29 de abril de 2015: reflexões sobre as manifestações no Centro Cívico de Curitiba/PR

June 4, 2017 | Autor: Leandro Ayres França | Categoria: Violência, Violência Policial, Curitiba/PR, Operação Centro Cívico, 29 De Abril De 2015
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Descrição do Produto

ISBN

978-85-913814-3-2

Título

29 de abril de 2015: reflexões sobre as manifestações no Centro Cívico de Curitiba/PR

Edição 1

Ano Edição 2016

Tipo de Suporte E-book - PDF

Páginas 87

Participações Editor

Leandro Ayres França

Organizador

Paulo César Busato

Organizadora

Andressa Paula de Andrade

Organizador

Alexey Choi Caruncho

Diagramação

Victor Silva Busato

Capa

Natalia Paula de Andrade

SUMÁRIO APRESENTAÇÃO .......................................................................................................................... 4 1 - 29 DE ABRIL DE 2015: PARA ROUBAR 8 BILHÕES DA PREVIDÊNCIA, UM MASSACRE..................................................................................................................................... 7 Texto por Marta Bellini 2 - 29/04 – O RELATO DE UMA TESTEMUNHA ....................................................................... 11 Texto por Rodrigo Jacob Cavagnari 3 - NOME AOS BOIS ..................................................................................................................... 19 Texto por Paulo César Busato 4 - A POLÍCIA MILITAR E OS REFLEXOS POLÍTICOS SOBRE SUA ATUAÇÃO NO 29 DE ABRIL .............................................................................................................................................. 23 Texto por Patrícia Possatti Ferrigolo; Paula Fauth Manhães Miranda; Pedro Fauth Manhães Miranda 5 - MASSACRE DE 29 DE ABRIL DE 2015: EXCEÇÃO NO ESTADO DO PARANÁ OU PARANÁ COMO ESTADO DE EXCEÇÃO? ................................................................................ 36 Texto por Priscilla Placha Sá 6 - OS ARGUMENTOS DO ESTADO REPRESSOR .................................................................... 43 Texto por Esther Solano Gallego 7 - 29 DE ABRIL DE 2015: EXPRESSÃO DO CONTROLE SOCIAL PENAL COMO REGRESSO DO COLONIAL E DO COLONIZADOR ................................................................. 51 Texto por Silvia de Freitas Mendes 8 - UMA PERSPECTIVA EXTERNA – AS OPOSTAS ANÁLISES DA “OPERAÇÃO CENTRO CÍVICO” .......................................................................................................................................... 57 Texto por Gabriel Rodrigues de Carvalho 9 - DO GOVERNO À GOVERNANÇA: A DIFÍCIL CONCRETIZAÇÃO DA MUDANÇA DOS TEMPOS .......................................................................................................................................... 64 Texto por Alexey Choi Caruncho 10 - PRIMEIRO FORAM OS MEUS PROFESSORES, MAS NÃO ME IMPORTEI .................. 70 Texto por Gustavo Noronha de Ávila; Vera M. Guilherme 11 - AS ATROCIDADES DAS PESSOAS COMUNS .................................................................... 73 Texto por Leandro Ayres França 12 - A ANGÚSTIA DA INSÔNIA OU NOTÍCIAS ANTECIPADAS: QUANDO SERÁ O PRÓXIMO ‘29 DE ABRIL’? ........................................................................................................... 79 Texto por Andressa Paula de Andrade

