranças importantes do próprio mundo ocidental. A reconstituição histórica dos setenta anos do itinerário econômico comunista não deixa de ser, contraditoriamente, uma discussão basicamente política, consistindo essencialmente numa “história das idéias” (ou das mitologias políticas) do século XX. O fato é que as idéias políticas – algo que o marxismo reconhece explicitamente – têm fundamentos essencialmente econômicos. No caso específico do comunismo de tipo soviético, sua mitologia política – sua “ilusão fundamental”, diria Furet em conhecido livro de história das idéias socialistas no século XX 17 – foi alimentada não só por sua promessa de igualdade e de justiça, no plano social, mas sobretudo e principalmente pela concepção marxista de que um sistema regulado democraticamente pelo conjunto dos trabalhadores seria mais suscetível do que a “anarquia da produção capitalista” de afastar crises periódicas e escassez, de aportar abundância material, bem-estar individual e progresso tecnológico. A premissa básica da mensagem marxiana quanto ao “fim da história”, dos primeiros escritos da juventude até o Capital, refere-se, antes de mais nada, à apropriação coletiva dos meios de produção, por iniciativa e sob o comando da classe operária, transformada em redentora universal: de fato, a abolição da 17

Vide o conhecido livro de François Furet, Le Passé d’une Illusion: essai sur l’idée communiste au XXe siècle (Paris: Robert Laffont-Calmann-Lévy, 1995), com edição brasileira. Minha análise dessa obra está contida na resenha-artigo “A Parábola do Comunismo no Século XX: a propósito do livro de François Furet: Le Passé d’une Illusion”, publicado na Revista Brasileira de Política Internacional (Brasília: vol. 38, n° 1, janeiro-junho 1995, pp. 125-145).

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propriedade privada, “mãe de todas as injustiças”, sempre apresentou um formidável poder de atração para as massas de deserdados de todo o mundo e mesmo para milhões de proletários de países desenvolvidos. Não se poderia igualmente esquecer que grande parte das mensagens simpáticas ao socialismo enquanto sistema de organização social – não apenas soviético, mas também chinês e “terceiro-mundista”, onde foi o caso – tinha como fundamento a ideia (falsa, mas isso não importa aqui) de que ele trazia o final das crises capitalistas de produção e emprego, introduzia um nível de subsistência mínimo para o conjunto da população e permitiria, progressivamente, liberar excedentes que o fariam alcançar e em última instância ultrapassar os sistemas capitalistas “realmente existentes”. As idéias econômicas marxistas sobre uma futura “idade da abundância”, sobre a racionalidade superior do sistema socialista e em especial as profecias engelsianas sobre o futuro da sociedade dos trabalhadores (“de cada um segundo suas capacidades, a cada um segundo suas necessidades”) alimentaram, em muito, a ilusão comunista neste século. 18 Essas idéias econômicas, é dispensável dizê-lo, estão escassamente refletidas na própria obra de Marx, foram insuficientemente desenvolvidas por Engels e alguns epígonos (como Kautsky, por exemplo) e receberam um tratamento perfunctório, para não dizer irrisório e irrelevante, no trabalho intelectual de Lênin, todo ele voltado para as tarefas de organização partidária e de mobilização de vontades em prol de um projeto supostamente majoritário – bolchevique – mas de fato politicamente minoritário nas condições revolucionárias da Rússia de 1917. Poucos marxistas gostam de ver na “grande Revolução de outubro” um mero putsch bolchevique, por acaso bem sucedido em razão de circunstâncias excepcionais e depois mantido a ferro e a fogo contra seus inimigos ideológicos e seus opositores práticos. Em qualquer hipótese, as “idéias econômicas marxistas” não têm nada a ver com a explicação funcional do “sucesso prático” da idéia comunista no século XX, que pode ser considerado um fenômeno político totalmente destacado do debate de idéias tal como ocorrido no Ocidente. Com efeito, desde o final do século XIX, pelo menos, que o debate em torno das idéias marxistas e socialistas prolongava-se no terreno econômico, chegando até mesmo a influenciar o curso da economia política “burguesa”. Sem 18

Não é o caso de lembrar aqui que a própria sobrevivência do comunismo, enquanto sistema viável de organização social da produção, pode apenas ser assegurada, na difícil conjuntura dos anos 1920-21, por um retorno estratégico às práticas capitalistas de mercado e de apropriação – consagrado na NEP –, retorno que Bukarin gostaria de ver consolidado como a única forma possível de socialismo real.

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referir-se às primeiras críticas pertinentes (e não respondidas) formuladas por John Stuart Mill ao próprio Marx, caberia lembrar que Vilfredo Pareto dedicou dois alentados volumes ao estudo dos sistemas socialistas, que Hobson antecipou a análise leninista sobre a natureza econômica do imperialismo contemporâneo, que Hilferding e Rosa Luxemburgo terçaram armas em torno do capital financeiro e da acumulação capitalista, que toda uma “teoria das crises cíclicas” frequentou a produção acadêmica na economia (de Schumpeter a Keynes, de Joan Robinson e Piero Sraffa a Charles Kindleberg) e que, ainda no começo dos anos 60, economistas respeitados como John Kenneth Galbraith ou sociólogos atentos como Raymond Aron pretendiam prever uma certa convergência entre o capitalismo e o socialismo com base no fato de terem ambos os sistemas chegados a uma etapa industrial avançada. De maneira ainda mais relevante, as primeiras experiências de planificação sob a República de Weimar, a própria organização econômica “fascista”, os projetos de welfare state nos países escandinavos e anglo-saxões, bem como as nacionalizações e o acentuado intervencionismo (com agências estatais dedicadas ao planejamento indicativo) conduzidos no segundo-pós guerra nos principais países capitalistas europeus, podem ser considerados como o resultado direto do impacto exercido pelas idéias econômicas “comunistas” nas sociedades do Ocidente desenvolvido. Da mesma forma, a industrialização da URSS, a “solução” do problema da fome na China (contra sua suposta manutenção na Índia “capitalista”), o desenvolvimento “acelerado” dos países atrasados do Terceiro Mundo, todos esses elementos, reais ou imaginários, da “grande transformação” da segunda metade do século XX foram, com ou sem razão, creditados à alavancagem ideológica das idéias econômicas socialistas, ou pelo menos vinculados à aceitação da inevitabilidade (ou mesmo desejabilidade) de uma maior intervenção do Estado na economia, em contraposição ao menor poder transformador ou modernizador das estruturas “capitalistas” de mercado. Em outras palavras, a legitimação ideológica do comunismo se deu tanto pela via da economia como da política, em que pese o balanço francamente desfavorável desse último aspecto na confrontação com o capitalismo (mas, explicável em termos de guerra civil, de destruições “imperialistas”, de espoliação “colonial” etc), que tanto a URSS como a China ou outros países menores (Cuba, Vietnã) nunca deixaram de apresentar, mesmo em comparação com países capitalistas “subdesenvolvidos”. Os partidos comunistas dos países capitalistas europeus – em especial na Itália e na França – conseguiram reter uma certa audiência popular mesmo durante os anos de descrédito 246

político do socialismo real com base na antiga crença de que uma “economia planificada”, ou pelo menos controlada pelo Estado, conseguiria diminuir a sucessão de “crises capitalistas”, refrear a “exploração capitalista” e introduzir um pouco mais de igualdade na repartição funcional capital-trabalho. Finalmente, em nosso próprio continente, a única justificativa – aceita de certo modo pela própria “direita” – para a ausência completa de liberdades democráticas e até mesmo de certos direitos humanos na Cuba “socialista” era o suposto avanço no plano dos indicadores sociais (saúde, educação, nutrição), continuamente agitados em face das desigualdades e mazelas sociais existentes nos demais países da região. Esse tipo de ilusão foi tão, ou mais, importante do que aquela derivada da “paixão revolucionária” que animou gerações inteiras de militantes: a afirmação da vontade na História, a invenção do homem por ele mesmo, o ódio ao burguês (alimentado não tanto por proletários verdadeiros, como por artistas e intelectuais “burgueses”), a promessa de um novo mundo de justiça social construído pela própria coletividade redimida pela classe operária, a recusa do individualismo em favor da liberação de toda humanidade e não apenas de uma raça ou um povo particulares como no fascismo, tudo aquilo, enfim, que fazia o “charme universal de Outubro” e que era considerado como uma herança intelectual e como a realização prática da Revolução francesa de 1789. O charme muito pouco discreto do socialismo começou aliás a ruir a partir das revelações de Kruschev no 20º congresso do PCUS, assim como nos episódios de repressão a movimentos populares na Hungria e na RDA. Quando da invasão da Tchecoslováquia pelas tropas brejnevistas, em 1968, o pouco de charme que possuía o socialismo real já tinha se esvanecido na burocracia cinzenta que formava o núcleo da nomenklatura nos países do leste europeu. De certo modo, a ilusão econômica do socialismo foi a única a sobreviver à derrocada do regime político baseado no partido único e na “democracia real” (isto é, não burguesa, ou formal), este definitivamente enterrado pela superioridade filosófica, moral e empírica da ideia democrática. Se as idéias movem o mundo, as idéias econômicas com muito maior razão podem ter a pretensão de continuar a determinar o curso de nossos destinos individuais e de nossas realizações coletivas. Graças aos intelectuais marxistas, que sobrevivem em número razoável nos países da periferia capitalista, a ilusão econômica socialista (pelo menos aquela baseada no papel regulador e distribuidor do Estado) não parece perto de extinguir-se, mesmo depois de ter sido bastante maltratada por várias décadas de planejamento centralizado e de “socialismo 247

real”. Em todo caso, para as principais potências econômicas ocidentais, o socialismo está morto e enterrado, mesmo se a ideia permanece viva nas academias e agrupamentos políticos de oposição ao “capitalismo real”. Por que isso se dá, ainda hoje, entre nós, por exemplo? Talvez porque o grande objetivo do projeto comunista não era tanto eliminar o burguês enquanto agente social – objetivo julgado relativamente fácil pelos protagonistas de Outubro e seus êmulos em outras partes – quanto construir um sistema socialista de organização social da produção em tudo oposto ao execrado regime capitalista, que se devia eliminar da face da terra. 19 O jacobinismo bolchevique se dirigia, obviamente, contra o “Estado burguês”, mas a coletivização total dos meios de produção era o elemento essencial da construção da nova ordem socialista. Era essa a promessa contida no Manifesto Comunista, reafirmada no programa leninista e ainda confirmada pelo revisionismo krusheviano. 20 Gorbatchev, por sua vez, até o final de sua administração, quando já tinha consentido em introduzir elementos de mercado no funcionamento econômico do socialismo, também preservou sua confiança num futuro comunista, isto é, não capitalista, para a URSS. De certa forma, mesmo o ideólogo do “fim da História” não acreditava que a derrota política e filosófica do socialismo real significasse automaticamente a derrocada do modo estatal de produção e menos ainda a erosão do principal Estado socialista na história da humanidade. Um historiador marxista como Hobsbawm não deixou porém de considerar, praticamente em igualdade de condições, os elementos econômicos e políticos do mundo do “socialismo realmente existente”. A primeira coisa a ser observada a respeito da região socialista do globo, diz ele em um dos capítulo de sua história do século XX, “é que durante a maior parte de sua existência ela formou um sub-universo separado e largamente autossuficiente tanto economicamente como politicamente. Suas relações com o resto da economia mundial, capitalista ou dominada pelo capitalismo dos países desenvolvidos, eram surpreendentemente reduzidas. Mesmo durante a fase alta do grande boom do comércio internacional nos Anos Dourados, apenas algo em torno de 4% das exportações das economias desenvolvidas de mercado iam para as ‘economias

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Incidentalmente, caberia observar o fato de o comunismo ter vencido apenas em países atrasados do ponto de vista capitalista, o que em princípio não deveria contribuir para o “sucesso” ideológico e politico desse regime. 20 Em 1961, por exemplo, no 22º Congresso do PCUS, Krushev prometia ultrapassar a produção per capita dos Estados Unidos por volta de 1970 e construir uma “sociedade comunista acabada” em torno de 1980.

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centralmente planificadas’ e, em torno dos anos 80, a parte das exportações do Terceiro Mundo dirigidas a elas não era muito maior”. 21 Hobsbawm reconhece que a razão fundamental da separação entre os dois campos era, sem dúvida alguma política, mas ele desenvolve em seguida uma brilhante análise da “economia política” do socialismo real, ainda que ele tenda a acreditar, mesmo retrospectivamente, nas estatísticas do socialismo estalinista, que “evidenciariam” um crescimento superior ao das economias capitalistas nos anos 30 (“acumulação primitiva socialista”) e durante uma certa fase do pós-guerra. Igualmente, ele dedica toda a primeira parte de seu capítulo sobre o “fim do socialismo” a uma análise do “subdesenvolvimento econômico” (a expressão não é dele) desse regime, mesmo se, mais adiante, ele reconhece, acertadamente, que é a “política, tanto a grande como a pequena, [que] deveria acarretar o colapso Euro-soviético de 1989-1991”. 22 O que importa sublinhar aqui não é tanto o desempenho econômico efetivo dos socialismos realmente existentes – que poderia ser objeto de uma história econômica do socialismo – mas, na perspectiva da história intelectual, o “peso” das idéias econômicas na formação e manutenção da “ilusão comunista”. Uma análise de cunho marxista – ainda que sumária – da crise prolongada e da morte do socialismo não pode, porém, deixar ao largo os elementos relativamente objetivos da estagnação econômica e da inviabilidade estrutural do sistema. Mesmo se admitirmos que o socialismo foi vencido no terreno das “idéias”, deve-se ressaltar que, ainda assim e especificamente neste caso, as idéias econômicas deveriam ser consideradas como parte integrante da “ilusão comunista”, como elemento indissociável da mitologia política do socialismo de tipo soviético. Análise marxista da ascensão e queda do socialismo Sem pretender fazer ironias com a História, caberia observar que a crise e a débâcle do socialismo podem ser interpretadas inteiramente em termos das idéias marxistas, a fortiori para um adepto da doutrina como o que escreve este ensaio. Com efeito, ninguém melhor do que Marx – cujos escritos sobre os processos revolucionários constituem ainda hoje autoridade histórica – sabia colocar com clareza, ainda que de forma profética, o inexorável desenrolar do processo histórico e social. Como ele escreveu no Prefácio à Crítica da Economia Política (1859), “numa certa etapa de seu 21

Cf Eric Hobsbawm, Age of Extremes: the short twentieth century, 1914-1991 (Londres: Michael Joseph, 1994), p. 374; o livro possui edição brasileira. 22 Idem, p. 475.

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desenvolvimento, as forças produtivas de uma sociedade entram em contradição com as relações de produção existentes, ou, o que é apenas sua expressão jurídica, com as relações de propriedade no seio das quais elas se tinham desenvolvidos até então. De formas de desenvolvimento das forças produtivas, essas relações [de produção] se tornam seus próprios entraves. Abre-se então uma época de revolução social. A transformação na base econômica altera mais ou menos rapidamente toda a enorme superestrutura”. 23 Essa época de revolução social abriu-se para o socialismo de tipo soviético a partir do final dos anos 70, muito embora suas sementes existissem desde muito tempo antes. As razões dessa transformação, que pode ser inteiramente explicada em termos “marxistas”, foram as mesmas que, no passado, levaram ao declínio do feudalismo como “modo de produção”: as relações “socialistas” de produção se tinham inegavelmente convertido num formidável entrave ao desenvolvimento das forças produtivas e ao avanço das condições econômicas de produção. Qualquer marxista não comprometido com os esquemas de poder existentes na área soviética poderia reconhecer que a forma “socialista” da propriedade representava, em nível estrutural, um enorme obstáculo ao avanço contínuo do processo de produção social. 24 De fato, as relações socialistas de produção sempre foram uma forma contraditória de organização social da produção, uma vez que, segundo a própria teleologia marxista, a sociedade burguesa não poderia desaparecer – e assim dar lugar ao socialismo – sem que ela pudesse antes desenvolver todas as suas potencialidades intrínsecas em termos de forças produtivas. Mas, uma vez implementadas essas relações socialistas de produção – de maneira mais ou menos improvisada no seguimento da revolução bolchevista –, elas sempre representaram (no vocabulário do próprio Marx) 23

Tradução livre a partir da edição francesa; vide “Contribution à la Critique de l’Économie Politique” in Karl Marx, Oeuvres, Économie I (Paris: Bibliothèque de la Pléiade, 1965), p. 273. 24 Massimo Salvadori, cuja obra vim a ler apenas depois de elaborada esta reflexão, fez o mesmo tipo de análise “marxista” sobre a contradição fundamental do comunismo soviético: “Aplicando ao caso soviético as categorias marxianas, se pode dizer que na União Soviética, a superestrutura sufocava dali em diante [anos 80] as condições de desenvolvimento da sociedade, criando uma situação de crise orgânica do sistema. Tornava-se mais e mais evidente, de fato, que a rigidez planificadora burocrático-centralista, que tinha podido obter substanciais sucessos no âmbito da modernização tardia baseada na indústria pesada, na cadeia de montagem, no contrôle autoritário da mão-de-obra, na compressão do consumo em proveito dos investimentos nos setores considerados estratégicos, em primeiro lugar militares, não estava estruturalmente em condições de realizar o salto qualitativo indispensável para conduzir o sistema à era da telemática disseminada e de produções sujeitas à rápida obsolescência e, portanto, adaptá-lo à necessidade de rápidas reconversões, implementadas por uma pluralidade de centros de decisão sensíveis às exigências da inovação permanente”; cf. La Parabola del Comunismo (Bari: Laterza, 1995), p. 56.

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“uma forma antagônica do processo de produção social, não no sentido de um antagonismo individual, mas de um antagonismo que nasce das condições sociais de existência dos indivíduos”. 25 Segundo os próprios termos da análise histórica marxista, seria portanto inevitável esperar o deslanchar de uma etapa revolucionária no desenvolvimento do socialismo, uma vez que a deterioração da base econômica do sistema, já visível desde o final da estagnação “brejnevista”, estava conduzindo a um impasse, ele mesmo anunciador de uma mudança radical em toda a superestrutura jurídica e política da sociedade socialista. Era assim muito provável que, ao iniciar seu período de “reformismo esclarecido”, Gorbachev tenha chegado à conclusão que a base técnica do sistema socialista, enquanto forma de organização social da produção, fosse essencialmente conservadora, uma vez que, ao contrário do sistema capitalista, não possuía em si mesma os impulsos para uma contínua transformação das condições de produção. Gorbachev, aparentemente em bom marxista, admitiu-o abertamente: antes mesmo de assumir a liderança do PCUS, em dezembro de 1984, ele advertia que a injustificada preservação de “elementos obsoletos nas relações de produção pode ocasionar uma deterioração da situação econômica e social”. Em junho de 1985, já como Secretário-Geral do PCUS, ele declarava que “a aceleração do progresso científico e técnico requeria insistentemente uma profunda reorganização do sistema de planejamento e de administração do mecanismo econômico em sua totalidade”. 26 O que Gorbachev pretendia implementar era uma espécie de NEP da era eletrônica, algo bem mais complicado, deve-se reconhecer, que as banalidades conceituais em torno do modelo leninista de comunismo, descrito como sendo o “socialismo mais a eletricidade”. Não havia, contudo, fórmula milagrosa capaz de fazer aquele socialismo tomar o ”carro da História” a partir das relações de produção existentes: não só a “base técnica” do socialismo estatal, nos termos de Marx, era essencialmente conservadora, como também sua base social e política era profundamente reacionária. A União Soviética parecia representar para Gorbachev o que a Alemanha guilhermina representava para Marx no século passado: um país atrasado e dividido que tinha

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Cf. “Contribution à la Critique de l’Économie Politique”, op. cit., p. 274. Citado por Francis Fukuyama, “Gorbachev and the Third World”, Foreign Affairs (vol. 64, n° 4, Spring 1986, pp. 715-731).

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necessariamente de passar por uma revolução política radical para quebrar os grilhões que impediam sua modernização econômica e social. Fazendo uma grosseira analogia histórica, poder-se-ia dizer que as relações socialistas de produção e a classe burocrática associada ao Partido Comunista representavam, na maior parte dos países da área soviética, o mesmo papel que o sistema corporativo e a classe aristocrática desempenhavam no ancien régime de tipo feudal: um obstáculo intransponível ao desenvolvimento das forças produtivas materiais e um entrave formidável ao progresso político da sociedade. Como afirmaram Marx e Engels no Manifesto Comunista: “numa certa etapa do desenvolvimento dos meios de produção e de troca... as relações feudais de propriedade deixaram de corresponder às forças produtivas em pleno crescimento. Elas entravavam a produção em lugar de fazêla avançar. Elas se transformaram em grilhões. Esses grilhões tinham de ser quebrados: eles foram quebrados”. 27 No que concerne as relações socialistas de propriedade, esses grilhões foram efetivamente rompidos nos países da antiga área soviética, muito embora o processo de construção da nova ordem foi lento a ser implementado, em especial na própria pátria do socialismo real. Em suas manifestações e desenvolvimento, o processo de ruptura com o ancien régime foi, evidentemente, político, e não poderia deixar de ser exclusivamente político, como observaram acertadamente Furet e Hobsbawm. 28 Mas, as razões profundas da crise e derrocada do sistema foram essencialmente marxistas, isto é, econômicas. O ponto de não retorno, escreve ironicamente Hobsbawm, foi atingido na segunda metade de 1989, bicentenário do deslanchar da Revolução francesa, “cuja não existência ou irrelevância para a política do século XX, os historiadores franceses ‘revisionistas’ estavam ocupados em tentar demonstrar naquele momento. A ruptura 27

Tradução livre a partir da edição da Pléiade; vide “Le Manifeste Communiste” in Karl Marx, Oeuvres I: Économie, op. cit., p. 166. Realizei uma releitura moderna do “velho” Manifesto de 1848 em ensaio feito exatamente 150 anos de sua publicação, elaborado a partir de uma “revisão marxista” desse texto ainda profundamente atual, como se o próprio Marx tivesse reescrito o Manifesto nesta era de globalização. Ambos os textos figuram em meu livro: Velhos e Novos Manifestos: o socialismo na era da globalização (São Paulo: Editora Juarez de Oliveira, 1999). 28 Hobsbawm, por sua parte, combina elementos políticos e econômicos em sua análise sobre a queda final do comunismo: “O que levou a União Soviética em marcha acelerada em direção ao precipício foi a combinação da glasnost, que significava a desintegração da autoridade, com a perestroika, que resultou na destruição dos velhos mecanismos que faziam a economia funcionar, sem prever nenhuma alternativa; e consequentemente o colapso crescentemente dramático do padrão de vida dos cidadãos”; “A desintegração econômica ajudou o progresso da desintegração política e foi alimentada por ela”; op. cit., pp. 483 e 485.

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política seguiu-se (como na França do século XVIII) à convocação de novas assembleias democráticas, ou passavelmente democráticas, no verão daquele ano. A ruptura econômica tornou-se irreversível no decorrer de alguns poucos meses cruciais entre outubro de 1989 e maio de 1990”. 29 Assim, se a crise política era evidente nos antigos países do socialismo real, foram razões estruturais de natureza essencialmente, senão inteiramente, econômica que levaram à crise fundamental, à sua fratura irremediável e à queda final do sistema. Um pouco de materialismo histórico, por uma vez, não pode fazer mal à causa do socialismo, ou pelo menos à da análise histórica de sua derrocada final. A base econômica explica, ainda desta vez, a transição de um modo de produção a um outro. Para chegar a um verdadeiro sistema econômico de mercado, na antiga zona soviética, só faltava atravessar o que Marx chamava de purgatório capitalista. Esse purgatório foi atravessado num longo ciclo de depressão econômica ao longo da última década do século XX, o que foi reconhecido no decreto burocrático do dia 6 de junho de 2002. O comunismo chegou efetivamente ao final de sua longa parábola histórica: ele terá constituído, finalmente, uma longa etapa de transição que levou do capitalismo ao... capitalismo. Post scriptum: Após o término deste ensaio, ocorreu a reunião do G-7/G-8 em Kananaskis, no Canadá, durante a qual Rússia foi contemplada com um assento permanente no que passa agora – até a próxima incorporação – a ser conhecido simplesmente como G-8, o que confirma, de certo modo, a plena integração da ex-economia socialista no pelotão de “países normais”, no caso membro do “diretório mundial dos mais iguais”. Parece óbvio, também, que a Rússia, ainda incapaz de participar dos esquemas de sustentação financeira promovidos pelo Grupo e beneficiária ela mesma de ajuda maciça desses países (para liberar-se de estoques de armas de destruição em massa, por exemplo) ainda tem de demonstrar várias outras transformações econômicas e políticas para se credenciar plenamente como país avançado de “economia de mercado” e democrático – como a aceitação na OMC e na OCDE – mas a decisão tomada

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Hobsbawm, op. cit., p. 486. Salvadori também faz uma análise similar: “O sistema [já sob a direção de Gorbachev] demonstrou não ser renovável por causa de sua rigidez; e o movimento de reforma, que investiu a economia e as instituições políticas, teve efeitos destabilizadores, de tal forma a romper a máquina existente e provocar um verdadeiro processo de ‘descolamento’. O primeiro resultado foi o precipitar da crise econômica, que em 1990 assume o caráter de catástrofe”. “O sistema... desagregou-se sob o peso de dois elementos fundamentais, um ligado ao outro. O primeiro foi a incapacidade estrutural de um sistema centralístico-burocráticototalitário (...) em responder aos desafios colocados pela economia complexa do mundo capitalista entrado na era pós-industrial. O segundo foi a incapacidade final do sistema de poder comunista em controlar, seja pelo consenso, seja pela coerção, a sociedade, colocada sob um domínio brutal...”; cf. La Parabola del Comunismo, op. cit., pp. 57 e 91.

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pelo G-7 em Kananaskis apenas confirma o caráter finalmente capitalista da primeira potência europeia (e asiática).

907. “Camaradas, agora é oficial: acabou o socialismo”, Washington, 12 de junho de 2002, 16 p. Ensaio sobre a crise e a derrocada do modo de produção socialista, a partir de decisão tomada em 06/06/2002, por EUA e UE, de reconhecer na Rússia uma “economia de mercado”. Revisto em 01/07/2002, para agregar nota sobre aceitação plena da Rússia no G-8. Publicado na revista Espaço Acadêmico (a. II, n. 14, jul. 2002; http://www.espacoacademico.com.br/014/14pra.htm) e no boletim Meridiano 47 (Brasília: n. 25, ago. 2002, p. 1-11; link: http://www.mundorama.info/Mundorama/Meridiano_47_-_1100_files/Meridiano_25.pdf). Incorporado ao livro A Grande Mudança: consequências econômicas da transição política no Brasil (São Paulo: Códex Editora, 2003). Ensaio incorporado ao livro: Paralelos com o Meridiano 47: Ensaios Longitudinais e de Ampla Latitude (Hartford, 2015). Relação de Publicados n. 341, 344, 355 e 401.

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22. A China e seus interesses nacionais: reflexões histórico-sociológicas

A China não tem e não quer ter parceiros, estratégicos ou de qualquer outro tipo. A China é, para todos os efeitos, o seu próprio e único parceiro; ela quer continuar assim e acha que se basta a si mesma. Talvez ela tenha razão. A China sempre foi uma nação sozinha, isolada e solitária, tanto nos contextos regional e internacional, como do ponto de vista de seu próprio desenvolvimento econômico e social, historicamente baseado num desperdício inacreditável de homens e de recursos materiais, com a elite dirigente consumindo esses fatores sem controle de ninguém e de nada, nem do próprio meio ambiente. Esse processo continua e deve continuar a ocorrer do mesmo jeito, hoje talvez até de forma ainda mais intensa, já que ela pode “mobilizar” recursos de outros países. A China produziu, em eras passadas, algumas poucas e boas idéias, teve um mandarinato relativamente eficiente, em termos de “burocracia weberiana” e se tornou a maior economia planetária com base numa espécie de entropia míope. Mas até o século 18, pelo menos, ela continuou a ser a maior economia planetária, não tanto pelas interações (que eram poucas), mas pela sua própria “massa atômica”. Quanto ela deixou de ter idéias, ou quando as idéias dos outros foram mais poderosas, pois que apoiadas em canhoneiras, ela foi humilhada, dominada e esquartejada. Isso feriu fundo a autoestima e o orgulho nacionais dos chineses. Os chineses conseguiram, depois de décadas de lutas (mais intestinas do que contra os inimigos externos, pois que ninguém consegue dominar a China), reverter a decadência e tomar novamente seu destino em mãos. Não tem a mínima importância histórica, ou estrutural, que essa retomada tenha sido feita sob o domínio do comunismo, um modo de produção absolutamente “passageiro” na história milenar da China. Com comunismo ou com o socialismo de mercado, o novo mandarinato de burocratas e de membros da nova nomenklatura trabalha para confirmar o destino secular da China, que é o de novamente se tornar a maior economia planetária e ditar suas regras para os “bárbaros” do exterior. A China está operando essa volta a um lugar de preeminência econômica no planeta (a segurança militar é mera decorrência disso), mas os atuais imperadores e mandarins têm consciência de que ela não mais poderá fazer isso isoladamente, como ocorreu até o século 18, pois as condições do mundo mudaram. A China assumiu 255

plenamente o conceito de interdependência econômica global, mas como ocorre com o famoso moto orwelliano, num mundo totalmente interdependente, alguns são mais interdependentes do que outros. A China quer e vai ser interdependente à sua maneira, isto é, acomodando-se a regras às quais ela não mais pode se furtar, mas interpretando-as à sua maneira, e distorcendo-as para seu melhor conforto e segurança. Isto se aplica em quase todos os terrenos de interesse substantivo, mas especialmente às regras de comércio internacional e de investimentos estrangeiros. A China não pretende à dominação do mundo, mas ela não pretende mais que o mundo, ou seja, o círculo das superpotências, a domine mais. Isso não vai ocorrer e a China sabe que tem de conviver com as superpotências, mas não quer se submeter às regras existentes (que aliás nem são ditadas por essas superpotências, mas decorrem do processo de globalização capitalista). A preocupação principal dos atuais imperadores e mandarins chineses é assegurar emprego (e, portanto, comida) a meio bilhão de chineses pobres, que podem, à falta de condições mínimas (mas mínimas mesmo) de existência, perturbar a paz no Império do Meio, e com isso afetar o poder e a dominação dos atuais dirigentes. Etapa importante nesse processo é transformar a China na principal fábrica planetária, aliás a única maneira de acomodar algo como 400 ou 500 milhões de chineses que precisam de emprego (e que não os terão nem na agricultura nem nos serviços). Como ela só pode fazer isso construindo o seu próprio capitalismo manchesteriano (que certamente deixaria Engels de queixo caído), a China “precisa” destruir empregos no resto do mundo, pois essa é a única condição de sobrevivência de algumas dezenas, talvez centenas de milhões desses chineses “flutuantes”. Por coincidência, essa é também a “missão histórica” que lhe foi assignada, atualmente, pela globalização capitalista, um processo impessoal, não controlado por nenhum país ou conjunto de corporações, mas que corresponde à “lógica” do sistema atual de alocação de investimentos e de organização espacial da produção de mercadorias. Como a China trabalha com aportes ilimitados de homens e capital (com alguma limitação em outros recursos produtivos, como os de know-how e ciência básica), ela não terá nenhuma dificuldade em manter esse ritmo alucinante de destruição de empregos em todo o resto do mundo pelas próximas duas gerações pelo menos (ou seja, pela próximo meio século). A China está ascendendo rapidamente na escala de agregação de valor, não apenas publicando exponencialmente em revistas científicas, mas passando da simples cópia e adaptação tecnológica para a inovação completa, já 256

tendo chegado também ao design e marcas. Seu catch-up promete ser ainda mais impressionante do que o do Japão e da Coréia do Sul e provavelmente não haverá nada comparável na história econômica mundial. Com tudo isso, a China vai agir exatamente como sempre agem os centros da economia mundial: organizando sua própria periferia de “abastecimento”, que ela espera poder controlar da forma como fazem os imperialismos modernos: não pela via extrativista, mas por redes de negócios centrados em circuitos financeiros próprios, chineses. A China vê o Brasil como o abastecedor prioritário de produtos alimentícios e de outras commodities para sua gigantesca máquina industrial. Ela também pretende inundar o Brasil (e já o está fazendo) de produtos manufaturados correntes. O Brasil não conseguirá bater a China no terreno da indústria tradicional, isto é, aquela da segunda revolução industrial: ele será fragorosamente batido, como estão sendo todas as demais potências industriais. As indústrias brasileiras, se desejarem sobreviver no mundo manchesteriano-chinês, deverão fazer como todas as outras: avançar na concepção e desenho e mandar fabricar na China. Só assim elas conseguirão sobreviver enquanto empresas, do contrário perecerão corpos e bens. Vão-se os operários e sobram os engenheiros. Quanto mais cedo esse processo começar, tanto melhor para as empresas brasileiras candidatas à sobrevivência no mundo darwinista chinês. Alguma renda extra será possível obter nos projetos conjuntos de fornecimento energético alternativo e nos produtos intensivos em recursos naturais, como corresponde às vocações ricardianas do Brasil. Países como o Brasil não devem alimentar grandes “planos estratégicos” em relação à China: a China fará aquilo que ela pretende fazer, segundo o seu interesse nacional, e não se deixará demover por nenhuma promessa de “aliança estratégica” ou qualquer outro arranjo que contemple interesses supostamente simétricos. Melhor fazer o que corresponde ao interesse nacional, sem esperar resposta ou gestos correspondentes de parceiros como a China. Incidentalmente, a concessão do status de “economia de mercado” não deve alterar muito o panorama geral e seu desenvolvimento inexorável: ela só atrapalha os desejos protecionistas de alguns ramos da indústria brasileira, tendo uma incidência setorial em mercados de trabalho específicos. Talvez constitua um exercício útil do ponto de vista do cenário serial killer que virá mais adiante, quando a China for plenamente integrada ao regime gattiano normal (o que ocorrerá até 2015). A concessão desse status representou apenas uma antecipação do que ocorrerá inexoravelmente no 257

terreno econômico. Ela obriga as empresas brasileiras a correrem um pouco mais rápido, o que talvez não seja mau, pois elas estavam se acostumando com muita proteção e nenhum desafio, desde 1995, pelo menos.

1443. “A China e seus interesses nacionais: algumas reflexões histórico-sociológicas”, Brasília, 20 de junho de 2005, 4 p. Reelaboração do trabalho 1430. Publicado no Colunas de Relnet (Brasília: Relnet, n. 11, jan./jun. 2005); no Meridiano 47 (Brasília: IBRI, n. 59, jun. 2005, p. 10-12; link: http://www.mundorama.info/Mundorama/Meridiano_47_-_1100_files/Meridiano_59.pdf). Ensaio incorporado ao livro: Paralelos com o Meridiano 47: Ensaios Longitudinais e de Ampla Latitude (Hartford, 2015). Relação de Publicados n. 568 e 573.

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23. Teses sobre o novo império e o cenário político-estratégico mundial

Uma pequena, mas necessária, introdução Vou propor algumas teses simples e diretas sobre o papel dos EUA no atual cenário da segurança internacional. Antes, contudo, preciso adiantar que parto de uma premissa fundamental para a discussão dessa questão e para meus propósitos explicativos: a segurança estratégica de um país tão “aroniano” e tão “westfaliano” como os EUA, não pode ser diferenciada ou separada das demais condições econômicas e ambientais que se traduzem em segurança para os negócios e para a vida dos seus cidadãos, o que significa a manutenção de um ambiente competitivo, externa e internamente, aberto aos méritos privados e às capacidades individuais, o que corresponde, exatamente, ao que são, em sua essência fundamental, os EUA. Para resumir o sentido geral dos argumentos contidos neste texto, eu diria, retomando o subtítulo deste ensaio, que os EUA configuram, no contexto internacional atual, duas características básicas: um poder aroniano e um Estado westfaliano. A noção aroniana remete, obviamente, às raízes do pensamento do grande cientista social francês, Raymond Aron, em especial a seus estudos sobre a guerra e a paz. Já o adjetivo histórico westfaliano se refere aos esquemas de reconhecimento recíproco da soberania exclusiva e excludente dos Estados-nações partícipes de um sistema de relações internacionais. De uma parte, os EUA são um poder aroniano por excelência, ou seja, um Estado que soube, melhor do que qualquer outro, no concerto de nações, conjugar e combinar os dois vetores essenciais de qualquer capacidade de projeção internacional. Esses vetores são constituídos, de um lado, por uma presença dilatada e ativa nos mais diversos foros e cenários abertos à sua diplomacia e, de outro, por uma poderosa ferramenta de afirmação do seu poder primário, isto é, sua força militar, que permanece incontrastável desde um século aproximadamente. O diplomata e o soldado, ainda que o primeiro apareça como bem menos eficiente do que o segundo, são os instrumentos sempre presentes da afirmação internacional ímpar desse hegemon relutante, desse decisor incontornável, de última instância, nos assuntos de segurança internacional e desse árbitro unilateral, por vezes arrogante, das questões de segurança de outros países, incapazes, por sua própria vontade e poder, de dirimir certas contendas ou de afastar certas ameaças. 259

De outra parte, os EUA constituem também um Estado radicalmente westfaliano, no sentido em que eles serão, provavelmente, a última nação do planeta disposta a ceder soberania a qualquer entidade intergovernamental, internacional ou supranacional que possa ser chamada a exercer, pela evolução natural ou dirigida do direito internacional, competências reguladoras ou decisoras infringindo o mandato original conferido ao seu congresso, vale dizer, ao povo dos EUA. Contrastando com outras nações, da Ásia do Sul à América Latina, passando sobretudo pela Europa, mas também pelo Oriente Médio e pela África, que consentem em renunciar, por vezes alegremente, à sua soberania – em políticas macro e setoriais, em questões monetárias e até em matéria de defesa –, os EUA não são sequer relutantes quanto a isso: eles simplesmente não cogitam em colocar qualquer aspecto de sua soberania exclusiva, política, econômica e a fortiori militar, nas mãos de qualquer outro poder político que não seja o seu próprio Congresso e, em última instância, o seu povo. A China talvez possa ser um Estado tão “westfaliano” quanto os EUA, mas ela é muito pouco aroniana em sua natureza profunda e em seu modo de ser. Em suma, estamos falando, no caso dos EUA, de uma democracia irredutível e indivisível, isto é, não solúvel nas águas do direito internacional e não fracionável em partes menores. Dito isto, vejamos, em primeiro lugar, quais seriam as minhas poucas teses, simples, sobre a natureza essencial do poder dos EUA, para depois examinar, numa segunda etapa, seu papel na segurança internacional. As entranhas do monstro imperial (nem tão monstro, nem tão imperial assim) 1) Os EUA não são um império, no sentido formal da palavra. Um império é, basicamente, um sistema extrator de recursos por meio da coerção, o que não ocorre no caso dos EUA, que estão comprometidos com valores e princípios condizentes com a liberdade de mercados e as franquias políticas democráticas. Qualquer afirmação em contrário teria de comprovar que as ditaduras que os EUA apoiaram em várias partes do mundo, na era da Guerra Fria, foram obras construídas consciente e deliberadamente pelos EUA para assegurar um tipo qualquer de extração de recursos por via da coerção militar. 2) Mesmo que os EUA se conformassem ao (e se aproximassem do) modelo histórico dos impérios, eles constituiriam um império de novo tipo, não diretamente 260

interessados na construção de um poder hegemônico incontrastável e incontestável, como os impérios “extratores” do passado. Eles estão, sim, interessados em garantir, em primeiro lugar e quase que exclusivamente, a sua própria segurança e, em segundo lugar, em criar as condições para que essa segurança se expresse, não em termos diretamente militares, mas sim em termos econômicos, comerciais e financeiros, ou até em bens intangíveis, como são os valores da democracia, da livre iniciativa e da liberdade individual. 3) A única hegemonia na qual os EUA estão legitimamente interessados é a hegemonia do livre-comércio. Em outros termos, os EUA estão interessados em um sistema de portas abertas no qual não subsistam restrições, ou que elas sejam muito poucas e nãodiscriminatórias, à atuação de suas empresas nas diversas frentes dos intercâmbios humanos e sociais que possam, de fato, estar (e ficar) abertos à criatividade de suas empresas e cidadãos. 4) Nesse sistema de portas abertas, a única “ditadura” suscetível de ser criada pela hegemonia dos EUA é aquela que destrói todas as ditaduras. Estas são as bases indiscutíveis do “império” americano: a livre circulação de fatores de produção e de produtos da inteligência e da criatividade humanas. Esse é um sistema destruidor de todas as hegemonias conhecidas historicamente. Mas quem destrói todas as velhas hegemonias não é o poder comercial ou econômico dos EUA, e sim a força das suas idéias, idéias tão simples como as que venho expondo aqui. 5) Nos últimos dois séculos de sua existência enquanto nação independente, os EUA exerceram, inquestionavelmente, um papel eminentemente positivo na história da humanidade. Isto se deu tanto em termos de liberdade econômica como no terreno das franquias democráticas e dos direitos humanos, não necessariamente porque os americanos são mais virtuosos do que outros povos, mas pela configuração específica de sua “civilização”. Seus valores básicos confundem-se com os do racionalismo iluminista, embora eles sejam extremamente confusos e contraditórios na hora de aplicá-los na prática, fruto de um regime de extrema liberdade individual, o que redunda eventualmente em disfunções localizadas. 261