APRESENTAÇÃO Transcorrido um ano após o 29 de Abril de 2015, a pergunta posta ao Grupo Modernas Tendências do Sistema Criminal dizia respeito ao quê poderia ser feito para modificar o ocorrido? Dado o seu lugar de discurso, houve um amargo reconhecimento de que absolutamente nada poderia ser efetuado para modificar o fato em si, em um sentimento bastante frequente àquele de qualquer enfrentamento histórico. Por meio de uma mudança de perspectiva, no entanto, a indagação passaria a estar relacionada ao quê poderia ser feito para aquele evento não ser tão brevemente olvidado e, especialmente, não se repetir? A partir daí o passo inicial foi a digestão vagarosa dessa chaga histórica em nosso Estado. De fato, muito antes mesmo de 2015, já havia sido necessário somatizar a violência contra docentes paranaenses em “30 de agosto de 1988”. O método de 1988 foi o mesmo daquele empregado em 2015: cães, bombas de efeito moral, tropa de choque e todo o aparato estratégico do poder estatal. A diferença? Magnitude. Enquanto em 1988 tinham sido cerca de 10 feridos, em 2015 foram mais de 200 feridos. O episódio de 1988, assim, figurava como uma maquete do ocorrido em 2015. Retornemos à 2015. É necessário relembrar que havia uma pauta de votação pela Assembleia Legislativa do Paraná acerca do projeto que buscava alterar a previdência dos funcionários públicos do Estado, um pleito que vinha se arrastando desde o início daquele ano. A urgência da votação excluiu a possibilidade de ouvir justamente quem seria atingido: aqueles que utilizavam e utilizarão o benefício social. A única solução encontrada pelos manifestantes foi a de ingressar no que se denomina “Casa do Povo”. As galerias da Assembleia seriam preenchidas por manifestantes que, pacificamente, buscava apenas dizer não a um projeto que estava em vias de ser aprovado a galopes. Com a ocupação do Plenário, em 12 de fevereiro de 2015, seria protagonizada uma cena inusitada, que seria vista e documentada pela imprensa nacional e internacional. Alguns parlamentares, no afã da aprovação do projeto originário, ingressaram no prédio fazendo uso de um camburão da Tropa de Choque, dirigindo-se ao restaurante da Assembleia para que ali fosse feita a discussão e votação de uma forma improvisada. A cena simbólica do camburão evidenciava que a democracia, no modelo atual, arvorando-se no sufrágio, faz representantes, mas longe estaria de gerar uma efetiva representação. Não por outra razão, após aquele fato, seria manejado um interdito proibitório para que a apreciação do projeto fosse efetuada a portas fechadas e sem a presença de qualquer interessado. Judicialmente, se conseguiria alterar o quadro, garantindo a suspensão de qualquer medida que impedisse o ingresso de manifestantes durante a votação do então

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Projeto de Lei nº. 252/2015. Sem embargo desta decisão, membros da Assembleia pretenderam negociar que apenas líderes sindicais pudessem acompanhar a votação. Por motivos óbvios, a proposta foi rechaçada e assim se chegou ao 29 de Abril. O cenário que se visualizava já apresentava contornos surpreendentes: as notícias davam conta da convocação de mais de mil policiais militares, muitos vindos do interior do Estado; havia patrulhamento com helicópteros nas proximidades do Centro Cívico; atiradores de precisão ocupavam a cobertura da Assembleia; grades de contenção foram postas ao redor do edifício. Estimava-se que, ao todo, o número de manifestantes seria de 1500. A tensão que se iniciava na manhã do dia 29 de Abril apresentava-se como um prelúdio para o que ocorreria naquela tarde de votação. No período vespertino, com a movimentação de alguns manifestantes na linha de frente, foi iniciado o confronto com a polícia militar. O que se viu na sequência foi uma verdadeira cena de guerra. Desde o aparato militar estratégico montado, os incontáveis disparos com munição de contenção, lançamento de bombas de efeito moral, uso de cães, avanço da Tropa de Choque, lançamento de jatos d’água. Enquanto o caos instalava-se na Praça Nossa Senhora de Salete, a maioria dos parlamentares decidiram persistir com a votação ao som dos gritos, bombas, botas que marchavam e disparos de armas que se seguiam do lado de fora daquela Casa. Todo o ocorrido não parecia sensibilizar, chegando-se ao extremo de ser reconhecido pela Presidência da Assembleia que aquilo que se dava no lado externo seria de competência exclusiva da Secretaria de Segurança Pública e da Polícia Militar, não havendo por isto razão para qualquer interrupção da pauta de votação. Fim de tarde do dia 29 de Abril. A prefeitura da cidade de Curitiba se transformaria em enfermaria, sendo utilizada para albergar manifestantes feridos, com a necessidade de atendimento médico improvisado. Ambulâncias não chegavam no local. Uma creche da região foi as pressas evacuada, como reflexo de bombas utilizadas no confronto. O saldo: mais de 200 manifestantes feridos. Foi a partir deste fato histórico que, preocupado com o solapamento dos valores democráticos, o Grupo Modernas Tendências do Sistema Criminal decidiu interpolar o acontecido e verter as reflexões em ensaios acadêmicos para que o tempo não soterrasse o ocorrido. Identificando-se que projeto transcendia a abordagem de natureza criminal, foram buscados membros externos. Convidados desde o professor manifestante até o policial militar, jornalistas, filósofos, historiadores, sociólogos, criminólogos e diversos operadores do Direito, para um diálogo franco a partir de distintas perspectivas, fomentando desta forma uma análise global do ocorrido. Alguns aceitaram prontamente ao convite. Ao longo deste percurso, veio a público a informação do arquivamento dos

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autos de inquérito policial militar que visava apurar, justamente, os excessos da atividade policial naquela data. Tal dado só revelou o quanto o projeto em curso mostrava-se relevante para a história do Estado. Se diante do ocorrido, no âmbito da justiça castrense, não se acreditou ser “possível” uma resposta adequada, a Academia deve cumprir o seu papel de evitar o esquecimento e evidenciar que ocorrido não se repita. Os ensaios que se seguem são frutos da inquietação tão presente em nosso Grupo que sempre se orientou pelos diálogos francos e democráticos, local onde posições antagônicas não se chocam, mas somam. A finalidade principal deste Projeto é documentar, criticar e alertar para o ocorrido. Que 1988 e 2015 sejam anos relembrados pela necessidade de fortalecimento de nossa jovem democracia e que outros ‘29 de Abril’ não se repitam. Para uma democracia forte e plural, dar voz e ouvir é o primeiro passo para o amadurecimento de nossas instituições e do pensamento crítico. Eis a proposta.

Curitiba, 29 de Abril de 2016.

Grupo Modernas Tendências do Sistema Criminal

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29 DE ABRIL DE 2015: PARA ROUBAR 8 BILHÕES DA PREVIDÊNCIA, UM MASSACRE Por Marta Bellini1

Em 12 de fevereiro de 2015 a Seção Sindical da Universidade Estadual de Maringá, SESDUEM, deliberou, em assembleia docente, pela greve pelo reajuste salarial de 8,17%. A negociação entre as categorias não era aberta pela Secretaria de Ciência e Tecnologia e a justificativa era a de que o Secretário dessa pasta, estava fora do país, em férias. Em março de 2015 retornamos às aulas e logo após os docentes da UEM voltam à greve porque a negociação sequer tinha sido aberta. Todas as categorias entraram em greve: funcionários estaduais de todas as instituições públicas, das escolas estaduais e das universidades. Março e abril foram dois meses de intensas lutas. Houve a união das categorias e manifestações ocorreram todas as semanas nas cidades do estado do Paraná. No meio dessa greve, soubemos do projeto de repasse dos 8 bilhões da previdência dos funcionários públicos do Paraná ao governador para pagar dívidas do estado. Para efetuar esse plano de transferência ilegal dos 8 bilhões da Paranaprevidência, a Richa foi enviado Mauro Ricardo Machado Costa, ninguém mais do que o ex-braço direito de Armínio Fraga, o economista predileto de Fernando Henrique Cardoso. Mauro Ricardo Costa havia ajudado o candidato ACM Neto arrecadando R$ 21.948.636,11 milhões gastos na campanha segundo dados do TSE, segundo o jornalista Luis Nassif. Mauro Ricardo foi até São Paulo para angariar fundos do PSDB paulista para auxiliar o candidato baiano. Além disso, Mauro Ricardo foi Secretário da Fazenda de Gilberto Kassab (PSD) em São Paulo e ex-secretário da Fazenda de José Serra. Em 1995, a convite do então Ministro José Serra, Mauro Ricardo assumiu a Subsecretaria de Planejamento e Orçamento, no Ministério de Planejamento e Orçamento. Em 1999, também a convite de Serra foi Presidente da Fundação Nacional de Saúde (Funasa). Nesses dois cargos, Mauro Ricardo Dias foi incriminado por irregularidades. O Ministério Público o denunciou por Improbidade Administrativa em um “esquema” de desvio de R$ R$ 56.630.323,39 da Fundação Nacional de Saúde (Funasa), por meio da contratação de mão de obra terceirizada, inclusive para atendimento de “finalidades políticas”. Na Bahia seu trabalho resultou no processo no Tribunal Regional Federal da 1ª Região que segue assim ementado: “o objeto da presente ação de improbidade administrativa, foi firmado no dia 18/12/2002, NA GESTÃO DO ENTÃO