6) Os EUA são uma nação westfaliana, no sentido clássico da palavra, mas de âmbito universalista. Em outros termos, eles acreditam na soberania nacional, que no seu sistema nacional se confunde com a soberania popular, e não estão – e não estarão nunca – dispostos a renunciar a essa soberania em nome de qualquer sistema que se proponha administrar coletivamente a liberdade. Os EUA acreditam que a liberdade não precisa de administração centralizada, aliás, ela não necessita sequer de administração: a liberdade é, ou existe, ponto. Seu universalismo consiste em propor que todos os países vivam nas mesmas bases de soberania igualitária, que é a soberania da convivência pacífica tendo como única postura “agressiva” a competição comercial, ou seja, a conquista pelos méritos do que cada um tem ou pode oferecer de melhor. 7) O westfalianismo americano não se coaduna com nenhum projeto integracionista, apenas com acordos de livre comércio, de implementação dos direitos de propriedade e com garantias de promoção e proteção de investimentos. Trata-se de uma integração “light”, compatível, filosoficamente, com o exercício das liberdades individuais nos demais planos da vida social. Os Estados Unidos são, ademais de westfalianos e aronianos, schumpeterianos, isto é, a favor da “destruição criativa”, o que significa uma constante remise en cause, ou contestação, das condições estabelecidas. Seu sistema econômico e social funciona com base no mérito, o que implica uma constante luta pelo sucesso, sobretudo de tipo econômico. É o que os economistas chamam de “market contestability”, aquilo que pode ser testado e contestado num sistema que funcione sem barreiras à entrada. Daí a desconfiança de princípio, histórica, dos EUA pelos esquemas preferenciais, tendência apenas revertida nas últimas duas décadas em favor de um minilateralismo de ocasião, em face das tendências regionalistas e da relutância dos muitos membros da OMC em se engajar num desmantelamento comercial verdadeiramente multilateral. 8) Os valores essenciais da vida política, econômica e social americana – democracia, liberdade, representação, império da lei, iniciativa individual e recompensa pelos méritos – não são exportáveis. Não obstante, grande parte dos americanos, provavelmente a maioria, acredita sinceramente que os EUA são o farol da liberdade e que, como tal, deveriam levar esses 262

valores a outros povos e nações. Daí um inevitável pêndulo entre duas posturas recorrentes, o isolacionismo e o envolvimento, que agitam de forma ambígua a história internacional dos EUA no último século e meio, aproximadamente. Aceitas, ou pelo menos propostas, estas simples teses sobre a posição dos EUA no plano mundial, venho agora à questão do seu papel na segurança internacional. Disponho, igualmente, de algumas outras breves teses sobre essa questão, que não pretendo elaborar substantivamente ou discorrer longamente sobre elas, basicamente por razões de espaço, mas acredito que elas sejam suficientemente explícitas para se justificarem a si mesmas. Vejamos, portanto, minhas “teses” sobre o papel dos EUA na segurança internacional. Nem Ialta, nem Tordesilhas; apenas Westfália (e um pouco de Viena e Versalhes) 9) Os EUA não se ocupam, nem pretenderiam se ocupar, da segurança mundial: eles se ocupam de sua própria segurança nacional e a de seus cidadãos e empresas, ponto. A despeito do fato que alguns intelectuais apreciem racionalizar os impulsos de política internacional dos EUA como divididos ambiguamente, entre, de um lado, um idealismo de tipo wilsoniano, e portanto engajados nos assuntos do mundo, e de outro, um realismo de extração bem jacksoniana, e portanto determinados a atender única e exclusivamente o seu próprio interesse nacional, a verdade é que os EUA não pretendem, por vontade própria, se imiscuir nos assuntos dos demais países, nem desejariam se ligar a outros países em esquemas permanentes de coordenação ou aliança militar. Os EUA acreditam que se bastam a si próprios e pretenderiam manter-se nessa situação, não fosse pelos apelos que lhes são feitos ou pelas demandas de ação externa que emergem inevitavelmente de um mundo complexo e constantemente agitado por ameaças latentes e recorrentes à segurança nacional americana. Os europeus, que viveram décadas sob a proteção do guarda-chuva nuclear americano, e deixaram de investir em sua própria segurança (e nem têm o desejo de fazê-lo), são os primeiros a chamar os EUA to the rescue quando eles têm de enfrentar alguns problemas em seu próprio jardim (como nos Bálcãs, por exemplo). 10) Os EUA não estão interessados em impulsionar nenhum esquema multilateral de segurança estratégica, de tipo onusiano ou outro, que consistiria em armar forças de 263

intervenção que possam, de alguma forma, interferir com os seus próprios esquemas domésticos de segurança e de defesa nacional. Nisso, eles são westfalianos radicais. Não há nenhuma chance, no futuro previsível, que os EUA venham a concordar com a implementação prática do que está estipulado no artigo 47 da Carta da ONU, relativo ao estabelecimento de um Comitê de Estado Maior para assessorar e assistir o Conselho de Segurança em todas as questões relativas às necessidades militares do CSNU, inclusive quanto ao emprego e comando de forças colocadas à disposição desse Comitê. Os EUA nunca permitirão que tropas americanas, ou quaisquer forças suas, sirvam sob comando alheio, ainda que este seja formalmente da ONU, em situações que digam diretamente respeito à segurança e à defesa dos interesses dos EUA. 11) Os EUA podem, eventualmente, vir a integrar-se a, de preferência liderando, esforços multilaterais que digam respeito à segurança de outros países – e, indiretamente, à sua própria – desde que percebam eventuais ameaças como suficientemente credíveis e suscetíveis de afetar, no plano colateral, a segurança de seus cidadãos e empresas em territórios estrangeiros. Em outros termos: forças americanas não são solúveis em qualquer “líquido” ou recipiente estranho à própria vontade do povo dos EUA, materializado em seu Congresso e na autoridade executiva, na pessoa do presidente. Não há hipótese de soldados americanos servirem sob qualquer outro comando que não os de seu próprio país. Não se trata aqui de isolacionismo; trata-se, simplesmente, de exercício de soberania plena, ou seja, irrenunciável. 12) Os EUA mantêm, como regra de princípio, a decisão política de antepor-se e mesmo de sobrepor-se a qualquer outro poder, no plano da dissuasão e do balanço de forças, e de antecipar qualquer desafio estratégico, tendo estabelecido, para si mesmos, a postura de conservar uma supremacia estratégica clara e certa sobre qualquer outro poder exterior, amigo ou desafiante, sendo totalmente indiferentes quanto à natureza política ou ideológica desse suposto contendor. Isto significa que, independentemente do fato de disporem de supostos aliados estratégicos no âmbito da OTAN, ou indiferentes à situação de que contendores possam emergir de países hostis ao modo de vida americano – quer seja a antiga União Soviética ou a China atual –, os EUA sempre estarão dois ou três passos, pelo menos, à frente de possíveis poderes desafiantes. Esta atitude de dissuasão total e absoluta se 264

aplica a todo e qualquer tipo de cenário estratégico e a toda a panóplia das ferramentas militares. Desse ponto de vista, a velha Europa da OTAN reduzida – a da Alemanha ocupada dos tempos da Guerra Fria – não se distinguia em absoluto da União Soviética inimiga: ambas tinhas de ser mantidas em estado de inferioridade estratégica, o que implicava, obviamente, um crescimento contínuo da capacidade ofensiva dos EUA. O mesmo pode ser dito dos dias atuais, aplicando esses princípios à OTAN ampliada, à nova Rússia, à velha China ou a qualquer outro Estado, vilão ou amigo. Não se trata, cabe deixar claro, de uma atitude belicista, mas tão simplesmente, de um seguro militar preventivo. A preeminência estratégica é a própria alma do sistema de segurança nacional americano. 13) A segurança nacional americana não é concebida em termos exclusivamente ou mesmo essencialmente militares e nisso os EUA são perfeitamente aronianos. Eles integram, mais do que o soldado e o diplomata, também o cientista e o empresário em seus cálculos de preeminência estratégica. Na base desse sistema integrado de defesa nacional, que vai da concepção original à implementação prática dos princípios de segurança estratégica, encontra-se um conceito de organização social da produção que é propriamente marxista ou marxiano, pelo menos alegoricamente, em seu desenho e expressão: os EUA conceberam e desenvolveram um “modo inventivo de produção” que não encontra paralelo na história econômica mundial. Trata-se da mais perfeita máquina de produzir inovações, de qualquer tipo, inclusive as militares, que se conhece no sistema planetário. Se houvesse um “prêmio Nobel” para a defesa, ou para a guerra, os EUA também se situariam entre os primeiros contemplados, como ocorre, aliás, nos demais campos, com a possível exceção (ainda) das humanidades, ou seja, da literatura. Não se trata de uma máquina exclusivamente americana, pois ela integra cérebros de todas as partes do mundo, se trata apenas de uma máquina “made in USA”, como ocorre, aliás, nos prêmios Nobel da área científica. 14) Os EUA não parecem dispostos a colocar todo o seu potencial à disposição do resto do mundo e provavelmente nunca o farão. Eles se contentam em fazer com que o resto do mundo seja um lugar não suficientemente ameaçador do ponto de vista dos interesses nacionais americanos. Ao garantir essa situação, os EUA estão contribuindo, de forma indireta, para a segurança 265

do planeta, ao impedir a emergência de forças contestadoras da supremacia militar e estratégica americana. Se os EUA são “the world’s cop”, isto é, os policiais do mundo, eles têm de agir e se comportar, efetivamente, como o “porrete de última instância”, ou seja, como aquele poder acima do qual nenhum outro prevalece ou se mantém. Não se trata de uma atitude arrogante, imperial ou unilateral, como pensam muitos; apenas de um comportamento que é a própria essência do ser americano: não há poderes acima do xerife da aldeia. 15) Os EUA não precisam de aliados ou parceiros militares, eles apenas desejam países que paguem a conta das operações militares ou de manutenção da paz que não sejam aquelas estritamente vinculadas à defesa do território americano ou da segurança de suas empresas e cidadãos. O conceito de “burden sharing”, no plano da ONU e das operações onusianas de imposição e de manutenção da paz, aplica-se exclusivamente no plano político e a esferas externas à segurança nacional americana. Ou seja, o compartilhamento de tarefas no plano da defesa e da segurança internacionais se referem a cenários estratégicos que se situam todos fora do território americano, apenas interagindo com esquemas nacionais de defesa na medida em que cenários estratégicos situados em outras latitudes e longitudes tenham ou exerçam algum tipo de impacto na segurança nacional americana. Foi exclusivamente em função do “burden sharing” que os EUA patrocinaram, numa primeira fase, as candidaturas da Alemanha e do Japão a uma cadeira permanente no Conselho de Segurança da ONU, isso ainda nos anos 1980. Com o passar dos anos, com o emasculamento da Rússia e a diluição da grande Alemanha no conjunto puramente hedonista da União Européia, os EUA deixaram de patrocinar o ingresso da Alemanha nesse foro restrito dos “mais iguais”, preferindo, por razões puramente estratégicas – e não mais de ordem orçamentária, como era o caso na fase de keynesianismo militar da era Reagan –, promover a ascensão do Japão e da Índia em tal foro. 16) O conceito, a construção e a operacionalização prática da OTAN de forma nenhuma implicam em qualquer tipo de multilateralismo securitário ou estratégico da parte dos EUA. 266

A OTAN é simplesmente um braço armado dos EUA para determinadas tarefas e funções específicas, uma das muitas ferramentas utilizadas, ao longo do seu processo de afirmação imperial, para ampliar sua capacidade de projeção externa, no plano militar e diplomático, e para contribuir à manutenção de uma mesma concepção civilizatória geral, no plano dos valores e dos princípios de organização econômica e social. A OTAN não deve ser vista apenas como uma aliança militar dotada de um conceito puramente defensivo – a proteção do Ocidente contra a ameaça militar soviética, de acordo com a doutrina do containment, inspirada por George Kennan – mas também como uma esfera de liberdade política e econômica, não necessariamente no sentido mais puro da palavra, como os exemplos de Portugal salazarista e da Turquia semi-capitalista podem comprovar. Com esses flancos garantidos, a Espanha franquista era dispensável, mas se ela, por acaso, fosse estrategicamente relevante, também teria sido integrada ao baluarte da democracia. 17) A OTAN não foi vitoriosamente militarmente: ela apenas cumpriu uma função defensiva, dissuasiva, de treinamento e de enquadramento dos países subordinados, sem mencionar o lado da demanda por equipamentos militares, que também faz parte do supply-side economics da indústria americana. A URSS manteve, na maior parte do tempo, uma capacidade ofensiva superior em forças de terreno, e talvez mesmo no terreno dos dispositivos nucleares. Ela tampouco foi “esgotada” pela competição armamentista, mas estiolou-se a si mesma. A URSS perdeu a competição em meias de nylon, não em equipamentos militares, ela implodiu, por sua própria incapacidade produtiva, por manter um sistema que não podia simplesmente funcionar. Mas isso já estava previsto desde 1919 pelo economista austríaco Ludwig Von Mises, que demonstrou logicamente a impossibilidade de cálculo econômico e, portanto, de funcionamento do processo produtivo, numa economia socialista. 18) A OTAN assumiu, desde a derrocada (não derrota) do socialismo, funções bem mais abrangentes do que eram as suas no período da Guerra Fria. Isso não tem muita importância do ponto de vista americano, uma vez que ela é acessória à sua própria segurança nacional. 267

A OTAN cumpre funções subsidiárias nos esquemas americanos de defesa, ainda que ela seja, hoje, algo bem mais amplo do que a coordenação de esquemas militares, uma espécie de ferramenta polivalente, numa palavra, um canivete suíço com administrador europeu e manipulador americano. Seu novo mandato lhe dá poderes para intervir praticamente em todos os assuntos, da luta contra as agressões ao meio ambiente e as violações aos direitos humanos à defesa da democracia e da paz, num cenário que há muito extravasou o Atlântico Norte, alcançando praticamente todo o mundo (com a exceção do universo, isto é, do espaço exterior, que permanece “americano”). 19) A OTAN e, de certa forma, também os EUA não parecem estar preparados para as novas ameaças, mais difusas do que claramente identificadas, ainda que o inimigo tenha contornos muito nítidos: trata-se do fundamentalismo islâmico. A OTAN estava teoricamente preparada para combater um inimigo claramente identificado, com divisões e instâncias de comando apoiadas em coisas tangíveis: tanques e canhões, navios e aviões, quartéis e linhas de comunicação, enfim, ferro, aço, cimento, um pouco de cobre. Hoje, isso não se aplica, pois o “inimigo” vive no próprio território e confunde-se com a população em geral ou com imigrantes honestos. A globalização, neste caso, traz um processo de declínio civilizacional – que é o do Islã em crise social e econômica e capturado por minorias ativistas – para dentro do Ocidente desenvolvido. Trata-se de uma ameaça que não assume contornos militares muito claros, e que não tem, provavelmente, nenhum perfil tático-militar preciso, mas poderosas implicações estratégicas, situadas mais no terreno da sociedade, como um todo, do que no campo dos quartéis-generais. Aliás, a arte da guerra, hoje, apresenta, bem mais, elementos de Sun Tzu do que aspectos de Clausewitz, mas pede, sobretudo, mais ações de inteligência do que operações de força bruta. Não se trata apenas do terrorismo islâmico, que é uma mera manifestação material de algo bem mais insidioso, o fundamentalismo islâmico. Este deriva do islamismo “normal”, constitui uma recusa direta da modernidade “ocidental” e se apresenta, materialmente, como uma mobilização de forças para destruir, material e humanamente, a diversidade ocidental e seus valores associados. A OTAN pode até estender um pouco mais seus cenários de atuação, mas não se trata de um terreno no qual seus pensadores e estrategistas tenham algo de relevante a 268

trazer para o equacionamento do problema. A batalha é mais de idéias e de conceitos, de corações e mentes, do que propriamente um combate de trincheiras, aliás impossíveis a definir, ainda que essa nova guerra tenha alguns cenários privilegiados de atuação. Todos eles se situam no arco civilizacional do islamismo, que engloba mesmo os países que tinham feito opção por sua versão light, ou laica, em todo caso, separada do Estado. Nessa luta, a ignorância popular sustenta o obscurantismo político, num cenário no qual a democracia tem de enfrentar com transparência e bons modos um inimigo que se utiliza da mentira e da deception. 20) A proliferação nuclear não constitui, de verdade, um problema militar, nem no plano dos Estados, nem ao nível dos grupos terroristas. Trata-se de um problema político e como tal deveria ser enfrentado. Durante a Guerra Fria, o mundo foi dividido a partir de Ialta, que é uma espécie de tratado de Tordesilhas da era contemporânea (ambos acordos falhos e incompletos). No mundo pós-Guerra Fria, o cenário é bem mais do tipo Congresso de Viena ou tratado de Versalhes, sem que os grandes atores consigam se entender sobre uma agenda comum que combine segurança com oportunidade para todos, como foi o caso em Bretton Woods. Uma das razões é, precisamente, o gênio que saiu da garrafa, a capacitação nuclear, difícil de engarrafar outra vez. Não há uma solução militar ao problema dos novos proliferadores e não há suficiente consenso entre os “donos” do gênio para domá-lo de maneira credível, o que implicaria em esforços credíveis para o desarmamento nuclear. A situação de impasse político deve persistir e mesmo uma nação poderosa como os EUA não conseguem controlá-la, em parte devido a um grande déficit de liderança política. Este é, provavelmente, o único terreno nas relações internacionais contemporâneas no qual os EUA não conseguem obter resultados isoladamente ou por iniciativas unilaterais e necessitam da cooperação de outros Estados, não necessariamente no plano multilateral. Um exemplo dessa necessidade está expressa na iniciativa tendente a controlar os fluxos civis de materiais nucleares, mais um clube restrito ao estilo do finado Cocom (hoje Wassenaer), dos grupos de Londres e do MTCR. 21) O “fator China” não é propriamente um desafio militar aos EUA ou ao Ocidente, e sim uma recomposição dos dados do jogo econômico, uma “nova geografia”. 269

A despeito de muitas especulações sobre o desafio militar ou estratégico chinês ao poderio incomensurável dos EUA, o que há é uma reestruturação dos fluxos de bens tangíveis e intangíveis no hemisfério norte (para esses efeitos, tanto China quanto Índia pertencem ao Norte, não ao Sul). A “nova geografia do mundo”, que alguns pretendem fundar a partir de intercâmbios concentrados no sul, na verdade já existe, e ela não é apenas comercial, mas sobretudo econômica e tecnológica, mas também financeira e de cérebros (eventualmente materializados em P&D e propriedade intelectual). Essa “nova geografia” se manifesta na incorporação de novos grandes emergentes ao conjunto de países desenvolvidos, basicamente um clube constituído pela OCDE mais emergentes dinâmicos, que seriam os RICs, com grande ênfase na China e na Índia. A nova geografia econômica, que é também uma divisão mundial do trabalho, faz o mundo convergir pela primeira vez em dois séculos, a despeito mesmo da grande divergência nas rendas individuais. Os EUA já se adaptaram a ela, inclusive no terreno estratégico, de que é prova a parceria nuclear com a Índia. No terreno comercial, financeiro e tecnológico o que existe é uma simbiose cada vez maior entre os EUA e os emergentes asiáticos: tanto os chineses são dependentes da avidez de consumo dos americanos quanto estes são hoje dependentes da boa disposição dos asiáticos em continuarem financiando seus déficits. A América Latina não está a priori excluída da nova geografia, mas ela se exclui a si mesma quando recusa concluir acordos comerciais, estender garantias ao investimento direto estrangeiro, oferecer maior abertura em serviços ou outras rubricas. Ela se exclui, igualmente, quando se contenta em explorar suas vantagens ricardianas em recursos naturais, mas não avança na qualificação educacional da sua população, não investe o suficiente em ciência e tecnologia, mantém a desigualdade social em níveis inaceitáveis e apresenta um péssimo ambiente micro e macro para o mundo dos negócios. 22) As ameaças aos EUA provindas da América Latina não são derivadas de qualquer desafio estratégico, mas emergem de fatores negativos internos (tanto aos EUA como à América Latina), ligados à economia da droga, basicamente. A oferta contínua de imigrantes, por outro lado, é um fator positivo, para ambos os lados, mas pode estar associado a outras fontes de criminalidade. Com uma demanda irrefreável dos EUA por drogas duras, não há dúvida de que qualquer plano de contenção atuando no “supply-side” econômico, apenas – como é o 270

caso do Plano Colômbia – tende a não produzir resultados significativos, ainda que possa trazer benefícios residuais do ponto de vista do combate à narcoguerrilha. O problema da droga não será resolvido enquanto não for equacionado o lado da demanda. Mas, trata-se de um problema para os dois lados, pois ele tende a gerar, no território dos produtores e dos países de trânsito – o que é obviamente o caso do Brasil –, uma corrupção ativa dos agentes públicos, que atinge basicamente o sistema político e o aparato policial. No que se refere à oferta do fator humano, ela atende, igualmente, aos dois lados da equação, mas com desequilíbrios sociais e econômicos, pois os países exportadores retiram vantagens que eles não estão dispostos a renunciar, diminuindo, por outro lado, a pressão política para que os dirigentes políticos reformem suas instituições esclerosadas, ofereçam novas oportunidades de emprego local, qualifiquem educacionalmente suas populações e atuem decisivamente no plano das desigualdades distributivas. Os EUA retiram vantagens desse fluxo importador, mas eles se preparam para gastar inutilmente US$ 6 bilhões com um muro de fronteira rigorosamente inútil e ineficiente. E o Brasil nisso tudo? O Brasil, no plano estritamente militar, é um país rigorosamente marginal, alheio aos grandes cenários estratégicos internacionais, como de resto a maior parte da América Latina. Tem certa importância no plano comercial, para algumas commodities e produtos de sobremesa, e pode tornar-se um ator relevante na nova matriz energética mundial, que emergirá paralelamente ao lento declínio da velha (150 anos) civilização do petróleo (aqui mais do lado dos combustíveis do que no plano industrial e tecnológico). Ainda não estamos prontos para a quarta revolução industrial, mas temos competências potenciais (científicas, pelo menos) para acompanhá-la. A rigor, não apresentamos nenhuma ameaça à segurança dos EUA, mas existem os que acreditam que os EUA representam uma ameaça à soberania brasileira. Como esse tipo de suposição se presta a alguma confusão mental, talvez fosse o caso de terminar este pequeno ensaio por algumas novas teses, breves, em relação à posição do Brasil no atual cenário de segurança internacional. 23) O Brasil não tem um grande papel a cumprir, positivo ou negativo, no atual cenário estratégico internacional. Seu papel é residual e talvez seja mais relevante 271

no caso de operações conduzidas no quadro das Nações Unidas, que a rigor não servem de parâmetro para nada, apenas para a manutenção do status quo. Se o Brasil tiver de assumir algum papel mais importante nessa vertente, a questão da cooperação militar com os EUA torna-se inevitável (e politicamente complicada). O Brasil é, como se sabe, um país soberanista, em todo caso bem mais do que outros na América Latina e na Europa, dispostos eventualmente a ceder soberania em troca de alguns benefícios materiais. O Brasil também aspira – e isso é histórico, mas se trata de uma reivindicação puramente elitista – fazer parte dos “mais iguais”, embora disponha de poucos atributos para tanto. As elites militares e diplomáticas – deixando de lado as elites políticas, extremamente fluídas para merecerem atenção – possuem essa inclinação oligárquica que visa colocar o país no inner circle da política mundial, agenda que nunca ganhou crédito entre as elites econômicas – também cambiantes e, sobretudo, desprovidas de visão internacional – para que elas sustentassem essa pretensão. O fato é que, com o Brasil dentro ou fora do Conselho, o cenário estratégico não mudará rigorosamente nada, nem para o Conselho, nem para o Brasil, e tampouco para o mundo, ocorrendo apenas e tão somente maiores despesas orçamentárias para o país, num engajamento que jamais foi discutido a fundo com a sociedade brasileira ou com seus representantes proclamados. A participação apresentaria, obviamente, maior impacto para as Forças Armadas, que teriam de revisar suas concepções estratégicas – mas essa é uma função talvez mais política do que militar – e sobretudo revisar toda a panóplia na qual se apóiam atualmente, com adaptação conseqüente de suas ferramentas de atuação. Grande parte da corporação militar parece preparada e estaria disposta a enfrentar esse esforço de revisão, mas esse cenário não depende da vontade dos militares, sequer dos políticos e das elites econômicas, e sim da capacitação da economia nacional como um todo. Trata-se de um processo lento e duvidoso, pois significa colocar o país num outro patamar de desenvolvimento que o atualmente seguido, que se apresenta bem mais como um lento arrastar de pés em direção da modernidade. 24) O Brasil não tem ameaças credíveis vindas do imediato entorno regional (embora alguns atores se esforcem por criar artificialmente uma custosa, inútil e totalmente indesejada corrida armamentista). O nível de dissuasão requerido parece justificar, 272

portanto, o baixo investimento efetuado nos instrumentos, ainda que isso não devesse refletir-se na capacitação e treinamento, sempre necessários. Não existe mais hipótese, sequer no plano teórico, de conflitos inter-estatais que possam envolver o Brasil em torno de disputas regionais, como ocorreu no passado em torno do Prata. Os conflitos são menores e residuais e tendem a ser equacionados por via diplomática, embora a prudência histórica recomende que um “grande porrete” esteja sempre pronto para oferecer a dissuasão necessária. Outras ameaças – como a narcoguerrilha, o crime organizado, eventualmente os neobolcheviques que insistem numa agenda de expropriação direta de terras – terão de ter um equacionamento basicamente policial, mas a inteligência militar e algum respaldo material das FFAA podem contribuir decisivamente para o afastamento de quaisquer riscos de transbordamento, inclusive fronteiriço. Nesse particular, a cooperação com os EUA é inevitável e desejável, embora condicionada a aspectos operacionais nem sempre bem-vindos do ponto de vista brasileiro. 25) Não parece haver nenhuma ameaça à soberania brasileira na vertente amazônica, embora interesse a diversos atores, tanto à direita quanto à esquerda, agitar esse espectro, por razões peculiares a cada setor. A Amazônia será naturalmente integrada ao mainstream da economia brasileira – e internacional – à medida que seu imenso potencial venha a ser adequadamente identificado e explorado (e isso implica algum grau de desgaste em relação ao patrimônio existente). A Amazônia tem vários inimigos, mas os principais não são aqueles supostamente interessados em sua “internacionalização”, em princípio ecologistas ingênuos que podem estar a serviço de interesses externos (segundo rezam algumas lendas made in Brazil). Existem muitas paranoias e teorias conspiratórias em torno dessa questão, fabricadas por uma anacrônica esquerda anti-imperialista e pela extrema direita nacionalista – geralmente composta de militares da reserva –, nenhuma delas justificada por dados credíveis da realidade. Lendas e fabulações não merecem, obviamente, ser objeto de quaisquer teses. No plano estritamente militar, o espectro pode servir para uma maior alocação de recursos, embora seja indesejável uma misallocation em função de esquemas dissuasórios que nunca serão testados na prática. A responsabilidade das autoridades militares é aqui enorme, pois uma eventual indução ao erro na elaboração orçamentária setorial redundará em investimentos custosos, desviando recursos de investimentos 273

econômicos e sociais que são necessários para, não propriamente afastar temores totalmente infundados, mas para construir as bases do desenvolvimento sustentável naquela região. Os problemas da defesa amazônica parecem ter o mesmo teor das ameaças já aludidas anteriormente, derivadas da narcoguerrilha e do crime organizado, o que recomendaria uma adaptação do ferramental militar e policial a essas circunstâncias. Isso implica, igualmente, um maior grau de cooperação com os EUA, o que pode suscitar resistências em certas áreas, mas que me induzem, experimentalmente, a elaborar uma última tese sobre o papel do Brasil no cenário estratégico internacional. 26) Se o Brasil não é um ator relevante para os cenários estratégicos internacionais, ele o é, contudo, no âmbito regional, naval, do Atlântico Sul, e no do imenso hinterland sul-americano. Tanto quanto para sua integração a esquemas militares onusianos ou plurilaterais mais amplos – isto é, numa base de like-minded countries –, um papel mais ativo na própria região se beneficiaria de maior cooperação com os EUA, algo extremamente complicado para nossos padrões políticos e diplomáticos. O Brasil é um país introvertido, quase avestruz economicamente, embora tentando graus crescentes de abertura numa fase em que a globalização é, não apenas inevitável, como uma quase fatalidade. O establishment diplomático-militar guarda relutâncias em relação a uma maior cooperação com os EUA em virtude dos choques no passado – no caso da agenda nuclear, por exemplo – e das assimetrias do presente, para nada dizer da arrogância imperial que não vai diminuir tão cedo. Em termos claros, cooperação com os EUA, mormente no terreno militar, significa subalternidade e integração a esquemas já fixados, em posições acessórias e desprovidas de real capacidade decisória. O próprio establishment militar, com algumas exceções, não parece arredio a uma maior cooperação técnica com a superpotência, embora sejam manifestas as reações contrárias e as resistências a tal intento. Alguns acreditam que o caminho da afirmação do Brasil no cenário mundial passa não apenas ao largo como se situa contrariamente às iniciativas e interesses das grandes potências, cabendo sempre a singularização negativa da hiperpotência. Nessa visão, as articulações geopolíticas do Brasil devem passar, prioritariamente, pela periferia do sistema, o que explica, aliás, muitas das escolhas do presente. Não parece haver justificativas econômicas ou 274

tecnológicas a esse tipo de visão excludente, mas deve-se reconhecer que a cooperação com gigantes sempre é complexa e duvidosa, em qualquer hipótese. Os obstáculos, assim, parecem ser mais de natureza política, ou ideológica, do que propriamente estratégica ou econômica, mas se é verdade que são as idéias que dominam o mundo, então os primeiros fatores são muito mais poderosos do que os segundos. O Brasil é um país que caminha muito lentamente no cenário doméstico e internacional: é bastante provável, assim, que ele acabe confirmando sua natureza essencial.

1679. “Os Estados Unidos no seu terceiro século: um poder aroniano e o último Estado westfaliano das relações internacionais (com algumas breves alusões ao Brasil)”, Brasília, 29 outubro 2006, 18 p. Contribuição ao VI ENEE: Encontro Nacional de Estudos Estratégicos; Escola de Guerra Naval, Rio de Janeiro: de 8 a 10/11/2006; Painel: “O papel dos EUA no atual cenário de segurança internacional”: dia 09.11, de 08:30 às 10:15hs. Publicada na revista Asteriskos, Journal of Internacional and Peace Studies; Revista de Estudos Internacionais e da Paz (ISSN 1886-5860; ISSN 1887-1712 (on-line) (Galiza, España; n. 5-6, 2008, p. 73-88; ISSN: 1886-5860; ISSN on-line: 1887-1712; web: http://academiagalega.org/revista*asteriskos/asteriskos-revista-de-estudos-internacionais-e-da-paz-no-5-62008.html). Reelaborado para publicação no Brasil, sob o título de “Teses sobre o novo império e o cenário político-estratégico mundial: Os Estados Unidos e o Brasil nas relações internacionais”, para Meridiano 47 (n. 93, abril de 2008, p. 5-14; link: http://mundorama.net/2008/04/30/boletim-meridiano-47-no-93-abril2008/) e Revista Acadêmica Espaço da Sophia (Tomazina, PR, ISSN: 1981-318X, ano II, n. 14, maio de 2008, p. 89-119). Ensaio incorporado ao livro: Paralelos com o Meridiano 47: Ensaios Longitudinais e de Ampla Latitude (Hartford, 2015). Relação de Publicados n. 829.

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24. O legado de Henry Kissinger

Não, o velho adepto da Realpolitik ainda não morreu. Mas tendo completado 85 anos em maio de 2008, o ex-secretário de Estado e ex-conselheiro de Segurança Nacional dos EUA Henry Kissinger aproxima-se das etapas finais de sua vida. Seus obituários – não pretendendo aqui ser uma ave de mau agouro – devem estar prontos nas principais redações de jornais e revistas do mundo inteiro, e os comentaristas de suas obras preparam, certamente, revisões de análises anteriores para reedições mais ou menos imediatas, tão pronto este “Metternich” americano passe deste mundo terreno para qualquer outro que se possa imaginar (na minha concepção, deverá ser o mundo das idéias aplicadas às relações de poder). Talvez seja esta a oportunidade para um pequeno balanço de seu legado, que alguns – por exemplo Cristopher Hitchens, em The Trial of Henry Kissinger – querem ver por um lado unicamente negativo, ou até criminoso, como se ele tivesse sido apenas o inimigo dos regimes “progressistas” e um transgressor consciente dos direitos humanos e da autodeterminação dos povos. Ele certamente tem suas mãos manchadas de sangue, mas também foi o arquiteto dos acordos de redução de armas estratégicas e da própria tensão nuclear com a extinta União Soviética, além de um mediador relativamente realista nos diversos conflitos entre Israel e os países árabes, no Oriente Médio. Sua obra “vietnamita” é discutível, assim como foi altamente discutível – ou francamente condenável – o prêmio Nobel da Paz concedido por um simplesmente desengajamento americano, que visava bem mais a resolver questões domésticas do que realmente pacificar a região da ex-Indochina francesa. Pode-se, no entanto, fazer uma espécie de avaliação crítica de sua obra prática e intelectual, como reflexão puramente pessoal sobre o que, finalmente, reter de uma vida rica em peripécias intelectuais e aventuras políticas. Sua principal obra de “vulgarização” diplomática, intitulada de maneira pouco imaginativa Diplomacia simplesmente, deve constituir leitura obrigatória em muitas academias diplomáticas de par le monde. Seu trabalho mais importante, uma análise do Congresso de Viena (1815), é mais conhecido pelos especialistas do que pelo grande público, mas ainda assim merece ser percorrido pelos que desejam conhecer o “sentido da História”. O legado de Henry Kissinger é multifacetado e não pode ser julgado apenas pelos seus atos como Conselheiro de Segurança Nacional de Richard Nixon, ou como 276

Secretário de Estado desse presidente e do seguinte, Gerald Ford, quando ele esteve profundamente envolvido em todas as ações do governo americano no quadro da luta anticomunista que constituía um dos princípios fundamentais da política externa e da política de segurança nacional dos EUA. Esse legado alcança, necessariamente, suas atividades como professor de política internacional, como pensador do equilíbrio nuclear na era do terror – doutrina MAD, ou Mutually Assured Destruction –, como consultor do Pentágono em matéria de segurança estratégica, e também, posteriormente a seu trabalho no governo, como articulista, memorialista e teórico das relações internacionais. A rigor, ele começou sua vida pública justamente como teórico das relações internacionais, ou, mais exatamente, como historiador do equilíbrio europeu numa época revolucionária, isto é, de reconfiguração do sistema de poder no seguimento da derrocada de Napoleão e de restauração do panorama diplomático na Europa central e ocidental a partir do Congresso de Viena (1815). Sua tese sobre Castlereagh e Metternich naquele congresso (A World Restored, 1954) é um marco acadêmico na história diplomática e de análise das realidades do poder num contexto de mudanças nos velhos equilíbrios militares anteriormente prevalecentes. Depois ele foi um fino analista dessas mesmas realidades no contexto bipolar e do equilíbrio de terror trazido pelas novas realidades da arma atômica. Ele se deu rapidamente conta de que não era possível aos EUA manter sua supremacia militar exclusiva, baseada na hegemonia econômica e militar e no seu poderio atômico, sem chegar a algum tipo de entendimento com o outro poder nuclear então existente, a União Soviética, uma vez que, a partir de certo ponto, a destruição assegurada pela multiplicação de ogivas nucleares torna ilusória qualquer tentativa de first strike ou mesmo de sobrevivência física, após os primeiros lançamentos. Daí sua preocupação em reconfigurar a equação dos poderes – aproximando-se da China, por exemplo – e em chegar a um entendimento mínimo com a URSS, através dos vários acordos de limitações de armas estratégicas. O controle da proliferação nuclear também era essencial, assim como evitar que mais países se passassem para o lado do inimigo principal, a URSS (o que justifica seu apoio a movimentos e golpes que afastassem do poder os mais comprometidos com o lado soviético do equilíbrio de poder). Numa época de relativa ascensão da URSS, com governos declarando-se socialistas na África, Ásia e América Latina, a resposta americana só poderia ser brutal, em sua opinião, o que justificava seu apoio a políticos corruptos e a generais 277

comprometidos com a causa anti-comunista. Não havia muita restrição moral, aqui, e todos os golpes eram permitidos, pois a segurança dos EUA poderia estar em jogo, aos seus olhos. Ou seja, todas as acusações de Christopher Hitchens estão corretas – embora este exagere um pouco no maquiavelismo kissingeriano – mas a única justificativa de Henry Kissinger é a de que ele fez tudo aquilo baseado em decisões do Conselho de Segurança Nacional e sob instruções dos presidentes aos quais serviu. Não sei se ele deveria estar preso, uma vez que sua responsabilidade é compartilhada com quem estava acima dele, mas certamente algum julgamento da história ele terá, se não o dos homens, em tribunais sobre crimes contra a humanidade. Acredito, pessoalmente, que ele considerava as “vítimas” de seus muitos golpes contra a democracia e os direitos humanos como simples “desgastes colaterais” na luta mais importante contra o poder comunista da URSS, que para ele seria o mal absoluto. O julgamento de alguém situado num plano puramente teórico, ou “humanista” – como, por exemplo, intelectuais de academia ou mesmo jornalistas, para nada dizer de juízes empenhados na causa dos direitos humanos ou de “filósofos morais” devotados à “causa democrática” no mundo –, tem de ser necessariamente diferente do julgamento daqueles que se sentaram na cadeira onde são tomadas as decisões e tem, portanto, de julgar com base no complexo jogo de xadrez que é o equilíbrio nuclear numa era de terror, ou mesmo no contexto mais pueril dos pequenos golpes baixos que grandes potências sempre estão aplicando nas outras concorrentes, por motivos puramente táticos, antes que respondendo a alguma “grande estratégia” de “dominação mundial”. Desse ponto de vista, Kissinger jogou o jogo de forma tão competente quanto todos os demais atores da grande política internacional, Stalin, Mao, Kruschev, Brejnev, Chu Enlai, Ho Chi-min e todos os outros, ou seja, não há verdadeiramente apenas heróis de um lado e patifes do outro. Todos estão inevitavelmente comprometidos como pequenos e grandes atentados aos direitos humanos e aos valores democráticos. Não creio, assim, que ele tenha sido mais patife, ou criminoso, do que Pinochet – que ele ajudou a colocar no poder – ou de que os dirigentes norte-vietnamitas – que ele tentou evitar que se apossassem do Vietnã do Sul (e, depois, jogou a toalha, ao ver que isso seria impossível cumprir pela via militar, ainda que, na verdade, os EUA tenham sido “derrotados” mais na frente interna, mais na batalha da opinião pública doméstica, do que propriamente no terreno vietnamita). Ou seja, Kissinger não “acabou” com a guerra do Vietnã: ele simplesmente declarou que os EUA tinham 278

cumprido o seu papel – qualquer que fosse ele – e se retiraram da frente militar. Seu legado também pode ser julgado como “comentarista” da cena diplomática mundial, como memorialista – aqui com imensas lacunas e mentiras, o que revela graves falhas de caráter – e como consultor agora informal de diversos presidentes, em geral republicanos (mas não só). Ele é um excelente conhecedor da História – no sentido dele, com H maiúsculo, certamente – e um grande conhecedor da psicologia dos homens, sobretudo em situações de poder. Trata-se, portanto, de um experiente homem de Estado, que certamente serviu ardorosamente seus próprios princípios de atuação – qualquer que seja o julgamento moral que se faça deles – e que trabalhou de modo incansável para promover os interesses dos EUA num mundo em transformação, tanto quanto ele tinha analisado no Congresso de Viena. Desse ponto de vista, pode-se considerar que ele foi um grande representante da escola realista de poder e um excelente intérprete do interesse nacional americano, tanto no plano prático, quanto no plano conceitual, teórico, ou histórico. Grandes estadistas, em qualquer país, também são considerados maquiavélicos, inescrupulosos e mentirosos, pelos seus adversários e até por aliados invejosos. Esta é a sina daqueles que se distinguem por certas grandes qualidades, boas e más. Kissinger certamente teve sua cota de ambas, até o exagero. Não se pode eludir o fato de que ele deixará uma marca importante na política externa e nas relações internacionais – dos EUA e do mundo – independentemente do julgamento moral que se possa fazer sobre o sentido de suas ações e pensamento. Por uma dessas ironias de que a História é capaz, coube a um dos presidentes mais ignorantes em história mundial (Ronald Reagan) enterrar, praticamente, o poder soviético com o qual Kissinger negociou quase de igual para igual durante tantos anos. Ele, que considerava o resultado de Viena um modelo de negociação – por ter sido uma paz negociada, justamente, não imposta, como em Versalhes – deve ter sentido uma ponta de inveja do cowboy de Hollywood, capaz de desmantelar o formidável império que tinha estado no centro de suas preocupações estratégicas – e que ele tinha poupado de maiores “desequilíbrios” ao longo dos anos. Seu cuidado em assegurar o “equilíbrio das grandes potências” saltou pelos ares com o keynesianismo militar praticado por Reagan, um desses atos de voluntarismo político que apenas um indivíduo totalmente alheio às grandes tragédias da História seria capaz. Talvez Kissinger tivesse querido ser o arquiteto do grande triunfo da potência americana, mas ele teve de se contentar em ser apenas o seu intérprete tardio. Nada mau, afinal de contas, para alguém que foi, acima 279

de tudo, um intelectual...

1894. “O legado de Henry Kissinger”, Brasília, 1 junho 2008, 5 p. Comentários sobre a obra prática e intelectual do estadista americano. Publicado em Mundorama.Net (Brasília, 31/05/2008): http://mundorama.net/2008/05/31/o-legado-de-henrykissinger-por-paulo-roberto-de-almeida/; em Meridiano 47 (n. 94, maio de 2008, p. 29-31; link: http://periodicos.unb.br/index.php/MED/article/view/1020/689). Reproduzido em Via Política (08.06.2008). Ensaio incorporado ao livro: Paralelos com o Meridiano 47: Ensaios Longitudinais e de Ampla Latitude (Hartford, 2015). Relação de Publicados n. 838.

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25. Pequena lição de Realpolitik

Seria totalmente justificado o mau (pré)conceito que carrega a Realpolitik no plano das atitudes possíveis de serem adotadas pelos estadistas e outros responsáveis pelas relações internacionais dos Estados modernos? Leva ela, necessariamente, a um comportamento egoísta no confronto com alternativas menos estado-cêntricas e mais voltadas para o bem comum da comunidade internacional? Mas será que existe, de fato, uma coisa chamada “comunidade internacional”? Estadistas responsáveis podem adotar outra postura que não a pragmática, focada no interesse nacional, quando se trata de administrar as relações exteriores de seus países? Vejamos o que seria possível argumentar em torno desse conceito numa espécie de curso concentrado. Realpolitik é mais um método do que uma doutrina, completa e acabada. Ela pode ser vista como uma escola de pensamento que não é boa, ou má, em si, e sim que pode, ou não, servir os interesses daqueles que presumidamente se guiam por seus “princípios”, algo vagos, de análise e de ação. O que ela quer dizer, finalmente? A rigor, trata-se de um simples cálculo utilitário, baseado nos interesses primários de um país, um Estado, um indivíduo. Ela tende a considerar os dados do problema e não se deixa guiar por motivações idealistas, generosas ou “humanitárias” de tal decisão ou ação, mas apenas e exclusivamente pelo retorno esperado de um determinado curso de ação, que deve corresponder à maior utilidade ou retornos possíveis para o seu proponente ou condutor da ação. Como tal, ela responde a objetivos estritamente pragmáticos e “racionais”, num sentido estrito, de uma determinada interação humana, social ou estatal. Ela parte de um pressuposto básico, na vida ou na sociedade: indivíduos e grupos sociais guiam-se, basicamente, por seus instintos de sobrevivência ou por seus interesses imediatos de conforto, bem-estar, segurança, maximização de satisfação, de prazer ou de riqueza e poder, no caso de sociedades mais complexas. Não se pode negar que, nessa perspectiva, ela corresponde, aparentemente, à natureza humana, ou pelo menos a certa concepção da natureza humana, tal como vista pelos filósofos utilitaristas ou individualistas. O que oferece, em seu lugar, aquela que seria, presumivelmente, sua contrapartida teórica, ou até prática, a Idealpolitik? Esta, supostamente, se deixaria guiar por nobres ideais, altruística em seus princípios e motivações, generosa nas suas 281

interações e ações, voltada para o bem comum, a solidariedade, a elevação moral da humanidade e a promoção de valores vinculados aos direitos humanos, à democracia, ao primado do direito sobre a força, à construção de uma institucionalidade que supere, justamente, o interesse egoísta de indivíduos e Estados. Ainda que se possa conceber a existência, e mesmo a atuação, de indivíduos, instituições e Estados que se deixem guiar por tal conjunto de princípios e valores, não tenho certeza de que eles são seguidos na prática quando se trata do interesse maior de indivíduos e sociedades organizadas, que são os da sua segurança e da sua sobrevivência física. Em qualquer hipótese, algumas distinções são possíveis, e passíveis, de serem feitas e elas têm a ver com a organização geral das ações do Estado no plano exterior. Teoricamente, a “doutrina” idealista seria mais comprometida com a cooperação internacional – no plano bilateral ou multilateral – e com a promoção de instituições comprometidas com tal finalidade, atualmente representadas pela ONU (mesmo com toda a corrupção e desvios comprovados), ao passo que a “doutrina” realista teria unicamente como base o interesse egoísta dos Estados, fechados, portanto, a esforços de cooperação ampliada, assistência a necessitados ou promoção de interesses comuns da humanidade. Tal dicotomia é dificilmente encontrável na prática, pois todos os Estados, e indivíduos, acabam cooperando na prática, ainda que tratando de cuidar, primariamente, de seu interesse próprio. Finalmente, pode-se conceber uma Realpolitik “esclarecida” que, voluntariamente ou não, busca, de forma ativa ou secundária, a promoção de valores “altruísticos”, uma vez que eles poderiam ser funcionais, em última instância, para a promoção e a manutenção do interesse próprio do Estado ou do indivíduo em questão. Ou seja, a busca do “bem” redundaria em maior bem primeiramente para o seu promotor. Estas considerações, necessariamente de cunho generalizante ou conceitual, não têm muito a ver com realizações práticas, ou correntes, de alguma Realpolitik em ação, “esclarecida” ou não. Normalmente se tende a identificar o exercício desse tipo de política com manifestações práticas de “diplomacia blindada” de alguma grande potência, na suposição de que apenas potências dominantes têm condições de cuidar de seu interesse próprio de maneira egoísta ou arrogante, o que é um entendimento enviesado, ou capcioso, do que seja Realpolitik. Por certo, pequenos Estados ou indivíduos desprovidos de poder próprio não têm condições de impor sua vontade aos demais, daí a identificação da Realpolitik com a política de poder. A rigor, qualquer 282

indivíduo ou Estado pode tentar exercer seu quantum de Realpolitik, embora dentro de limites próprios à sua liberdade de ação (ou de reação). Para tocar num exemplo sempre invocado de doutrina “realista” do interesse nacional, num sentido estreitamente egoísta e unilateral, referência é feita à chamada “doutrina Bush” de ação preventiva, com vistas a antecipar a qualquer iniciativa por parte de Estados inimigos ou grupos terroristas de atacar os EUA, o que justificaria, aos olhos de seus dirigentes, um ataque preventivo contra esses supostos inimigos. Ao mesmo tempo, caberia lembrar que essa doutrina vem sendo apresentada ou vem “envelopada” num conjunto de argumentos justificadores da ação americana, condizentes, supostamente, com uma visão mais “altruística” das relações internacionais, posto que identificada com a promoção da democracia, a defesa dos direitos humanos – em especial da mulher –, a capacidade de iniciativa individual no plano econômico, a liberdade religiosa e vários outros elementos de natureza supostamente “iluminista”. Que isto esteja sendo feito por bombas e ocupação militar, e não por professores e missionários, poderia ser visto como secundário do ponto de vista da escola “realista”, embora não o seja para os “destinatários” da ação: afinal de contas, parece difícil implementar a democracia na ponta dos fuzis, ou mediante canhões e mísseis. Desse ponto de vista, a visão e a ação de Kissinger pareciam sinceras, ainda cinicamente realistas: ele não pretendia “melhorar” o mundo, apenas torná-lo suportável no plano dos interesses nacionais americanos, o que já lhe parecia um programa realisticamente enorme (em face dos perigos percebidos, reais ou ilusórios). A Realpolitik, portanto, recomendaria deixar cada povo cuidar dos seus afazeres, sem interferência dos demais, até o limite dos efeitos indiretos sobre a segurança de outros da soberania exclusiva assim exercida (ou seja, eventuais spillovers da potestade interna exercida de maneira excludente). Atualmente se invoca, ao lado do “dever de ingerência” – que seria a intervenção direta nos assuntos internos de outros Estados em caso de graves atentados aos direitos humanos – o chamado princípio da “não-indiferença”, que seria uma motivação altruística para exercer a cooperação ativa em prol do bem estar de povos menos bem aquinhoados pela natureza ou pela sua organização estatal ou social. A diferença entre um e outro estaria em que, no primeiro caso, a intervenção se daria contrariamente aos desejos ou capacidade de reação do Estado em questão, ao passo que no segundo, em total concordância e em cooperação com seus dirigentes. 283

Num primeiro caso, teríamos, então, a Realpolitik bem intencionada, no segundo a Idealpolitik explícita e aberta. O que se deve julgar, na verdade, é a eficiência das ações empreendidas com relação a objetivos bem determinados: no primeiro caso, o possível resultado é o salvamento de pessoas que de alguma forma pereceriam na ausência de intervenção, o que significa, simplesmente, a diferença entre a vida e a morte. No segundo caso, as ações altruísticas empreendidas podem ser rigorosamente inócuas, caso a não indiferença se exerça em direção de objetivos secundários ou totalmente marginais em relação aos verdadeiros problemas do país ou sociedade assim beneficiados com tal ação humanitária. Não há, como se vê, um critério uniforme para se julgar princípios de ação, ou suas motivações teóricas: o que existem são situações objetivas e resultados tangíveis, em função dos quais julgar da efetividade de iniciativas e empreendimentos tomados por estadistas. O realismo e o idealismo podem ser invocados em circunstância diversas, e produzirem resultados totalmente contraditórios, em função dos objetivos pretendidos e dos meios mobilizados. O que teria Kissinger a ver com isto, finalmente? Provavelmente nada, a não ser a perspectiva da história profunda e o sentido da razão, sempre bons conselheiros em matéria de políticas de Estado, em qualquer área que se pretenda atuar. Com todo o seu realismo cínico, Kissinger foi provavelmente um estadista altamente eficiente do ponto de vista dos interesses egoístas – portanto realistas – dos EUA. Teria sido ele tão eficiente assim caso tivesse sido, hipoteticamente, guindado à frente das Nações Unidas, num papel de cunho profundamente altruístico e humanitário? Provavelmente não, pois lhe faltaria a alavanca necessária para ser bom (ou mau, com os ditadores), segundo as circunstâncias: o poder de ordenar e de ser obedecido. Não é segredo para ninguém que a ONU, com todos os seus bons princípios – e a despeito de uma maquinaria emperrada, por vezes corrupta – não é sequer capaz de fazer cumprir seus objetivos prioritários, e ela não o será pelo futuro previsível. Isto talvez seja uma demonstração cabal de que o realismo prático, com todos os seus supostos defeitos congenitais, ainda constitui uma boa alavanca para a ação. Talvez, então, a melhor combinação possível, se as escolhas nos são dadas, fosse armar-se de uma doutrina inspirada nos bons princípios da Idealpolitik, ao mesmo tempo em que, no terreno da ação prática (e efetiva), buscaríamos guiar-nos pelos velhos e surrados princípios da Realpolitik. Acredito que mesmo um cínico como Kissinger não desgostaria desta combinação. Provavelmente é mais fácil propor do que 284

implementar tal tipo de mini-max, ou seja, uma mistura de boas intenções com uma mão de ferro na sua consecução: poucos seriam capazes de fazê-lo, talvez apenas os “realistas-idealistas”. Ou serão os “idealistas- realistas”? Grande questão...

1895. “Pequena lição de Realpolitik”, Brasília, 2 junho 2008, 5 p. Digressões rápidas sobre esse conceito e o seu oposto, a Idealpolitik. Publicado em Mundorama.Net: http://mundorama.net/2008/06/05/pequena-licao-de-realpolitik-por-paulo-robertode-almeida/; em Meridiano 47 (Brasília: nr. 95, junho 2008, p. 2-4; ISSN: 15181219; link: http://periodicos.unb.br/index.php/MED/article/view/922/584); Via Política (7.07.2008). Ensaio incorporado ao livro: Paralelos com o Meridiano 47: Ensaios Longitudinais e de Ampla Latitude (Hartford, 2015). Relação de Publicados n. 842.

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26. Estratégia Nacional de Defesa: comentários dissidentes

A Estratégia Nacional de Defesa (END), divulgada pelo governo brasileiro (https://www.defesa.gov.br/eventos_temporarios/2008/estrategia_defesa_nacional.pdf) em 18 de dezembro de 2008, mereceu, de imediato, comentários diversos de observadores e especialistas, e algumas avaliações superficiais na imprensa. A maior parte dos comentários apresentou um tom positivo, por se tratar de uma iniciativa no sentido da transparência e da abertura de um debate com a sociedade, em geral, e com os estudiosos da área em particular. Sem pretender me colocar entre estes últimos, desejo oferecer, igualmente, alguns comentários preliminares sobre o documento em questão, baseados inteiramente em minhas primeiras impressões de leitura, sem que eu tenha tido a oportunidade, até este momento (11 de fevereiro de 2009), de conhecer opiniões ou análises mais fundamentadas sobre tal documento, ou, pessoalmente, de efetuar eu mesmo um exame mais aprofundado do mesmo. Reconheço, de imediato, as mesmas características positivas no fato de que “um” documento – quaisquer que sejam suas qualidades intrínsecas – sobre esse aspecto importante da vida nacional (com repercussões internacionais) tenha sido divulgado. Pretendo, contudo, ressaltar, ou destacar, apenas aspectos que me parecem problemáticos nesse documento, sem desconsiderar que ele possa, de fato, apresentar uma contribuição relevante para um debate qualificado nessa área, ademais de suas implicações práticas para a defesa nacional e a política externa do Brasil. Meus comentários, como já indicado no subtítulo, prenunciam uma posição mais crítica do que favorável, e até num sentido iconoclasta, mas sem qualquer espírito destrutivo, ou puramente negativo, preservando, ao contrário, minha tradicional honestidade intelectual e, tanto quanto possível, minha objetividade analítica. 1. Características gerais Uma leitura, mesmo superficial, do documento em questão, permite detectar, antes de mais nada, uma filosofia geral, não muito diferente daquela que perpassa a vida nacional em outras esferas de orientação política ou econômica. Trata-se de um documento que coloca o princípio da independência nacional como vetor absoluto de qualquer posicionamento em matéria de segurança e defesa. Independentemente, portanto, de suas outras qualidades setoriais, e até de planejamento global dessa 286

importante interface das relações do Brasil – e essas outras qualidades existem, mas não serão enfatizadas aqui –, cabe destacar em primeiro lugar esse elemento gaullien, ou gaulliste, do documento, que pode ser resumido em alguns poucos conceitos: a filosofia global do documento, a que mais revela a visão do mundo (Weltanschauung) de seus formuladores, portanto, é a do soberanismo e, sobretudo, a do nacionalismo. Não há muita novidade nesse particular, pois que o Brasil sempre foi, desde o início da República, pelo menos, um país essencialmente soberanista e nacionalista; esta última característica foi bem mais acentuada a partir da era Vargas. Esse aspecto, normal e até ‘obrigatório’ para os defensores oficiais da pátria, apresenta outro problema ao tratar do planejamento, produção e utilização de “bens” de defesa, quaisquer que sejam eles, posto que o elemento básico de ‘edifício securitário e dissuasório’ passou a ser o da autonomia absoluta, quaisquer que sejam os custos explícitos e implícitos – ou seja, o custo-oportunidade, em linguagem econômica – dessas opções fundamentais da estratégia ‘nacional’ de defesa (e o qualificativo central assume aqui toda a sua carga de obrigatoriedade, em sentido estrito e lato). Esta outra característica, econômica, deve ser sublinhada de imediato e com a maior ênfase, pois que implicando em toda uma problemática que não tem tanto a ver com a substância em si das escolhas básicas em matéria de estratégia, mas decisiva na definição dos meios. Ela é a seguinte: independentemente dessas escolhas, é um fato que o documento em si não foi feito por economistas, não recebeu uma análise de algum ‘espírito econômico’, nem pretende prestar contas de seus custos econômicos para o país e a sociedade. Simplificando ao extremo – mesmo sob o risco de ver o documento transformado em caricatura dele mesmo – eu diria que o documento é completamente antieconômico, não apenas por propor uma estratégia grandiosa, inalcançável no plano dos recursos disponíveis, mas sobretudo por propor um caminho de realização dessa estratégia que não leva em conta o princípio básico da escassez de recursos, ou se o leva, o faz apenas como uma espécie de gradualismo orçamentário. Existe, obviamente, uma razão de ordem prática, ou seja, econômica, para que a END não possa ser aplicada; ou mesmo que, se ela for eventualmente aplicável – viabilizada pelos procedimentos legislativos e orçamentários em um Estado democrático normal –, ela não consiga ser colocada em vigor em toda a sua plenitude. Para que isso ocorra, seria provavelmente necessário mais do que um PIB inteiro – sem que um valor preciso possa ser de fato estimado – para que toda a imensa ambição da END seja integralmente implementada. Não se pretende no espaço limitado deste 287

comentário elaborar a propósito da total anti-economicidade da END; apenas confirmar que essa característica não se prende apenas ao documento, mas perpassa o conjunto de atitudes e de políticas econômicas brasileiras desde muito tempo, estando, portanto, entranhadas, na própria ‘ideologia nacional desenvolvimentista’, subjacente a todo o documento. Qualquer que seja a postura política que se possa ter em relação a essa ‘ideologia’, e sua interação com a END (qualquer que seja ela, esta, ou uma outra) uma abordagem metodologicamente apropriada a uma política nacional tão importante quanto esta não poderia dispensar uma rigorosa análise econômica de sua efetividade e adequação a uma estratégia nacional de desenvolvimento econômico e tecnológico (e, por extensão, social). Esta não é, contudo, a objeção maior que se possa fazer ao documento, e ao modo de pensar de seus formuladores, ainda que ela seja decisiva no plano dos meios e das possibilidades. Essa objeção tem a ver com a sua inocuidade ou, ao menos, a sua inadequação aos propósitos prioritários que o próprio documento estabelece. 2. Características específicas A outra grande deficiência do documento é o fato de que, mesmo sendo a END hipoteticamente implementável – supondo-se que existissem meios infinitos e nenhum constrangimento orçamentário – ela não teria os efeitos que seus propositores pretendem, ou apenas teria ‘certos’ efeitos, característicos, precisamente, de sua concepção fundamental: soberanista, nacionalista, autonomista no mais alto grau, ignorando não apenas a interdependência econômica contemporânea, como também os propósitos maiores da política externa brasileira, seja em sua dimensão regional, seja em seus objetivos multilaterais e internacionais. A END pretende dar prioridade a duas ‘Amazônias’, a verde e a azul, como se os principais problemas da defesa, da segurança ou da estratégia dissuasória do Brasil estivessem concentrados nessas duas regiões. Aliás, o documento falha em identificar claramente onde estariam essas ameaças, como se o conceito de defesa não implicasse em seu complemento necessário: contra o quê, exatamente, ou contra quem? As ameaças são classificadas como difusas; mas aqui e ali perpassa a idéia de que seria uma potência (ou uma coalizão de potências) dotada de meios ofensivos superiores (um claro eufemismo para os EUA e países europeus). Não se considera, por exemplo, que os centros nevrálgicos da economia e das decisões nacionais se encontram distribuídos 288

em uma faixa litorânea de 200km ao longo da costa atlântica, ou que nossas fragilidades são bem mais internas do que externas. Os problemas principais, contudo, derivam do fato de que, em todos os vetores que a END considera como essenciais, o espacial, o cibernético e o nuclear, uma estratégia puramente nacional, autonomista e soberanista, como a proposta no documento, redundaria em custos indefinidos, prazos extremamente delongados ou impasses ou obstáculos tecnológicos previsíveis. As dificuldades não parecem impressionar os autores do documento, que desprezam ou minimizam a necessidade de cooperação externa no que se refere ao know-how para os primeiros dois vetores, ou colocam de lado os constrangimentos internacionais no que se refere ao vetor nuclear. O documento parte da suposição de que os parceiros externos, indefinidos, saberão se acomodar ao desejo brasileiro de obter acesso à tecnologia, sem o que essas parcerias presumivelmente não existirão. Em outros trechos, onde se fala de ‘parceiros’, estes são identificados a países emergentes, com os quais se realizará outro dos objetivos prioritários do atual governo brasileiro: a reforma das instituições internacionais, em especial dos organismos econômicos. No plano internacional, justamente, o documento falha em vincular o outro grande objetivo internacional do governo brasileiro: a assunção de uma cadeira permanente no CSNU e o aumento da presença brasileira no cenário internacional. Se este é um objetivo factível – o que parece muito duvidoso – então a END não parece adaptada aos requisitos e necessidades de uma maior inserção do Brasil nas operações de peace-making e de peace-keeping da ONU, ou até de uma ação independente em determinados teatros especiais. 3. O problema regional e a questão hemisférica O documento quase não trata das grandes prioridades da atual política externa brasileira: o reforço do Mercosul e a integração política e física da América do Sul; mas quando o faz, as menções são puramente retóricas, sem a perspectiva de uma integração real, igualitária. Os vizinhos são basicamente considerados como clientes potenciais da indústria brasileira de defesa, totalmente independente, cabe lembrar. A integração seria algo puramente instrumental para viabilizar economias de escala para essa indústria, diluindo assim os custos entre um número maior de clientes, ou de dependentes (condição que se recusa para o próprio Brasil). O famoso Conselho de Defesa Sul-Americano – que não é bem de defesa, mas simplesmente de 289

coordenação da segurança regional – parece ter sido criado para servir a esses mesmos objetivos, e sua característica mais realçada é a de que ele seria conduzido sem qualquer parceiro externo à própria região. Esse ‘isolamento’ dos EUA – como se tal fosse possível – parece resultar de dois elementos combinados, a partir de dois vetores completamente diferentes: por um lado, a tradicional necessidade militar de definir ‘ameaças’ credíveis – e não se concebe qualquer outra ameaça efetiva na região, depois da normalização das relações com a Argentina – agora parcialmente coberta pela figura da ‘potência superior’; por outro lado, o anti-imperialismo infantil, e completamente démodé, de setores políticos da base de sustentação do governo e da esquerda acadêmica esclerosada. Esse exclusivismo regional, à exclusão do grande irmão hemisférico, e a política de aproximação do Brasil com parceiros ‘emergentes’ ditos estratégicos – como a Índia, por exemplo – podem vir a ser fontes de problemas na estratégia brasileira de integração regional, na área política e de segurança, inclusive porque isso tem implicações para os problemas da cadeira no CSNU e da opção nuclear. É relevante registrar que, para que o Brasil pudesse realizar seus objetivos regionais, sobretudo o da integração sub-regional e da sul-americana – que supostamente são os mais valorizados pela diplomacia brasileira e a própria base da cooperação regional no terreno da segurança, e talvez da defesa –, o Brasil precisaria utilizar-se muito mais dos elementos de soft power da economia do que aqueles de hard power, pelo lado da defesa. Na verdade, o Brasil já possui, teórica ou hipoteticamente, as condições potenciais para praticar soft power na região, não o fazendo, por razões históricas e políticas. Esse soft power estaria baseado na abertura irrestrita do seu mercado interno a todos os vizinhos sul-americanos, de forma integral e incondicional – vale dizer, sem qualquer exigência de reciprocidade – e na concepção e implementação de imenso esforço de cooperação bilateral com cada um deles (acolhendo bolsistas no Brasil e desenvolvendo projetos nesses países); cabe considerar, ademais, o papel crucial do investimento direto brasileiro na região, essencialmente a cargo do setor privado (eventualmente estimulado por políticas governamentais) e de uma ou outra estatal (Petrobras). O fato é que o Brasil não exercerá esse soft power, seja porque o país é naturalmente protecionista, seja porque os arranjos do Mercosul não o permitiriam, nas atuais condições. 290

A questão hemisférica, por sua vez, tem a ver com as relações do Brasil com o ‘império’, atualmente considerado uma presença nitidamente não desejável na região, sequer como parceiro (a menos que seja como fornecedor complacente da tecnologia necessária à capacitação brasileira em defesa). Pode-se até conceber essa ‘opção’ como uma derivação lógica – ainda que não assumida publicamente, por notórias implicações políticas – da antiga tese do chanceler Rio Branco quanto a uma divisão de tarefas no hemisfério: o império fica com o norte (aqui compreendendo todo o Caribe e América Central) e o Brasil se ‘ocupa’ da América do Sul. Mesmo admitindo que esse tipo de ‘missão compartilhada’ seja admissível ou possível, na prática – com todos os problemas ligados a uma suposta liderança brasileira na região – ela não resolve nenhum dos demais problemas vinculados à presença internacional brasileira ou, sobretudo, ao CSNU, que passam inevitavelmente por uma ‘boa relação’ de cooperação ativa com o império (algo ainda não admitido até aqui). 4. Problemas residuais e conclusão provisória Sem pretender aprofundar, neste momento, todos os problemas relevantes da END – inclusive o das ‘ferramentas’ que poderiam, ou não, ser funcionais para essa estratégia particular, entre elas o submarino nuclear, algum eventual porta-aviões ou outros instrumentos de projeção externa – caberia mencionar, mesmo rapidamente, dois outros problemas relevantes que também têm a ver mais com a ‘filosofia’ do documento do que propriamente com os meios e fins dessa concepção de defesa. O primeiro tem a ver com a opção confirmada por um ‘serviço militar obrigatório’, aliás, acrescido de um recrutamento universal (quem não fosse aproveitado no ‘equalizador republicano’, iria para um equivalente civil). Esta opção parece decorrer mais de necessidades da força de terra, do que dos requerimentos das duas outras forças, que aparentemente se acomodariam – ou mesmo desejariam – a alternativa de forças totalmente profissionais e exclusivas. Opções de maior flexibilidade operacional recomendariam, provavelmente, a consideração da estratégia profissional para alguns tipos de missões militares (propriamente estratégicas), reservando-se o serviço universal para essa ocupação de ‘terreno republicano’ no grande espaço do Brasil ainda subdesenvolvido, como deseja certa ideologia pretensamente classista no documento. Aliás, o documento trai suas origens mais sociológicas do que propriamente institucionais ao mencionar expressamente o objetivo de incorporar todas as ‘classes sociais” a esse projeto pretensamente republicano: trata-se, provavelmente, da primeira 291

vez que o Estado brasileiro trabalha com o conceito de classes sociais, em lugar de um equivalente verdadeiramente universal e igualitário, o de cidadãos, ao pretender formular uma política pública relevante. O segundo problema tem a ver com a velha questão nuclear. Ademais de referirse às possibilidades energéticas e tecnológicas do vetor nuclear, a END parece lamentar, em duas passagens, o abandono pelo Brasil dessa possibilidade ‘militar’: o Brasil “privou-se da faculdade de empregar a energia nuclear para qualquer fim que não seja pacífico”, e “proibiu-se a si mesmo o acesso ao armamento nuclear”, o que revela, provavelmente, alguma inclinação dos formuladores do documento. Inconsciente ou deliberadamente, esse tipo de linguagem pode representar uma eventual tentativa de deixar a opção aberta, caso novos desenvolvimentos internacionais, do lado do TNP, tornem viável ou factível alguma futura revisão constitucional no plano nacional. Esse ‘desejo secreto’ pode revelar-se problemático no plano internacional e até no regional, inclusive porque está expressamente dito que o Brasil “não aderirá a acréscimos ao TNP destinados a ampliar as restrições do Tratado sem que as potências nucleares tenham avançado na premissa central do Tratado: seu próprio desarmamento nuclear”. Essa posição é uma espécie de prolongamento da recusa do TNP mantida durante 30 anos pelos estrategistas – militares e diplomáticos – brasileiros em relação a esse vetor considerado fundamental de qualquer estratégia dissuasória no plano mundial. Finalmente, cabe registrar, mais uma vez, o aspecto positivo da divulgação da END, pelo simples fato de existir e de permitir debates públicos em torno de ‘uma’ END e, sem pretender retomar um chavão que diria que ‘uma outra END é possível’, sublinhe-se apenas que ela começa o debate sobre onde, e com que instrumentos, o Brasil quer chegar em matéria de defesa e de segurança estratégica. Com a atual conformação nacionalista, soberanista, autonomista e arrogantemente tutelar no plano regional, sem mencionar a rejeição preventiva da ‘cooperação imperial’, pode-se legitimamente perguntar se jamais o Brasil chegará ao ponto indicado na END. A grande ambição da atual END é, provavelmente, o ideal do ponto de vista dos militares: pergunta-se apenas se ela é factível e se é essa a END que interessa ao Brasil, como nação integrada à região e ao mundo. O tema permanece sob exame.

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1984. “Estratégia Nacional de Defesa: comentários dissidentes”, Brasília, 11 de fevereiro de 2009. 7 p. Observações preliminares ao documento liberado em dezembro de 2008 pelos ministros da Defesa e de Assuntos Estratégicos. Publicado em Mundorama (14.03.2009; link: http://mundorama.net/2009/03/14/estrategianacional-de-defesa-comentarios-dissidentes-por-paulo-roberto-de-almeida/). Republicado em Meridiano 47 (n. 104, março de 2009, p. 5-9; link: http://sites.google.com/a/mundorama.net/mundorama/biblioteca/meridiano47/sumariodaedicaono104-marco2009/Meridiano_104.pdf?attredirects=0), no site da Universidade Federal de Juiz de Fora, seção Defesa (20.03.2009; link: http://www.ecsbdefesa.com.br/defesa/fts/ENDCD) e no site português Jornal Defesa e Relações Internacionais (19.03.2009; link: http://www.jornaldefesa.com.pt/noticias_v.asp?id=689). Complementada em novembro de 2009, pelo trabalho 2066. Ensaio incorporado ao livro: Paralelos com o Meridiano 47: Ensaios Longitudinais e de Ampla Latitude (Hartford, 2015). Relação de Publicados n. 895.

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27. A Arte de NÃO Fazer a Guerra: novos comentários à END

“Vemos, então, em primeiro lugar, que em todas as circunstâncias a guerra deve ser vista não como algo independente, mas como um instrumento político; e é apenas tendo esse ponto de vista que podemos evitar nos colocarmos em oposição a toda a história militar. (…) Portanto, o primeiro, maior e mais decisivo ato de um estadista ou de um general consiste em entender o tipo de guerra em que está envolvido, não a tomando por outra coisa nem desejando que fosse algo que, pela natureza da situação, nunca poderá ser. Esta é, em consequência, a primeira e a mais abrangente de todas as questões estratégicas.” Clausewitz, Sobre a Guerra, 1832. ∗

Aparentemente, os estadistas do Brasil (se é que os há) e os seus generais (estes certamente existem) ainda não conseguiram entender a natureza da ‘guerra’ em que o Brasil estaria supostamente envolvido, se é que existe algo parecido a uma guerra na qual o País poderia estar envolvido; do contrário, seus formuladores não teriam concebido um documento tão idealista e tão distante dos desafios colocados ao País e alheio à realidade efetiva das coisas – la verità effetuale delle cose, como diria Maquiavel – quanto a Estratégia Nacional de Defesa (END). Minha intenção, no presente trabalho, seria a de retomar a discussão em torno desse documento, esforço já iniciado em um ensaio anterior, de natureza prioritariamente formal.30 O documento conjunto do Ministro da Defesa e do Secretário de Assuntos Estratégicos da Presidência da República, divulgado originalmente em dezembro de 2008, deveria ser, alegadamente, a base do pensamento estratégico do Brasil, mas deveria oferecer, também, uma espécie de guia operacional e um manual de reequipamento de suas Forças Armadas (FFAA), com vistas à consecução dos objetivos básicos nacionais. Estes objetivos, por sua vez, poderiam ser resumidamente apresentados assim: a salvaguarda da soberania nacional, a preservação da integridade territorial e da independência política do país, a autonomia tecnológica e o

Clausewitz, Sobre a Guerra, 1832, parágrafo 27, “Influência desta concepção sobre o entendimento correto da história militar, e sobre os fundamentos da teoria”, do Livro I: “Sobre a Natureza da Guerra”, da tradução de J. J. Graham, de 1873 (disponível neste link: http://www.clausewitz.com/readings/OnWar1873/BK1ch01.html). 30 Ver Paulo Roberto de Almeida, “Estratégia Nacional de Defesa: comentários dissidentes”, Mundorama (14.03.2009; link: http://mundorama.net/2009/03/14/estrategia-nacional-de-defesacomentarios-dissidentes-por-paulo-roberto-de-almeida/). ∗

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desenvolvimento econômico e social, o que caberia assegurar num contexto internacional ainda marcado por fortes assimetrias entre os Estados, bem como por ameaças latentes e por desafios difusos à defesa nacional. Pois bem, sinto dizê-lo, mas a END, a despeito de seu nome e de seus nobres objetivos, não é bem uma estratégia e tampouco se destina, em sua conformação atual, à defesa do país. Ela é, no máximo, nacional, aqui com toda a ênfase desejada por seus formuladores e à exclusão de suas outras características mais esdrúxulas, que tentaremos examinar nestes novos comentários, que se seguem às minhas primeiras observações sobre o tema. Se ela não é nem uma estratégia e muito menos de defesa, ela deveria ser, ao menos, um documento minimamente racional, em torno do qual poderiam ser articulados idéias e argumentos favoráveis e desfavoráveis ao seu espírito e objetivos. Examinaremos aqui se ela cumpre essa função primordial. Suspeito que os defensores da END se mostrarão enfastiados, e talvez mesmo agastados comigo, por tratar de maneira tão depreciativa um documento que eles parecem ter em alta conta, como representativo, supostamente, de um grande referencial teórico, uma espécie de manual prático essencial à estratégia de defesa nacional. No entanto, a despeito de suas boas intenções, ele consiste, tão somente, de um documento propositivo, uma assemblagem passavelmente heteróclita, dotada de algumas sugestões úteis no terreno do reequipamento militar das FFAA, mas caracterizada por vários problemas de concepção e, sobretudo, por uma falta de adequação ao mundo real dos conflitos potenciais nos quais possa vir a estar envolvido o Brasil. Em minha opinião, esse documento, em seu formato atual, não passa no teste proposto por Clausewitz na frase destacada em epígrafe, isto é, a de uma correta definição de qual seja o tipo exato de guerra com que poderia se defrontar o país. Entender a guerra enquanto “instrumento político” seria a primeira missão dos estadistas e dos generais brasileiros, mas a END deixa essa questão num completo vazio estratégico, sem qualquer definição quanto a cenários ou ‘adversários’. Talvez Clausewitz fosse muito exigente na formulação de padrões para o ‘seu’ tratamento da teoria militar, estabelecendo rigorosos princípios de planejamento e de ação no terreno para os ‘seus’ generais, princípios que talvez não tenham aplicação ao caso brasileiro. Em todo caso, o documento em exame constitui um ajuntamento pouco objetivo de idéias vagas sobre a defesa – não sendo seguro que se trata bem da defesa do Brasil – sendo mais bem uma coleção ou lista genérica de aquisições militares para 295

as três forças singulares nos anos à frente (se os orçamentos futuros do governo brasileiro assim o permitirem, o que, contudo, é altamente duvidoso). Meu propósito, nestes novos comentários dissidentes, é duplo: (a) no plano analítico-conceitual, operar uma desconstrução intelectual das bases filosóficas – se o termo se aplica – da END; (b) no plano prospectivo, oferecer algumas reflexões sobre o que deveria conter uma END que constituísse, verdadeiramente, uma estratégia e que fosse, consequentemente, de defesa, duas qualidades que, repito, a END ainda não consegue atender. Ela se contenta, no momento, em ser nacional, como referido, no sentido mais prosaico desse termo. Vejamos a END com maior grau de detalhe. 1. Por que a END não é uma estratégia? A primeira pergunta que um estadista deve formular a si mesmo gira em torno dos grandes objetivos nacionais e dos meios adequados para a sua consecução, em um prazo razoável. Esse exercício implica, necessariamente, uma visão do mundo – que não é a Weltanschauung abstrata de um de seus formuladores – e uma definição de possíveis cenários de guerra, dois aspectos que não figuram, em absoluto, na END. Desse ponto de vista, a END falha em atender essas exigências minimalistas, ou o faz apenas em intenção. Aplicada a questão ao Brasil, o que teríamos? A resposta é simples e ela é fornecida pela própria END: os autores começam por confundir estratégia de defesa com estratégia de desenvolvimento. Estratégia nacional de defesa é inseparável de estratégia nacional de desenvolvimento. Esta motiva aquela. Aquela fornece escudo para esta. Cada uma reforça as razões da outra. Em ambas se desperta para a nacionalidade e constrói-se a Nação. Defendido o Brasil terá como dizer não, quando tiver que dizer não. Terá capacidade para construir seu próprio modelo de desenvolvimento. Os que acreditam nesse tipo de assertiva, também acreditam que gastos com defesa é que impulsionam o desenvolvimento, o que representa acreditar, em outro contexto, que são os gastos do Pentágono que impulsionam a prosperidade e a inovação dos EUA, uma notável inversão do processo real. No caso do Brasil, descontada a ridícula retórica da construção da Nação – depois de quase 200 anos de independência parece que o Brasil ainda não encontrou o seu caminho, ou pelo menos alguns dos seus supostos estadistas ainda não encontraram o seu –, o que se tem aqui é uma formidável confusão entre defesa e desenvolvimento, como se este último – que, ao que parece, 296

carece de um modelo ideal, filosófico, se podemos dizer – devesse ser definido apenas com base naquela. Seus formuladores padecem de algum complexo de inferioridade, implícito à posição do país no contexto internacional, pois precisam ser “do contra”. Trata-se, manifestamente, de gente com vontade de dizer não, sem que se saiba bem a quem ou por quê, exatamente. Dizer não em abstrato é o mesmo que lutar contra incertas ‘forças da natureza’. Todo o documento é vago, em suas premissas e em suas definições, quanto a que defesa se pretende: contra o quê, exatamente, ou contra quem, mais precisamente? Ora, a defesa é uma parte, apenas, do que constitui uma nação; essa parte pode ser, alternativamente, mais ou menos importante em função do contexto histórico preciso e do cenário geopolítico concreto no qual se insere essa nação: algumas terão na defesa seu principal motivo de preocupação (nações cercadas de potências hostis ou potencialmente conquistadoras, como, por exemplo, bárbaros batendo as portas das cidades ou derrubando suas muralhas externas, como no caso da China e suas hordas de mongóis e manchus conquistadores); outras nações podem ser neutras (como alguns Estados tampões entre grandes potências), ou, então, naturalmente protegidas de ataques inesperados, dadas suas dimensões geográficas continentais (os EUA, por exemplo, um continente com dois oceanos, ou, talvez, o próprio Brasil; não é certamente o caso da China, que, a despeito de suas dimensões continentais, tem como vizinhos potências nucleares ao norte e ao sul). O desenvolvimento, por sua vez, interessa a toda a nação, ou concerne, pelo menos, todos os seus fatores de produção, sua capacidade transformadora, seus recursos humanos, suas instituições de governança, suas relações exteriores (aqui, sobretudo na área econômica), enfim, um processo múltiplo e multifacetado de transformações estruturais e de crescimento sustentado que vai muito além do que constitui a defesa ou uma estratégia de segurança nacional. Muitos acreditam que tudo isso depende da definição de um “modelo de desenvolvimento”, pré-concebido por alguns ‘luminares da nação’, apresentado e aprovado democraticamente pelo conjunto da sociedade (nos momentos constituintes por exemplo). Trata-se de uma pretensão acadêmica, típica dos que concebem a si mesmos como geniais formuladores da grande estratégia nacional, e que raras vezes figurou nos planos de qualquer país hoje tido como desenvolvido. “Modelo” é uma construção puramente conceitual, necessariamente ex-post e geralmente constituído por uma simples racionalização analítica de alguns elementos bem sucedidos ao cabo de um processo sustentado de crescimento e de mudanças 297

estruturais, implicando – cela va de soi – a passagem a uma sociedade capaz de gerar respostas próprias aos desafios colocados pelo ambiente em que vive (normalmente embutindo inovações de natureza tecnológica). Eximindo-se de uma definição concreta de quais sejam as ameaças e desafios externos, parece totalmente supérflua uma afirmação deste tipo contida na END: “Difícil – e necessário – é para um País que pouco trato teve com guerras convencer-se da necessidade de defender-se para poder construir-se”. Esse tipo de hegelianismo militar pode agradar os militares, que estão sempre buscando motivos legitimadores de suas existência (e gastos), mas o argumento é circular e autossuficiente: a construção da Nação passa pela defesa, uma afirmação gratuita que se encerra em si mesma. Há uma notável inversão do que seja o desenvolvimento: é a defesa que irá capacitar o País, não a sua capacitação decorrente do processo de desenvolvimento que pode fornecer elementos úteis à sua defesa. Não existe uma verdadeira estratégia definida no documento, mas apenas algumas formulações másculas, que constituem mera retórica vazia: “Projeto forte de defesa favorece projeto forte de desenvolvimento.” O grande conceito unificador de toda essa retórica vazia é o de “independência nacional”, o motivo básico da existência da nação, que os formuladores da END dão por ameaçada, do contrário não se preocupariam tanto com ela. Quando se invoca, repetidamente, independência e soberania nacional é porque não se tem certeza de que elas estão asseguradas de fato e na prática, isso traduz um desconforto psicológico quanto à fragilidade e vulnerabilidade da nação. Mas isto não quer dizer necessariamente que ela não tenha defesa, apenas traduz uma situação de desconforto com o não-desenvolvimento, percepção que permeia o discurso dos dirigentes nacionais desde a formação do Estado e a independência da nação (sim, o primeiro veio antes...). Se Clausewitz está certo – mas ele não deve ser considerado um estrategista infalível, muito menos eterno – os estadistas e generais brasileiros ainda não conseguiram definir que tipo de guerra poderia afetar o Brasil e, portanto, ainda não conseguiram definir uma estratégia nacional de defesa. A END é um arremedo do que deveria ser uma, e certamente não deveria ser confundida com uma estratégia nacional de desenvolvimento, mesmo se ela procura se legitimar dessa forma. Não tenho a pretensão de formular neste espaço uma estratégia completa de defesa (nacional ou não), e muito menos uma que seja de desenvolvimento nacional. Mas sempre se pode reconhecer uma estratégia nacional de pura retórica quando uma se 298

apresenta de forma tão ingênua: a END está impregnada de retórica grandiloqüente sobre quão importante deveria ser a defesa nacional para o desenvolvimento, mas ela não diz qual é, onde está, em que consiste essa estratégia, que seria supostamente de defesa, e, sobretudo, por que ela deveria ser estratégica – com perdão pela óbvia redundância – para o desenvolvimento. Repetindo a questão essencial, já colocada anteriormente: defesa contra o quê ou contra quem? Vejamos este aspecto. 2. Por que a END não é de defesa? A primeira pergunta que um general deve formular a si mesmo, supondo-se que ele seja chefe de Estado-Maior, é a de saber para onde, exatamente, as forças à sua disposição devem apontar suas armas ofensivas ou dissuasórias. Da resposta a esta questão depende a defesa efetiva do território nacional, nos pontos considerados nevrálgicos e mais sensíveis. Pois bem: o que nos diz a END sobre isso? Os ambientes apontados na Estratégia Nacional de Defesa não permitem vislumbrar ameaças militares concretas e definidas, representadas por forças antagônicas de países potencialmente inimigos ou de outros agentes não-estatais. Devido à incerteza das ameaças ao Estado, o preparo das Forças Armadas deve ser orientado para atuar no cumprimento de variadas missões, em diferentes áreas e cenários, para respaldar a ação política do Estado. Esse trecho selecionado, extraído da seção “Fundamentos” da segunda parte da END (Medidas de implementação), é surpreendente pelo seu caráter vago e pela completa indefinição quanto ao objeto próprio de toda essa construção abstrata, consoante, aliás, com o caráter de “não-estratégia” do documento em seu conjunto. O Brasil parece viver, na visão dos formuladores da END, num completo vazio geopolítico e eles não conseguem vislumbrar ameaças concretas; não se sabe bem, portanto, quais devem ser as variadas missões das FFAA, e não se tem a mínima idéia de que “ação política do Estado” se está falando. Se é de defesa, é preventiva contra tudo e contra todos, o que, convenhamos, é extremamente custoso, se todas as Hipóteses de Emprego (HE) forem consideradas, e muito pouco útil na preparação e no adestramento adequado das tropas. A mesma indefinição completa quanto às ameaças, as missões e os propósitos da ação do Estado já tinha sido reconhecida na seção anterior (justamente voltada para as 299

Hipóteses de Emprego) dessa mesma parte da END (medidas de implementação). No plano prático, ela redunda em algo absolutamente contraditório: “Entende-se por HE a antevisão de possível emprego das Forças Armadas em determinada situação ou área de interesse estratégico para a defesa nacional. É formulada considerando-se o alto grau de indeterminação e imprevisibilidade de ameaças ao País.” Ou seja, mesmo sem ter a mínima idéia de quais HE poderão determinar a mobilização das FFAA, ainda assim, devem ser “elaborados e mantidos atualizados os planos estratégicos e operacionais pertinentes, visando possibilitar o continuo aprestamento da Nação como um todo, e em particular das Forças Armadas para emprego na defesa do País.” Notável!: se pretende aprestar toda a nação mesmo sem se ter clareza quanto a que tipo de ameaças ou desafios se colocam ao País. Jogos eletrônicos de guerra têm, pelo menos, um ou mais inimigos declarados, algo que o Brasil não consegue ter, e que a END não consegue definir. Quando se consegue formular uma ameaça concreta ao território, à independência ou à soberania nacional, esta é particularmente deficiente quanto aos cenários reais para as HE das FFAA. Deficiente é uma palavra neutra, pois a suposição implícita é a de que o Brasil poderia ter de enfrentar – ou pelo menos dissuadir – uma “potência hegemônica” ou uma “coalizão de potências dominantes”, sem que se diga exatamente quais seriam essas potências “hostis” ou “ameaçadoras”. Quem não padece de miopia geopolítica, e conhece as motivações e orientações políticas do governo que formulou a END, pode apostar em que o alvo são os Estados Unidos e os países europeus, as ‘únicas’ “potências hegemônicas” do planeta, pois não se admitiria que os “parceiros estratégicos”, designados como tais pelo governo, possam vir sequer a constituir fontes de ameaças. A END diz, nas suas “Diretrizes”, que se deve “priorizar a região amazônica” (sic), o que é propriamente surpreendente. Nenhuma explicação é dada para essa “priorização” que parece contradizer os dados da realidade, quando se sabe que a maior parte do PIB, da população, da capacitação industrial, dos centros nervosos do País se situa em outras regiões do Brasil, mais particularmente na costa atlântica ao longo das vertentes sudeste e do sul do território nacional. Talvez a END pretenda encarregar a Marinha, que supostamente vigia toda a costa e o mar territorial brasileiro, e marginalmente a zona econômica exclusiva, do monitoramento e proteção dessa faixa de maior importância econômica, estratégica e militar para o País, mas isso não está explicitado no documento. Na verdade, o mais provável que ocorra é que tudo continue 300

como sempre, com marinheiros instalados nas melhores praias do País e com os soldados e aviadores fixados em suas melhores regiões. Ainda assim não se percebe por que a Amazônia deva receber maior atenção e mais recursos do que as regiões mais ricas e povoadas do País, talvez apenas porque seja pobre e despovoada, justamente. Deve ser a tradicional obsessão paranoica – não apenas de militares de direita, mas da esquerda paisana, também – quanto à internacionalização da Amazônia, obviamente a cargo das mesmas “potências hegemônicas” que conspiram contra o desenvolvimento do Brasil. Pode ocorrer, eventualmente, que os formuladores da END tenham experimentado um súbito ataque de clarividência, passando a colocar as ameaças potenciais ao Brasil lá onde eles podem de fato aparecer, ou seja, na Amazônia; mas registre-se que ali, os cenários mais prováveis são de pequena geopolítica, não de grande estratégia, o que reduziria singularmente o uso das ferramentas previstas na END.31 Em resumo, assim como a END não consegue ser uma verdadeira estratégia, ela não consegue ser um documento de defesa, ou seja, definir quais são as ameaças credíveis e os reais desafios que pesam contra o Brasil, ou, de modo geograficamente mais preciso, contra suas regiões estrategicamente mais importantes. As HE previstas na END de emprego das FFAA são tantas e tão variadas, que as FFAA terão, de modo particularmente custoso, de se preparar para absolutamente tudo e todas as HE, talvez para enfrentar absolutamente nada. Neste caso, não se trata bem de uma manifestação retórica de hegelianismo militar, mas talvez de um voluntarismo de tipo acadêmico totalmente inócuo em seus propósitos substantivos. 3. Por que a END é prosaicamente nacional? Aparentemente, a END pretende superar o velho problema que sempre colocou em lados opostos estadistas e generais, de uma parte, e economistas, de outra; ou seja, como conciliar, de um lado, os objetivos contraditórios da maximização do bem-estar da nação no curto prazo – o que implica atender ao consumo imediato da população – e os de seu desenvolvimento no longo prazo – o que implica concentrar recursos para fins de investimentos produtivos – e, de outro lado, as necessidades de sua defesa, com suas 31

Sobre os conceitos de pequena e grande geopolítica, ver Paulo Roberto de Almeida, “Uma paz não-kantiana?: Sobre a paz e a guerra na era contemporânea”, In: Eduardo Svartman, Maria C. d’Araujo e Samuel A. Soares (orgs.), Defesa, Segurança Nacional e Forças Armadas (Campinas: Mercado de Letras, 2009, p. 19-38; disponível: http://www.pralmeida.org/05DocsPRA/1987PazNaoKantianaABEDbook.pdf).