1 Professora Doutora da Universidade Estadual de Maringá, Departamento de Educação. Diretora da Seção Sindical dos Professores/Andes

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PRESIDENTE MAURO, [...] RESPONSÁVEL PELA CONTRATAÇÃO ORIGINAL DA EMPRESA BRASFORT E PELA CELEBRAÇÃO DO CONTRATO 074/2002, EIVADO DE TODAS AS ILEGALIDADES”. Descreve ainda que “o ex-presidente da Funasa, Mauro Ricardo, viabilizou uma contratação nula, fundamentada em um plano de cargos e salários ‘paralelo”. O convênio foi celebrado no período com a empresa Brasfort, acusada pela procuradora de integrar uma suposta “MÁFIA DAS TERCEIRIZADAS”. “A origem de todas as ilegalidades narradas é a assinatura [por Mauro Ricardo] do próprio Contrato com desvio de finalidade, para execução de atividade-fim do órgão mediante terceirização dos serviços que, posteriormente, permitiu a contratação de parentes e ‘apadrinhados’, sem que houvesse controle da frequência dos terceirizados”, acusa Raquel Branquinho. “Ao permitir a contratação da Brasfort na forma acima narrada, o ex-presidente da Funasa Mauro Ricardo violou princípios basilares da Administração Pública”. A procuradora Raquel Branquinho afirma que todos os acusados agiram “de forma deliberada e, com plena consciência dos seus atos, praticaram os atos de improbidade administrativa”. Raquel Branquinho arrola também a responsabilidade do secretário do Município soteropolitano ao promover na Funasa “a criação de um ilícito sistema de banco de horas semanal” e reitera o que chama de “plano de cargos e salários ‘paralelo’, com critérios de ascensão funcional e remunerações bem maiores do que o legalmente vigente no órgão”. Conforme o MPF-DF, o período de comando do atual titular da Sefaz de Salvador na Funasa integra o quadro de “administrações totalmente descompromissadas com o interesse público, que utilizam os recursos orçamentários e extraorçamentários para fins políticos eleitoreiros e também para o desvio de dinheiro, o que tem causado um incalculável prejuízo à própria entidade”. Mauro Ricardo Machado Costa presidiu a Funasa de 26 de março de 1999 a 14 de janeiro de 2003. Com essas ligações e processo, Mauro Ricardo Costa veio ao Paraná para reformar o estado do Paraná em estado mínimo em um plano para salvar o governador do Paraná. Para isso, propôs a rapina da previdência dos trabalhadores das instituições públicas ou o GOLPE da previdência que gerou o 29 de abril de 2015. Chegamos ao 25 de abril depois de muitas passeatas, acampamento dos e das professoras na Praça Nossa Senhora Salete, do episódio do camburão levando deputados para a Assembleia Legislativa do Paraná capitaneado pelo então Secretário de segurança Pública, Fernando Francischini. O dia 25 de abril foi o dia indicado para a votação do projeto de Mauro Ricardo, a transferência dos 8 bilhões de reais da previdência ao governador para pagamento de dívidas do estado. Jamais essas dívidas foram tornadas públicas. Os/as professores/as e demais trabalhadores dos setores públicos acamparam nos dias 27, 28 e 29 de abrirl na Praça Nossa Senhora Salete. Nos dias 27 e 28, já tínhamos forte aparato da ROTAM, PM, aparatos como camburões, carros da PM cercavam o acampamento. Na noite de 27, segunda-feira, a PM tentou tirar os/as manifestantes do local. No dia 28, logo após as 13h, quando um caminhão da