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exigências em termos de desvio de recursos para a aquisição de ferramentas militares – improdutivas por definição – mas essenciais para os fins de dissuasão, de segurança e de defesa? A END, teoricamente, deveria reservar algum espaço, se não para a macroeconomia do desenvolvimento brasileiro, ao menos para uma estimativa inicial de seus custos diretos e indiretos, em termos de dotações orçamentárias anuais e plurianuais, e de previsões aproximadas dos montantes necessários a serem apropriados para cada uma de suas grandes rubricas ou categorias de despesas (pessoal, equipamentos, infraestrutura, manutenção, P&D militar, etc.). Esse tipo de cálculo elementar, a END sequer o faz de maneira impressionista ou puramente subjetiva, ou seja, ela jamais ousa aventar qualquer cálculo estimativo, mesmo primário, dos custos incorridos pela sua grandiosa estratégia (supostamente) de defesa. Ela tampouco se permite considerar o custo-oportunidade de todas as suas propostas operacionais, tanto no terreno das ferramentas militares, como no da manutenção das instituições no formato pretendido. Parafraseando o conflito célebre dos economistas quanto a bem-estar e defesa, quando confrontados a esse tipo de dilema, pode-se dizer que a END pretende oferecer, ao mesmo tempo, manteiga e canhões, sem que ela jamais consiga estimar os custos, implícitos e explícitos, desse tipo de demanda contraditória por definição. A ‘manteiga’, como sabemos, só pode entrar no quadro do grande projeto de desenvolvimento que os autores da END pretendem impulsionar pelo lado exclusivo da defesa (sem no entanto dizer como; talvez por fiat político). E os canhões, bem, eles estão lá onde deveriam estar, mas aqui, não são apenas canhões, e sim todos os raios de Júpiter e de seu exército de deuses auxiliares, sem esquecer Marte e Vulcano. Com efeito, a END pretende “fortalecer três setores de importância estratégica: o espacial, o cibernético e o nuclear”. Ou seja, nada menos do que uma guerra nas estrelas, uma presença na estratosfera e no cyberspace, mesmo se for para combater inimigos na área considerada prioritária, que é a ‘esquecida’ Amazônia. E como tudo isso será alcançado?; ou seja, como serão oferecidos a manteiga e os canhões da grande estratégia brasileira? A END novamente responde: “Tal desenvolvimento [a capacidade de monitorar e controlar o espaço aéreo, o território e as águas jurisdicionais brasileiras] dar-se-á a partir da utilização de tecnologias de monitoramento terrestre, marítimo, aéreo e espacial que estejam sob inteiro e incondicional domínio nacional”. Talvez coubesse sublinhar três vezes e colocar em negrito o “incondicional”, pois ele resume toda a concepção soberanista, inteiramente 302

autárquica e estreitamente nacionalista da concepção do econômica do mundo dos formuladores da END. Não basta ter ou dispor de ferramentas: é preciso, também, que elas sejam genuinamente made in Brazil ou manipuladas integralmente pelos militares brasileiros. Esse tipo de restrição quanto a origem das ferramentas, ou o condicionamento de sua aquisição no estrangeiro ao estrito repasse do controle tecnológico sobre as ferramentas em questão, resume o caráter especificamente nacional da END, aliás, seu único elemento dotado de maior consistência intrínseca, posto que os dois outros elementos não se sustentam, nem filosófica, nem praticamente, como vimos. Paradoxalmente, ou ironicamente, grande parte dessa transferência de tecnologia esperada ou desejada pelos formuladores da END deveria fluir – voluntariamente, talvez – daquelas “potências hegemônicas” que supostamente estariam na origem das ameaças à ‘prioritária’ Amazônia (ou, quem sabe?, ao petróleo do pré-sal). Todo o sentido da END consiste em atribuir à capacidade produtiva nacional a principal responsabilidade pelo fornecimento de bens, serviços e provimentos diversos às FFAA. Não sou eu quem digo; isso está explícito em tantas passagens da END que seria fastidioso transcrever qualquer citação. Pode-se adivinhar quem ficará extremamente satisfeito com esse tipo de preferência nacional: os industriais patriotas, que não contentes de justificar o protecionismo em nome da defesa do emprego nacional, vão passar a invocar a soberania (nacional) em nome da defesa (nacional, justamente). Embora algumas associações patronais se pareçam mais com “sindicatos de ladrões” – no sentido figurado, claro, tal a promiscuidade mantida com autoridades, políticos e supostos defensores da lei – muitas dessas “representações de classe” vivem justamente de reciclar dinheiro público, ou melhor, da coletividade. Obviamente, não existe reciclagem mais extensa, “gorda” e isenta de concorrência efetiva do que essas compras governamentais de armas, sempre monopolizadas e cartelizadas em nome de uma suposta segurança nacional. Em defesa da END – mas acredito que ela não necessita que a defendam, pelo menos não de ataques como este, débil e sem audiência – pode-se argumentar que todos os governos fazem a mesma coisa e praticam os mesmos pecados: em nome da defesa e da soberania nacional, esses governos (sabemos quais são) mantêm, sem qualquer economia de escala ou critérios de custo-oportunidade, custosas indústrias de defesa, pois, obviamente, “não se pode entregar a defesa nacional a interesses alienígenas”. O patriotismo ‘patrioteiro’ – desculpem a redundância mas ela é necessária – é a forma 303

mais fácil de arrancar dinheiro da sociedade e de entregá-lo a quem já é rico, o que compreende, certamente, os industriais da defesa e os representantes da indústria bélica nacional (algumas estatais, por acaso). Contra argumentos como esse, não há fatos capazes de modificar o assalto ao orçamento público organizado por uma coalizão de usuários e fabricantes de produtos de defesa, razão pela qual nem pretendo gastar meus fracos conhecimentos de economia tentando demonstrar que existem, sim, formas mais racionais de se gastar os recursos públicos, mesmo em áreas sensíveis como defesa e segurança. Em qualquer hipótese, a END se ajusta inteiramente à ideologia do desenvolvimento nacional, essencialmente marcada pelo nacionalismo protecionista e pelo vezo estatizante. Não serei eu a tentar modificar esse estado de coisas, por isso desisto. Mais importante, porém, é constatar como esse nacionalismo instintivo pode ser profundamente contraditório com os objetivos da END, que supostamente são os da constituição de FFAA modernas, capacitadas tecnologicamente, aptas a combater em todas as vertentes mais sofisticadas da guerra moderna, como está expressamente declarado no documento: “Três setores estratégicos – o espacial, o cibernético e o nuclear – são essenciais para a defesa nacional”. Pois bem, essa afirmação – melhor, essa pretensão, algo ilusória, como muitas outras no documento – é inteiramente negada por outra afirmação mais à frente, que se refere ao serviço militar obrigatório, supostamente encarregado de realizar o “nivelamento republicano” (seja lá o que isso queira dizer para filósofos de plantão). No parágrafo 2 dessa seção, depois de se confirmar que “[o] Serviço Militar Obrigatório será (...) mantido e reforçado”, vem explicitamente afirmado que “[a]s Forças Armadas limitarão e reverterão [merece ser sublinhado três vezes] a tendência de diminuir a proporção de recrutas e de aumentar a proporção de soldados profissionais.” [sic três vezes e espanto figurado!!!] Ora, não existe proposta mais contraditória com o objetivo de se ter FFAA modernas e capacitadas tecnologicamente do que a incorporação proporcionalmente maior de recrutas ignorantes nessas forças. Trata-se de um grave equívoco, só explicável por populismo ingênuo, igualitarismo instintivo ou alienação acadêmica de quem propôs tamanha incongruência; ou, então, uma mistura desses três elementos, pois não se consegue explicar como um documento desse teor, tão modernoso em seus outros componentes, pode cometer erro tão grave na componente mais importante de qualquer força militar moderna, os recursos humanos (aliás, de qualquer atividade 304

organizada por uma sociedade contemporânea). Espera-se que os chefes militares não sucumbam a essa burrice monumental. Não se trata de propor a contratação de mercenários modernos, combatendo por dinheiro, mas sim a profissionalização crescente das FFAA, consoante tendências detectadas na maior parte das FFAA contemporâneas. Um soldado moderno deve ter, no mínimo, a formação de um engenheiro (não sei se estou exagerando...). 4. O que uma END realista e razoável poderia conter? Pergunta fácil e, ao mesmo tempo, difícil de responder. Em primeiro lugar, ela deveria conter – e isto é o mínimo – uma verdadeira estratégia de defesa, nacional ou não (mas sei que, aqui, toco nos brios de nossos militares nacionalistas e outros patrioteiros, já prontos a sacar suas armas para me fuzilar, por grave atentado à defesa nacional). Bem, deixando de lado por um momento esse fantasma do caráter supostamente nacional da nossa defesa, vejamos prioritariamente os dois outros elementos em pauta: a estratégia e a defesa. O que é uma estratégia? O que deveria conter de estratégico um documento destinado às gloriosas FFAA, que nos defendem de insidiosos ataques inimigos (ou simplesmente externos)? Uma estratégia é, segundo meu entendimento, um conjunto de prescrições de natureza geral quanto a valores, princípios, objetivos gerais e particulares, metas e finalidades da ação estatal que têm a ver com a existência, a proteção, a manutenção da segurança, a preservação da independência e da soberania de um determinado Estado, em função da qual disposições táticas são adotadas, fatores logísticos definidos, meios específicos constituídos, todos com a finalidade de se atingir os objetivos gerais e particulares definidos pelos estadistas na estratégia adotada pelos responsáveis políticos do Estado em questão. Ou seja, mesmo que uma estratégia possa ser eventualmente preparada e oferecida por generais e outros senhores da guerra, sua definição última e a responsabilidade suprema pela sua forma teórica final e decisões complementares pela implementação prática sempre incumbem à autoridade política do Estado em causa. Daí a primeira regra no processo de elaboração de uma estratégia qualquer, no sentido aqui definido como obra de estadistas de natureza profundamente política e de escopo e significado essencialmente políticos, na acepção “estatal” desses termos (que tem a ver com o conceito anglossaxão de statecraft, que poderia ser imperfeitamente traduzido por “estadismo”). Uma estratégia não diz respeito apenas a generais e 305

senhores da guerra, e sim a toda a nação e seus responsáveis maiores. Ela precisa ostentar, em primeiro lugar, clareza geral de concepção, precisão nos seus desígnios e objetivos principais, profundidade similar no estabelecimento de suas finalidades secundárias, planejamento quanto aos meios adequados e quanto ao alcance, eficácia, possibilidades e limites de suas ferramentas privilegiadas e, também, dispor de um compromisso firme com a sua colocação em vigor e implementação decisiva por parte dos estadistas instalados no comando da nação, quaisquer que sejam os obstáculos e dificuldades que se apresentem no processo de sua implementação. É evidente, nesse sentido, que a coerência entre fins e meios da estratégia adotada depende de uma visão clara desses responsáveis políticos – tanto civis quanto militares, estes agindo na condição de planejadores políticos visando finalidades militares, se a estratégia adotada é basicamente militar – quanto à capacidade relativa da nação em sustentar essa determinada estratégia, que precisa ser minimamente comensurável aos recursos efetivos ou potencias à disposição da nação. Sendo assim, qualquer exercício em torno de uma estratégia nacional depende de um conhecimento acurado de quais são as fortalezas e fraquezas da nação em causa, sem o que o exercício conduzido poderá traduzir-se em mero esforço de objetivos ideais, ou em uma coleção irrealista de desejos inatingíveis. Um levantamento preliminar dos recursos, das possibilidades e limites ao estabelecimento de uma determinada estratégia configura-se uma tarefa prévia indispensável à boa definição de uma estratégia realista e compatível com os meios e finalidades nela estabelecidos. Levando-se em conta esses critérios metodológicos, parece que a END falha em cumprir requisitos mínimos de uma estratégia. Ela não diz por que, e com quais finalidades, deseja ter para o Brasil FFAA dotadas das características apontadas em seus vetores principais de atuação (espacial, cibernético e nuclear); tampouco diz quais seriam os grandes objetivos da nação em face de obstáculos precisos à consecução desses objetivos (que permanecem indefinidos); não consegue sequer dizer para o quê ou para quem o Brasil teria de dizer ‘não’, como masculamente pretendem seus formuladores; e falha, estupidamente, em se dotar dos recursos humanos adequados às suas altas finalidades (que ela não se sabe dizer quais são, mas que pretende atingir, em todo caso, muito mais com recrutas ignorantes do que com soldados profissionais e administradores competentes, recrutados no mercado e operando em condições de eficiência quanto aos meios e com cobrança de resultados). 306

Se com todas essas falhas a END pretende continuar a ser chamada pelo nome pomposo de ‘estratégia’ – e ainda mais ‘de defesa’ – é evidente que ela precisa passar por uma remodelação conceitual e um sério esforço de redefinição de objetivos e metas, sem o que ela permanecerá o que é atualmente: uma assemblagem de conceitos vagos sem conexão com o Brasil real, coroando três listas de compras militares para cada uma das forcas singulares; tudo isso, cabe recordar, sem conseguir dizer o que pretende exatamente o Brasil no contexto do mundo em que vivemos, hic et nunc, com alguma previsão para as próximas décadas, como seria de rigor em documentos desse tipo. Sem uma exposição clara do que é o Brasil – e do que constitui a sua defesa, se é que existe uma, atualmente –, de suas capacidades materiais e possibilidades humanas, de seus objetivos diplomáticos e econômicos, agora e futuramente, sem essa visão clara de quem somos, do quê pretendemos em nossa região e no mundo, no futuro previsível, sem uma adequação entre essas finalidades e os instrumentos disponíveis (imediatos e mediatos), sem um planejamento acurado do que pretendemos obter com os nossos próprios meios ou em cooperação com aliados potenciais, sem todos esses elementos conceituais e empíricos, fica difícil estabelecer uma estratégia digna desse nome e prover os recursos necessários à sua consecução. Não se exige, obviamente, que os formuladores de uma grande estratégia nacional sejam todos planejadores competentes, exímios economistas ou planejadores experientes, mas seria conveniente que os estadistas e generais que forem conceber, desenhar e redigir um tal documento se cerquem de assessores dotados de algumas competências firmadas nessas áreas básicas da ação estatal. Os seus formuladores podem ser, inclusive, filósofos ou sociólogos (sem esquecer os advogados e outros mestres de ciências afins), mas algumas tarefas de planejamento, de cálculo econômico e de administração, de organização e métodos seriam muito bem-vindas antes que amadores se lancem nessa ingente tarefa. Não é possível, por exemplo, que uma magnífica estratégia nacional se veja obstaculizada em sua implementação por uma completa falta de correspondência entre os objetivos ambiciosos nela estabelecidos e os parcos meios colocados à disposição das autoridades de aplicação, como resultado de cálculos irrealistas em torno do PIB nacional – presente e futuro – e as dimensões ambiciosas de uma tal grande estratégia. A rigor, uma estratégia do tipo da que se concebe aqui – ou seja, bem mais ‘prussiana’ do que ‘hegeliana’ – não é obra de alienígenas trabalhando com uma cornucópia infindável de recursos sempre abundantes. Nunca o é: aqueles que acreditam 307

que o orçamento do Pentágono e as maravilhosas máquinas de guerra que ali são encomendadas – inclusive com grande desperdício e alguma irracionalidade nos gastos – fluem diretamente das arcas do Tesouro (eventualmente por bondade e graça do Congresso), por certo ignoram o papel da professorinha primária e da produtividade sistêmica do trabalhadores americanos na montagem secular de um modo inventivo de produção que encantou Schumpeter e deslumbraria Marx. Doses mínimas de realismo orçamentário e uma visão adequada das capacidades econômicas nacionais – inclusive quanto ao endividamento externo – são sempre desejáveis nessa gloriosa missão de desenhar e escrever uma estratégia. Desse ponto de vista, creio, sinceramente, que a END falha completamente em juntar meios e fins, em definir possibilidades e limites, em juntar desejos com realidade. Ela parece esquecer que nossas FFAA vivem num país real, chamado Brasil, do início do século 21, situado a centro-leste de um continente específico, localizado no hemisfério americano, cercado por vizinhos, digamos, peculiares, que apresentam características muito definidas, sobre as quais não é necessário estender-se no momento (mas que convém levar em consideração na redação dessa grande estratégia). Pois bem, esperando que os filósofos da grande estratégia brasileira baixem à terra, seria conveniente que eles dissessem alguma coisa em torno da defesa, ou seja, essas “forças antagônicas de países potencialmente inimigos ou (...) outros agentes nãoestatais”. Da mesma forma, seria de todo indicado que os formuladores de uma END razoável consigam articular algo coerente em torno das “variadas missões [das FFAA], em diferentes áreas e cenários, para respaldar a ação política do Estado”. Sem tratar desses ambientes concretos, torna-se impossível combater o bom combate, ou seja, estar aprestado para o inimigo provável, não por aquele imaginado por mentes iluminadas que vivem nos salões acarpetados das academias e burocracias do Estado. Por exemplo: você não manda um porta-aviões para combater guerrilheiros na selva, nem arma uma grande esquadra quando o que se necessita é de uma Marinha de águas marrons, não águas azuis; mísseis geralmente não são recomendados para o emprego contra contrabandistas “pés-de-chinelo”, como parecem ser as HE mais prováveis das nossas gloriosas FFAA. Claro, elas têm uma necessidade psicológica de também se preparar contra esses inimigos poderosos que figuram nas HE dos nossos anti-imperialistas oficiais, mas conviria antes fazer um curso de ciência política e, na sequência, uma pós-graduação em relações internacionais, para melhor programar o uso efetivo das nossas FFAA. O que 308

não é possível seria torrar os escassos – por definição – recursos da gloriosa mãe gentil, contemplando toda a panóplia possível de ferramentas militares para todas as HE humanamente concebíveis no horizonte histórico do relacionamento regional e internacional do Brasil. Um pouco de razão e outro tanto de sensibilidade sempre são bem vindos, mesmo nessas rudes matérias de defesa e segurança. Todo exercício intelectual é bem vindo, sobretudo quando se pode revisá-lo com base em dados da realidade, submetendo-o às armas da crítica (para que ele não padeça sob a crítica das armas, com a licença de Marx para o uso desta sua paráfrase). Se os formuladores originais da END padecem de vazio geopolítico, nada melhor do que engajar novos filósofos – com alguns engenheiros e economistas em apoio – para revisar, corrigir e melhorar o documento em questão. Todos ganhariam com isso: a nação, em primeiro lugar, que saberia exatamente – pelo menos é o que se supõe – quanto lhe pretendem subtrair em transparentes transações orçamentárias; as próprias FFAA, que saberiam que tipo de inimigo combater – posto que a END atual é totalmente vaga a esse respeito; e também, talvez seja o mais importante, a lógica elementar e a racionalidade stricto sensu, que sempre ganham quando documentos de tal importância atendem a seus requisitos formais e subscrevem a cânones mínimos de coerência intrínseca e de adequação à realidade. Nem tudo está perdido, porém, desde que se considere que a END is not the end, se me permitem o jeux de mots inevitável. Ela representa um bom começo, posto que já contém a shopping list desejada por cada uma das forças (ainda que, sob vários aspectos, totalmente inadequada às reais funções presumíveis de cada uma delas, e conjuntamente). Seria preciso que estadistas de verdade e generais experimentados – prussianos e hegelianos, ambas as combinações são possíveis – pudessem definir as ameaças concretas que pesam sobre o Brasil – if any – e, a partir daí, estabelecer os parâmetros básicos de uma estratégia de defesa que faça jus a esse conceito. Talvez falte ao documento aquelas bonitas ações cinematográficas que corresponderiam aos cenários de grande geopolítica com que sonham nossos soldados; mas isso talvez seja simplesmente porque o Brasil precisa ajustar seu desejo de brilhar no mundo às reais dimensões dos desafios que se colocam concretamente em seu ambiente de atuação, quais sejam, os cenários de pequena geopolítica na região ou a serviço da ONU. Essa talvez seja a frustração – essencialmente teórica – dos hegelianos que conceberam pela primeira vez o documento: eles pretendiam vislumbrar (talvez até desejavam secretamente) enfrentamentos com potências hegemônicas e acabam tendo 309

de caçar marginais nas favelas do Haiti ou traficantes analfabetos nas selvas e morros da América Latina; no máximo, talvez consigam separar facções guerreiras em territórios longínquos, a serviço do CSNU, sem que talvez jamais consigam exercer seus fabulosos dotes bélicos contra inimigos de verdade numa guerra de posições. Por mais que a realidade não se encaixe nos planos grandiosos, é ela que precisa ser enfrentada, não os conflitos imaginários (sobretudo contra os inimigos errados, como certamente alguns mais alucinados podem estar cogitando no seu íntimo). Ao fim e ao cabo, uma estratégia de defesa – deixemos o nacional de lado, pois ele será fatalmente reinserido por nossos bravos formuladores – deve responder às necessidades percebidas por estadistas e generais, não corresponder às angústias teóricas de alguns ideólogos disfarçados em planejadores, como parece ter sido o caso desta primeira experiência de redação. Os requisitos metodológicos e os componentes conceituais são relativamente simples: o documento deve ser uma estratégia e ele deve tratar de defesa. Para tanto seria indispensável algum trabalho preliminar de análise de terreno – inclusive no contexto global –, de balanço de recursos, de identificação de ameaças credíveis, de definição de ferramentas, de estimação de custos, de estabelecimento de planos táticos e de disposição das forcas nos espaços definidos pela estratégia. Pode-se até ser ambicioso quanto aos meios, mas não se deve deixar o terreno no qual se pisa para passear pelo Olimpo filosófico dos deuses da guerra. Em uma palavra, questões militares e assuntos diplomáticos não são encargos para amadores, como soe acontecer ocasionalmente em certos meios (ou épocas). O preço a pagar pelo idealismo nessas matérias é muito alto, e ele não tem a ver apenas com os recursos financeiros da nação – ou seja, o meu, o seu, o nosso dinheiro – e sim com a completa inadequação de uma estratégia qualquer – qualquer que seja o seu conteúdo nacional – com os fins pretendidos, supostamente de defesa. A menos, é claro, que a intenção não declarada seja a de não fazer a guerra, mesmo em última instância, o que sempre pode ser uma escolha de civis (eventualmente diplomatas), mas que na mente dos generais não parece ser a opção mais adequada. Back to work!

2066. “A Arte de NÃO Fazer a Guerra: novos comentários à Estratégia Nacional de Defesa”, Lisboa-Paris, 25.09.2009; transcrição: Salon-de-Provence, 28.09.2009; redação preliminar: Brasília, voo Rio-Paris, 28.11.2009, 17 p. Análise da END do ponto de vista conceitual e puramente estratégico, complementando análise 310

preliminar, de caráter econômico, elaborada em fevereiro (n. 1984). Divulgado no site de estudos estratégicos da Federal de Juiz de Fora, seção Defesa (20.01.2010; link: http://www.ecsbdefesa.com.br/defesa/fts/ANFG.pdf). Publicada em Mundorama (1.06.2010; link: http://mundorama.net/2010/06/01/a-arte-de-naofazer-a-guerra-novos-comentarios-a-estrategia-nacional-de-defesa-por-pauloroberto-de-almeida/comment-page-1/#comment-1677). Republicado em Meridiano 47 (vol. 11, n. 119, junho 2010, p. 21-31; ISBN: 1518-1219; link para o boletim: http://meridiano47.files.wordpress.com/2010/08/v11n119.pdf; link para o artigo: http://seer.bce.unb.br/index.php/MED/article/view/638 ou: http://seer.bce.unb.br/index.php/MED/article/view/638/407). Publicada na Revista de Geopolítica (Ponta Grossa, PR; Vol. 1, No 2; jul.-dez. 2010, p. 5-20; link : http://www.revistageopolitica.com.br/ojs/ojs-2.2.3/index.php/rg/issue/view/2). Ensaio incorporado ao livro: Paralelos com o Meridiano 47: Ensaios Longitudinais e de Ampla Latitude (Hartford, 2015). Relação de Publicados n. 971 (Meridiano) e 1001 (Revista de Geopolítica).

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Quinta Parte Ideias, cultura, problemas

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28. O Fim da História, de Fukuyama, vinte anos depois: o que ficou?

1. O que restou, vinte anos depois, da tese controversa de Fukuyama? No verão de 1989, a revista americana National Interest publicava um ensaio teórico – mais exatamente de filosofia da História – do intelectual nipo-americano Francis Fukuyama sobre os sinais – até então simplesmente anunciadores – do fim da Guerra Fria, cujo título estava destinado a deslanchar um debate ainda hoje controverso: “The End of History?”.32 Vinte anos depois, em vista das muitas críticas feitas naquela conjuntura – e ainda hoje – às principais teses do autor, vale a pena retomar seus principais argumentos e verificar se eles ainda conservam alguma validade para nossos tempos, que poderiam ser considerados como de pós-Guerra Fria, mas que alguns interpretam, ou consideram efetivamente, como de volta à Guerra Fria, ainda que sob novas modalidades (com uma Rússia singularmente diminuída e uma China hesitante em se posicionar como contendor estratégico dos Estados Unidos). Antes, contudo, de ingressar numa descrição linear desses argumentos, qualquer que seja sua validade relativa ou absoluta para o tema que nos interessa – qual seja, o da natureza das opções abertas aos países em termos de reforma e desenvolvimento paralelos do sistema econômico e do regime político, que Fukuyama identificava com a redução dessas opções à democracia de mercado – cabe chamar a atenção para uma peculiaridade geralmente descurada no debate anterior (e talvez atual) sobre a validade das teses de Fukuyama, sobretudo por aqueles que recusavam, in limine, a essência mesma do argumento do autor. Esta peculiaridade tem a ver, basicamente, com um simples sinal diacrítico: o ponto de interrogação ao final do título, geralmente ignorado pelos críticos das teses de Fukuyama, e provavelmente também por aqueles que apóiam, em grande medida, o sentido dos seus argumentos. Ou seja, Fukuyama não fazia uma afirmação peremptória, mas levantava uma hipótese, a do final presumido da história, numa análise de corte essencialmente conceitual, ainda que fortemente embasada nos fatos históricos, e nunca pretendeu formular uma sentença de caráter terminativo, indicando um “congelamento” das formas possíveis de organização social, econômica e

32

Ver Francis Fukuyama, “The End of History?”, The National Interest (Summer 1989, p. 318), bem como seu livro sobre a questão: The End of History and the Last Man (New York: Free Press, 1992).

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política. O interrogante básico de seu argumento tem a ver com a possibilidade de alternativas credíveis às democracias liberais de mercado, ponto. O ponto de interrogação, por si só, tem o poder de desmantelar boa parte das críticas superficiais, embora ele não elimine uma discussão responsável sobre a essência de sua tese, que caberia discutir, após o resumo inicial de seus argumentos. A tese – vale a pena resumir desde o início – tem a ver com o caráter incontornável da democracia de mercado como sendo uma espécie de ‘horizonte insuperável de nossa época’, como poderia argumentar – mas a propósito do marxismo – Jean Paul Sartre, um dos estudantes, junto com Raymond Aron, da tese original de Hegel, através de Alexandre Kojève. 2. O que Fukuyama de fato escreveu? A tese principal era a de que, após um século de emergência e declínio dos regimes fascistas e comunistas, de enormes turbulências políticas e de crises econômicas, de contestação intelectual e prática ao liberalismo econômico e político de corte ocidental, o mundo estava retornando ao seu ponto inicial, qual seja o do triunfo inquestionável – an unabashed victory, nas palavras de Fukuyama – do sistema liberal ocidental. Segundo ele, tratava-se de um triunfo da “ideia ocidental”, tornada evidente pela exaustão das alternativas viáveis ao liberalismo ocidental. Esse triunfo era mostrado, em primeiro lugar, pela disseminação da cultura consumista ocidental nos dois países mais importantes do ‘mundo alternativo’, a China e a União Soviética (cabe registrar, imediatamente, que em nenhum momento de sua análise, Fukuyama esperava a dissolução imediata do regime monocrático e o rápido desaparecimento do próprio império soviético). Como ele mesmo observou logo ao início do artigo, “a vitória do liberalismo ocorreu primariamente no domínio das idéias, ou da consciência, e é ainda incompleta no mundo real ou material”. Mas como afirmou, logo em seguida, o próprio Fukuyama, “há razões poderosas para acreditar que é essa ideia que irá governar o mundo real no longo prazo” (ênfase original). Se aceitarmos o conhecido aforismo keynesiano, segundo o qual, a longo prazo, todos estaremos mortos, essa afirmação do cientista político americano o deixa inteiramente à vontade para acomodar quaisquer desenvolvimentos políticos e econômicos imediatos e de médio prazo, retirando sua responsabilidade sobre a validade de sua tese na perspectiva do cenário de curto prazo. Esse fato pode transformar sua tese principal no equivalente acadêmico dessas previsões de 316

cartomantes ou adivinhos, que deixam a um futuro indefinido a realização de seus exercícios de futurologia amadora, mas caberia aceitar, em princípio, as premissas de Fukuyama como uma proposta passível de discussão apoiada em metodologia rigorosa. Em todo caso, seu texto engajava, a partir daí, uma discussão em torno das questões teóricas relativas à natureza da mudança histórica, processo que ele remonta a Hegel e Marx, sobretudo o primeiro, formulador da teoria do progresso na história universal.33 O fim da história, na concepção hegeliana (tal como interpretada por Kojève), estava identificado com a afirmação dos princípios do direito universal à liberdade e da legitimação de um sistema de governo apenas com o consentimento e a aprovação explícita dos governados, o que foi chamado de “Estado homogêneo universal”. Uma vez que todas as contradições anteriores já teriam sido resolvidas com a aceitação e por meio do estabelecimento desse Estado – e como, para Hegel, o mundo real deveria corresponder ao mundo ideal, pelo menos aquele que figurava na cabeça do filósofo –, então não existiriam mais espaços para conflitos de maior escopo em torno da organização política desse Estado, restando apenas encaminhar e resolver os pequenos problemas da atividade econômica e da política corrente. O mundo se converteria, então, numa simples “administração das coisas”, segundo a frase de Engels para representar a situação das sociedades humanas na fase pós-socialista, quando supostamente já não mais existiriam a exploração dos trabalhadores e a dominação política sobre os homens. Obviamente, Hegel não era tão simplista como a exposição acima poderia sugerir, sobretudo com esse ‘idealismo filosófico’ de equalizar o mundo ideal ao mundo real. Para o filósofo alemão – mais especificamente prussiano, talvez –, as contradições existentes no mundo real se formam a partir de um conflito de idéias, ou seja, de diferentes concepções sobre como deveria ser organizado o mundo real da política e da economia. As distinções entre um mundo e outro seriam apenas aparentes, posto que as idéias que encontravam abrigo na consciência dos homens acabariam por se tornar necessidades do mundo real, fechando assim o ciclo de realização da idéia universal.34 33

Hegel não foi o primeiro, em termos absolutos; antes dele, filósofos escoceses (como Ferguson) e franceses (como Condorcet) já tinham debatido a idéia do progresso da civilização, muitas vezes numa perspectiva linear, seguindo a flecha do tempo; mas foi Hegel quem deu à idéia de progresso um sentido de necessidade histórica, que o fez situar-se no centro da evolução possível das sociedades humanas. 34 Marx inverteu esse processo, como se sabe, mas apenas para converter o socialismo na realização necessária, em última instância, da idéia universal, uma espécie de fatalismo pelo lado da sucessão inevitável dos ‘modos de produção’, um conceito que ele cunhou e que ainda

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A consequência prática dessa concepção seria a de que, posto que as democracias de mercado provaram sua capacidade de não apenas resistir aos desafios colocados por crises econômicas e por guerras devastadoras, mas também de atender aos requerimentos suscetíveis de trazer prosperidade e riqueza a todos os países que aderiram a seus princípios organizadores, elas estavam habilitadas a cumprir seu mandato hegeliano de realizar o ‘Estado universal homogêneo’, fechando, assim, um ciclo completo da história. À pergunta – sempre o ponto de interrogação – de saber se chegamos ao fim da história, deve-se agregar esta outra, sobre se existem contradições tão fundamentais na vida humana que não possam ser encaminhadas através de qualquer outra forma alternativa de estrutura político-econômica que não o liberalismo moderno de mercado. Não se trata de saber o que pode ocorrer, em termos práticos, na Albânia ou em Burkina Faso, mas o que importa, realmente, em termos de ‘herança ideológica comum da humanidade’. Como indica corretamente Fukuyama, no decorrer do século 20, foram dois os desafios mais importantes ao liberalismo político e econômico: o fascismo e o comunismo. Ambos poderiam, na verdade, ser abrigados sob o conceito comum de regimes anti- ou aliberais, no terreno político, e sob o conceito de sistemas coletivistas no domínio econômico (embora o comunismo, ou o socialismo soviético, tenha sido muito mais ‘coletivista’ do que o fascismo). Tendo este último sido enterrado sob os escombros da Segunda Guerra Mundial, restava o comunismo, que, no momento em que Fukuyama redigia seu panfleto hegeliano, ainda não tinha sido enterrado de vez. Essa recordação é importante: afinal de contas, na segunda metade de 1988 e o início de 1989, quando Fukuyama redigiu seu ensaio especulativo, Gorbachev ainda se debatia para implementar sua glasnost e sua perestroika, destinadas, como se sabe, não a enterrar o comunismo, mas a introduzir elementos de mercado em seu funcionamento efetivo, de maneira que a nova NEP sob o comando de um reformista do Partido Comunista pudesse assegurar a continuidade do sistema e do império; por outro lado, a China de Deng Xiao-Ping exibia, naquela conjuntura, apenas 20% de sistema de mercado como locus da produção global do país e, ao que se sabe, a plutocracia do PCC

hoje é usado por discípulos, de modo geral, mas também por opositores dos próprios sistemas hegeliano e marxista.

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pretende, até hoje, construir um fantasmagórico “socialismo de mercado com características chinesas”.35 Fukuyama não deixa de ironizar o fato de que entre os maiores opositores do marxismo e das economias coletivistas nos países ocidentais estão os ‘perfeitos materialistas’ de Wall Street, que cultivam o mais acirrado anticomunismo e não deixam de ser defensores de princípios similares aos dos marxistas. Como ele escreve: “A inclinação materialista do pensamento moderno é uma característica não apenas do pessoal da Esquerda, que podem ser simpáticos ao Marxismo, mas de muitos antimarxistas passionais também. De fato, existe na direita o que se poderia rotular de escola do Wall Street Journal do materialismo determinista, que relativiza a importância da ideologia e da cultura e vê o homem como sendo essencialmente um indivíduo racional, maximizador dos lucros. É precisamente esse tipo de indivíduo e a sua busca de incentivos materiais que aparece como a base da vida econômica nos manuais de economia.” Não se trata de mera ironia gratuita, pois como lembra em seguida Fukuyama, é essa mesma escola do materialismo determinista de Wall Street Journal que aponta para os notáveis sucessos de países dinâmicos da Ásia nas últimas décadas como uma evidência da viabilidade da economia de mercados livres, com a implicação decorrente de que todas as sociedades poderiam conhecer desenvolvimentos similares se elas simplesmente deixassem as pessoas perseguirem livremente seus interesses materiais. O próprio Fukuyama aponta para os elementos “ideais” presentes nessa transformação e na ulterior transição do socialismo ao capitalismo, ao dizer que os dirigentes dessas fracassadas experiências do socialismo real já tinham constatado há muito tempo que o sistema simplesmente não funcionava. Registre-se que Fukuyama escrevia antes que o socialismo implodisse de fato e que os chineses formalizassem sua receita original de transição do socialismo ao capitalismo, com as justificativas teóricas disponíveis, o que foi feito apenas a partir de 1991-92.

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Sobre essa verdadeira “contradição nos termos” – como disse Marx a propósito do sistema de Proudhon, exposto em Filosofia da Miséria, e criticado por ele em Miséria da Filosofia (1847) –, ver meu artigo: “Falácias acadêmicas, 13: o mito do socialismo de mercado na China”, Espaço Acadêmico (ano 9, n. 101, outubro 2009, p. 41-50; disponível: http://www.periodicos.uem.br/ojs/index.php/EspacoAcademico/article/view/8295/4691).