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APP entrava na praça, a PM jogou bombas e gás de pimenta nas pessoas que estavam perto do veículo. Houve um início de tumulto e resistência dos/as manifestantes. O caminhão não pôde avançar e ficou na entrada da praça. Na madrugada de 29, a uma hora da manhã, mais uma bomba e ameaças. Os/as manifestantes ficaram de mãos dadas em círculo em torno das barracas. As 8 da manhã, não havia sinais para celular, nem whatsapp. Havia um cerco tecnológico. Os/as manifestantes não conseguiam se comunicar na região da Praça. Também não podíamos conversar muito alto porque havia inúmeros policiais à paisana, os famosos P2 que nos intimidavam, circulavam os/as manifestantes. Essa estratégia foi endurecendo com o passar das horas. As 12h o contingente policial, cães e veículos aumentou. A sessão da Alep iniciaria as 14h. Os/as manifestantes iriam tentar entrar na assembleia as 13h30 aproximadamente. Desse horário até as 14h15 mais soldados, cães chegavam à praça, inclusive um caminhão com cavalos chegou a ficou mais distante dos/as manifestantes. Ao mínimo movimento no centro da praça de manifestantes veio a primeira bomba. Todos/as correram para longe do centro da praça e logo voltaram, mas veio a segunda, a terceira, dezenas e centenas de bombas. Os policiais à paisana começaram a avançar sobre os/as manifestantes e foram prendendo. Aos poucos, no meio da intensa fumaça, helicópteros e cães, começamos a ver sangue. Muitos professores e professoras machucadas. A prefeitura, ao lado da praça, decretou calamidade pública e abriu o térreo, primeiro e segundo andar para os/as manifestantes. No térreo, uma sala tornou-se enfermaria e atendia os/as machucados/as e desmaiados/as. Uma pequena chuva caia e mesmo assim, os/as manifestantes ficaram na praça. Pessoalmente, contei três horas de guerra de bombas e cães. Ao fim, suspirei e pensei: “Perdeu, playboy”. Não se rouba trabalhadores/as com massacre, sangue e prisões sem algum tipo de ônus, no caso, ônus político de um governador fraco e, agora, com sangue, covarde e sangrento. O sangue, as agressões com chutes, prisões arbitrárias, com um cinegrafista, Luiz Carlos Jesus, mordido por um cão pitbull, marcaram o dia 29 de abril de 2015 como o MASSACRE dos/as trabalhadores das instituições públicas do Paraná. Era nossa previdência que estava em jogo, estava sendo roubada. Era nosso direito lutar pelo recurso de décadas. Costumo dizer que Fernando Francischini fez um cerco em torno dos/as manifestantes como aquele descrito em ocasiões de guerra. Se fosse confronto, como disseram Secretário de Segurança e o governo, não teríamos tido um cerco. Cercou e massacrou, como estratégia de guerra. Enquanto isso, os deputados aliados ao governador votaram pela liberação dos 8 bilhões de reais de nossa aposentadoria. Foi outro massacre, o da vida após três décadas ou mais trabalhando. Mais ainda: houve outro massacre, o deboche dos deputados ao final da votação do dia 29 de abril de 2015. O deputado Traiano, sabendo do que ocorria fora da Alep, disse: “As bombas estão sendo soltas lá fora, aqui continuamos votando”. O deputado Romanelli foi fotografado por Daniel Castellano, da Gazeta do Povo. Na

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Gazeta do Povo do dia 30 de abril de 2015 saiu a fotografia com sua percepção do deputado Romanelli e outros: “Parei de transmitir algumas fotos para o jornal e ao cair da noite percebi pelos alto-falantes do prédio anexo que a sessão continuava normalmente dentro do plenário, fui até lá e o cenário que encontrei foi de um dia normal de votação sem que nada tivesse acontecido lá fora, deputados agiam normalmente, se cumprimentando e alguns inclusive com um sorriso no rosto, fotografei porque era muito contrastante ter vivido horas de conflito e presenciar a normalidade dentro do prédio. Não suportei ficar...”. Por fim: o MASSACRE fez crescer a organização dos/as trabalhadores/as de todas as categorias. Fez-nos conhecer o projeto de estado mínimo em curso no Brasil pelo partido tucano. Fez também a maior entre as maiores manifestações do estado do Paraná neste início do século XXI. Vida longa àqueles que se rebelam e resistem aos desmandos do poder.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Fortes, Leandro. Disponível em: https://www.facebook.com/leandro.fortes.146/ posts/10202391469727530. Acesso em março de 2015. Nassif, Luiz. Disponível em: http://jornalggn.com.br/noticia/o-secretario-mauroricardo-costa-e-as-ligacoes-entre-acm-neto-e-o-governo-paulista). Acesso em março de 2015.