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3. Fukuyama tinha razão? Na terceira parte de seu ensaio, Fukuyama se pergunta se atingimos, de fato, o fim da história. “Existem, em outras palavras, quaisquer ‘contradições’ fundamentais na vida humana que não possam ser resolvidas no contexto do liberalismo moderno, e que poderiam ser solucionadas por uma estrutura político-econômica alternativa? Se aceitarmos as premissas idealistas expostas acima, precisaremos buscar uma resposta a esta questão no terreno da ideologia e da consciência.” Seria verdade essa afirmação de Fukuyama, em sua época e ainda hoje? A proposta de Fukuyama sobre o “fim da História”, apresentada com um suporte hegeliano aparentemente consistente, é de tão fácil aceitação, do ponto de vista intelectual, quanto desprovida de maior importância explicativa, do ponto de vista prático. Em sua roupagem puramente acadêmica, ela oferece um excelente terreno de manobras para divagações ‘inocentes’ sobre o “triunfo definitivo” do liberalismo ocidental. Quando se trata, no entanto, de – parafraseando a décima-primeira tese de Marx sobre Feuerbach – não mais “interpretar” o mundo, simplesmente, mas de “transformá-lo”, verdadeiramente, essa nova tese ‘jovem hegeliana’ perde-se em seu próprio ‘pântano’ ideológico. Em outros termos, se a História realmente aproxima-se de seu final filosófico — isto é, se a Razão exauriu as possibilidades conceituais de explicar o Real — e se a organização formal do mundo material confunde-se com sua atual configuração histórica, isto não quer dizer que a história esteja perto de seu final concreto — isto é, que o Real tenha esgotado de vez as possibilidades práticas de ordenar o mundo em conformidade com o reino da Razão — ou que a organização material do mundo potencial esteja limitada a um determinado sistema sócio-político. Sem dúvida alguma, muito ainda resta a ser feito para que o homem comum possa trabalhar pela manhã, pescar na hora do almoço e dedicar-se à filosofia pela tarde, como queria o Marx hegeliano da juventude. Em todo caso, a maior parte da humanidade não foi ainda advertida sobre essas novas possibilidades de épanouissement individuel. Para ser honesto com Fukuyama, sua tese é basicamente correta em sua aparente simplicidade propositiva: não há mais contestação ideológica possível – de origem ‘socialista’, entenda-se bem – à hegemonia filosófica, política e econômica do liberalismo ocidental. Este último emergiu claramente vencedor das contendas ideológicas do período de Guerra Fria; mas não apenas ideológicas, as práticas também: com efeito, o socialismo não foi ‘derrotado’ pelo capitalismo, de qualquer forma 320

concreta e visível, ele simplesmente implodiu pela sua absoluta incapacidade de produzir, não mísseis nucleares, mas meias de nylon. Parodiando o autor da Critique de la Raison Dialectique, até se poderia adivinhar a brincadeira outre-tombe que, a propósito do liberalismo ocidental, Aron dirigiria contra Sartre: à diferença do marxismo, ela, sim, a economia liberal de mercado, teria se tornado o “horizonte insuperável de nossa época”. É altamente improvável, porém, que Aron concordasse com a previsão de Fukuyama sobre os états d’âme associados a um liberalismo fin-de-siècle: uma clara época de tédio (a very sad time, prospects of centuries of boredom, como diz Fukuyama), marcada pela preocupação quase que exclusiva com exigências materiais, sem as experiências ‘heroicas’ ou ‘excitantes’ que todo período maniqueísta sabe suscitar. Relativamente pessimista – dotado de um scepticisme serein, preferiria dizer ele mesmo – no que se refere às realidades dos Estados e dos sistemas de poder existentes, Aron não alimentaria nenhuma ilusão quanto a que o alegre ‘enterro do socialismo’ operado na última década do século 20 pudesse conduzir a uma ‘primavera das democracias’ razoavelmente estável ou a uma versão atualizada da ‘paz universal’ prometida em meados do século 18 por um prelado francês, e um pouco mais tarde pelo próprio Kant.36 Em todo caso, a anarquia política característica da ordem interestatal contemporânea, bem como os enormes diferenciais de recursos e de poder entre os Estados, no quadro de um sistema internacional ainda fortemente hierarquizado, parecem garantir um “fim da História” bem movimentado para os atores que continuarem a participar desse cenário ‘pós-socialista’. De fato, não é credível que disputas hegemônicas e conflitos de poder venham a termo apenas porque a superestrutura ideológica do sistema mundial foi transformada pelo súbito desaparecimento de um dos seus polos, uma ‘invenção’ mal concebida de engenharia social, mais mal implementada ainda, que num certo momento fez ‘tilt’, deu dois suspiros e depois morreu, sem choro e sem vela (bem, ocorreram, sim, algumas lágrimas e condolências sentidas de algumas viúvas do comunismo e de órfãos do socialismo, aqui mesmo no Brasil). 36

Ver, a esse propósito, meu ensaio “Uma paz não-kantiana?: Sobre a paz e a guerra na era contemporânea”, In: Eduardo Svartman, Maria Celina d’Araujo e Samuel Alves Soares (orgs.), Defesa, Segurança Nacional e Forças Armadas: II Encontro da Abed (Campinas: Mercado de Letras, 2009, p. 19-38; disponível: http://www.pralmeida.org/05DocsPRA/1987PazNaoKantianaABEDbook.pdf).

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Entendamo-nos bem: Aron certamente não se importaria em que os aléas de l’Histoire conduzissem a Humanidade a um fin-de-siècle bem pouco aroniano, isto é, livre de uma vez por todas da terrível ameaça do holocausto nuclear. Mas, para ele, a superação da Machtpolitik da era bipolar não significava em absoluto que as relações internacionais contemporâneas – e presumivelmente as do futuro próximo – passassem a ser desprovidas, mesmo num cenário multipolar, de todo e qualquer elemento de ‘política de poder’. A despeito da crescente afirmação do primado do direito internacional – ou seja, da ‘força da razão’ — a Machtpolitik continuaria a existir por largo tempo ainda, inclusive em seus aspectos mais elementares de exercício puro e simples da ‘razão da força’. A diferença está, provavelmente, em que, no cenário otimista traçado por Fukuyama, o desafio ideológico representado pelo socialismo – the socialist alternative, em suas palavras – simplesmente deixou de existir. Mesmo imaginando-se (no l’audelà) o ‘sorriso cético’ de Raymond Aron – que, todavia, nunca reduziu o confronto interimperial a um mero enfrentamento ideológico –, não podemos descartar, de plano, a versão revista e melhorada por Fukuyama da tese de Bell sobre o ‘fim das ideologias’. Para fins do argumento em espécie, isto é, para a conformação de nosso ‘retorno ao futuro’ do socialismo, a differentia specifica representada pelo afastamento do concorrente ideológico pode ser funcionalmente explicativa para justificar um futuro “estado universal homogêneo” ao estilo hegeliano. Numa época em os modernos ideólogos identificaram, repetidas vezes, sinais de “fim das ideologias” (ou, agora, do próprio “fim da História”), perde-se facilmente a visão de como o elemento ideológico influenciou a construção do mundo contemporâneo. O Ocidente em geral, nos últimos setenta anos, e a Europa em particular, nos últimos quarenta anos, viveram sob o signo das relações Leste-Oeste. Sua face mais ameaçadora produziu o que, acertadamente, ficou identificado sob o conceito de “guerra fria”. Depois de pelo menos quatro décadas de livre circulação, essa verdadeira hantise estratégico-ideológica parece agora ter-se finalmente encaminhado para o museu das antiguidades, ao lado do machado de bronze e da roca de fiar (como diria Engels). A Guerra Fria entre as duas superpotências, que marcou indelevelmente toda a história da segunda metade do século 20, não foi, provavelmente, apenas um produto de ideologias conflitantes. Mas, foram certamente as racionalizações políticas e militares construídas a partir das “intenções malévolas” do concorrente estratégico que lhe deram 322

uma dimensão jamais vista nas antigas disputas hegemônicas (seja entre os impérios da antiguidade clássica, seja entre os Estados-nacionais da era moderna). Mais que tudo, foi a crença ideológica – quase religiosa, podemos dizer – em uma missão histórica especificamente socialista, qual seja, a de enterrar não apenas o inimigo burguês, mas o próprio modo de produção capitalista, que exacerbou tremendamente o ‘conflito ideológico global’ (como diriam os generais da geopolítica), levando-o, em algumas ocasiões, ao limiar da escalada nuclear. O afastamento da “espoleta ideológica” – a iskra leninista – do socialismo, antecipada pela tese sobre o “fim da História”, significaria agora que o mundo estaria encaminhando-se, finalmente, para uma era de paz (ou pelo menos de não-guerra) ? Descartando-se a permanência dos chamados conflitos regionais e das guerras locais conduzidas por motivos étnicos ou territoriais, é provável que sim, mas, isto tem pouco a ver com o fim do desafio socialista: o abafamento das paixões bélicas nas sociedades contemporâneas é mais o resultado de mudanças substantivas na ordem econômica global do que devido a motivos de natureza política ou ideológica (a falência do socialismo, finalmente, não significou apenas a bancarrota de uma idéia, mas o esboroamento de todo um ‘modo de produção’). Com efeito, querer responsabilizar a ideologia socialista pelas “guerras de religião” contemporâneas (algo de que não se pode acusar Fukuyama) nada mais significa senão uma racionalização filosófico-sociológica a posteriori pouco condizente com uma realidade histórica muito mais complexa que todas as vãs “filosofias da história”, mesmo em versão supostamente hegeliana. Num século marcado pelas ideologias, o socialismo não foi, de longe, a mais belicista ou a mais agressiva delas, perdendo para o fascismo em várias frentes. Um exame imparcial da história do período anterior a 1945, mostraria que não foi a oposição entre,’– conceda-se-lhes, cum grano salis, o epíteto de marxistas – que provocou o quadro de instabilidade política e militar durante a primeira metade do século 20 e que precipitou os conflitos que retirariam definitivamente da Europa as alavancas do poder mundial. Ao contrário, foram os conflitos de natureza quase “feudal” – como diria o historiador Arno Mayer37 –, latentes no continente europeu desde finais do século 19, que permitiram o surgimento do poder socialista e, com ele, do conflito ideológico global. Basta com mencionar a ação agressiva das novas 37

A caracterização é do historiador Arno Mayer, The Persistence of the Old Regime: Europe to the Great War (London: Croom Helm, 1981); existe edição brasileira.

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potências da mittelEuropa para escapar ao cerco das velhas potências imperiais, ou o papel das ideologias fascistas do “espaço vital” e da “regeneração nacional” no entreguerras, para dar a exata dimensão da responsabilidade do socialismo no caótico quadro político-militar da modernidade. A ‘ameaça socialista’ sempre foi menor do que se imaginou e poderia mesmo ter sido simplesmente irrelevante, para todos os efeitos práticos, não fosse por um desses imponderáveis do acaso – os famosos ifs da história virtual – que costumam esconder-se nas já mencionadas dobras da História. Não se deve, com efeito, esquecer que o surgimento da dimensão Leste-Oeste no contexto político europeu é virtualmente o resultado prático de um pequeno, mas fecundo, ‘acidente’ histórico, desencadeado involuntariamente por um dos beligerantes durante a Primeira Guerra Mundial: o retorno à Rússia de um punhado de bolcheviques exilados, praticamente desanimados pela ausência de perspectivas revolucionárias em sua terra natal. O voluntarismo oportunista da diplomacia do Kaiser, que buscava apenas provocar um pequeno “tremor” político na frente de guerra oriental, podendo servir a interesses militares imediatos, transformou-se porém em cataclismo histórico de proporções inimagináveis, dando nascimento aliás ao próprio conceito de relações Leste-Oeste. Uma vez instalado o novo poder bolchevique, as diversas intervenções das potências ocidentais em território russo (ou soviético) contribuíram mais para alimentar a oposição ideológica irredutível com os países capitalistas do que uma suposta “luta de classes” em escala internacional. No segundo pós-guerra, igualmente, a busca constante do rompimento do ‘cerco imperialista’ era mais ditada por considerações de natureza estratégica (segurança militar) do que por reflexos de princípios ideológicos. Para Stalin, por exemplo, a razão de Estado sempre teve preeminência sobre o ‘internacionalismo proletário’, este último invariavelmente servindo de disfarce ideológico aos interesses do Estado soviético. Exatamente por causa da a razão de Estado, que prevalece sobre as ideologias, não existe um “fim da história”, como o próprio Fukuyama reconhece ao final de seu ensaio. 4. Do fim da História ao fim da Geografia Seja qual for o destino futuro da ‘ideologia socialista’, seu itinerário terá pouco a ver com o ocaso da História. Na verdade, estamos assistindo, não tanto ao fim da História, quanto, mais propriamente, aos limites da Geografia, a partir da crescente globalização dos circuitos produtivos e da interdependência acentuada das economias 324

desenvolvidas. O próprio Fukuyama observou que o desafio da alternativa socialista nunca esteve, realmente, no terreno das possibilidades concretas no Atlântico norte, região de capitalismos bem estabelecidos e de democracias de mercado relativamente estáveis – com a exceção, talvez, da periferia mediterrânea – e que o sucesso dessa alternativa foi, na verdade, sustentado por experiências em sua periferia: na Ásia, na África e numa simples ilha da América Latina. De fato, foi na Ásia onde o socialismo conseguiu alguma penetração duradoura – hoje largamente simbólica – mas é nas universidades públicas da América Latina – em grande medida medíocres em termos de produção humanística significativa – onde o marxismo esclerosado ainda consegue uma ridícula sobrevivência, embora desprovido de qualquer inovação filosófica ou de melhorias significativas nas suas propostas econômicas relevantes.38 Não se imagine, contudo, que o disfarce ‘socialista’ da liderança plutocrática chinesa constitua um sobrevivência qualquer da ideologia marxista, ou que ela represente um desafio fundamental ao capitalismo real: os líderes chineses, desde Deng Xiao-Ping, perceberam que a sobrevivência do ‘comunismo’ na China só se daria por obra e graça do capitalismo, e à sua construção eles vem se dedicando com extraordinário esforço e o zelo engajado dos verdadeiros crentes, os ‘novos cristãos’ da verdadeira fé nas virtudes do regime de mercados. O que está em causa, obviamente, não é o futuro, sequer o destino do socialismo, mas pura e simplesmente o poder político nas mãos dos novos mandarins chineses, uma nova classe basicamente similar à antiga nomenklatura soviética, mas que foi esperta o bastante para construir um sistema de dominação que transforma os novos capitalistas em seus aliados permanentes, posto que, como ensina Fernand Braudel, o capitalismo só triunfa, de verdade, quando ele transforma em Estado, quando ele é o Estado.39 Alguns observadores já chamaram esse novo sistema de

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Veja-se, a esse propósito, a nota crítica que fiz, a propósito de um desses exemplos lamentáveis de marxismo esclerosado da academia brasileira, nesta texto: “Marxistas totalmente contornáveis” [Resenha de Jorge Nóvoa (org.): Incontornável Marx (Salvador/São Paulo: Unesp/UFBA, 2007)], Espaço Acadêmico (ano 7, n. 84, maio 2008, disponível: http://www.espacoacademico.com.br/084/84res_pra.htm); ela suscitou, como seria de se esperar, reações enraivecidas por parte da tribo em questão, devidamente registradas neste artigo: “Manifesto Comunista, ou quase...: dedicado a “marquissistas” à beira de um ataque de nervos (a propósito de uma simples resenha)”, Espaço Acadêmico (ano 8, n. 85, junho de 2008; disponível: http://www.espacoacademico.com.br/085/85pra.htm). 39 Ver a trilogia braudeliana, Civilisation Matérielle, Economie et Capitalisme, XV-XVIIIème siècles (Paris: Armand Colin, 1979, 3 vols.).

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“corporativismo leninista”,40 mas o nome, na verdade, importa menos do que a realidade tangível do novo sistema chinês: esse sistema é essencialmente capitalista, mesmo se ele não é democrático e muito menos liberal, no sentido político da palavra; mas as políticas econômicas mobilizadas são, no seu sentido básico, de corte liberal. Aliás, em vista da crise econômica mundial de 2008-2009, vários outros observadores se perguntaram se, depois do ‘comunismo’ chinês ter sido salvo pelo capitalismo, não seria ele agora, pela pujança da demanda e da produção manufatureira de alcance global, a salvar o capitalismo. Ao que se sabe, o ensaio de Fukuyama não recebeu uma edição revista e atualizada para poder capturar esta última ‘astúcia da Razão’, ou essa “artimanha da História”, uma ironia suprema que seria bem recebida por Marx, mas certamente não por Lênin e seguidores. 5. Existem opções aos órfãos do socialismo? Não é seguro que uma alternativa credível em termos de sistema econômico e político se apresente nos palcos da História, ainda que as viúvas do comunismo e os deserdados da causa mantenham uma esperança quase religiosa – que se renova febrilmente a cada crise do capitalismo – de que isso seja possível em suas vidas terrenas. O mais provável é que as últimas ‘terras incógnitas’ do capitalismo realmente existente – que são alguns tresloucados ‘socialistas do século 21’, perdidos em seus próprios desastres econômicos, e um punhado mais numeroso de satrapias africanas, mas que não constituem Estados, no sentido hegeliano do termo – se juntem à locomotiva da interdependência econômica mundial em algum momento deste século: embora atrasados, eles também serão bem-vindos, mesmo que tenham de desempenhar funções subalternas no trem do capitalismo, até sua própria qualificação produtiva. Alternativas políticas à democracia liberal sempre podem existir, posto que as molas do poder respondem em grande medida mais às paixões humanas – o que os dramaturgos gregos, Shakespeare e Maquiavel já sabiam desde sempre – do que aos mecanismos de produção e de distribuição de ativos reais, e isto vem sendo provado a cada instante da história mundial. Não se imagina, porém, que o ‘som e a fúria’ da luta pelo poder, nas comunidades contemporâneas conduza a novos tipos de conflitos globais como os conhecidos desde a era napoleônica até a ‘segunda guerra de trinta

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Cf. Jean-Luc Domenach, La Chine m’inquiète (Paris: Perrin, 2008), p. 58 e 65-66.

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anos’ do século 20. Nenhuma Realpolitik se exerce da mesma maneira depois que o gênio do poder nuclear saiu da garrafa. Aliás, a Realpolitik da atualidade tem um novo nome, superioridade tecnológica, e o cenário de seu desenvolvimento é a própria Weltwirtschaft, a economia mundial, num mundo cada vez mais borderless, ou seja, sem fronteiras. Com efeito, assiste-se hoje em dia a um deslocamento de hegemonias, menos devido à força das canhoneiras do que ao peso dos navios cargueiros (a China, por falar nisso, possui os maiores portos do mundo). Mais exatamente, a tendência não é mais à constituição de rivais imperiais, mas ao estabelecimento de competidores mais eficazes, guerreiros de uma nova espécie, que buscam não tomar de assalto velhas fortalezas, mas inundá-las com pacíficos obuses eletrônicos, manufaturados segundo os mais modernos requisitos da tecnologia. Os cavaleiros mais dinâmicos dessa nova ordem mundial consideram os arsenais nucleares como catapultas pouco práticas do ponto de vista das modernas técnicas de conquista, da mesma forma que eles tendem a desdenhar os conflitos ideológicos como querelas teológicas de reduzido poder agregador: os hábitos de consumo unificam mais os povos, hoje em dia, do que as velhas crenças. Teutônicos ou samurais, mandarins ou gurus da nova era, os novos cavaleiros da economia mundial não buscam exatamente dominar ou converter outros povos, mas tão simplesmente extrair recursos pela via comercial. A estratégia econômica desses novos cruzados é verdadeiramente internacional, no sentido mais planetário do termo: busca de vantagens comparativas dinâmicas, rápido deslocamento geográfico de fatores, divisão racional de mercados, em suma, uma globalização acabada dos circuitos produtivos e de distribuição. A característica mais saliente dessa nova ordem mundial é a crescente interdependência dos países mais inseridos na economia de mercado. Mas, assim como na fábula orwelliana sobre a ‘igualdade’ na fazenda ‘socialista’ dos animais, nessa nova ‘fazenda capitalista’ das nações, alguns membros são mais ‘interdependentes’ do que outros. Não se trata apenas de saber quem é mais ‘transnacional’ nessa confraria, mas sim de determinar quem melhor sabe maximizar os mecanismos de controle da racionalidade instrumental própria à economia de mercado: o lucro e o investimento produtivo. Assim, se o “fim da História” – compreendido não no sentido de que o mundo estaria a ponto de se tornar um porto tranquilo para o exercício da democracia política, mas no do término da busca dos princípios fundamentais que devam reger a organização da sociedade – está ou não próximo de converter-se em realidade, esta é uma questão 327

ainda em aberto. Uma alternativa política ao liberalismo ocidental não parece, em todo caso, perto de nascer. Isto não quer dizer que não existam alternativas práticas, reais, à democracia burguesa, como o próprio caso da China o demonstra. O que se pretende constatar é que o sistema chinês de dominação política não oferece atrativos para qualquer país que se pretenda ‘normal’ no quadro da interdependência contemporânea: ele simplesmente não constitui um modelo que possa ser replicado em caráter voluntário por outras comunidades políticas. Não fosse assim, a plutocracia chinesa não precisaria manter um formidável aparato de repressão, disseminar a censura pelos terrenos sempre fugidios da internet, continuar a condenar “dissidentes” e “violadores da legalidade” com o mesmo ardor – embora com menor brutalidade – que seus antecessores declaradamente marxistas-leninistas. A tese de Fukuyama, em seus contornos filosóficos, ainda não foi desmentida pelos defensores do ancien régime leninista. Em outros termos, a boa e velha democracia burguesa, em que pese algumas rugas vitorianas, ainda não parece ter sido vencida por alguma “contradição insanável”, do tipo das que costumavam frequentar o universo conceitual do marxismo clássico. Em contrapartida, no terreno da economia, o ‘fim da Geografia’ parece mais à vista, sobretudo quando se considera o escopo espacial das atividades empresariais. O mundo material está sendo progressivamente unificado por uma ‘cultura comum’, senão da abundância, pelo menos de consumismo, posto que jovens iranianos de uma das teocracias mais reacionárias que possam existir, jovens chineses do “socialismo de mercado” e jovens bolivarianos de um novo socialismo surrealista, todos eles desejam encontrar satisfação para padrões de consumo relativamente similares: filmes série B de Hollywood, fast-food, iPhone, iPod e internet. Quem fica de fora – cubanos, coreanos do norte – está louco para entrar... Esse processo de constituição de um borderless-world não deve ser confundido com o pretenso ‘declínio do Estado-nação’, tendência já desmentida pelo acelerado ressurgimento do ‘nacionalismo’ nos mais diversos quadrantes do globo. O que ocorre, mais exatamente, é uma combinação do policentrismo interestatal com a unificação dos espaços geoeconômicos, nos quais as competências estritas dos Estados nacionais no terreno econômico passam a ser exercidas por blocos de integração (zonas de livre comércio, uniões aduaneiras ou mercados comuns). Em todo caso, não parece haver muito espaço para o socialismo nesse “admirável mundo novo” do ‘fim da Geografia’. Ele só consegue sobreviver nas academias esclerosadas de certas faculdades de ciências 328

sociais de universidades públicas de países periféricos, como mais uma demonstração de certas profecias corrosivas (como aquela de Millor Fernandes, que dizia que quando as ideologias ficam bem velhinhas, elas se mudam para certos países latino-americanos que conhecemos todos). Na prática, como as economias de mercado conseguem conviver com todos os tipos de regimes políticos, o que se tem é que o mercado e a democracia política convivem tranquilamente com esquemas diversos de controle social e de intervencionismo estatal, um pouco, aliás, como em diversos países periféricos do ‘capitalismo realmente existente’. Isso não representa exatamente um problema filosófico do ponto de vista das teses de Fukuyama: se a chamada ‘democracia burguesa’ conseguiu sobreviver durante tanto tempo, foi exatamente devido a seu caráter essencialmente ‘formal, ou seja, uma democracia simplesmente política, destituída de qualquer conteúdo real, em termos de direitos econômicos ou sociais. Contudo, a simples garantia da igualdade jurídica e da liberdade individual representa, ainda assim, um enorme passo à frente no itinerário da sociedade civil, pelo menos para grande parte da Humanidade. É possível, assim, que a administração da ‘coisa pública’ nesses regimes híbridos que existem no mundo real seja uma tarefa tão ‘aborrecida’ e fastidiosa quanto, digamos, a atividade política em certas democracias avançadas do Ocidente, algo que já tinha sido percebido por um filósofo tão pouco hegeliano quanto Norberto Bobbio. O fato, porém, de que nenhum sistema social humanamente concebido poderá resolver a contento a questão da distribuição dos bens raros e socialmente valorizados – e a mercadoria ‘poder’ é a primeira a inscrever-se nessa categoria – garante que os palcos da História continuarão, durante muito tempo, a ser excitantes. Não há, aqui, nenhum pessimismo de princípio quanto a que, no terreno do mundo material pelo menos, se possa um dia realizar a conhecida utopia socialista: “de cada um segundo suas capacidades, a cada um segundo suas necessidades”. Mas, é altamente improvável, conhecendo-se a natureza humana, que se possa cumprir, com ou sem ‘final da História’, a profecia engelsiana segundo a qual, no futuro, “o comando dos homens será substituído pela administração das coisas”. [iniciado: 14.08.2009; terminado: 13.01.2010]

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2101. “O Fim da História, de Fukuyama, vinte anos depois: o que ficou?”, Brasília, 13 janeiro 2010, 15 p. Considerações sobre a tese de Francis Fukuyama e o fim de alternativas às economias liberais de mercado. Publicado em Meridiano 47 (n. 114, janeiro 2010, p. 8-17; ISSN: 1518-1219; link: http://seer.bce.unb.br/index.php/MED/article/view/476/291); disponível em Academia.edu (link: https://www.academia.edu/5949002/2101_O_Fim_da_Historia_de_Fukuyama_vint e_anos_depois_o_que_ficou_2010_). Ensaio incorporado ao livro: Paralelos com o Meridiano 47: Ensaios Longitudinais e de Ampla Latitude (Hartford, 2015). Relação de Publicados n. 949.

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29. Um Tocqueville avant la lettre: Hipólito da Costa como founding father do americanismo

O francês Alexis de Tocqueville é geralmente considerado como um dos founding fathers da moderna ciência política, assim como dessa vertente especial das ciências sociais (que usualmente adota o método comparativo, mesmo se de forma inconsciente), voltada para o estudo das formações nacionais, no seu caso o “americanismo”. Com efeito, seu De la démocratie en Amérique tornou-se um clássico praticamente desde a publicação de sua primeira parte, poucos anos depois de sua viagem exploratória ao novo mundo, em 1831-32, a ponto de suscitar as maiores expectativas quanto à divulgação da segunda parte, vários anos depois. Esse trabalho sobre os fundamentos sociais da igualdade na jovem nação americana granjeou-lhe uma reputação de primeira grandeza, não apenas em sua França natal (onde ele logo galgou os degraus da Academia), mas igualmente nos países anglo-saxônicos. Poucos sabem, no entanto, que uma geração antes de Tocqueville, Hipólito José da Costa, muito antes de se estabelecer na Inglaterra, fugindo da Inquisição portuguesa, e de ali editar seu Correio Braziliense, viajou pela costa leste dos Estados Unidos, tendo deixado um pouco conhecido Diário de Minha Viagem para Filadélfia, 1798-1799, encontrado inédito na Biblioteca de Évora por Alceu Amoroso Lima e publicado pela Academia Brasileira de Letras em 1955. Não se tratou, propriamente, de um estudo de especialista, uma vez que o jovem (24 anos) português nascido na Colônia do Sacramento, criado no território do Rio Grande do Sul e formado em Coimbra, viajou a serviço do cortesão dom Rodrigo de Souza Coutinho, Conde de Linhares, futuro ministro dos negócios estrangeiros, tendo produzido um relatório específico e detalhado sobre suas observações agrícolas, industriais e botânicas nos Estados Unidos. Tratou-se, contudo, da primeira obra sobre os Estados Unidos escrita do ponto de vista de um observador do Brasil, preocupado em trazer para a colônia lusitana da América as espécies vegetais e animais e aqueles melhoramentos técnicos que julgava poder contribuírem para o engrandecimento de sua pátria de fato. Não destinado à publicação, mas sumamente adaptado ao formato do ensaismo bem informado, seu Diário poderia ser comparado, sem nenhum deslustro, a uma espécie de 331

Baedecker de alto voo, um ensaio intelectual que ainda hoje surpreende pela pertinência e acuidade das observações sociológicas, bem como pela atualidade dos seus julgamentos certeiros, a começar pelos hábitos e características da população, pela proliferação de sua “indústria religiosa” e por uma certa “rusticidade” de sua classe dirigente. Recém formado em direito por Coimbra em meados de 1798, Hipólito José da Costa recebe do conde de Linhares, menos de três meses depois, o encargo de fazer no território da América do Norte (Estados Unidos e México) o que se poderia designar, na moderna linguagem dos negócios, de comissão de prospecção econômica. Grande estadista português da transição para o século XIX, dom Rodrigo de Souza Coutinho ostentava uma concepção essencialmente econômica da administração pública, preocupando-se com a agricultura, o comércio, a gestão financeira e as novas práticas industriais. Foi provavelmente Linhares quem inculcou em Hipólito o gosto pelas questões econômicas, inclinação que ele manteve durante toda a sua vida, aliás revelada de maneira cabal nas páginas do seu “armazém literário”. Com efeito, a rubrica “commercio” (geralmente acompanhada das “artes”) vinha logo após a importante seção inaugural dedicada à política. Tão pronunciada era a tendência de Hipólito pelo estudo das questões econômicas que, em 1819, já no auge de sua carreira jornalística, ele protestava solenemente contra a velha proibição dos estudos de economia política na Universidade de Coimbra (“Os estudos de Economia Política são proibidos na Universidade de Coimbra e não sabemos que haja no Reino escolas em que se aprendam”; cf. Correio Braziliense, janeiro de 1819, vol. XXII, p. 84, citado por Mecenas Dourado, Hipólito da Costa e o “Correio Brasiliense”, Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército Editora, 1957, tomo I, p. 44). Na verdade, a missão nos Estados Unidos comportava um caráter sobretudo técnico, mais do que de prospecção de mercados ou de incentivo ao comércio. Tratavase de levantar os recursos naturais e apreciar os conhecimentos científicos que a jovem nação independente da América do Norte mobilizava em sua marcha ascensional para o progresso econômico. Em outros termos, o encargo comportava também aspectos que hoje em dia poderiam ser equiparados à “espionagem industrial ou tecnológica”, numa etapa histórica na qual os direitos de propriedade intelectual não desfrutavam da mesma proteção absoluta como na atualidade. O futuro “pai da imprensa” brasileira estava amplamente habilitado para fazê-lo, uma vez que, ademais dos conhecimentos práticos aprendidos em sua vida de fazenda no Rio Grande, ele tinha sido formado em outras 332

matérias que simplesmente filosofia e direito. Os estudos de filosofia em Coimbra comportavam, precisamente, o ensino de botânica, agricultura, zoologia, mineralogia, física, química e mineralogia, artes e disciplinas nas quais também se destacava o futuro “pai da independência”, José Bonifácio, frequentador das academias europeias. Quando Hipólito partiu para os Estados Unidos e o México, no final de 1798, ele era, portanto, nada mais do que um recém formado, alguém que de certa forma completou seu “mestrado” numa missão de trabalho, mais do que na forma de estudos suplementares, virtualmente inexistentes aliás. As instruções de Linhares eram no sentido de se obter informações as mais detalhadas possíveis sobre todos os progressos havidos na América do Norte no terrenos das artes práticas, das culturas agrícolas e dos ofícios ligados ao fabrico e manufatura de bens em geral, complementando a missão pelo encargo de recolher as espécimes e variedades de plantas e cultivos que se pudessem aproveitar em Portugal e na colônia brasileira. Nos Estados Unidos atenção especial deveria ser dada ao cultivo do tabaco, então concentrado em Maryland e na Virgínia, ao passo que no México, ademais de observar as minas de ouro e prata, a instrução essencial era a de lograr subtrair o inseto e a planta da cochinilha, iludindo a vigilância rigorosa das alfândegas espanholas. De tudo, Hipólito deveria mandar relatórios circunstanciados, o que ele obviamente fez de maneira rigorosa, ao despachar notícias teóricas e comentários práticos sobre tudo o que viu e ouviu em sua longa estada naquelas partes, nos anos finais do século XVIII. Nos Estados Unidos, Hipólito teve de, algumas vezes, fazer-se de diplomata, mesmo sem autorização para tanto ou diploma legal, por motivo da ausência do representante português, ministro Cipriano Ribeiro Freire. Mais importante do que esse exercício episódico de diplomacia, de fato mais bem em encargos consulares, foi a provável adesão de Hipólito, nessa estada, à maçonaria, possivelmente mais relevante na determinação de seu futuro destino político do que a missão de “espionagem industrial” pela qual iniciava sua vida profissional. Em todo caso, sua prospecção técnico-científica na América do Norte poderia ser também aproximada de uma missão de diplomacia econômica, não no sentido negocial, mas no de uma “embaixada” voltada para a informação a mais ampla possível sobre as capacidades naturais e os atributos humanos de uma potência amiga, como forma de habilitar a sua pátria (e a sua terra de formação) a competirem em melhores condições no grande jogo econômico das indústrias e do comércio que Linhares adivinha formavam a base da potência das nações. 333

Nessa missão Hipólito conheceu artesãos, cientistas e agricultores, ademais do futuro, Thomas Jefferson, e do então presidente dos Estados Unidos, John Adams, cuja informalidade e falta de protocolo surpreenderam um pouco o súdito de uma monarquia absoluta, rigorosa com o cerimonial. Seu “diário de viagem” não é uma simples coleção de observações naturalistas e agrícolas, pois que Hipólito tece considerações extensas sobre as religiões dos americanos e, mais importante, sobre questões econômicas e monetárias. Não deixou de notar a preferência dos americanos pelo comércio, mais que pela agricultura, e o seu gosto acentuado pela especulação, sendo o dinheiro um valor absoluto naquela sociedade. Já naquela época, os bancos emprestavam facilmente, acima das posses reais, animando os empreendimentos e facilitando as especulações mercantis, muito embora no interior do país a falta de dinheiro condenasse os produtores muitas vezes ao escambo. Ele observou, também, as tendências a falências abruptas e a uma mobilidade excepcional nos negócios, traços que ainda hoje marcam a modalidade peculiar do capitalismo americano. Como se vê, nada de muito novo em termos de funcionamento do sistema econômico, particularmente no que toca a “infectious greed” (apud e copyright Alan Greenspan) que não parece ter contaminado apenas recentemente os executivos das empresas americanos. Os Estados Unidos do final do século XVIII estavam obviamente longe de se constituírem em uma sociedade industrial e, de fato, eles se tornaram a primeira potência econômica do planeta apenas no final do século XIX, quando ultrapassaram o volume da produção industrial combinada da Grã-Bretanha e da Alemanha. Naquela conjuntura, os fluxos de comércio, as inovações técnicas e as finanças internacionais ainda eram dominados pelos países mais avançados da Europa, mas o “modo inventivo” americano já exibia todas as características sociais e financeiras que converteriam o país de uma sociedade agrária em potência industrial. Ainda que não descritas com tal estilo “sociológico” em seu diário de viagem, essas características empíricas da sociedade americana – mais do que qualquer teoria econômica ou doutrina comercial, das quais os EUA continuariam, aliás, sendo importadores líquidos pelo resto do século XIX – devem ter impressionado a mente do jovem Hipólito, determinando muito de suas reflexões pragmáticas posteriores sobre os problemas econômicos, comerciais e monetários “brazilienses”. Lido à distância de mais de dois séculos, não tanto pela sua forma mas pelo conteúdo efetivo, o Diário de Viagem de Hipólito sustenta muito bem a comparação com o bem mais cuidadosamente elaborado ensaio de Tocqueville, este sim feito para 334

expor aos franceses os contornos sociais e políticos do imenso laboratório humano e societal que então constituía a América do Norte. Justamente por não pretender, primariamente, à divulgação, as anotações e observações de Hipólito adquirem um caráter de ensaismo sociológico avant la lettre, possuindo todos os requisitos literários para figurar como obra fundadora do americanismo brasileiro, e quiçá universal. Seu diário é uma mina de boas trouvailles e de desconcertantes antecipações da sociedade americana, numa espécie de “planejamento utópico do futuro” (a expressão pertence ao filósofo da história Reinhart Koselleck) que confirma, também por antecipação, a densidade analítica e o gênio de “escrevinhador” do futuro jornalista (aliás único) do Correio Braziliense. Recomendação de leitura: Hipólito José Costa, Diário de Minha Viagem para Filadélfia, 1798-1799. Rio de Janeiro: Publicações da Academia Brasileira, 1955. O livro possui uma segunda edição (Porto Alegre: Livraria Sulina Editora, 1974) mas mereceria, de todo modo, ser traduzido para o inglês e publicado nos Estados Unidos.

947. “Um Tocqueville avant la lettre: Hipólito da Costa como founding father do americanismo”, Washington, 20 setembro 2002, 5 pp. Ensaio sobre o Diário de Minha Viagem para a Filadélfia, de Hipólito José da Costa, mostrando suas características pioneiras de primeira obra representativa do americanismo brasileiro. Publicado no Observatório da Imprensa (nº 191, 25.09.02; http://www.observatoriodaimprensa.com.br/artigos/al250920021.htm) com o título “Hipólito José da Costa, repórter”; e na Achegas, revista de ciência política (Rio de Janeiro, n. 9, 16.05.03; ISSN: 1677-1855; link: http://www.achegas.net/numero/nove/paulo_almeida_09.htm). Republicado em Meridiano 47 (Brasília: vol. 3, n. 28-29, novembro-dezembro 2002, p. 13-15; ISSSN 1518-1219; link para o boletim: http://periodicos.unb.br/index.php/MED/issue/view/558; link para o artigo: http://periodicos.unb.br/index.php/MED/article/view/4423/3702). Ensaio incorporado ao livro: Paralelos com o Meridiano 47: Ensaios Longitudinais e de Ampla Latitude (Hartford, 2015). Relação de Publicados n. 366 e 418.

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30. Reflexões a propósito do centenário do Barão (ou das dificuldades de ver no plano interno as razões de nossos problemas)

Em artigo publicado na Folha de São Paulo do dia 1º de setembro de 2002, o Embaixador Rubens Ricupero traça brilhante retrospecto da ação competente do Barão do Rio Branco à frente da chancelaria brasileira, do final de 1902 ao início de 1912. Está ali plenamente justificada a opção preferencial do Barão por uma estreita aliança com os Estados Unidos, em face do agressivo imperialismo europeu, então em seu auge expansionista. Os desafios se colocavam mais no plano global do que no regional, uma vez que neste o Barão soube negociar todas as pendências fronteiriças com pleno conhecimento de causa. Na arena internacional, porém, como escreve Ricupero, “os desafios globais tinham natureza diferente e pertenciam a outra esfera, a das relações com as grandes potências, perante as quais estávamos inferiorizados por um diferencial de poder tamanho que éramos obrigados a inventar um jogo defensivo mais sutil e indireto.” Daí a tentativa do Barão, em grande medida frustrada, de multilateralizar a doutrina Monroe, em torná-la um instrumento de defesa coletiva do continente em face da agressividade europeia, o que não foi logrado justamente porque os EUA estavam então adotando os mesmos métodos “civilizadores” dos europeus. Em todo caso, a estratégia política do Barão – de construir uma estreita aliança com os EUA – foi por Ricupero considerada como apropriada em seu contexto, sendo consagrada como norma da política externa brasileira nas fases subsequentes do período republicano: “As fórmulas do barão deram certo, convertendo-se por longos anos em paradigma incontornável da política externa brasileira.” Ricupero, no entanto, coloca a questão de saber se essa estratégia poderia ser adequada igualmente para nossa própria época, daí o sentido do seu título interrogativo: “O que faria o Barão?”. Diz Ricupero que, atualmente, “talvez pela primeira vez em um século, defrontamo-nos com dilemas tão desafiadores como os de 1902. Eles apresentam semelhanças de ordem geral com os do passado já que de novo temos de nos definir diante de alteração radical na estrutura mundial de poder e em relação a uma fase muito mais intensa de globalização.” A diferença, contudo, é que o império ameaçador tornouse aquele mesmo com o qual pretendíamos nos aliar um século atrás: “Desta vez, no entanto, não é o sistema multipolar a incorporar novo ator principal como os EUA, mas 336

são estes últimos que engolem o multipolarismo para concentrar quase todo o poder. O problema é saber se esse poder será exercido unilateralmente ou se será possível, em alguma medida, colocá-lo a serviço de ordem internacional consentida, tolerante, generosa e justa e que papel poderia ter a diplomacia brasileira nesse esforço.” Ricupero não traz respostas à questão de como conviver com esse novo desafio, nem especulando sobre o que faria o Barão, hoje, nem sobre o que ele mesmo propõe como estratégia defensiva ou ofensiva do Brasil nesse novo contexto. Sua conclusão soa quase como uma dúvida existencial do Brasil na presente conjuntura, na qual defensores e adversários do projeto da Alca se dividem em igual número por todo o espectro político e econômico nacional. Pergunta ele, à guisa de conclusão: “Será viável construir um tipo de inserção internacional que compatibilize uma Alca mais equilibrada e equânime com as oportunidades abertas pelo multilateralismo comercial em relação à Europa, à Ásia, a todas as regiões e países, essência da genuína globalização?” Minha presente reflexão, longe de pretender contestar a brilhante argumentação de Ricupero, vai no sentido de colocar uma interrogação mais profunda, vinculada à própria orientação da política externa ou, o que me parece ainda mais fundamental, ao problema da determinação das origens dos nossos problemas de inserção internacional e das raízes desses mesmos problemas. Observando o debate sobre a Alca e as demais negociações em que estamos engajados, sobre as alternativas de políticas comercial, industrial e diplomática que deveríamos implementar na próxima fase da consolidação econômica e democrática a partir de 2003, não posso deixar de registrar como os diferentes interlocutores sociais e políticos que intervêm nesse debate tendem a atribuir a fatores externos as principais fontes de desafios para o Brasil. De certa forma, os motivos de nossos desequilíbrios são dados, ora pelos tão vilipendiados capitais voláteis, ora pelo protecionismo europeu ou americano, qunado não pelo unilateralismo e prepotência dos países mais ricos, como no suposto projeto de “anexação colonial”, agora representado pela Alca. Frente a esses desafios, o Brasil sempre tendeu a adotar uma postura defensiva e retraída, como na luta contra a prepotência inglesa do século 19, que pretendia acabar com o tráfico negreiro, na resistência envergonhada contra as pressões de uma das mais velhas ONGs do mundo, a Anti-Slavery Society, à época engajada em ver acelerada a abolição da escravidão no Brasil, reclamando oficialmente contra a propaganda contrária que se fazia na Europa, no início do período republicano, à ida de emigrantes 337

para o Brasil – como se eles não fossem tratados praticamente como substitutos dos escravos nas plantações de café –, bem como contra, já então, os esforços dos EUA de constituir, no plano hemisférico, uma “customs union”, tal como proposta na primeira conferência americana de Washington, em 1889-1890, virtual antecessora do atual projeto da Alca. Nos anos 40 e 50 do século passado, por outro lado, quando toda a sociedade se mobilizava na tarefa da industrialização nacional, pretendíamos ter capitais estrangeiros para tal, mas de preferência sem o apêndice incômodo dos capitalistas estrangeiros, isto é, gostaríamos que os países ricos financiassem nosso esforço industrializador mediante adequada transferência de capitais mas preservando totalmente o controle sobre vetores e mecanismos desse processo. Tratava-se, como no século 19, de aceitar as benesses do mundo externo sem incorporar suas obrigações, em termos de educação das massas, de promoção de direitos sociais ou, mais prosaicamente, das obrigações e contrapartidas decorrentes de um mundo verdadeiramente interdependente. Em todos esses episódios e processos, o que chama a atenção é a dificuldade dos setores dominantes no Brasil em ver a origem dos problemas no próprio Brasil, em nossas esclerosadas estruturas sociais, em nosso deficiente aparelhamento produtivo, em nossa incapacidade em reconhecer que a ineficiência geral do sistema econômico deriva, essencialmente, da baixa qualificação geral do nosso povo, o que deriva, obviamente, dos níveis ínfimos de educação formal da maioria da população. Passa-se a imagem de que com um ambiente externo mais favorável – menos protecionismo, mais financiamento internacional, maior estabilidade de preços nos mercados mundiais, mais cooperação ao desenvolvimento sob a forma de transferência de tecnologia, maiores possibilidades externas, enfim, revertendo em maiores oportunidades internas – poderíamos impulsionar de forma decisiva e célere nosso processo de desenvolvimento econômico e social. Tenho um certo grau de respeito por essa visão “técnica” dos nossos principais problemas, inclusive pela forma competente como sabemos (e sempre soubemos) mobilizar, mediante uma diplomacia que demonstra uma certa competência técnica, essas “possibilidades externas” para convertê-las em oportunidades nacionais. Não posso, porém, deixar de receber com um certo sorriso de desconfiança essas tentativas nossas de transferir para outra esfera a origem de nossos problemas seculares de desenvolvimento, sempre postergando para depois a solução de questões cruciais que, elas sim, estão na raiz de nosso vergonhoso atraso social. Como explicar de outra forma 338

o fato, em si bastante auspicioso, de que tenhamos conseguido conformar a décima mais importante economia do planeta – depois de termos sido durante décadas os primeiros fornecedores de vários produtos primários, verdadeiros monopolistas de algumas commodities bastante transacionadas nos mercados mundiais – e continuarmos, por outro lado, a ostentar uma das mais indecentes estruturas de repartição social da renda que se conhece nesse mesmo planeta? Como conciliar, de um lado, a pujança de nossa indústria – nacional e multinacional – e a tremenda competitividade de nossa agricultura com, de outro lado, níveis tão iníquos de educação e saúde para milhões de nossos compatriotas? Não sei se esses fatos perturbam meus colegas diplomatas e, de forma geral, nossos líderes políticos, mas a mim isso causa um imenso desconforto, não apenas nas reuniões e conferências internacionais a que assisto por dever de ofício, mas como simples cidadão brasileiro, como pessoa humana pertencente a uma coletividade. Não posso, assim, deixar de reagir com um certo ceticismo – embora sadio, pois o pessimismo absoluto não constrói nada de permanente – a esses belos discursos em prol da soberania nacional e do desenvolvimento, de manutenção do tratamento preferencial e mais favorável para países em desenvolvimento, de aumento na cooperação internacional e do estabelecimento de regras especiais no comércio mundial para lidar com os “problemas específicos dos países em desenvolvimento”. Sou, sim, profundamento cético, para não dizer que sou virtualmente contrário, em relação às possibilidades criadoras dessa pretensa “importação de desenvolvimento”, talvez por acreditar, como já afirmava o saudoso Barbosa Lima Sobrinho, que “capital se faz em casa”, e que ele se faz, basicamente, mediante a formação de recursos humanos. Por isso gostaria de terminar estas reflexões repetindo a mesma fórmula de que utilizei-me em palestra efetuada no Instituto Rio Branco, em 2 de abril de 2002, por ocasião do lançamento de meu livro Formação da Diplomacia Econômica no Brasil: as relações econômicas internacionais no Império (São Paulo-Brasília: Senac-Funag, 2001). Se eu não corresse o risco de parecer demagógico, à pergunta de saber para quê, enfim, deveria servir nossa diplomacia, tida como excelente, eu responderia, simplesmente, que ela deveria servir para colocar crianças na escola, algo que continua a ser o nosso grande problema (e drama) nacional. Se admitirmos que já conseguimos colocar a maior parte dessas crianças na escola e que o problema não é mais este (mas ele ainda é, certamente, o do desempenho escolar), então eu diria que a diplomacia deveria servir, antes de mais nada, para melhorarmos a qualidade de nosso sistema 339

educacional, que continua a ser extremamente deficiente. De resto, de que adianta ter uma diplomacia avançada, mas um povo sem condições de competir na arena da economia mundial? Estas são, finalmente, as raízes de nosso medo diante da Alca e diante de outros tantos desafios do cenário internacional: não temos confiança em nós mesmo, pois que somos um povo fragilizado pela ausência, quase dois séculos depois de o País ter-se tornado independente e da existência de um Estado constituído, de uma verdadeira Nação, que ainda resta a construir em seu tecido social e em sua formação cultural. Como diplomata ou como cidadão, essa anomia estrutural me traz bastante desconforto, ao passo que os desafios apontados por Ricupero no cenário internacional nada mais são senão meros embates de interesses setoriais que saberemos conduzir da melhor forma possível. Mas eu me sentirei frustrado se, ao cabo desses processos negociadores e tendo sabido defender ao melhor possível os chamados “interesses nacionais” – com Alca ou sem Alca, não importa muito aqui –, eu olhar novamente para dentro e constatar que, finalmente, o cenário interno no Brasil mudou muito pouco, a despeito de um ou outra “vitória diplomática” no plano externo. Alternativamente, eu me sentirei sinceramente recompensado se, ao examinar novamente o itinerário da nossa diplomacia no início do século XXI – quando, por exemplo, completarmos dois séculos de exercício diplomático contínuo a partir do território nacional, em 2008 – puder constatar que essa diplomacia não precisará mais servir, ainda que hipoteticamente, para colocar crianças na escola. Se tivermos logrado vencer a batalha interna da formação do povo e da qualificação educacional da população eu me sentirei recompensado, como diplomata e como cidadão. Até lá, temos muito trabalho pela frente, e não apenas no plano da diplomacia econômica e comercial, ainda que este esforço continuado fosse apenas para manter e justificar nossa fama de excelentes. Na verdade, não me importa muito saber o que faria o Barão em face desse tipo de desafio, pois não o considero o mais importante que temos. De fato, não creio que necessitemos de um novo Barão – seja ele quem for: um diplomata genial ou toda uma categoria profissional tida por excelente – e sim de uma consciência clara de que nossos principais problemas não são de ordem externa e sim, todos, de natureza interna. Mãos à obra, portanto, pois tenho a impressão de que a história não absolverá nossa geração diplomática, se daqui até lá não contribuirmos com 340

todas as nossas forças para colocarmos o País real em compasso com a suposta excelência de sua diplomacia.

939. “Reflexões a propósito do centenário do Barão: (ou das dificuldades de ver no plano interno as razões de nossos problemas)”, Washington, 2 de setembro de 2002, 6 p. Ensaio sobre a relação entre nossos desafios externos e os problemas internos, em relação a texto de Rubens Ricupero sobre o centenário do Barão do Rio Branco e os desafios atuais para o Brasil no plano internacional. Publicado no Meridiano 47 (n. 28-29, novembro-dezembro 2002, p. 24-27; link: http://www.mundorama.info/Mundorama/Meridiano_47_-_1100_files/Meridiano_28_29.pdf). Ensaio incorporado ao livro: Paralelos com o Meridiano 47: Ensaios Longitudinais e de Ampla Latitude (Hartford, 2015). Relação de Publicados n. 358.

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31. Uma frase (in)feliz?: o que é bom para os EUA, é bom para o Brasil?

Ao ser confrontado com uma pergunta marota, no National Press Club, em sua primeira visita a Washington como presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva utilizouse de forma inteligente de uma antiga frase infeliz para revertê-la em seu favor. Perguntado por que razão o PT havia estabelecido uma parceria com o Partido Comunista da China, Lula saiu-se da seguinte maneira, tendo sido muito aplaudido, durante e após sua resposta: “Eu não conhecia a China muito bem, até que o governo americano fez da China seu parceiro comercial preferencial. E eu pensei comigo mesmo: ‘se é bom para os americanos, deve ser bom para os brasileiros.’ Nós vamos trabalhar muito estreitamente com a China, porque ela é um parceiro importante para os nossos objetivos comerciais.” (Transcrição parcial da seção de perguntas e respostas ocorrida no National Press Club, Washington, em 10 de dezembro de 2002.) Não tenho certeza de que essa resposta tenha sido ensaiada pelo presidenteeleito ou se foi totalmente espontânea, mas vários observadores registraram a recuperação, de modo inteligente, de uma antiga frase infeliz de Juracy Magalhães, antigo tenente dos anos 1920 e militar revolucionário de 1964, que caberia reproduzir em sua integridade e no contexto próprio. Perguntado por um repórter, em junho de 1964, com que espírito assumia seu novo posto, o então embaixador designado do Brasil em Washington foi cândido: “O Brasil fez duas guerras como aliado dos Estados Unidos e nunca se arrependeu. Por isso eu digo que é o que bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil” (cf. Juracy Magalhães, em depoimento a J. A. Gueiros, O Último Tenente. 3ª ed., Rio de Janeiro: Record, 1996, p. 325). Ele foi, então e depois, devidamente “massacrado” por todos, como entreguista e “sabujo” dos interesses americanos e “sua” frase passou à história, senão ao “folclore” político, como a própria confirmação da subserviência do governo militar à política do Império. O então embaixador americano no Brasil, Lincoln Gordon, esquivou-se de comentá-la de modo negativo, mas em privado considerava-a efetivamente como uma expressão infeliz, que em nada ajudou na conformação de uma boa imagem pública em prol do bom relacionamento entre duas nações soberanas.

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Antes de voltar ao contexto brasileiro, caberia agora atribuir o devido copyright dessa frase que, como se sabe igualmente, não pertence a Juracy Magalhães, mas procede de afirmação de um dirigente da General Motors, um dos grandes fabricantes americanos de automóveis. Trata-se, na verdade, de uma atribuição indireta, pois que a expressão foi empregada pelo novo presidente da GM, em 1946, Charles Wilson, a propósito da atitude do famoso dirigente da GM entre 1923 e aquele ano, Alfred Sloan, violentamente oposto às políticas de Franklin Roosevelt durante o New Deal. Sloan acreditava piamente, como colocado por Wilson em sua famosa frase, que “what was good for our country was good for General Motors – and vice versa” (cf. David Farber, Sloan Rules: Alfed P. Sloan and the triumph of General Motors. Chicago: University of Chicago Press, 2002). Ela tornou-se um ícone da colusão de interesses entre a grande indústria e o governo dos EUA e, depois da recuperação infeliz de Juracy Magalhães, um exemplo entre outros da colusão de interesses entre os governos do regime militar brasileiro inaugurado em 1964 e os interesses da grande potência americana. O presidente-eleito efetuou, portanto, por sua vez, uma recuperação bastante feliz de uma frase altamente suspeita e condenável que, agora, volta portanto a ter direito de existência numa relação bilateral que parece marcada por novos patamares de respeito mútuo. A pergunta tinha sido aliás especificamente dirigida ao relacionamento político entre o PT e o Partido Comunista Chinês, e ela foi respondida em sua vertente puramente comercial, o que não estava em causa na indagação feita em Washington (que incluía igualmente uma referência ao Foro de São Paulo). Não se pode deixar de reconhecer, em todo caso, uma notável capacidade do novo presidente – ou de sua equipe de imprensa – em adaptar de maneira simpática, e com bastante bom-humor, uma frase colocada – de maneira equivocada, aliás – no índex da “sabujice imperialista” ao novo contexto do relacionamento entre os dois maiores países do hemisfério. Não se pretende questionar aqui a utilização dessa frase no momento preciso em que ela foi “recuperada” para uma nova (e talvez promissora) existência política, mas ela certamente nos oferece a ocasião para uma reflexão mais ampla sobre o seu significado substantivo e sua adequação ao quadro das relações entre os dois países. Parece evidente, agora e no momento em que a frase foi empregada por Juracy Magalhães, que a despeito de qualquer boa intenção de princípio, as relações entre os EUA e o Brasil seguem o curso natural dos interesses concretos de cada um dos países, sem que uma expressão singela possa desviar a afirmação desses interesses do comprometimento de cada governo com objetivos nacionais próprios. 343

Nesse sentido, a frase é inócua, sem maiores efeitos na condução concreta das relações exteriores – bilaterais ou multilaterais – de cada um dos parceiros, ainda que ela possa ter assumido contornos mais precisos no contexto e no momento em que ela foi empregada, logo após o golpe militar que alinhou mais decisivamente a política internacional do Brasil aos objetivos estratégicos dos EUA, na região e fora dela. Assim, no ano seguinte, o Brasil participou da intervenção militar – soi-disant da OEA, mas de fato ditada por Washington – na República Dominicana, mas ele se recusou, logo depois, a colaborar com tropas ou outro tipo de ajuda com o esforço militar então conduzido pelos EUA no Vietnã, a menos de uma resolução do Conselho de Segurança a esse propósito, o que era obviamente irrealizável. Logo em seguida, o Brasil, que já tinha tido um ensaio de “política externa independente” no início dos anos 60, voltou a se “desalinhar” dos EUA e assim permaneceu desde então. Deixemos de lado, contudo, o contexto diplomático para indagarmos em que sentido a frase é válida, no entendimento mais geral dos objetivos nacionais de cada um dos países. Aqui parece igualmente evidente que, no sentido mais amplo, a frase carece de sentido, já que Brasil e EUA desempenham papéis diversos (não necessariamente opostos) no cenário internacional e não cabe ao Brasil ser “garantidor” da paz e da estabilidade internacionais, como compete aos impérios estabelecidos. Ainda assim, parece que o que é bom para os EUA – uma ordem internacional aberta aos fluxos de bens, capitais, serviços e pessoas, dotada de estabilidade e caracterizada por valores comuns compartilhados, como parecem ser a democracia, os direitos humanos e a defesa do meio ambiente – também o é para o Brasil, sem qualquer exclusivismo nesse plano mais geral das relações internacionais. No quadro específico das relações econômicas internacionais, não pareceria, tampouco, existir nenhuma oposição de princípio entre ambos os países, muito embora várias qualificações sejam utilizadas na tentativa de identificar objetivos particulares a cada um dos países que poderiam eventualmente ser vistos em oposição ou até mesmo em conflito. Assim, a questão da liberalização comercial, seja no plano multilateral (OMC), seja no hemisférico (Alca), que suscita comentários por vezes passionais sobre o “projeto globalizador americano” e a atitude mais cautelosa por parte do Brasil, em virtude de objetivos “desenvolvimentistas” que o fariam opor-se a uma abertura muito rápida de sua economia ou a concessões regulatórias que colocariam as grandes empresas dos EUA, “multinacionais” quase que por definição, em posição de nítida 344

vantagem em face de companhias brasileiras necessariamente de menor porte (nos campos de serviços, investimentos ou compras governamentais, por exemplo). Minha opinião é a de que os interesses de ambos os países não são diferentes ou divergentes – descartando, por um momento, o problema dos protecionismos setoriais e do subvencionismo desleal, notadamente em agricultura – mas, sim, que a percepção desses interesses pode diferir fortemente, em função de políticas econômicas colocadas em situação de descompasso recíproco, o que explica, aliás, a oposição, igualmente, entre os interesses dos EUA e da UE, já que ambas as economias, a americana e a europeia, são altamente desenvolvidas, totalmente capitalistas e supostamente dominantes no plano das relações econômicas internacionais. Grupos de interesse político, em cada uma das regiões divergem quanto aos custos da conversão implícita em qualquer processo de abertura, daí as resistências em aplicar os princípios que Adam Smith e David Ricardo já tinham descrito, há mais de dois séculos, como absolutamente racionais do ponto de vista do “interesse nacional” (isto é, do consumidor). Não vejo, de minha parte, qualquer oposição de princípio entre os interesses nacionais americanos e os interesses nacionais brasileiros na consecução de um sistema econômico interdependente e de fato mais integrado, inclusive a ponto de literalmente obliterar as fronteiras econômicas entre os dois países ou, numa escala mais ampla, no contexto hemisférico. Sei que os patrulheiros de plantão vão alertar para os mesmos argumentos “nacionalistas” ou “assimétricos” que comandariam, supostamente, uma defesa intransigente de fortes empresas nacionais brasileiras antes de aceitar qualquer abertura suplementar, bem como a manutenção de um poder decisório nacional em diversos ramos econômicos, que de outra forma estariam sendo “ameaçados” pela “lei do mais forte”. Esses argumentos não são lógicos, não são economicamente válidos – desde que observado o livre fluxo de fatores – e não são historicamente verificáveis, uma vez que a integração transfronteiriça sempre se dá em situação de assimetria relativa, o que redunda, usualmente, na elevação dos padrões produtivos da economia mais débil. Os exemplos historicamente verificáveis de integração – não estamos falando dos velhos exemplos da “colonização”, espectro ainda agitado pelos antialcalinos, por exemplo – sempre resultaram na elevação dos índices de produtividade e de renda das economias mais atrasadas. Que os EUA estejam querendo promover o que é “bom” para a sua economia e as suas empresas ao propor a Alca e novos capítulos de abertura econômica no âmbito multilateral parece tão evidente quanto a antiga luta dos “imperialistas britânicos” 345

contra o tráfico e a escravidão em economias periféricas como a brasileira do século XIX, quando já se falava de “dumping social” e “exploração indevida da mão-de-obra” (ao colocar o açúcar em melhores condições do que seu concorrente caribenho). Que esse processo se coloque contra os interesses do Brasil, poderia redundar, no século XIX ou agora, em justificar padrões menos avançados de organização da produção em nome de menores custos produtivos, colocados assim como uma vantagem comparativa absoluta no plano do comércio internacional. A questão parece situar-se, portanto, no plano dos custos de conversão, em face de especializações produtivas “naturais”, e das adaptações organizacionais e técnicas que se devem fazer no aparelho econômico da sociedade. Tudo tem um custo, obviamente, e a grande questão dos acordos de comércio se situa, precisamente, em como transferir esse custo para o seu vizinho. Resumindo a discussão, poder-se-ia dizer que o que é bom para os Estados Unidos deve ser igualmente bom para o Brasil – como argumentou instintivamente o presidente-eleito em seu primeiro périplo americano –, mas cabe aos brasileiros examinar atentamente, não para a qualidade do produto final, mas para a substância desse quê, uma vez que nem todas as receitas ou remédios são bons para todos os pacientes o tempo todo. Alguns podem gostar de se refrescar com Coca-Cola, outros podem precisar, ainda, de um bom Biotônico Fontoura, como recomendava o jovem Lobato na conjuntura histórica em que o Brasil era um país “essencialmente agrário” e exportador de café. Já não somos mais simplesmente agroexportadores – ao contrário, nossa principal exportação para os EUA são aviões sofisticados – mas nossas indústrias são relativamente “desmilinguidas” em relação às gigantescas companhias americanas. Enganam-se, porém, aqueles que pretendem “fechar” o país até que nossas indústrias cresçam e se fortaleçam e possam, assim, fazer face à concorrência internacional. Esquecem eles, por exemplo, que o mesmo Lobato recomendava a adoção dos métodos fordistas como solução para os eternos problemas do atraso brasileiro, aliás defendendo, antes disso, a adoção de uma moeda sólida como garantia de pujança econômica. Em outros termos, o que era bom para os EUA nos tempos de Lobato já era bom para o Brasil na mesma época, e foi justamente a ausência de políticas econômicas sólidas e consistentes com o fortalecimento da base nacional que nos deixou um legado de atraso e de subdesenvolvimento material – em grande medida mental, também – que arrastamos até hoje. 346

Podemos, portanto, evidenciar uma outra qualidade nesses exercício quase fútil de comparatismo cross-national entre dois países em torno de uma frase que tem sido usada extensivamente fora de seu contexto original e fora de seu contexto estrutural. O que poderia ser dito, numa interpretação intranacional, seria que o que aparece como bom para os EUA, em termos de políticas públicas e setoriais, deve ser igualmente bom para o Brasil, uma vez que aquele país conforma a mais bem sucedida economia capitalista de toda a história da humanidade (ainda que não socialmente mais avançada). Não existem, obviamente, modelos “gerais” de desenvolvimento que possam ser transplantados de um país a outro, mas existem instituições e mecanismos que podem ser mais (ou menos) favoráveis a determinados processos de acumulação de capitais, de inovação tecnológica ou de aperfeiçoamento cultural e educacional. Muitos preconceitos subsistem em torno dessas políticas macroeconômicas ou setoriais e permito-me voltar aqui à questão da percepção das políticas econômicas, tal como indicada mais acima. Por que, por exemplo, um sistema patentário extensivo seria benéfico à economia americana e absolutamente contraindicado no caso brasileiro? Por que disciplina fiscal e restrições emissionistas funcionam ao norte do hemisfério e ostentam um registro histórico tão lamentável do lado meridional? Por que um sistema de educação universal eficiente não existe aqui, quase duzentos anos depois da independência? Qual a legitimação moral e, mais importante, a validade econômica de pagar mais aos aposentados do setor público do que a seus congêneres da ativa? Se os Estados Unidos, invertendo agora a relação derivada daquela frase, tivessem seguido o Brasil nesse tipo de “política”, certamente eles estariam copiando aquilo que foi (e continua sendo) mau para o Brasil, independentemente das condições efetivas sob as quais poderia ter sido feito esse hipotético processo de crossfertilization. Mas, o fato de que não tenhamos tido a oportunidade ou não pudemos copiar o que era bom para os EUA – educação primária extensiva, proteção aos contratos e à propriedade intelectual, políticas econômicas que foram, grosso modo, benéficas e estimuladoras do ponto de vista do investimento privado, menor extração estatal dos recursos da sociedade –, em várias épocas mas sobretudo na era da segunda revolução industrial, quando os EUA se industrializaram, esse “fato” significou que nos isolamos num exclusivismo nacional que perpetuou o atraso econômico e o subdesenvolvimento cultural. Não se deve esquecer, por exemplo, que em contextos não de todo similares, mas relativamente contemporâneos ao do Brasil e de outros países emergentes (final do 347

século XIX), o Japão decidiu copiar absolutamente tudo o que era bom para os europeus e americanos, inclusive um parlamentarismo “inglês” de fachada e casacas burguesas. A partir de uma situação “feudal”, o país asiático emergiu como grande potência em muito pouco tempo, algo não totalmente comparável ao Brasil, que recém saia (aliás de modo relutante) de uma experiência escravista de quatro séculos sem se preocupar em integrar sua própria população negra. Isso também ocorreu com os EUA das plantations do deep South, mas o motor do desenvolvimento, naquele país, foi assegurado pelo “modo de produção inventivo” do Norte, não pelo atraso agrário do Sul. Neste sentido “civilizacional” – ou de “civilização material” – podemos afirmar que o que foi bom para os EUA, certamente teria sido para o Brasil também, ainda que saibamos perfeitamente que estruturas sociais funcionam segundo regras próprias, não sendo transplantáveis como plantas ou máquinas. Ainda assim, uma reflexão comparada entre experiências nacionais de desenvolvimento pode trazer ensinamentos úteis, como aliás recomendava o jovem Lobato ainda antes de vir morar durante três anos nos EUA. Talvez a frase adaptada de Juracy Magalhães (e a nova de Lula) mereça uma nova reflexão sobre o que deu certo e o que deu errado num Brasil ao mesmo tempo tão distante e tão próximo dos Estados Unidos. Ao trabalho, sociólogos comparatistas…

993. “Uma frase (in)feliz?: o que é bom para os EUA, é bom para o Brasil?”, Washington, 29 dez. 2002, 7 p. Reflexões sobre frase do presidente-eleito, pronunciada em Washington (em 10.12.02, especulando que o que seria bom para os EUA poderia ser também para o Brasil), fazendo um exercício de sociologia comparada de desenvolvimento entre os EUA e o Brasil. Publicado no Meridiano 47 (n. 30-31, jan./fev. 2003, p. 30-34; link: http://www.mundorama.info/Mundorama/Meridiano_47_-_1100_files/Meridiano_30-31.pdf). Disponível no site pessoal (link: http://www.pralmeida.org/05DocsPRA/992BomEUAbomBrasil.pdf). Relação de Publicados n. 390 e 398. Ensaio incorporado ao livro: Paralelos com o Meridiano 47: Ensaios Longitudinais e de Ampla Latitude (Hartford, 2015).

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32. O Instituto Brasileiro de Relações Internacionais e a Revista Brasileira de Política Internacional: contribuição intelectual, de 1954 a 2014

Em 27 de janeiro de 1954, um pequeno grupo de intelectuais, de funcionários públicos e de profissionais liberais se reuniu no Palácio Itamaraty do Rio de Janeiro, sede do Ministério das Relações Exteriores desde o início da República, e tomou a decisão de criar a primeira instituição brasileira especificamente dedicada ao estudo da política internacional e de questões atinentes às relações exteriores do Brasil: o Instituto Brasileiro de Relações Internacionais (IBRI). Ele foi definido, nos seus estatutos, como uma sociedade civil com finalidades culturais, com o objetivo de “realizar, promover e incentivar estudos sobre problemas internacionais, especialmente os de interesse para o Brasil”. Condizente com a sede que abrigava o conclave, o IBRI congregaria, ao longo de sua existência continuada, vários diplomatas engajados em suas atividades, assim como devotaria parte de seus esforços analíticos e das iniciativas empreendidas nos anos e décadas seguintes ao registro, à exposição, para um público mais vasto, e à discussão dos mais diversos temas vinculados à relações internacionais, em especial ao pensamento e à ação da diplomacia brasileira. Uma primeira grande iniciativa concretizou-se quatro anos depois, sob a forma de um periódico, a Revista Brasileira de Política Internacional (RBPI), o mais antigo e o mais prestigioso dos veículos especializados em temas internacionais no Brasil (ver o n. 1 neste link: http://cafemundorama.files.wordpress.com/2013/10/rbpi_1958_1.pdf). Ambos, o IBRI e a RBPI, passaram por diferentes etapas em seus itinerários respectivos de mais de meio século, em duas fases bem caracterizadas: a do Rio de Janeiro, de 1954-58 até 1992, e a de Brasília, a partir de 1993 aos nossos dias. Um pouco de sua história, ao completar o IBRI meio século de vida, foi recapitulada por este autor na nota comemorativa “Instituto Brasileiro de Relações Internacionais: 50 anos de um grande empreendimento intelectual” (Revista Brasileira de Política Internacional, vol. 47, n. 2, 2004, p. 223-226; link: http://www.scielo.br/pdf/rbpi/v47n2/v47n2a08.pdf). Este pequeno texto não tem a intenção de refazer a história da instituição e a de seu principal veículo de divulgação nas mais de seis décadas decorridas desde as iniciativas pioneiras, mas buscará, tão somente, oferecer um panorama, embora seletivo, da produção intelectual em temas das relações internacionais e de política externa do 349

Brasil nesse período. Um sobrevoo geral permite constatar certas constâncias, ou seja, a recorrência das mesmas questões ao longo desse itinerário, mas também muitas transformações, como parece inevitável, tanto no plano propriamente doméstico, quanto no da política internacional e da economia mundial. O Brasil e a região não parecem ter mudado significativamente de posição no contexto dos cenários geopolíticos que se sucederam desde 1954: Guerra Fria, distensão global, crises e derrocada do comunismo, emergência de novos equilíbrios nos planos regional e mundial, etc. A despeito dessas grandes alterações da ordem mundial, o Brasil e a América Latina talvez não tenham um peso maior, atualmente, do que aquele que tinham no início do período. Não obstante, algumas estruturas econômicas e as formas de participação do país e da região nos assuntos da política mundial podem ter sido substancialmente alteradas, em alguns casos para um melhor posicionamento, em outros casos apenas confirmando o papel excêntrico, relativamente secundário, para não dizer marginal, assumido pelo Brasil e pela região no contexto mais vasto das relações internacionais e, sobretudo, no quadro dos grandes equilíbrios geopolíticos entre os atores determinantes da politica e da economia mundiais. Em termos claros, o Brasil e a América Latina contam pouco nos cenários decisivos da paz e da segurança internacionais, mas também no das grandes dinâmicas econômicas – tecnológicas e financeiras, sobretudo – que movimentam a interdependência global; na verdade, eles podem até ter perdido terreno para a Ásia nessa segunda área, já sendo pouco influente na primeira. Esta última afirmação pode parecer depreciativa do papel ou da importância que se costuma emprestar – no mais da vezes auto-atribuída – ao Brasil nesses contextos, uma vez que tanto as elites políticas, quanto o establishment diplomático e a corporação militar têm por hábito ressaltar a relevância da participação do Brasil nesses cenários de variada significação para os grandes objetivos multilaterais da preservação da paz e da segurança internacionais, e para a promoção dos objetivos ainda mais decisivos relativos ao desenvolvimento econômico e ao progresso social dos povos e dos Estados membros da comunidade internacional. Se formos compulsar, porém, a obra mais recente que trata justamente dos grandes equilíbrios mundiais e dos problemas remanescentes para a consolidação de uma ordem internacional estável, pacífica e promotora dos direitos humanos, da segurança e da paz, escrita por um especialista reconhecido, teremos exatamente a confirmação do argumento defendido neste ensaio. Com efeito, Henry Kissinger, em seu livro mais recente, World Order (New York: Penguin Press, 2014), não devota nem mesmo um capítulo, sequer uma mísera 350

seção, à América Latina ou ao Brasil, nas dez grandes unidades da obra, todas elas dedicadas aos grandes atores ou aos problemas percebidos como relevantes para o estabelecimento ou a preservação de uma ordem que de fato não existe. Para ser mais preciso, a América Latina não aparece sequer no índice remissivo do livro, embora nele exista uma entrada para western hemisphere. O Brasil é mencionado duas vezes, ambas en passant e de maneira irrelevante: a primeira para falar sobre o impacto mundial das revoluções europeias de 1848, a segunda na companhia da Índia (que recebe tratamento mais amplo nos capítulos asiáticos da obra) como exemplo de nações emergentes. Tal tipo de abordagem, registrando apenas os atores que contam nos equilíbrios mundiais das relações internacionais nos últimos cinco séculos, parece realista, a despeito de negativa para a autoestima de alguns. Não obstante a marginalidade relativa do Brasil e do continente para a ordem mundial na concepção de Kissinger, cabe reconhecer que o Brasil aumentou sua presença nos cenários econômico e político mundiais desde 1954, reforçando sua posição relativa no sistema internacional nas seis décadas decorridas desde então, tal como refletido na produção acadêmica acumulada no período. Em todo caso, uma história intelectual das relações exteriores e da diplomacia brasileira nas últimas seis décadas seria incompleta se deixasse de mencionar o papel relevante desempenhado pelo IBRI, desde sua fundação, e sobretudo pela RBPI, a partir de 1958. Uma distinção quanto à natureza dessa influência ao longo do tempo deve ser feita no que respeita o IBRI e no tocante à revista. A associação de muitos diplomatas lotados no Rio de Janeiro, em meados dos anos 1950, à fundação e funcionamento do IBRI nos primeiros anos permite estabelecer uma clara vinculação conceitual entre os temas discutidos nas reuniões do IBRI e transplantados para a revista desde seu aparecimento e publicação trimestral e a agenda do Itamaraty nos anos imediatamente anteriores ao regime militar. Pode-se dizer, sem hesitação, que os membros civis e os diplomatas ativos no IBRI, e os focos de discussão e análise na RBPI exibem uma espécie de osmose intelectual com os grandes temas da política externa brasileira e seu tratamento pelo Itamaraty e pela própria presidência da República. Esses grandes temas referem-se ao relacionamento bilateral Brasil-Estados Unidos, no contexto da Guerra Fria, aos primeiros passos da integração regional, o lançamento da Operação Pan-Americana pelo governo Kubitschek, a criação do BID e da Alalc, o problema de Cuba e seu encaminhamento na OEA, a emergência e afirmação da chamada “política externa independente” – presente, implicitamente, desde o início na revista, antes mesmo de se tornar explícita nos governos Jânio e 351

Goulart – e a mobilização ativa do Brasil e dos países em desenvolvimento em torno da problemática do desenvolvimento, primeiro tratada no âmbito da Cepal, depois transplantada – inclusive porque o diretor, Raul Prebisch, era o mesmo – no quadro da Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento, cujo primeiro encontro se deu, aliás, ao mesmo momento em que caia o governo Goulart e tinha início o governo militar. Todas essas questões figuram nas páginas da revista, como uma consulta sumária aos índices dos números relativos a esses anos iniciais pode revelar (ver a coleção completa neste link: http://mundorama.net/category/2-biblioteca/rbpi/). Qualquer pesquisa sobre a diplomacia brasileira no período não pode, assim, dispensar esse recurso, muitas vezes até como fonte primária. Numa época em que o Itamaraty publicava, se tanto, burocráticos relatórios anuais de suas atividades – e estes não eram tão detalhados, mas ao contrário, eram bem menos copiosos do que os antigos relatórios da Secretaria de Estado dos Negócios Estrangeiros, no Império – e algumas poucas publicações avulsas, a seção documental da RBPI invariavelmente fazia a transcrição dos principais expedientes da diplomacia oficial: discursos, documentos de posição, atas de reuniões, textos de tratados e de outros atos internacionais, geralmente traduzidos pelos próprios diplomatas que colaboravam com a revista. No início do governo militar, por sinal, os relatórios de atividades do Ministério se rarefizeram, o que tornam ainda mais úteis esses números trimestrais da RBPI, a despeito do eventual retraimento de alguns diplomatas ante a nova situação política e suas orientações mais alinhadas à diplomacia tradicional da era da Guerra Fria. Embora tenham ocorrido poucos episódios de enquadramento da corporação ao novo Zeitgeist, e até algumas baixas entre os opositores identificados – foi o caso, por exemplo, do embaixador Jayme Rodrigues, segundo na delegação brasileira à Unctad –, a revista continuou a dar ênfase aos seus temas habituais. O novo editor, o historiador e ex-professor do Instituto Rio Branco José Honório Rodrigues – que deu início a uma revista “concorrente”, a Política Externa Independente, que sobreviveu a três corajosos números entre 1964 e 1966 – preparou números temáticos sobre os temas econômicos do momento, a dependência do Brasil das exportações de commodities e a reforma do sistema multilateral de comércio; as questões da política nuclear, do direito do mar e vários outros que estavam ativamente presentes na agenda de trabalho da diplomacia brasileira também comparecem nas páginas da RBPI com muita frequência (ver o número especial sobre os 40 anos da revista, em 1998, bem como o editorial assinado 352

por Antônio Carlos Lessa e Paulo Roberto de Almeida, no vol. 47-1, junho de 2004, por ocasião dos cinquenta anos do Instituto, ambos disponíveis na plataforma Scielo). É provavelmente esse espírito da revista, e do próprio Instituto, que explica a relativamente rápida retomada das posições da “política externa independente” já no segundo governo do regime militar, a despeito das limitações políticas da época e de alguns cânones ideológicos identificados com o espírito de caserna dos dirigentes. A sua influência foi, no entanto, sendo progressivamente diminuída depois que o ministério e todo o corpo diplomático presente no Rio de Janeiro tiveram de operar a mudança para a nova capital, no início dos anos 1970, o que culminou com a transferência do próprio Instituto Rio Branco, em 1975. O IBRI e a RBPI foram perdendo realce e prestígio nos meios que eles mais influenciavam: a própria corporação profissional do Itamaraty, o corpo diplomático e os muitos acadêmicos e altos funcionários que sempre gravitaram em torno desse antigo empreendimento na capital cultural do país. Seguiu-se uma trajetória de declínio, quando o IBRI já era praticamente virtual e a revista continuava a ser mantida – financiada, editada e distribuída – graças aos esforços solitários de Cleantho de Paiva Leite, seu grande promotor e animador nas duas décadas restantes de sua fase carioca. Sua morte, em outubro de 1992, sinalizou o fim de uma época e o início de outra, tanto para o IBRI quanto para a RBPI, que se tornaram menos policyoriented, e mais deliberadamente voltados para o mundo acadêmico. Essa orientação, adotada a partir da transferência – de fato a recriação, tanto no que concerne o IBRI, fundado novamente, quanto a revista – para Brasília representou na verdade uma dinamização e uma potencialização das possibilidades intelectuais e de disseminação para um público mais vasto de ambos instrumentos. O IBRI passou a organizar seminários e outros eventos tipicamente acadêmicos, firmou convênios com outras instituições, a começar com a Fundação Alexandre de Gusmão, do Itamaraty, publicou muitos livros – geralmente em coedição com editoras comerciais ou da área acadêmica e diplomática – e adquiriu um novo prestígio, graças à sua íntima associação com o Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília, que fornece a quase totalidade dos recursos humanos, e muitos dos recursos materiais, necessários às suas atividades. O Professor José Carlos Brandi Aleixo, seu primeiro diretor na fase de Brasília, permanece como presidente de honra, em vista de seu trabalho meritório nos primeiros esforços de soerguimento da antiga instituição inaugurada em 1954. Quanto à revista, ela não apenas recuperou suas excelentes qualidades analíticas dos anos do Rio de Janeiro, quanto cresceu exponencialmente em prestígio e audiência 353

internacionais, o que é confirmado pela ampla gama de instrumentos de citação e de indexação de âmbito mundial. Dois nomes foram essenciais para essa feliz evolução institucional e intelectual: o professor emérito Amado Luiz Cervo, seu primeiro editor durante os primeiros dez anos da fase de Brasília, e desde 2004 o professor Antônio Carlos Lessa, que imprimiu notável modernização editorial e gráfica à revista, bem como atuou de forma decisiva para inculcar-lhe os mais rigorosos padrões de qualidade propriamente acadêmica (ver a coleção: http://ibri-rbpi.org/category/edicoes-da-rbpi/). Ela é parte de um esforço mais amplo que também vem acompanhado de outros veículos e instrumentos de pesquisa e publicação, como a antiga plataforma Relnet e, desde muitos anos, a plataforma Mundorama. Por iniciativa do prof. Lessa, em 2000, foi criado o Boletim Meridiano 47, cujo significado foi explicado em seu primeiro número nestes termos: “Meridiano 47 é uma homenagem que o IBRI faz a Brasília (cidade cortada por aquela linha), onde está funcionando desde 1993, com o que renova o seu compromisso permanente com a análise de alto nível na área de relações internacionais, há muito firmado com a publicação ininterrupta da Revista Brasileira de Política Internacional - RBPI, que desde 1958 é testemunha e muitas vezes veículo preferencial dos movimentos intelectuais e políticos que renovaram a ação internacional do Brasil, assumindo desde logo um papel de relevo na cultura política e acadêmica do país.” (n. 1 do boletim, neste link: http://periodicos.unb.br/index.php/MED/article/view/4774/4007) O quadro analítico ao final deste ensaio tenta seguir esse longo itinerário a partir de uma compilação seletiva da produção intelectual em relações internacionais e sobre a política externa do Brasil, tal como repercutida em obras de acadêmicos, de diplomatas profissionais e de alguns poucos analistas estrangeiros, obras que foram consideradas relevantes para enquadrar essa rica evolução intelectual e prática do pensamento e da própria ação da diplomacia brasileira. Ele fornece um rápido instrumento de consulta sobre os trabalhos mais importantes publicados no Brasil nas últimas seis décadas, com destaque para a própria RBPI, ademais de uma seleção dos livros já integrados à literatura desses campos, e que marcaram cada um desses anos de aprofundamento analítico e de crescimento intelectual. O IBRI e a RBPI são peças destacadas, e certamente meritórias, desse cenário de realizações intelectuais, como tais destinados a perdurar no futuro previsível, num ambiente certamente mais competitivo do que o das primeiras décadas, e por isso mesmo mais estimulante em termos de rigor analítico e de preservação dos padrões de qualidade que sempre foram os seus. 354

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Compilação seletiva da produção acadêmica e profissional em relações internacionais e em política externa do Brasil, de 1954 a 2014 Fundação do Instituto Brasileiro de Relações Internacionais, no Palácio Itamaraty, RJ; Cassiano Ricardo: O Tratado de Petrópolis; Lygia Azevedo e José S. da Gama e Silva: Evolução do Ministério das Relações Exteriores; Lançamento do Boletim da ADESG (em 1968: Segurança e Desenvolvimento). Afonso Arinos: Um Estadista da República: Afrânio de Melo Franco e seu tempo; Álvaro Teixeira Soares: Diplomacia do Império no Rio da Prata. Revista do Clube Militar: Delgado de Carvalho e Therezinha de Castro: A Questão da Antártica. A. J. Bezerra de Menezes: O Brasil e o mundo ásio-africano; João Neves da Fontoura: Depoimentos de um ex-ministro. Lançamento da Revista Brasileira de Política Internacional - RBPI; no Rio de Janeiro de1958 a 1992; ano I, n. 1: Raul Fernandes: O malogro da segurança pela união das nações e a liderança americana; Hermes Lima: A conferência econômica da Organização dos Estados Americanos; ano I, n. 2: Oswaldo Aranha: Relações diplomáticas com a União Soviética; José Garrido Torres: Por que um mercado regional latino-americano?; ano I, n. 4: O. A. Dias Carneiro: Interesses políticos e econômicos dos Estados Unidos na América Latina; Hélio Jaguaribe: O Nacionalismo na Atualidade Brasileira; Hélio Vianna: História diplomática do Brasil; Caio de Freitas: George Canning e o Brasil; Gilberto Freyre: Sugestões em torno de uma nova orientação para as relações internacionais do Brasil. Carlos Delgado de Carvalho: História diplomática do Brasil; Luís Vianna Filho: A vida do Barão do Rio Branco; RBPI: ano II, n. 5: Barreto Leite Filho: OPA, primeiro ano de discussões e negociações; ano II, n. 6: Cleantho Leite: Banco Interamericano de Desenvolvimento; Georges D. Landau: Política internacional e assistência técnica; ano II, n. 7: João Carlos Muniz: Significado da Operação PanAmericana; ano II, n. 8: Roberto de Oliveira Campos: Relações Estados Unidos-América Latina: uma interpretação; Luís Bastian Pinto: A política exterior do Brasil na América Latina. Carlos de Meira Mattos: Projeção Mundial do Brasil; Licurgo Costa: Uma nova política para as Américas: Doutrina Kubitschek e OPA; Delgado de Carvalho e Therezinha de Castro: Atlas de Relações Internacionais; RBPI: ano III, n. 9: Celso A. de Souza e Silva: Operação Pan-Americana: antecedentes e perspectivas; ano III, n. 10: Cleantho de Paiva Leite: Associação Internacional de Desenvolvimento; Garrido Torres: Operação Pan-Americana: uma política a formular; ano III, n. 11: Oliver Ónody: Relações comerciais do Brasil com o Bloco Soviético. José Honório Rodrigues: Brasil e África: outro horizonte; A. J. Bezerra de Menezes: Ásia, África e a política independente do Brasil; Foreign Affairs: Jânio Quadros: Brazil’s new foreign policy; RBPI: ano IV, n. 13: Alceu Amoroso Lima: Os Estados Unidos e a América Latina; ano IV, n. 14: Josué de Castro: Uma política de combate à fome na América Latina; ano IV, n. 15: Roberto de Oliveira Campos: Sobre o conceito de neutralismo; Lincoln Gordon: Relações dos Estados Unidos com a América Latina, especialmente o Brasil; ano IV, n. 16: Glycon de 355

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Paiva: Problemática mineral brasileira. San Tiago Dantas: Política externa independente; Revista Tempo Brasileiro: Cândido Mendes de Almeida: Política externa e nação em progresso; Revista de História: Virgílio Corrêa Filho: O chanceler imortal: o Barão do Rio Branco; International Affairs (Londres): José Honório Rodrigues: The Foundations of Brazil’s Foreign Policy; RBPI: ano V, n. 17: Alceu Amoroso Lima: A posição do Brasil em Punta del Este; ano V, n. 18: Barbosa Lima Sobrinho: O Brasil e a encampação de concessionárias estrangeiras; José Honório Rodrigues: O presente e o futuro das relações africano-brasileiras; ano V, n. 19: Otávio Dias Carneiro: O comércio internacional de produtos de base. Candido Mendes de Almeida: Nacionalismo e Desenvolvimento; J. A. Soares de Souza: A Missão Bellegarde ao Paraguai, 1849-1852; José Honório Rodrigues: Aspirações Nacionais; Sérgio Macedo: De Tordesilhas à OPA: um resumo da história diplomática do Brasil; Arnaldo Vieira de Melo: Bolívar, o Brasil e nossos vizinhos do Prata: da questão de Chiquitos à Guerra da Cisplatina; Vamireh Chacon: Qual a política externa conveniente ao Brasil? RBPI: ano VI, n. 21: Henrique Valle: O Brasil e a ALALC; ano VI, n. 22: José Maria Gouveia Vieira: A economia internacional do século XX. Antônio Olinto: Brasileiros na África; M. Franchini Netto: Diplomacia, instrumento da ordem internacional: história, transformação, atualidade; Sylvio Monteiro: A Ideologia do Imperialismo; RBPI: ano VII, n. 25: Octávio A. Dias Carneiro: Problemas de comércio internacional de produtos de base; ano VII, n. 26: Relatório de Raul Prebisch para a Unctad: Uma Nova Política Comercial para o Desenvolvimento; ano VII, n. 27: especial Sobre Santiago Dantas: Estudos, conferências e discursos; ano VII, n. 28: Ata Final da primeira Unctad; Pinto Ferreira: Capitais Estrangeiros e Dívida Externa do Brasil; Edmar Morel: O Golpe começou em Washington; Lançamento da revista Política Externa Independente (3 números); PEI: José Honório Rodrigues: Por uma política externa própria e independente; Maria Y. L. Linhares: Desenvolvimento e política internacional; RBPI: ano VIII, n. 30: especial sobre a encampação das concessionárias estrangeiras-I; ano VIII, n. 31-32: especial sobre a encampação das concessionárias estrangeiras-II. Celso Furtado: Desenvolvimento e estagnação na América Latina; Mário Pedrosa: A Opção Imperialista; José Honório Rodrigues: Interesse Nacional e Política Externa; RBPI: ano VIII, n. 33-34: Acordo de Garantia de Investimentos entre Brasil e Estados Unidos I; ano IX, n. 35-36: Acordo de Garantia de Investimentos entre Brasil e Estados Unidos, II. F. H. Cardoso e Enzo Faletto: Dependência e desenvolvimento na América Latina; J. O. Meira Penna: Política externa: segurança e desenvolvimento; RBPI: ano X, n. 37-38: Especial: Política Nuclear Brasileira; ano X, n. 39-40: Otávio Dias Carneiro: Estruturas econômica nacionais e relações internacionais; Jayme Magrassi de Sá: O BNDE e os financiamentos externos; Celso Lafer: Uma interpretação do sistema de relações internacionais do Brasil.