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29/04 – O RELATO DE UMA TESTEMUNHA

Por Rodrigo Jacob Cavagnari1

“Foram muitas bombas. Foram muitos projéteis. Foram muitos feridos. Um ano depois, nenhum responsável. Moro na Avenida Cândido de Abreu. Trabalho na Rua Marechal Hermes. Sou pedestre. A rua da batalha é o meu caminho diário”. Dois dias antes do fato fui impedido de trafegar pelo meu caminho. Barras de ferro obstavam a passagem dos pedestres e dos veículos, no trecho entre o Palácio Iguaçu e a Assembleia Legislativa. Naquele ponto, avistei um oficial da Polícia Militar que estava em serviço. Indaguei-lhe o motivo da constrição da liberdade de tráfego. Esse mesmo oficial me cumprimentava diariamente, sorrindo, enquanto fazia a guarda do Palácio Iguaçu. Naquele dia, constrangido, disse: “senhor, é uma ordem superior; estamos apenas cumprindo uma ordem superior; desculpe-nos pelo transtorno”. A expressão facial do policial, naquele momento, distinguia-se da expressão facial dele durante a greve de fevereiro, quando professores e alunos invadiram a Assembleia Legislativa; lá, os policiais aceitaram flores dos manifestantes; ali, notei que a ordem superior já não era bem recebida pelos policiais... A votação do projeto se aproximava. Os professores, vindos de todas as regiões do Estado, após longos dias de resistência, já apresentavam profunda exaustão. A atmosfera transmitia a sensação de animosidade. O confronto era iminente. A única dúvida era: quando? Dia 29 de abril de 2015. Aproximadamente 15h. Sentado em frente ao computador, cumpro com o meu dever laboral. Ouço o primeiro som de bomba... fico atento. 1 Assessor Jurídico do Ministério Público do Estado do Paraná.

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Ouço o segundo som de bomba... penso que a dispersão era necessária. Ouço o terceiro som de bomba... Ouço o quarto som de bomba... Ouço o quinto som de bomba... meu corpo reage; sou filho de professores! Abandono o gabinete e me dirijo ao local do fato. Atravesso a Rua Deputado Mário de Barros, caminho pela Praça Rio Iguaçu e observo, a uma distância de oitenta metros, o uso contínuo de bombas, que pintavam de cinza a praça Nossa Senhora de Salete, em tom monocromático com o céu nublado daquele dia frio na capital. No lugar das barracas dos grevistas, montadas em frente à ALEP, vejo fumaça. Na Praça Rio Iguaçu, em razão do imenso cordão humano formado pelos policiais, apenas observo de longe o episódio; não sentia, porém, o que, deveras, estava acontecendo. O barulho das bombas e dos disparos continuava. Então, decidi me aproximar do local da batalha. Alguns quarteirões estavam isolados nas proximidades da ALEP. Por isso, percorri toda a Rua Marechal Hermes, virei à direita na Rua Ivo Leão, contornei o Tribunal de Justiça e desci em direção à Prefeitura, onde havia a maior concentração de pessoas. Nesse trajeto comecei a perceber que não se tratava de mera dispersão dos manifestantes; eles apresentavam uma expressão de ódio na face. Uma senhora, com aproximadamente sessenta anos, passou em frente ao cordão de policiais, apontou o dedo na face de um miliciano e gritou: “vocês, hoje, representam a vergonha do Estado e não serão esquecidos por esse dia, jamais”. Ela, de fato, estava certa. Esse dia jamais será esquecido. Os policiais que formavam o cordão humano – de farda cáqui – estavam claramente constrangidos. Alguns ficavam de cabeça baixa; outros, com olhos marejados; e, ainda, tinham aqueles que acenavam negativamente com a cabeça. Eles não queriam estar ali; sabiam que toda aquela força bruta era desnecessária para manter a ordem no local. Nesse tempo, cheguei à Prefeitura. Optei por me posicionar ao lado do prédio; encostei na parede, de frente para a Praça Nossa Senhora de Salete, local de concentração dos manifestantes. Naquela coordenada pude experimentar um pouco da realidade do 29/04. Assim que parei, durante alguns minutos, a perplexidade apagou minha lucidez. Bombas de gás lacrimogêneo e de fumaça, de modo ininterrupto, não eram apenas jogadas contra os manifestantes que tentavam invadir a Assembleia Legislativa – até porque, em menos de 10 minutos, esses manifestantes já estavam distantes da ALEP –; as bombas eram lançadas, aleatoriamente, contra a multidão. Projéteis de elastômero (balas de borracha) eram disparados a esmo com