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J. R. Amaral Lapa: A Bahia e a carreira da Índia; Darcy Ribeiro: As Américas e a Civilização; RBPI: ano XI, n. 41-42: Especial: Amazônia; Arthur Cézar Ferreira Reis: Porque a Amazônia deve ser brasileira; Robert Panero: Um sistema sulamericano de Grandes Lagos; Herman Kahn & Robert Panero: Novo enfoque sobre a Amazônia; General Frederico Rondon: Diretrizes de uma planificação para o desenvolvimento regional da Amazônia; ano XI, n. 4344: Especial: II UNCTAD. Revista de História: Pedro Moacyr Campos: As relações do Brasil com a Alemanha durante o Segundo Reinado; RBPI: ano XII, n. 45-46: Especial Bacia do Prata; Clovis Ramalhete: Novos problemas jurídicos do Prata; Oscar Camilión: Relações entre Brasil e Argentina no mundo atual; ano XII, n. 47-48: Especial sobre Direito do Mar. Juracy Magalhães: Minha experiência diplomática; Delgado de Carvalho: Civilização Contemporânea; RBPI: ano XIII, n. 49-50: Emb. J. A. Araújo Castro: Fundamentos da paz internacional: balança de poder ou segurança coletiva e As Nações Unidas e a política do poder; Mario Gibson Barboza: Política Brasileira de Comércio Exterior; Mozart Gurgel Valente: Relações comerciais entre Brasil e EUA; ano XIII, n. 51-52: Especial Produtos de Base. Delgado de Carvalho: Relações Internacionais; A. Teixeira Soares: Um Grande Desafio Diplomático no Século Passado: navegação e limites na Amazônia; G. E. Nascimento e Silva: A Missão Diplomática; RBPI: ano XIV, n. 53-54: Emb. Araújo Castro: Continente americano dentro da problemática mundial; General Rodrigo Otávio Jordão Ramos: As Forças Armadas e a integração da Amazônia; Miguel Osório de Almeida: Desenvolvimento econômico e preservação do meio ambiente; ano XIV, n. 55-56: Glycon de Paiva: Estágios do desenvolvimento econômico. Frank McCann: The Brazilian-American Alliance, 1937-1945; Revista Brasileira de Estudos Políticos: Emb. Araújo Castro: O congelamento do poder mundial; RBPI, ano XV, n. 57-58: Especial sobre o Brasil na III UNCTAD; Amaury Bier: Negociações comerciais multilaterais no âmbito do GATT à luz dos resultados da III UNCTAD; ano XV, n. 59-60: Guilherme Arroio: Sistema Geral de Preferências: Análise dos principais aspectos do Sistema Geral de Preferências Tarifárias, um dos resultados mais concretos da Unctad. Celso Lafer e Felix Peña: Argentina e Brasil no sistema de relações internacionais; Moniz Bandeira: Presença dos Estados Unidos no Brasil: dois séculos de história; RBPI: ano XVI, n. 61-62: Ronaldo Costa: Participação dos países em desenvolvimento no comércio internacional; ano XVI, n. 63-64: General Carlos de Meira Mattos: O poder militar e a política internacional. O. Ianni: Imperialismo na América Latina; Wayne Selcher: The Afro-Asian dimension of Brazilian foreign policy, 1956-1972; RBPI: ano XVII, n. 65-68: Ramiro S. Guerreiro: Organismos internacionais: conceitos e funcionamento; Eduardo Pinto: Brasil: os difíceis caminhos da energia nuclear; Stanley Hilton: Brazil and the great powers, 1930-1939: the politics of trade rivalry; Carlos E. Martins: Brasil-Estados Unidos: dos anos 60 aos 70; José 357

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Honório Rodrigues: Independência: Revolução e contra-revolução, a política internacional; RBPI: ano XVIII, n. 69-72: Especial: Nova Ordem Mundial: aspectos políticos, econômicos, tecnológicos; Celso Lafer: Evolução da política externa brasileira; Cadernos CEBRAP: Carlos Estevam Martins: A evolução da política externa brasileira na década 1964-74. Terezinha de Castro: Rumo à Antártica; William Perry: Contemporary Brazilian Foreign Policy: the international strategy of an emerging power; Luciano Martins: Pouvoir et Développement Économique: formation et évolution des structures politiques au Brésil; RBPI: ano XIX, n. 73-76: CPI das Multinacionais (1ª parte). Pedro Malan et ali: Política econômica externa e industrialização do Brasil (1939-52); Celso Lafer: Comércio e relações internacionais; Ronald Schneider: Brazil: Foreign Policy of a Future World Power; Roberto Gambini: O Duplo Jogo de Getúlio Vargas; Carlos Meira Mattos: A geopolítica e as projeções do poder; RBPI: ano XX, n. 77-80: CPI das Multinacionais (2ª parte). Luis Alberto Bahia: Soberania. Guerra e Paz; RBPI: ano XXI, n. 81-84: Clóvis Brigagão: Cancelamento do Acordo Militar Brasil-EUA; Lançamento em Brasília da revista Relações Internacionais: Amado Cervo: Os primeiros passos da diplomacia brasileira; Celso Lafer: O convênio do café de 1972: da reciprocidade no direito internacional econômico; A.A. Cançado Trindade: O Estado e as Relações Internacionais; Ana Célia Castro: As empresas estrangeiras no Brasil, 1860-1913; RBPI: ano XXII, n. 85-88: Especial: A Crise Energética Mundial: Amaury Porto de Oliveira: A natureza política do preço do petróleo; Adilson de Oliveira, João L. R. H. Araújo e Luiz Pinguelli Rosa: Impasse atual e perspectivas a longo prazo da política energética no Brasil; Relações Internacionais: Celso Lafer: Política exterior brasileira: balanço e perspectivas Gerson Moura: Autonomia na Dependência: 1935-1942; Jobson Arruda: O Brasil no comércio colonial; RBPI: ano XXIII, n. 89-92: Hélio Jaguaribe: O Informe Willy Brandt e suas implicações políticas; Roberto Abdenur e Ronaldo Sardenberg: Notas sobre as relações norte-sul e o relatório Brandt; Stanley Hilton: Brasil-Argentina; Relações Internacionais: H. Jaguaribe: Autonomia Periférica e Hegemonia Cêntrica; R. Sardenberg: O pensamento de Araújo Castro. Amado L. Cervo, O Parlamento Brasileiro e as Relações Exteriores, 18261889; Golbery do Couto e Silva: Conjuntura política nacional; Heitor Lyra: Minha Vida Diplomática; RBPI: ano XXIV, n. 93-96, Especial sobre relações Brasil-Argentina; Celso Lafer: Paradoxos e possibilidades: Estudos sobre a Ordem Mundial e sobre a Política Exterior do Brasil num Sistema Internacional em Transformação; R. Amado (org.): Araújo Castro; Maurício Nabuco: Reflexões e reminiscências; RBPI: ano XXV, n. 97-100; Henry Kissinger, Hélio Jaguaribe, Albert Fishlow: Relações Brasil-EUA; Pedro Sampaio Malan: Sistema econômico

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internacional: lições da História; Revista Dados: M.R.S.de Lima e G. Moura: A trajetória do pragmatismo: uma análise da política externa brasileira. M. R. Soares de Lima e Z. Cheibub: Relações internacionais e política externa brasileira: debate intelectual e produção acadêmica; RBPI: ano XXVI, n. 101-104; Geraldo Eulálio Nascimento Silva: Terrorismo na política internacional; J. Carlos Brandi Aleixo: Brasil e América Central; Wayne Selcher: O Brasil no Mundo; Amaury Porto de Oliveira: Óleo para as lâmpadas das ‘Majors’ Lançamento em São Paulo da revista Política e Estratégia (PeE); Wayne Selcher: O Brasil no sistema mundial de poder Celso Lafer: O Brasil e a crise mundial: Paz, Poder e Política Externa; A. A. Cançado Trindade: Repertório da Prática Brasileira do Direito Internacional Público (6 volumes até 1988, cobrindo de 1889 até 1981); RBPI: ano XXVII, n. 105-108; Renato Archer: Santiago Dantas e a formulação da Política Exterior Independente; Geraldo L. Cavagnari: Brasil: introdução ao estudo de uma potência média; Amaury Porto de Oliveira: Reestruturação da indústria internacional de petróleo; Santiago Fernandes: A ilegitimidade da dívida externa; Teixeira Soares: Getúlio Vargas: verso e reverso de um estadista. Hélio Jaguaribe: Reflexões sobre o Atlântico Sul; Moniz Bandeira: O expansionismo brasileiro e a formação dos Estados no Prata; Ricardo A. S. Seitenfus: O Brasil de Getúlio Vargas e a Formação dos Blocos: 19301942; Alexandre Barros: El estudio de las relaciones internacionales en Brasil; Mônica Hirst (org.), Brasil-Estados Unidos na transição democrática; Lançamento da revista Contexto Internacional (IRI/PUC-RJ); RBPI: ano XXVIII, n. 109-110: Gerson Moura: As razões do alinhamento: a política externa brasileira no após guerra (1945-1950); Comissão de Relações Exteriores da CD (1984): Tancredo Neves; Celso Lafer; Hélio Jaguaribe; Marcílio Marques Moreira;

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Política e Estratégia: Celso Lafer: A diplomacia brasileira e a nova república; Hélio Jaguaribe: O novo cenário internacional; A. L. Cervo e C. Bueno: A Política Externa Brasileira, 1822-1985; G. Moura: Tio Sam chega ao Brasil: a penetração cultural americana; RBPI: ano XXIX, n. 113-114: Paulo Nogueira Batista: Dívidas externas dos Estados; Stanley Hilton: Afrânio de Melo Franco e a diplomacia brasileira, 1917-1943; ano XXIX, n. 115-116: Rubens Ricupero: O Brasil e o Mundo no século XXI; Paulo R. Almeida: Relações exteriores e Constituição; Moniz Bandeira: Continuidade e mudança na política externa brasileira. Moniz Bandeira O Eixo Argentina-Brasil: o processo de integração da América Latina; René A. Dreifuss: A internacional capitalista; RBPI: ano XXX, n. 117-118; Celso Souza e Silva: Proliferação Nuclear e o Tratado de Não Proliferação; Rômulo Almeida: Reflexão sobre a integração latino-americana; Hélio Jaguaribe: Integração Argentina-Brasil; Rex Nazareth Alves: Programa Nuclear Brasileiro; ano XXX, n. 119-120: especial 30 anos da RBPI: reproduções de artigos já publicados. 359

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Sonia de Camargo e José Maria Vasquez: Autoritarismo e democracia na Argentina e no Brasil: uma década de política exterior; Jacob Dolinger: A Dívida Externa Brasileira: solução pela via arbitral; Winston Fritsch: External constraints on economic policy in Brazil, 1889-1930; RBPI: ano XXXI, n. 121-122; Rubens Ricupero: O Brasil e o futuro do comércio internacional; Amaury Porto de Oliveira: Nas interfaces do futuro chinês; ano XXXI, n. 123-124; Hélio Jaguaribe: América Latina no contexto mundial; Oscar Lorenzo Fernandez: O desenvolvimento tecnológico do Brasil e a cooperação internacional; Paulo R. Almeida: Retorno ao futuro: a ordem internacional no horizonte 2000. Moniz Bandeira: Brasil-Estados Unidos: A Rivalidade Emergente, 1950-1988; Gelson Fonseca Jr. e Valdemar Carneiro Leão (orgs.): Temas de Política Externa Brasileira I; João H. P. de Araújo, M. Azambuja e Rubens Ricupero: Três Ensaios sobre Diplomacia Brasileira; João Pandiá Calógeras: A Política Exterior do Império (3 vols. ed. fac-similar); Revista Lua Nova: especial: Relações internacionais e o Brasil (Marcílio M. Moreira, Celso Lafer, R. Seitenfus, Tullo Vigevani); RBPI: ano XXXII, n. 125-126; Sérgio Bath: Rui na Haia: um precursor; ano XXXII, n. 127-128; Paulo Nogueira Batista: Mudanças estruturais e desequilíbrio na economia mundial; José Octávio de Arruda Mello: Historiografia e história das relações internacionais: de José Honório ao IBRI. José L. Werneck da Silva: As duas faces da moeda: a política externa do Brasil monárquico; Mônica Hirst: O pragmatismo impossível: a política externa do segundo governo Vargas (1951-1954); Gerson Moura: O Alinhamento sem Recompensa: a política externa do Governo Dutra; Tullo Vigevani: Terceiro Mundo: conceito e história; RBPI: ano XXXIII, n. 129-130; Celso Furtado: As duas vertentes da visão centro-periferia; Paulo Tarso Flecha de Lima: O Brasil no panorama internacional: desafios e controvérsias; ano XXXIII, n. 131-132; Hélio Jaguaribe: Brasil, no advento do século XXI; José Vicente Lessa: Da previsibilidade histórica; Paulo R. Almeida: Retorno ao futuro, parte II; Contexto Internacional: Celso Lafer: Reflexões sobre a inserção do Brasil no contexto internacional G. Moura: Sucessos e Ilusões: relações internacionais do Brasil durante e após a Segunda Guerra Mundial; Rubens A. Barbosa: América Latina em perspectiva; José Guilherme Merquior: Liberalism, Old and New; RBPI: ano XXXIV, n. 133-134; Celso de Souza e Silva: A posição relativa do Brasil no quadro estratégico mundial; Rubens A. Barbosa: A importância da integração e da cooperação regional e internacional para o desenvolvimento latino-americano; ano XXXIV, n. 135-136: Paulo R. Almeida: 1492 e o nascimento da moderna diplomacia; Contexto Internacional: P. R. Almeida: Relações internacionais do Brasil: introdução metodológica. A. L. Cervo e C. Bueno: História da Política Exterior do Brasil; Helder Gordim da Silveira: Integração latino-americana: projetos e realidades; Lançamento da revista Política Externa (SP: Ed. Paz e Terra-NUPRI/USP); Lançamento dos cadernos Premissas (NEE/Unicamp); RBPI: ano XXXV, n. 137-138; Celso Amorim: Quem tem medo de Stefan Zweig? ou os caminhos da autonomia tecnológica; Paulo R. Almeida:

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Retorno ao Futuro, Parte III: agonia e queda do socialismo real; ano XXXV, n. 139-140: Sérgio Bath: Cleantho de Paiva Leite; Emb. Ramiro Saraiva Guerreiro: Repercussões das mudanças da estrutura mundial do Direito Internacional; [Último número da RBPI no Rio de Janeiro] Contexto Internacional: P. R. Almeida: Os partidos políticos nas relações internacionais, 1930-1990. IBRI-RBPI: Constituição do IBRI em sua fase de Brasília, com eleição do primeiro presidente, Professor José Carlos Brandi Aleixo, ulteriormente presidente de honra; Moniz Bandeira, Estado Nacional e Política Internacional na América Latina: O Continente nas relações Argentina-Brasil (1930/1992); P. R. Almeida: O Mercosul no contexto regional e internacional; 1º número da série de Brasília da RBPI, vol. 36, n. 1: Paulo R. de Almeida: Estudos de relações internacionais do Brasil: produção historiográfica, 1927-92; vol. 36, n. 2; Stanley Hilton: Brasil e Argentina: da rivalidade à entente; Clodoaldo Bueno: A diplomacia brasileira e a formação do Mercado Comum Europeu; Flavio M. De Oliveira Castro: As relações oficiais russo-soviéticas com o Brasil (1808-1961); Política Externa: Celso Lafer, P. N. Batista: A política externa brasileira do governo Collor. J. A. Lindgren Alves: Os direitos humanos como tema global: Gelson Fonseca Júnior, Sérgio Henrique Nabuco de Castro (orgs.): Temas de Política Externa II; Amado L. Cervo (org.): O Desafio Internacional: a política exterior do Brasil de 1930 a nossos dias; Roberto Campos: A Lanterna na Popa; Vasco Leitão da Cunha: Diplomacia em Alto Mar; Ricardo Seitenfus: Para uma Nova Política Externa Brasileira; RBPI: vol. 37, n. 1; Eugênio V. Garcia: A candidatura do Brasil a um assento permanente na Liga das Nações; Thomaz G. da Costa: Política de defesa: uma discussão conceitual e o caso do Brasil; vol. 37, n. 2: Eiiti Sato: Do GATT à Organização Mundial do Comércio: as transformações da Ordem Internacional e a harmonização de políticas comerciais; Moniz Bandeira: O nacionalismo latino-americano no contexto da Guerra Fria; Francisco Doratioto: Há 130 anos o Tratado da Tríplice Aliança; Política Externa: Paulo Nogueira Batista: Cláusula social e comércio internacional; Contexto Internacional, vol. 16, n. 2: P. R. Almeida: O Fim de BrettonWoods?: a longa marcha da OMC. José H. Rodrigues e Ricardo Seitenfus: Uma História Diplomática do Brasil); MRE: A Palavra do Brasil nas Nações Unidas: 1946-1995; Moniz Bandeira: O Expansionismo Brasileiro e a formação dos Estados na Bacia do Prata; R. Ricupero: Visões do Brasil; C. Bueno: A República e sua Política Exterior; P. Vizentini: Relações internacionais e desenvolvimento; C. Brigagão: Margens do Brasil; S. Miyamoto: Geopolítica e Poder no Brasil; . Luiz Felipe de Seixas Corrêa: A Palavra do Brasil nas Nações Unidas: 1946-1995; RBPI: vol. 38, n. 1; M. Hirst e L. Pinheiro: A política externa do Brasil em dois tempos; Antônio Carlos Lessa: A estratégia de diversificação de parcerias no contexto do Nacional-desenvolvimentismo (1974-1979); Premissas: S. Miyamoto & W. Gonçalves: A política externa brasileira e o regime militar; 361

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Política Externa: Celso Amorim: O Brasil e o Conselho de Segurança da ONU. J. A. Guilhon de Albuquerque (org.): Sessenta anos de política externa (vols. 1 e 2); Renato Baumann (org.): O Brasil e a Economia Global; Antônio S. Brandão e Lia V. Pereira (orgs.). Mercosul: perspectivas da integração; Sérgio Florêncio e Ernesto Araújo: Mercosul Hoje; Gonçalo Mello Mourão, A Revolução de 1817 e a História do Brasil: um estudo de história diplomática; Lançamento da revista Parcerias Estratégicas (CEE-SAE; em 2001: CGEE); RBPI: vol. 39, n. 1: Samuel Pinheiro Guimarães: Aspectos econômicos do Mercosul; Paulo R. Almeida: A economia da política externa: a ordem internacional e o progresso da Nação; vol. 39, n. 2: Alcides G. R. Prates: O Brasil e a coordenação entre os países de porte continental na perspectiva atual; Paulo R. Almeida: O legado do Barão: Rio Branco e a moderna diplomacia brasileira. Flavio S. Saraiva (org.), A. L. Cervo, W. Döpcke e Paulo R. de Almeida. Relações internacionais contemporâneas: 1815 a nossos dias; Ricardo Seitenfus: Manual das Organizações Internacionais; Odete M. de Oliveira (coord.): Relações Internacionais & globalização; Demétrio Magnoli, O Corpo da Pátria: imaginação geográfica e política externa no Brasil (18081912); José Manoel Cardoso de Oliveira: Atos Diplomáticos do Brasil: tratados do período colonial e vários documentos desde 1492; RBPI: vol. 40, n. 1: Eugenio V. Garcia: O pensamento dos militares em política internacional (1961-1989); Everton V. Vargas: Átomos na integração : a aproximação Brasil-Argentina no campo nuclear e a construção do Mercosul; vol. 40, n. 2: Paulo R. de Almeida: A democratização da sociedade internacional e o Brasil: ensaio sobre uma mutação histórica de longo prazo (1815-1997). Celso Lafer: A OMC e a regulamentação do comércio internacional; Gelson Fonseca Jr.: A Legitimidade Internacional; Paulo R. de Almeida: Relações internacionais e política externa do Brasil e Mercosul: fundamentos e perspectivas; Paulo Vizentini: A política externa do regime militar brasileiro; Irineu Strenger: Relações internacionais; Moniz Bandeira: De Marti a Fidel: a revolução cubana e a América Latina; Amado L. Cervo e Mario Rapoport (orgs.): História do Cone Sul; Carlos Delgado de Carvalho: História Diplomática do Brasil (ed. fac-similar); RBPI, número especial, 40 anos, 1958-1998: Paulo R. de Almeida: RBPI: a continuidade de um empreendimento exemplar; Eiiti Sato: 40 anos de política externa brasileira, 1958-1998: três inflexões; Antonio Carlos Lessa: A diplomacia universalista do Brasil: a construção do sistema contemporâneo de relações bilaterais; Antônio J. R. Rocha: O tratamento de temas multilaterais na RBPI: 1958-1998. Sérgio Danese: Diplomacia presidencial; Paulo R. de Almeida: O Brasil e o multilateralismo econômico; PRA: O Estudo das Relações Internacionais do Brasil; Samuel Pinheiro Guimarães: Quinhentos anos de periferia; Yves Chaloult e Paulo Roberto de Almeida (orgs.): Mercosul, Nafta e Alca: a dimensão social; Rafael Duarte Villa: Da crise do realismo à segurança global multidimensional; Marcelo de Paiva Abreu: O Brasil e a economia mundial, 1930-1945; Paulo Roberto Campos Tarrisse da Fontoura: O Brasil e as operações de manutenção da paz das Nações Unidas; Celso Lafer:

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Comércio, desarmamento, direitos humanos; Luiz Felipe Lampreia: Diplomacia brasileira: palavras, contextos e razões; RBPI: vol. 42, n. 1; Luiz Felipe de Seixas Corrêa: O Brasil e o mundo no limiar do novo século: diplomacia e desenvolvimento; vol. 42, n. 2: Raúl Bernal-Meza: Políticas exteriores comparadas de Argentina e Brasil rumo ao Mercosul; Pio Penna Filho: A pesquisa histórica no Itamaraty. Criação do boletim Meridiano 47 por iniciativa do prof. Antônio Carlos Lessa (Irel-UnB); Eugenio Vargas Garcia: O Brasil e a Liga das Nações (1919-1926); Paulo R. Almeida: Le Mercosud: un marché commun pour l’Amérique du Sud; Valerio Mazzuoli: Direitos humanos e relações internacionais; Rubens Ricupero: Rio Branco: o Brasil no Mundo; Gelson Fonseca-Sérgio Nabuco (orgs.): Temas de política externa brasileira II; Samuel Pinheiro Guimarães (org.): Argentina: visões brasileiras; Paulo A. Pereira Pinto: A China e o Sudeste Asiático; Marcos C. Lima e Marcelo Medeiros (orgs.): O Mercosul no limiar do século XXI. RBPI: vol. 43, n. 1: Mario Rapoport e Rubén Laufer: Os Estados Unidos diante do Brasil e da Argentina: os golpes militares da década de 1960; João Fábio Bertonha: A questão da Internacional Fascista no mundo das relações internacionais: a extrema direita entre solidariedade ideológica e rivalidade nacionalista; Shiguenoli Miyamoto: O Brasil e as negociações multilaterais; Eiiti Sato: A agenda internacional depois da Guerra Fria: novos temas e novas percepções; vol. 43, n. 2: Francisco Doratioto: A política platina do Barão de Rio Branco; Frederico Lamego de Teixeira Soares: Análise econômica da parceria Brasil - Alemanha no contexto das relações entre o Mercosul e a União Europeia. IBRI livros: José Flávio Sombra Saraiva (org.): CPLP – Comunidade dos Países de Língua Portuguesa: solidariedade e ação política; José Flávio Sombra Saraiva (org.): Relações Internacionais – dois séculos de história. Vol. I: Entre a preponderância europeia e a emergência americanosoviética (1815-1947); idem: Relações Internacionais – dois séculos de história. Vol. II: entre a ordem bipolar e o policentrismo (1947 a nossos dias); José Augusto Lindgren Alves: Relações internacionais e temas sociais: a década das conferências; Amado Luiz Cervo: As Relações Internacionais da América Latina – velhos e novos paradigmas; Paulo R. de Almeida: Formação da Diplomacia Econômica no Brasil; Fernando Mello Barreto: Os Sucessores do Barão: relações exteriores do Brasil, 1912-1964; Alberto da Costa e Silva (org.): O Itamaraty na cultura brasileira; José Augusto Guilhon de Albuquerque (org.): Sessenta anos de Política Externa Brasileira (1930-1990), vols. 3 e 4; Marcílio Marques Moreira: Diplomacia, Política e Finanças; Rubens Ricupero: O Brasil e o Dilema da Globalização; Funag: Revista Americana (1909-1919) (edição fac-similar). RBPI: vol. 44, n. 1: Fernando Henrique Cardoso: A política externa do Brasil no início de um novo século; Paulo R. de Almeida: A economia internacional no século XX; um ensaio de síntese; vol. 44, n. 2: Antônio Carlos Lessa e Frederico Arana Meira: O Brasil e os atentados de 11 de setembro de 2001. IBRI livros: Alcides Costa Vaz: Cooperação, integração e processo negociador: A construção do Mercosul; Estevão Chaves de Rezende 363

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Martins: Relações internacionais – cultura e poder; Carlos Pio: Relações Internacionais: economia política e globalização; Antônio Jorge Ramalho da Rocha: Relações Internacionais: teorias e agendas; Paulo Roberto de Almeida: Os primeiros anos do século XXI: o Brasil e as relações internacionais contemporâneas; Amado Cervo e Clodoaldo Bueno: História da Política Exterior do Brasil (2ª ed.); Francisco Doratioto: Maldita guerra: nova história da Guerra do Paraguai; Rubens A. Barbosa Marshall Eakin e Paulo R. Almeida (orgs.): O Brasil dos Brasilianistas: um guia dos estudos sobre o Brasil nos Estados Unidos, 1945-2000; Carlos Henrique Cardim e João Almino (orgs.): Rio Branco, a América do Sul e a Modernização do Brasil; Welber Barral: O Brasil e a OMC; Luis Claudio V. G. Santos: O Império e as repúblicas do Pacífico; Reinaldo Gonçalves: Vagão descarrilhado: o Brasil e o futuro da economia global; Raul M. da Silva e Clovis Brigagão (orgs.): História das Relações Internacionais do Brasil. RBPI: vol. 45, n. 1: Amado L. Cervo: Relações internacionais do Brasil: um balanço da era Cardoso; vol. 45, n. 2: Norma Breda dos Santos: A dimensão multilateral da política externa brasileira: perfil da produção bibliográfica; Paulo R. Almeida: A Política Externa do novo Governo do Presidente Luís Inácio Lula da Silva: retrospecto histórico e avaliação programática; Contexto Internacional: Mônica Herz: O Crescimento da Área de Relações Internacionais no Brasil. IBRI livros: Estevão Chaves de Rezende Martins (org.): Relações Internacionais: visões do Brasil e da América Latina; Antônio Carlos Lessa: A Construção da Europa: a última utopia das relações internacionais; José Flávio Sombra Saraiva (org.): Foreign Policy and Political Regimes; Gabriel O. Alvarez (org.): Indústrias culturais no Mercosul; Clodoaldo Bueno: Política externa da Primeira República: os anos de apogeu; Paulo Vizentini: Relações internacionais do Brasil: de Vargas a Lula; Luiz Augusto Souto Maior: O Brasil em um mundo em transição; Tullo Vigevani e Marcelo Passini Mariano: Alca: o gigante e os anões; Moniz Bandeira: Conflito e integração na América do Sul: Brasil, Argentina e Estados Unidos (Da Tríplice Aliança ao Mercosul 1870-2003); Valerio Mazzuoli e Roberto Luiz Silva (orgs.): O Brasil e os acordos econômicos internacionais; Ricardo Seitenfus: O Brasil vai à Guerra: o Processo do Envolvimento; RBPI: vol. 46, n. 1: Luiz A. P. Souto Maior: Desafios de uma política externa assertiva; vol. 46, n. 2: João Paulo Soares Alsina Jr.: A síntese imperfeita: articulação entre política externa e política de defesa na era Cardoso; Eiiti Sato: Conflito e cooperação nas relações internacionais: as organizações internacionais no século XXI. IBRI livros: José Flávio S. Saraiva & Pedro Motta Pinto Coelho (orgs.): Fórum Brasil-África: Política, Cooperação e Comércio; Paulo R. de Almeida: Relações internacionais e política externa do Brasil (2ª ed.); Francisco Carlos Teixeira da Silva (org.): Enciclopédia de Guerras e Revoluções do Século XX; Clovis Brigagão: Relações internacionais no Brasil: instituições, programas, cursos e redes; Mônica Herz e Andrea Hoffman: Organizações Internacionais: histórias e práticas; Heloisa C. Machado da Silva: Da Substituição de Importações à Substituição de

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Exportações: a política de comércio exterior brasileira de 1945 a 1979; Moniz Bandeira: As relações perigosas: Brasil-Estados Unidos (de Collor a Lula, 1990-2004); Luís Claudio V. Gomes Santos: O Brasil entre a América e a Europa: o Império e o interamericanismo (do Congresso do Panamá à Conferência de Washington; Demétrio Magnoli: Relações Internacionais: teoria e história; RBPI: vol. 47, n. 1: Uma política externa engajada: a diplomacia do governo Lula: Paulo R. de Almeida; vol. 47, n. 2: Eduardo Viola & Hector Ricardo Leis: Unipolaridade, governabilidade global e intervenção unilateral angloamericana no Iraque; Luiz A. P. Souto Maior: A crise do multilateralismo econômico e o Brasil; Paulo R. Almeida: Instituto Brasileiro de Relações Internacionais: 50 anos de um grande empreendimento intelectual. IBRI livros: José Flávio Sombra Saraiva & Amado Cervo (orgs.): O crescimento das Relações Internacionais no Brasil; Eugênio Vargas Garcia: Cronologia das relações internacionais do Brasil; Paulo R. de Almeida: Formação da Diplomacia Econômica no Brasil (2ª ed.) e Relações Brasil-Estados Unidos: assimetrias e convergências (coeditado com Rubens A. Barbosa); Mônica Hirst: The United States and Brazil: a long road of unmet expectations; Moniz Bandeira: A formação do Império Americano; Henrique Altemani Oliveira: Política Externa Brasileira; Ricardo Seitenfus: Manual das Organizações Internacionais; Williams Gonçalves e Guilherme Silva: Dicionário de Relações Internacionais; Gilberto Sarfati: Teorias de Relações Internacionais; Eduardo Felipe P. Matias: A Humanidade e suas Fronteiras: do Estado soberano à sociedade global; José Augusto Lindgren Alves: Os direitos humanos na pós-modernidade; RBPI: vol. 48, n. 1: Maria Regina Soares de Lima: A política externa brasileira e os desafios da cooperação Sul-Sul; Alessandro Candeas: Relações Brasil-Argentina: uma análise dos avanços e recuos; vol. 48, n. 2: Henrique Altemani de Oliveira e Gilmar Masiero: Estudos Asiáticos no Brasil: contexto e desafios; Marcelo Fernandes de Oliveira: Alianças e coalizões internacionais do governo Lula: o Ibas e o G-20; Hélio Franchini Neto: A Política Externa Independente em ação: a Conferência de Punta del Este de 1962; Luís Claudio Villafañe G. Santos: A América do Sul no discurso diplomático brasileiro. IBRI livros: Henrique Altemani de Oliveira e Antônio Carlos Lessa (orgs.): Relações internacionais do Brasil: temas e agendas (vols. 1 e 2); Amado Cervo e Clodoaldo Bueno: História da Política Exterior do Brasil (3ª ed.); Francisco Doratioto: Maldita guerra: nova história da Guerra do Paraguai (2ª ed.); Eugênio Vargas Garcia: Entre América e Europa: a política externa brasileira na década de 1920; Samuel Pinheiro Guimarães: Desafios brasileiros na era dos gigantes; Fernando Mello Barreto: Os Sucessores do Barão: relações exteriores do Brasil, 1964-1985; Paulo R. de Almeida: O Estudo das Relações Internacionais do Brasil (2ª ed.); Marcelo Raffaelli: A Monarquia e a República: Aspectos das relações entre Brasil e Estados Unidos durante o Império; Henrique Altemani de Oliveira e Antônio Carlos Lessa: Política Internacional Contemporânea: mundo em transformação; Vasco Mariz (org.): Brasil-França: relações históricas no período colonial; Leonardo Carneiro Enge: A Convergência Macroeconômica Brasil-Argentina; João Clemente Baena Soares: Sem 365

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medo da diplomacia: depoimento ao Cpdoc; José Oswaldo de Meira Penna: Polemos: Uma análise crítica do darwinismo; RBPI: vol. 49, n. 1; Paulo R. Almeida: Uma nova ‘arquitetura’ diplomática?: Interpretações divergentes sobre a política externa do Governo Lula (20032006); Registro da Associação Brasileira de Relações Internacionais (ABRI), criada em 2005: primeiro encontro nacional em Brasília (julho de 2007). IBRI livros: Amado Luiz Cervo: Relações internacionais da América Latina: velhos e novos paradigmas (2a. ed.); Estevão Chaves de Rezende Martins: Cultura e Poder; Luís Valente de Oliveira e Rubens Ricupero (organizadores): A Abertura dos Portos; Carlos Henrique Cardim: A Raiz das Coisas: Rui Barbosa, o Brasil no Mundo; Carlos Alberto Leite Barbosa: Desafio Inacabado: a política externa de Jânio Quadros; João Alfredo dos Anjos: José Bonifácio, o primeiro Chanceler do Brasil; Alexandre Guido Lopes Parola: A Ordem Injusta; Everton Vieira Vargas: O Legado do Discurso: Brasilidade e Hispanidade no Pensamento Social Brasileiro e Latino-Americano; Marcelo Böhlke: Integração Regional e Autonomia do seu Ordenamento Jurídico; RBPI: vol. 50, n. 1: Domício Proença Júnior & Érico Esteves Duarte: Os estudos estratégicos como base reflexiva da defesa nacional; Dawisson Belém Lopes: A ONU tem autoridade? Um exercício de contabilidade política (1945-2006; Leandro Freitas Couto: O horizonte regional do Brasil e a construção da América do Sul; Rogério de Souza Farias: Relações internacionais do Brasil em um mundo em transição; vol. 50, n. 2: Antônio Carlos Lessa: RBPI: cinquenta anos; Paulo R. de Almeida: As relações econômicas internacionais do Brasil dos anos 1950 aos 80. Amado Luiz Cervo: Inserção Internacional: formação dos conceitos brasileiros; Sérgio Corrêa da Costa: Le nazisme en Amérique du Sud: Chronique d’une guerre secrete 1930-1950; Vasco Mariz: Temas da política internacional: ensaios, palestras e recordações diplomáticas; Eugênio Vargas Garcia (org.): Diplomacia Brasileira e Política Externa: Documentos Históricos 1493-2008; RBPI: vol. 51, n. 1: Tullo Vigevani et alii: O papel da integração regional para o Brasil: universalismo, soberania e percepção das elites; Andrés Rivarola Puntigliano: Going Global: an organizational study of Brazilian foreign policy; Suzeley Mathias et alii: Aspectos da integração regional em defesa no Cone Sul; vol. 51, n. 2: Antônio Carlos Lessa: Há cinquenta anos a Operação Pan-Americana; Amado Luiz Cervo: Conceitos em Relações Internacionais; Gilmar Masiero & Heloisa Lopes: Etanol e biodiesel como recursos energéticos alternativos: perspectivas da América Latina e da Ásia; Raul Bernal-Meza: Argentina y Brasil en la Política Internacional: regionalismo y Mercosur (estrategia, cooperación y factores de tensión). Manoel de Oliveira Lima: Nos Estados Unidos, Impressões políticas e sociais; Flavio Mendes de Oliveira Castro e Francisco Mendes de Oliveira Castro: Dois séculos de história da organização do Itamaraty; 1: 1808-1979; 2: 1979-2008; Gonçalo de Barros Carvalho e Mello Mourão: A Revolução de 1817 e a História do Brasil: um estudo de história diplomática; Luiz Felipe de Seixas Corrêa: O Barão do Rio Branco: Missão em Berlim – 1901/1902; RBPI: vol. 52, n. 1: Patricia L. Kegel & Mohamed Amal: Instituições, Direito e

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soberania: a efetividade jurídica nos processos de integração regional nos exemplos da União Europeia e do Mercosul; Antônio Carlos Lessa, Leandro F. Couto; Rogério S. Farias: Política externa planejada: os planos plurianuais e a ação internacional do Brasil, de Cardoso a Lula (1995-2008); vol. 52, n. 2: Marcelo Dias Varella: Efetividade do Órgão de Solução de Controvérsias da Organização Mundial do Comércio: uma análise sobre os seus doze primeiros anos de existência e das propostas para seu aperfeiçoamento; Shiguenoli Miyamoto: O Brasil e a comunidade dos países de língua portuguesa (CPLP); Pio Penna Filho: O Itamaraty nos anos de chumbo: o Centro de Informações do Exterior (CIEX) e a repressão no Cone Sul (1966-1979); João Paulo S. Alsina: O poder militar como instrumento da política externa brasileira contemporânea. Paulo R. de Almeida, Rubens A. Barbosa e Francisco Rogido (orgs.): Guia dos Arquivos Americanos sobre o Brasil: Coleções documentais sobre o Brasil nos Estados Unidos; Denis Rolland; Antônio Carlos Lessa (coord.): Relations Internationales du Brésil: Les Chemins de la Puissance; Oscar S. Lorenzo Fernandez: Três Séculos e uma Geração; Carlos Augusto de Proença Rosa: História da Ciência (3 vols.); Luís Cláudio Villafañe G. Santos: O Dia em que Adiaram o Carnaval: Política Externa e a Construção do Brasil; Fernando Cacciatore de Garcia: Fronteira Iluminada: História do Povoamento, Conquista e Limites do Rio Grande do Sul, a partir do Tratado de Tordesilhas (1420-1920); RBPI: vol. 53, Special issue: Amado Luiz Cervo & Antônio Carlos Lessa: Emerging Brazil under Lula: an assessment on International Relations (2003-2010); Renato Baumann: Brazilian external sector so far in the 21st century; Antônio Carlos Lessa: Brazil's strategic partnerships: an assessment of the Lula era (2003-2010); vol. 53, n. 1: Gunther Rudzit & Oto Nogami: Segurança e Defesa Nacionais: conceitos básicos para uma análise; Matias Spektor: Ideias de ativismo regional: a transformação das leituras brasileiras da região; vol. 53, n. 2: Ariane Figueira: Rupturas e continuidades no padrão organizacional e decisório do Ministério das Relações Exteriores; João Fabio Bertonha: Brazil: an emerging military power? The problem of the use of force in Brazilian international relations in the 21st century; Marcos Aurélio Guedes de Oliveira: Sources of Brazil's Counter-Hegemony. Paulo Roberto de Almeida: Globalizando, ensaios sobre a globalização e a antiglobalização; Luiz Fernando Ligièro: A Autonomia na Politica Externa Brasileira - a Política Externa Independente e o Pragmatismo Responsável: momentos diferentes, políticas semelhantes?; San Tiago Dantas: Política Externa Independente (edição atualizada); Alberto da Costa e Silva (coord.): História do Brasil Nação: 1808-2010; vol. 1: Crise Colonial e Independência: 1808-1830; Eugenio Vargas Garcia: O Sexto Membro Permanente: o Brasil e a criação da ONU; Gelson Fonseca: Diplomacia e Academia; Maria Theresa Diniz Forster: Oliveira Lima e as Relações Exteriores do Brasil; Sarquis José Buainain Sarquis: Comércio Internacional e Crescimento Econômico no Brasil; Ademar Seabra da Cruz Junior: Diplomacia, desenvolvimento e sistemas nacionais de inovação; Celso Amorim: Conversas com Jovens Diplomatas; Rubens Barbosa: O Dissenso de Washington: Notas de um observador privilegiado sobre as relações Brasil-Estados Unidos; Sidnei J. Munhoz e Francisco Carlos 367

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Teixeira da Silva (orgs.), Relações Brasil-Estados Unidos: séculos XX e XXI; Edgard Telles Ribeiro: Diplomacia Cultural: seu papel na diplomacia brasileira (2a. ed.); Fernando Guimarães Reis: Caçadores de Nuvens: Em busca da Diplomacia; RBPI: vol. 54, n 1: Eugenio V. Garcia: De como o Brasil quase se tornou membro permanente do Conselho de Segurança da ONU em 1945; vol. 54, n. 2: Rogério de Souza Farias & Raphael Coutinho da Cunha: As relações econômicas internacionais do governo Geisel (1974-1979). Manoel Gomes Pereira (editor), José Maria Paranhos da Silva Jr.: Obras do Barão do Rio Branco (12 vols.); Manuel Antônio da Fonseca Couto Gomes Pereira (org.): Barão do Rio Branco: 100 Anos de Memória; Luís Cláudio Villafañe Gomes Santos (curador): Rio Branco: 100 anos de memória; Paulo Roberto de Almeida: Relações internacionais e política externa do Brasil: a diplomacia brasileira no contexto da globalização; Rubens Antônio Barbosa: Interesse Nacional & Visão de Futuro; Luiz Felipe de Seixas Corrêa (org.): O Brasil nas Nações Unidas, 1946-2011 (3a. ed.); Francisco Doratioto: Relações Brasil-Paraguai: afastamento, tensões e reaproximação (1889-1954); Luís Cláudio Villafañe G. Santos: Duarte da Ponte Ribeiro: pionero de la diplomacia y amistad entre Brasil y Perú; Vasco Mariz: Depois da Glória: ensaios históricos sobre personalidades e episódios controvertidos da história do Brasil e de Portugal; Fernando de Mello Barreto: A Politica Externa Após a Redemocratização )2 vols.); Luís Cláudio Villafañe G. Santos: O evangelho do Barão: Rio Branco e a identidade brasileira; Antônio Augusto Cançado Trindade: Repertório da Prática Brasileira do Direito Internacional Público (nova ed.); André Heráclio do Rêgo: Os Sertões e os Desertos: o combate à desertificação e a política externa brasileira; Maria Feliciana Nunes Ortigão de Sampaio: O Tratado de Proibição Completa dos Testes Nucleares (CTBT); RBPI: vol. 55, 1: Eiiti Sato & Susan E. M. Cesar: A Rodada Doha, as mudanças no regime do comércio internacional e a política comercial brasileira; vol. 55, 2: Clodoaldo Bueno: O Barão do Rio Branco no Itamaraty (1902-1912); vol. 55, Special issue: Environment: Eduardo Viola & Antônio Carlos Lessa: Global climate governance and transition to a lowcarbon economy; Eduardo Viola, Matias Franchini & Thaís Lemos: Climate governance in an international system under conservative hegemony: the role of major powers. José Vicente Pimentel (org.): Pensamento Diplomático Brasileiro, 1750-1964 (3 vols.); Paulo Roberto de Almeida: Integração Regional: uma introdução; Paulo Estivallet de Mesquita: A Organização Mundial do Comércio; Vasco Mariz: Nos bastidores da diplomacia: memórias diplomáticas; Rogério de Souza Farias: A palavra do Brasil no sistema multilateral de comércio (1946-1994); Guilherme Frazão Conduru: O Museu Histórico e Diplomático do Itamaraty: história e revitalização; Fernando Guimarães Reis: Por uma academia renovada: formação do diplomata brasileiro; João Augusto Costa Vargas: Um mundo que também é nosso : o pensamento e a trajetória diplomática de Araujo; Eugênio V. Garcia: Conselho de Segurança das Nações Unidas; Carlos Márcio B. Cozendey: Instituições de Bretton Woods; Renato Mendonça: História da Política Exterior do Brasil: do período colonial ao reconhecimento do Império (1500-1825); Elias Luna Almeida Santos: Investidores soberanos, política internacional e interesses

brasileiros; Celso Amorim: Breves Narrativas Diplomáticas; Antônio Augusto Cançado Trindade: Os tribunais internacionais contemporâneos; Ronaldo Mota Sardenberg: O Brasil e as Nações Unidas; Synesio Sampaio Goes Filho: As Fronteiras do Brasil; André Amado: Por Dentro do Itamaraty: impressões de um diplomata; RBPI: vol. 56, 1: Carlos S. Milani & João M. Tude: A Política Externa Brasileira em relação ao Fundo Monetário Internacional durante o Governo Lula; vol. 56, 2: João Fábio Bertonha: A Estratégia Nacional de Defesa do Brasil e a dos outros BRICs em perspectiva comparada. 2014 Paulo Roberto de Almeida: Nunca Antes na Diplomacia...: a política externa brasileira em tempos não convencionais; Francisco Doratioto: O Brasil no Rio da Prata (1822-1994); Luiz Felipe Lampreia: Aposta em Teerã: o acordo nuclear entre o Brasil, Turquia e Irã; Lauro Escorel: Introdução ao Pensamento Político de Maquiavel (3a. ed.); Fernando Cacciatore de Garcia: Como Escrever a História do Brasil: Miséria e Grandeza; RBPI: Special issue: China; Henrique Altemani de Oliveira & Antônio Carlos Lessa: China rising: strategies and tactics of China's growing presence in the world; Jose León-Manríquez; Luis F. Alvarez: Mao's steps in Monroe's backyard: towards a United States-China hegemonic struggle in Latin America?; José Augusto Guilhon de Albuquerque: Brazil, China, US: a triangular relation?; RBPI, vol. 57, n. 1: Andrea Q. Steiner et alii: From Tegucigalpa to Teheran: Brazil's diplomacy as an emerging Western country. Fontes: Elaboração de Paulo Roberto de Almeida, com base nos arquivos do IBRI/RBPI (http://ibri-rbpi.org/), do boletim Meridiano 47 (http://periodicos.unb.br/index.php/MED/issue/archive) e do Scielo (http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_serial&pid=00347329&lng=en&nrm=iso); 02/12/2014. Nota: Versão completa deste quadro analítico, sob o título “Política internacional, contexto regional e diplomacia brasileira, acompanhada de listagem seletiva da produção acadêmica em relações internacionais e em política externa do Brasil, de 1954 a 2014”, encontra-se disponível na plataforma Academia.edu, sob o seguinte link: https://www.academia.edu/9617558/2723_Produ%C3%A7%C3%A3o_intelectual_sobr e_rela%C3%A7%C3%B5es_internacionais_e_pol%C3%ADtica_externa_do_Brasil_19 54-2-14_.

2724. “O Instituto Brasileiro de Relações Internacionais e a Revista Brasileira de Política Internacional: contribuição intelectual, de 1954 a 2014”, Hartford, 3 dezembro 2014, 17 p. Versão sintética dos trabalhos 2722 e 2723, para publicação em Meridiano 47 (vol. 15, n. 146, novembro-dezembro 2014, p. 3-18; ISSN: 15181219; link: http://periodicos.unb.br/index.php/MED/article/download/12508/8881; boletim completo, link: http://periodicos.unb.br/index.php/MED/article/view/12698/8880); reproduzido anteriormente em Mundorama (n. 88, dezembro de 2014; ISSN: 2175-2052; link para o boletim: http://mundorama.net/2014/12/31/boletim-mundorama-no-88dezembro2014/; link para o artigo: http://mundorama.net/2014/12/23/o-institutobrasileiro-de-relacoes-internacionais-e-a-revista-brasileira-de-politica-internacional369

contribuicao-intelectual-1954-a-2014-por-paulo-roberto-de-almeida/); disponibilizado em Academia.edu (link: https://www.academia.edu/9963550/2724_O_Instituto_Brasileiro_de_Rela%C3%A7 %C3%B5es_Internacionais_e_a_Revista_Brasileira_de_Pol%C3%ADtica_Internaci onal_contribui%C3%A7%C3%A3o_intelectual_de_1954_a_2014). Ensaio incorporado ao livro: Paralelos com o Meridiano 47: Ensaios Longitudinais e de Ampla Latitude (Hartford, 2015). Relação de Publicados n. 1155.

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Apêndices

Relação cronológica dos ensaios publicados no Boletim Meridiano 47 Livros publicados pelo autor Nota sobre o autor

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Relação cronológica dos ensaios publicados no Boletim Meridiano 47 Arquivo completo do boletim: http://periodicos.unb.br/index.php/MED/issue/archive

Colaborações de Paulo Roberto de Almeida Na ordem inversa de sua elaboração ou divulgação, desde o ano de 2001. 55) “O Instituto Brasileiro de Relações Internacionais e a Revista Brasileira de Política Internacional: contribuição intelectual, de 1954 a 2014”, Meridiano 47 (vol. 15, n. 146, novembro-dezembro 2014, p. 3-18; ISSN: 1518-1219; link: http://periodicos.unb.br/index.php/MED/article/download/12508/8881; boletim completo, link: http://periodicos.unb.br/index.php/MED/article/view/12698/8880). Relação de Originais n. 2724; Publicados n. 1155. 54) “A Arte de NÃO Fazer a Guerra: novos comentários à Estratégia Nacional de Defesa”, Meridiano 47 (vol. 11, n. 119, junho 2010, p. 21-31; ISSN: 1518-1219; link para o boletim: http://periodicos.unb.br/index.php/MED/issue/view/76; link para o artigo: http://periodicos.unb.br/index.php/MED/article/view/638/407). Relação de Originais n. 2066; Publicados n. 972. 53) “Mudanças na economia mundial: perspectiva histórica de longo prazo”, em Meridiano 47 (vol. 11, n. 118, maio 2010, p. 27-29; ISBN: 1518-1219; link para o boletim: http://periodicos.unb.br/index.php/MED/issue/view/93; link para o artigo: http://periodicos.unb.br/index.php/MED/article/view/643/386). Relação de Originais n. 2124; Publicados n. 956. 52) “O Fim da História, de Fukuyama, vinte anos depois: o que ficou?”, Meridiano 47 (vol. 11, n. 114, janeiro 2010, p. 8-17; ISSN: 1518-1219; link para o boletim: http://periodicos.unb.br/index.php/MED/issue/view/77; link para o artigo: http://periodicos.unb.br/index.php/MED/article/view/476/291). Relação de Originais n. 2101; Publicado n. 949. 51) “Sucessos e fracassos da diplomacia brasileira: uma visão histórica”, Meridiano 47, Boletim de Análise de Conjuntura em Relações Internacionais (Brasília: IBRI; ISSN: 1518-1219; n. 113, Dezembro/2009, p. 3-5; link: http://periodicos.unb.br/index.php/MED/article/view/490/307). Relação de Originais n. 2005; Publicados n. 944. 50) “O Brasil e o G20 financeiro: alguns elementos analíticos”, Meridiano 47 (n. 110. Setembro 2009, p. 5-8; ISSN: 1518-1219; link para o boletim: http://periodicos.unb.br/index.php/MED/issue/view/82; link para o artigo: http://periodicos.unb.br/index.php/MED/article/view/520/337). Relação de Originais n. 2044; Publicados n. 922. 49) “Estratégia Nacional de Defesa: comentários dissidentes”, Meridiano 47 (n. 104, março de 2009, p. 5-9; ISSN: 1518-1219; link para o boletim: http://periodicos.unb.br/index.php/MED/issue/view/90; link para o artigo: http://periodicos.unb.br/index.php/MED/article/view/741/456). Relação de Originais n. 1984; Publicados n. 895. 373

48) “Fórum Surreal Mundial: Pequena visita aos desvarios dos antiglobalizadores”, Meridiano 47 (n. 101; 27 Dezembro 2008; link: http://mundorama.net/2008/12/31/boletim-meridiano-47-no-101-dezembro2008/). Relação de Originais 1966; Publicados 886, 887. 47) “Pequena lição de Realpolitik”, Meridiano 47 (Brasília: n. 95, junho 2008, p. 2-4; ISSN: 1518-1219; link para o boletim: http://periodicos.unb.br/index.php/MED/issue/view/100; link para o artigo: http://periodicos.unb.br/index.php/MED/article/view/922/584). Relação de Trabalhos n. 1895; Publicados n. 842. 46) “O legado de Henry Kissinger”, Meridiano 47 (n. 94, maio de 2008, p. 29-31; link para o boletim: http://periodicos.unb.br/index.php/MED/issue/view/101; link para o artigo: http://periodicos.unb.br/index.php/MED/article/view/1020/689). Relação de Originais n. 1894; Publicados n. 838. 44) “Teses sobre o novo império e o cenário político-estratégico mundial: os Estados Unidos e o Brasil nas Relações Internacionais”, Boletim Meridiano 47 (Brasília: IrelUnB; n. 93, abril 2008, p. 5-14; link para o boletim: http://periodicos.unb.br/index.php/MED/issue/view/102; link para o artigo: http://periodicos.unb.br/index.php/MED/article/view/1031/694). Relação de Originais n. 1679; Publicados n. 829. 44) “Relações Internacionais do Brasil: versão academia”, Resenha de: Relações Internacionais do Brasil: temas e agendas, organizado por Henrique Altemani de Oliveira e Antônio Carlos Lessa São Paulo: Saraiva, 2006, vol. 1: 368 p., ISBN: 8502-06042-2; vol. 2: 508 p., ISBN: 85-02-06040-6), Meridiano 47 (n. 85, agosto 2007; p. 14-22; link para o boletim: http://periodicos.unb.br/index.php/MED/issue/view/137; link para o artigo: http://periodicos.unb.br/index.php/MED/article/view/1126/795). Relação de Originais n. 1753; Publicados n. 790. 43) “Fórum Social Mundial: nove objetivos gerais e alguns grandes equívocos”, Meridiano 47 (n. 78, janeiro 2007; p. 7-14; link para o boletim: http://periodicos.unb.br/index.php/MED/issue/view/129; link para o artigo: http://periodicos.unb.br/index.php/MED/article/view/1084/745). Relação de Originais n. 1708 e 1712; Publicados n. 741. 42) “Mercosul: uma revisão histórica e uma visão de futuro”, Meridiano 47 (n. 77, dezembro 2006; p. 7-17; link para o boletim: http://periodicos.unb.br/index.php/MED/issue/view/143; link para o artigo: http://periodicos.unb.br/index.php/MED/article/view/1432/1068). Relação de Originais n. 1710; Publicados n. 723. 41) “O contexto geopolítico da América do Sul: visão estratégica da integração”, Meridiano 47 (n. 76, novembro 2006, p. 15-23; link para o boletim: http://periodicos.unb.br/index.php/MED/issue/view/181; link para o artigo: http://periodicos.unb.br/index.php/MED/article/view/1440/1075). Relação de Originais n. 1437 e 1709; Publicados n. 722. 374

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27) “A China e seus interesses nacionais: algumas reflexões histórico-sociológicas”, Brasília, 20 junho 2005, 4 p. Reelaboração do trabalho 1429. Meridiano 47 - Boletim de Análise da Conjuntura em Relações Internacionais (Brasília: Instituto Brasileiro de Relações Internacionais, ISSN 1518-1219, n. 59, junho 2005, p. 10-12; link para o boletim: http://periodicos.unb.br/index.php/MED/issue/view/337; link para o artigo: http://periodicos.unb.br/index.php/MED/article/view/2681/2232). Relação de Originais n. 1443; Publicados n. 565, 26) “Ensaios sobre o capitalismo no século XX”, Resenha do livro de Luiz Gonzaga de Mello Belluzzo, Ensaios sobre o capitalismo no século XX (São Paulo: Unesp; Campinas: Unicamp-Instituto de Economia, 2004, 240 p.). Publicado em Meridiano 47: boletim de análise de conjuntura em relações internacionais (Brasília: Instituto Brasileiro de Relações Internacionais; ISSN: 1518-1219; n. 58, maio 2005, p. 20; link para o boletim: http://periodicos.unb.br/index.php/MED/issue/view/338; link para o artigo: http://periodicos.unb.br/index.php/MED/article/view/2692/2246). Relação de Originais nº 1397; Publicados n. 550. 25) “O Poder Americano”, Brasília, 24 janeiro 2005, 3 p. Resenha do livro organizado por José Luis Fiori, O Poder Americano (Petrópolis: Editora Vozes, 2004, 456 p.; ISBN: 85-326-3097-9). Publicado em Meridiano 47: boletim de análise de conjuntura em relações internacionais (Brasília: Instituto Brasileiro de Relações Internacionais; ISSN: 1518-1219; n. 58, maio 2005, p. 18-19; link para o boletim: http://periodicos.unb.br/index.php/MED/issue/view/338; link para o artigo: http://periodicos.unb.br/index.php/MED/article/view/2691/2245). Relação de Originais n. 1380; Publicados n. 551. 24) “Tática do avestruz: a antiglobalização à procura do seu mundo”, Meridiano 47: boletim de análise de conjuntura em relações internacionais (Brasília: Instituto Brasileiro de Relações Internacionais; ISSN: 1518-1219; n. 58, maio 2005, p. 13-15; link para o boletim: http://periodicos.unb.br/index.php/MED/issue/view/338; link para o artigo: http://periodicos.unb.br/index.php/MED/article/view/2689/2243). Relação de Originais n. 1297; Publicados n. 554. 23) “No meio do caminho tinha um mercado: tropeços dos antiglobalizadores”, Meridiano 47: boletim de análise de conjuntura em relações internacionais (Brasília: Instituto Brasileiro de Relações Internacionais; ISSN: 1518-1219; n. 57, abril 2005, p. 8-9; link para o boletim: http://periodicos.unb.br/index.php/MED/issue/view/341; link para o artigo: http://periodicos.unb.br/index.php/MED/article/view/2695/2249). Relação de Originais n. 1297; Publicados n. 546. 22) “Concentração da renda e desigualdades: a antiglobalização tem razão?”, Meridiano 47: boletim de análise de conjuntura em relações internacionais (Brasília: Instituto Brasileiro de Relações Internacionais; ISSN: 1518-1219; nº 56, março 2005, p. 9-10; link para o boletim: http://periodicos.unb.br/index.php/MED/issue/view/342; link para o artigo: http://periodicos.unb.br/index.php/MED/article/view/2702/2256). Relação de Originais n. 1297; Publicados n. 539. 21) “A antiglobalização e o livre-comércio: angústia existencial”, Meridiano 47: boletim de análise de conjuntura em relações internacionais (Brasília: Instituto Brasileiro de Relações Internacionais; ISSN: 1518-1219; n. 55, fevereiro 2005, p. 6377

7; link para o boletim: http://periodicos.unb.br/index.php/MED/issue/view/345; link para o artigo: http://periodicos.unb.br/index.php/MED/article/view/2714/2290). Relação de Originais nº 1297; Publicados n. 543. 20) “Contra a antiglobalização”, Meridiano 47: boletim de análise de conjuntura em relações internacionais (Brasília: Instituto Brasileiro de Relações Internacionais; ISSN: 1518-1219; n. 54, janeiro 2005, p. 10-12; link para o boletim: http://periodicos.unb.br/index.php/MED/issue/view/346; link para o artigo: http://periodicos.unb.br/index.php/MED/article/view/2749/2307). Relação de Originais n. 1297; Publicados n. 527. 19) “A antiglobalização tem ideias concretas sobre temas concretos?”, Meridiano 47: boletim de análise de conjuntura em relações internacionais (Brasília: Instituto Brasileiro de Relações Internacionais; ISSN: 1518-1219; n. 50-51, setembro-outubro 2004, p. 15-17; link para o boletim: http://periodicos.unb.br/index.php/MED/issue/view/543; link para o artigo: http://periodicos.unb.br/index.php/MED/article/view/4194/3511). Relação de Originais n. 1297; Publicado n. 476. 18) “Contradições, insuficiências e impasses do movimento antiglobalizador”, Meridiano 47: boletim de análise de conjuntura em relações internacionais (Brasília: Instituto Brasileiro de Relações Internacionais; ISSN: 1518-1219; nº 49, agosto 2004, p. 9-11; link para o boletim: http://periodicos.unb.br/index.php/MED/issue/view/544; link para o artigo: http://periodicos.unb.br/index.php/MED/article/view/4205/3517). Relação de Originais n. 1297; Publicados n. 471. 17) “Uma agenda sobre o quê não fazer: os equívocos da “sociedade civil”, Meridiano 47: boletim de análise de conjuntura em relações internacionais (Brasília: Instituto Brasileiro de Relações Internacionais; ISSN: 1518-1219; n. 48, julho 2004, p. 14-18; link para o boletim: http://periodicos.unb.br/index.php/MED/issue/view/545; link para o artigo: http://periodicos.unb.br/index.php/MED/article/view/4214/3527). Relação de Originais n. 1287; Publicados n. 458. 16) “Interessa ao Brasil uma taxa sobre os movimentos de capitais?”, Meridiano 47: boletim de análise de conjuntura em relações internacionais (Brasília: Instituto Brasileiro de Relações Internacionais; ISSN: 1518-1219; n. 47, junho 2004, p. 12-15; link para o boletim: http://periodicos.unb.br/index.php/MED/issue/view/546; link para o artigo: http://periodicos.unb.br/index.php/MED/article/view/4228/3539). Relação de Originais n. 1274; Publicados n. 456. 15) “O debate sobre a globalização no Brasil: muita transpiração, pouca inspiração”, Meridiano 47: boletim de análise de conjuntura em relações internacionais (Brasília: ISSN: 1518-1219, n. 44-45, março-abril 2004, p. 13-15; link para o boletim: http://periodicos.unb.br/index.php/MED/issue/view/548; link para o artigo: http://periodicos.unb.br/index.php/MED/article/view/4253/3563). Relação de Originais n. 1252; Publicados n. 443. 14) “Um exercício comparativo de política externa: FHC e Lula em perspectiva”, Meridiano 47: boletim de análise de conjuntura em relações internacionais 378

(Brasília: ISSN: 1518-1219, n. 42-43, janeiro-fevereiro 2004, p. 11-14; link para o boletim: http://periodicos.unb.br/index.php/MED/issue/view/549; link para o artigo: http://periodicos.unb.br/index.php/MED/article/view/4258/3568). Relação de Originais n. 1227; Publicados n. 439. 13) “O Brasil e o FMI: meio século de idas e vindas”, Meridiano 47: boletim de análise de conjuntura em relações internacionais (Brasília: ISSN: 1518-1219, n. 32-33, março-abril 2003, p. 17-18; link para o boletim: http://periodicos.unb.br/index.php/MED/issue/view/556; link para o artigo: http://periodicos.unb.br/index.php/MED/article/view/4373/3672). Relação de Originais n. 999; Publicados n. 396. 12) “Uma frase (in)feliz?: o que é bom para os EUA é bom para o Brasil?”, Meridiano 47: boletim de análise de conjuntura em relações internacionais (Brasília: ISSN: 1518-1219, n. 30-31, janeiro-fevereiro 2003, p. 30-34; link para o boletim: http://periodicos.unb.br/index.php/MED/issue/view/557; link para o artigo: http://periodicos.unb.br/index.php/MED/article/view/4389/3685). Relação de Originais n. 992; Publicados n. 389. 11) “Reflexões a propósito do centenário do Barão (ou das dificuldades de ver no plano interno as razões dos nossos problemas)”, Meridiano 47: boletim de análise de conjuntura em relações internacionais (Brasília: ISSN: 1518-1219, n. 28-29, novembro-dezembro/2002, p. 24-27; link para o boletim: http://periodicos.unb.br/index.php/MED/issue/view/558; link para o artigo: http://periodicos.unb.br/index.php/MED/article/view/4429/3706). Relação de Originais n. 938; Publicados n. 359. 10) “Uma longa moratória permeada de ajustes: a lógica da dívida externa brasileira na visão acadêmica”, Meridiano 47: boletim de análise de conjuntura em relações internacionais (Brasília: ISSN: 1518-1219, n. 28-29, novembro-dezembro/2002, p. 18-21; link para o boletim: http://periodicos.unb.br/index.php/MED/issue/view/558; link para o artigo: http://periodicos.unb.br/index.php/MED/article/view/4427/3704). Relação de Originais n. 954; Publicados n. 370. 9) “Um Tocqueville avant la lettre: Hipólito da Costa como founding father do americanismo”, Meridiano 47: boletim de análise de conjuntura em relações internacionais (Brasília: ISSN: 1518-1219, n. 28-29, novembro-dezembro/2002, p. 13-15; link para o boletim: http://periodicos.unb.br/index.php/MED/issue/view/558; link para o artigo: http://periodicos.unb.br/index.php/MED/article/view/4423/3702). Relação de Originais n. 947; Publicados n. 367. 8) “A América Latina e os Estados Unidos desde o 11 de setembro de 2001”, Meridiano 47: boletim de análise de conjuntura em relações internacionais (Brasília: ISSN: 1518-1219, n. 27, outubro 2002, p. 3-5; link para o boletim: http://periodicos.unb.br/index.php/MED/issue/view/559; link para o artigo: http://periodicos.unb.br/index.php/MED/article/view/4507/3762). Relação de Originais n. 933; Publicados n. 357. 7) “Camaradas, agora é oficial: acabou o socialismo”, Meridiano 47: boletim de análise de conjuntura em relações internacionais (Brasília: ISSN: 1518-1219, n. 25, agosto 379

2002, p. 1-11; link para o boletim: http://periodicos.unb.br/index.php/MED/issue/view/561; link para o artigo: http://periodicos.unb.br/index.php/MED/article/view/4528/3782). Relação de Originais n. 907; Publicados n. 355. 6) “O Boletim do Império”, Meridiano 47 (Brasília: ISSN: 1518-1219, n. 23-24, junhojulho 2002, p. 9-15; link para o boletim: http://periodicos.unb.br/index.php/MED/issue/view/563; link para o artigo: http://periodicos.unb.br/index.php/MED/article/view/4538/3792). Relação de Originais n. 896; Publicados n. 345. 5) “O Brasil e as crises financeiras internacionais, 1995-2001”, Meridiano 47 (Brasília: ISSN: 1518-1219, n. 22, maio 2002, p. 12-13; link para o boletim: http://periodicos.unb.br/index.php/MED/issue/view/564; link para o artigo: http://periodicos.unb.br/index.php/MED/article/view/4548/3802). Relação de Originais n. 874; Publicados n. 333. 4) “Ideologia da política externa: sete teses idealistas”, Meridiano 47 (Brasília: ISSN: 1518-1219, n. 17, novembro 2001, pp. 1-8; link para o boletim: http://periodicos.unb.br/index.php/MED/issue/view/568; link para o artigo: http://periodicos.unb.br/index.php/MED/article/view/4574/3826). Relação de Originais n. 813; Publicados n. 291. 3) “Mercosul e Alca: liaisons dangereuses?”, Meridiano 47 (Brasília: ISSN: 1518-1219, n. 14-15, agosto-setembro 2001, p. 11-17; link para o boletim: http://periodicos.unb.br/index.php/MED/issue/view/570; link para o artigo: http://periodicos.unb.br/index.php/MED/article/view/4634/3884). Relação de Originais n.792; Publicados n. 281. 2) “Cenário econômico e político do debate hemisférico”, Meridiano 47 (Brasília: ISSN: 1518-1219, n. 13, julho 2001, p. 2-6; link para o boletim: http://periodicos.unb.br/index.php/MED/issue/view/571; link para o artigo: http://periodicos.unb.br/index.php/MED/article/view/4642/3886). Relação de Originais n.792; Publicados n. 298. 1) “Relações Internacionais e política externa do Brasil: uma perspectiva histórica”, Meridiano 47 (Brasília: ISSN: 1518-1219, n. 10-11-12, abril-maio-junho 2001, p. 211; link para o boletim: http://periodicos.unb.br/index.php/MED/issue/view/572; link para o artigo: http://periodicos.unb.br/index.php/MED/article/view/4676/3918). Relação de Originais n. 782; Publicados n. 274. Início da colaboração com o boletim Meridiano 47: abril 2001

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Livros próprios de Paulo Roberto de Almeida 26) Volta ao Mundo em 25 Ensaios: Relações Internacionais e Economia Mundial (Kindle book (file size: 809 KB; ASIN: B00P9XAJA4; disponível em Academia.edu (link: https://www.academia.edu/9126863/26_Volta_ao_Mundo_em_25_Ensaios_Rela%C3%A 7%C3%B5es_Internacionais_e_Economia_Mundial_2014_). Relação de Originais n. 2712. Relação de Publicados n. 1150. 25) Rompendo Fronteiras: a Academia pensa a Diplomacia (Amazon Digital Services: Kindle Edition, 2014, 414 p.; ASIN: B00P8JHT8Y; disponível em Academia.edu (link: https://www.academia.edu/9108147/25_Rompendo_Fronteiras_a_academia_pensa_a_dip lomacia_2014_). Relação de Originais n. 2710. Relação de Publicados n. 1148. 24) Codex Diplomaticus Brasiliensis: livros de diplomatas brasileiros (Amazon Digital Services: Kindle Edition, 2014, 326 p.; disponível no link: http://www.amazon.com/dp/B00P6261X2; e na plataforma Academia.edu; link: https://www.academia.edu/9084111/24_Codex_Diplomaticus_Brasiliensis_livros_de_dip lomatas_brasileiros_2014_ ). Relação de Originais n. 2707. Relação de Publicados n. 1147. 23) Polindo a Prata da Casa: mini-resenhas de livros de diplomatas (Amazon Digital Services: Kindle edition, 2014, 151 p., 484 KB; ASIN: B00OL05KYG; disponível no link: http://www.amazon.com/dp/B00OL05KYG; e na plataforma Academia.edu; link: https://www.academia.edu/8815100/23_Polindo_a_Prata_da_Casa_miniresenhas_de_livros_de_diplomatas_2014_). Prefácio e Sumário disponíveis no blog Diplomatizzando (link: http://diplomatizzando.blogspot.com/2014/10/mini-resenhas-delivros-de-diplomatas.html). Relação de Originais n. 2693. Relação de Publicados n. 1145. 22) Prata da Casa: os livros dos diplomatas (book reviews; Edição de Autor; Versão de: 16/07/2014, 663 p.); (Academia.edu, link: https://www.academia.edu/5763121/Prata_da_Casa_os_livros_dos_diplomatas_Edicao_d e_Autor_2014_). Relação de Originais n. 2533. Relação de Publicados n. 1136. 21) Nunca Antes na Diplomacia...: A política externa brasileira em tempos não convencionais (Curitiba: Editora Appris, 2014, 289 p.; ISBN: 978-85-8192-429-8); Hartford, 30 março 2104, 312 p. Relação de Originais n. 2596. Relação de Publicados n. 1133. (Academia.edu, link: https://www.academia.edu/6999273/21_Nunca_Antes_na_Diplomacia_a_politica_extern a_brasileira_em_tempos_nao_convencionais). 20) O Príncipe, revisitado: Maquiavel para os contemporâneos (Hartford, 8 Setembro 2013, 226 p. Revisão atualizada do livro de 2010) Publicado em formato Kindle (disponível: http://www.amazon.com/dp/B00F2AC146). (Academia.edu, link: https://www.academia.edu/5547603/20_O_Principe_revisitado_Maquiavel_para_os_cont emporaneos_2013_Kindle_edition). Relação de Originais n. 2512; Relação de Publicados n. 1111. 19) Integração Regional: uma introdução (São Paulo: Saraiva, 2013, 174 p.; ISBN: 978-8502-19963-7; site da Editora: 381

http://www.saraivauni.com.br/Obra.aspx?isbn=9788502199637). Relação de Originais ns. 2996, 2998, 2300, 2303, 2304, 2313, 2316, 2317, 2373, 2383, 2431, 2438 e 2449. Divulgado no blog Diplomatizzando (link: http://diplomatizzando.blogspot.com/2013/04/integracao-regional-novo-livroenfim.html). (Academia.edu, link: https://www.academia.edu/attachments/32644653/download_file). Relação de Publicados n. 1093. 18) Relações internacionais e política externa do Brasil: a diplomacia brasileira no contexto da globalização (Rio de Janeiro: LTC, 2012, 309 p.; ISBN 978-85-216-2001-3; link: http://www.pralmeida.org/01Livros/2FramesBooks/RelaIntPExt2011.html). (Academia.edu, link: https://www.academia.edu/attachments/32642402/download_file). Relação de Originais n. 2280. Relação de Publicados n. 1058. 17) Globalizando: ensaios sobre a globalização e a antiglobalização (Rio de Janeiro: Lumen Juris Editora, 2011, xx+272 p.; Inclui bibliografia; ISBN: 978-85-375-0875-6; link: http://www.pralmeida.org/01Livros/2FramesBooks/107Globalizando.html). (Academia.edu, link: https://www.academia.edu/attachments/32642383/download_file). Relação de Originais n. 2130. Relação de Publicados n. 1044. 16) O Moderno Príncipe (Maquiavel revisitado) (versão impressa: edições do Senado Federal volume 147: Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2010, 195 p.; ISBN: 978-857018-343-9; link: http://www.pralmeida.org/01Livros/2FramesBooks/95MaquiavelRevisitado.html). (Academia.edu, link: https://www.academia.edu/attachments/32642375/download_file). Relação de Originais n. 1804. Relação de Publicados n. 1014. 15) O Moderno Príncipe: Maquiavel revisitado (Rio de Janeiro: Freitas Bastos, edição eletrônica, 2009, 191 p.; ISBN: 978-85-99960-99-8; R$ 12,00; disponível para aquisição no seguinte link: http://freitasbas.lojatemporaria.com/o-moderno-principe.html). Anunciado no site pessoal (link: http://www.pralmeida.org/01Livros/2FramesBooks/95maquiavelrevisitado.html) e no blog Diplomatizzando (21.12.2009; link: http://diplomatizzando.blogspot.com/2009/12/1591-novo-livro-pra-o-modernoprincipe.html), com livre disponibilidade do Prefácio, da Dedicatória, da carta a Maquiavel e das Recomendações de Leitura. (Academia.edu, link: https://www.academia.edu/5546980/15_O_Moderno_Principe_Maquiavel_revisitado_20 09_e-pub). Relação de Originais n. 1804. Relação de Publicados n. 940. 14) O Estudo das Relações internacionais do Brasil: um diálogo entre a diplomacia e a academia (Brasília: LGE Editora, 2006, 385 p.; ISBN: 85-7238-271-2; link: http://www.pralmeida.org/01Livros/2FramesBooks/93EstudoRelaIntBr2006.html). (Academia.edu, link: https://www.academia.edu/attachments/32642184/download_file). 13) Formação da diplomacia econômica no Brasil: as relações econômicas internacionais no Império (2ª edição; São Paulo: Editora Senac, 2005, 680 pp., ISBN: 85-7359-210-9; link: http://www.pralmeida.org/01Livros/2FramesBooks/80FDESenac2005.html). (Academia.edu, link: http://www.academia.edu/attachments/32642332/download_file).

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12) Relações internacionais e política externa do Brasil: história e sociologia da diplomacia brasileira (2ª ed.: revista, ampliada e atualizada; Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2004, 440 p.; coleção Relações internacionais e integração nº 1; ISBN: 85-7025-738-4; link: http://www.pralmeida.org/01Livros/2FramesBooks/74UFRGS2004.html). (Academia.edu, link: https://www.academia.edu/attachments/32642325/download_file). 11) A Grande Mudança: consequências econômicas da transição política no Brasil (São Paulo: Editora Códex, 2003, 200 p.; ISBN: 85-7594-005-8; link: http://www.pralmeida.org/01Livros/2FramesBooks/58GrdeMudanca.html). (Academia.edu, link: https://www.academia.edu/5546940/11_A_Grande_Mudanca_consequencias_economica s_da_transicao_politica_no_Brasil_2003_). 10) Une histoire du Brésil: pour comprendre le Brésil contemporain (avec Katia de Queiroz Mattoso; Paris: Editions L’Harmattan, 2002, 142 p.; ISBN: 2-7475-1453-6; link: http://www.pralmeida.org/01Livros/2FramesBooks/48HistoireBresil2002.html). (Academia.edu, link: https://www.academia.edu/attachments/32642309/download_file). 09) Os primeiros anos do século XXI: o Brasil e as relações internacionais contemporâneas (São Paulo: Editora Paz e Terra, 2002, 286 p.; ISBN: 85-219-0435-5; link: http://www.pralmeida.org/01Livros/2FramesBooks/45SeculoXXI2002.html). (Academia.edu, link: https://www.academia.edu/attachments/32642303/download_file). 8) Formação da diplomacia econômica no Brasil: as relações econômicas internacionais no Império (São Paulo: Editora Senac, 2001, 680 pp., ISBN: 85-7359-210-9; link: http://www.pralmeida.org/01Livros/2FramesBooks/44FDESenac2001.html). (Academia.edu, link: http://www.academia.edu/attachments/32642297/download_file). 7) Le Mercosud: un marché commun pour l’Amérique du Sud, Paris: L’Harmattan, 2000, 160 p.; ISBN: 2-7384-9350-5; link: http://www.pralmeida.org/01Livros/2FramesBooks/40Mercosud2000.html). (Academia.edu, link: https://www.academia.edu/attachments/32642281/download_file). 6) O estudo das relações internacionais do Brasil (São Paulo: Editora da Universidade São Marcos, 1999, 300 p.; ISBN: 85-86022-23-3; link: http://www.pralmeida.org/01Livros/2FramesBooks/31EstudoRelaIntBr1999.html). (Academia.edu, link: https://www.academia.edu/5546888/06_O_estudo_das_relacoes_internacionais_do_Brasi l_1999_). 5) O Brasil e o multilateralismo econômico (Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, na coleção “Direito e Comércio Internacional”, 1999, 328 p.; ISBN: 85-7348-093-9; link: http://www.pralmeida.org/01Livros/2FramesBooks/30Multilateralismo1999.html). (Academia.edu, link: http://www.academia.edu/attachments/32642262/download_file). 4) Velhos e novos manifestos: o socialismo na era da globalização (São Paulo: Editora Juarez de Oliveira, 1999, 96 p.; ISBN: 85-7441-022-5; link: http://www.pralmeida.org/01Livros/2FramesBooks/29Manifestos1999.html). (Academia.edu, link: https://www.academia.edu/attachments/32642256/download_file). 383

3) Mercosul: Fundamentos e Perspectivas (São Paulo: Editora LTr, 1998, 160 p.; ISBN: 857322-548-3; link: http://www.pralmeida.org/01Livros/2FramesBooks/26MercosulLTr1998.html). (Academia.edu, link: https://www.academia.edu/attachments/32642244/download_file). 2) Relações internacionais e política externa do Brasil: dos descobrimentos à globalização (Porto Alegre: Editora da UFRGS, 1998, 360 p.; ISBN: 85-7025-455-5); link: http://www.pralmeida.org/01Livros/2FramesBooks/25RelaIntPExtUFRGS1998.html). (Academia.edu: https://www.academia.edu/attachments/32642231/download_file ). 1) O Mercosul no contexto regional e internacional (São Paulo: Edições Aduaneiras, 1993, 204 p.; ISBN: 85-7129-098-9; link: http://www.pralmeida.org/01Livros/2FramesBooks/09MSulAduan1993.html). (Academia.edu: https://www.academia.edu/attachments/32642206/download_file). Para os capítulos do Autor em livros coletivos, consultar o site ou ver esta lista: https://www.academia.edu/9068537/List_of_AUthors_chapters_in_collective_books_Nov._2 014_ Lista elaborada em 16/04/2015

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Nota sobre o Autor: Paulo Roberto de Almeida é Doutor em Ciências Sociais, Mestre em Planejamento Econômico e diplomata de carreira desde 1977. Foi professor no Instituto Rio Branco e na Universidade de Brasília, diretor do Instituto Brasileiro de Relações Internacionais (IBRI) e, desde 2004, é professor de Economia Política no Programa de Pós-Graduação (Mestrado e Doutorado) em Direito no Centro Universitário de Brasília (Uniceub). Como diplomata, serviu nas embaixadas em Berna, Belgrado e Paris, nas delegações em Genebra e Montevidéu e foi Ministro-Conselheiro na Embaixada em Washington (1999-2003). Foi também Assessor Especial no Núcleo de Assuntos Estratégicos da Presidência da República (2003-2007). Desde janeiro de 2013 é Cônsul Geral Adjunto do Brasil em Hartford, Connecticut, EUA. É editor adjunto da Revista Brasileira de Política Internacional e participa de comitês editoriais de diversas publicações acadêmicas. Tem dezenas de obras e algumas centenas de artigos publicados. Dispõe de um site pessoal (www.pralmeida.org) e de um blog voltado para os mesmos temas que configuram seus interesses intelectuais, mas que considera ser mais para divertissement do que para a pesquisa (http://diplomatizzando.blogspot.com/).

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Redigido em MS Word 2011, Composto em MacBook Air Por Paulo Roberto de Almeida Em 16/04/2015 www.pralmeida.org [email protected] Tel.: (1.860) 989-3284 386

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