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espingardas calibre 12 – arma que tanto aprecio quando pratico tiro – atingindo, porém, regiões vitais de manifestantes que resistiam de modo pacífico. Vários feridos passavam por mim; muitos deles com ardência nos olhos e dificuldade de respiração; alguns, sagrando; outros, desacordados. Eles eram conduzidos pelos próprios manifestantes e levados à Prefeitura, a qual se tornou um pronto-socorro hospitalar improvisado. Minha mente, enredada no turbilhão, foi sequestrada pelo som de um helicóptero em voo rasante. Duas mulheres, que estavam ao meu lado, conversavam entre elas: “olhe, estão jogando algo dos helicópteros, isso não é possível”. ... infelizmente, era possível. Pior, era a realidade. Bombas de fumaça eram atiradas de um helicóptero que não continha distintivo da autoridade militar. Acompanhando a rota do helicóptero observei a presença de snipers e granadeiros posicionados no teto do prédio do Tribunal de Justiça que fica em frente à Praça Nossa Senhora de Salete, conhecido como “Palácio da Justiça”. Observava, atônito, o prolongamento daquela operação. No carro de som, estacionado ao lado da Prefeitura, senadores que representam o Estado do Paraná tomavam o microfone para discursar, como sempre, em retórica vazia, ao invés de usar o poder político que lhes é conferido para encerrar o massacre. Uma hora havia passado. A massa de manifestantes, nesse momento, cansada e com medo, estava distante da ALEP; preocupavam-se com os pares, vítimas da violência desmedida. Por conta disso, constantemente, no carro de som, pedia-se para a polícia interromper o uso de armas; inexistia resistência da massa de manifestantes. Eis que é dado o comando de uma nova ofensiva policial. Eles ganharam território. Os manifestantes e os espectadores se afunilaram ao redor da Prefeitura, onde eu estava posicionado. A ofensiva prossegue. Mais bombas lançadas, indistintamente, contra essa multidão. Nesse instante, aconteceu um fato curioso; tragicômico ex post facto. Havia uma viatura da PM estacionada na minha frente, a uma distância de cinco metros. Os quatro policiais responsáveis por essa viatura apenas observavam a multidão, fora do veículo, recebendo, passivamente, toda a ordem de insultos dos manifestantes. Ocorre que, durante essa ofensiva do batalhão de operações especiais, o granadeiro lançou, ao menos, quatro bombas em nossa direção, que colidiram com a lataria dessa viatura; vale dizer, as bombas foram lançadas contra os próprios colegas policiais, os quais, como que encenando “Os Trapalhões”, correram, cada um para

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um lado, desnorteados, sem saber o que fazer. Mas se insiste em dizer que a estratégia foi correta e que não houve excesso! O território da Praça Nossa Senhora de Salete era dominado pelos policiais. Não cansados, ordenaram mais uma ofensiva. Mais bombas e mais balas de borracha foram lançadas e disparadas contra nós (professores, policiais de farda cáqui e meros civis), que estávamos afastados da Assembleia Legislativa – a uma praça de distância! – e que apenas acompanhávamos a resistência pacífica dos manifestantes. Nesse momento, eu já sofria os efeitos da bomba de gás lacrimogêneo. Então, no corre-corre, segui com a multidão em direção ao prédio do Tribunal do Júri, que, com referência à Assembleia Legislativa, fica na outra extremidade da Praça Nossa Senhora de Salete. Olhos lacrimosos; dificuldade de respiração; recebo uma ligação do meu tio, professor, que acompanhava a greve, in loco, naquele dia. Encontrei-o em uma rua paralela. Abalado, ele revelou os fatos exatamente como eu havia presenciado há poucos minutos. Despeço-me dele, com um abraço apertado e lágrimas. As lágrimas precisavam rolar, porque a resistência pacífica não resistiu à força. As lágrimas precisavam rolar, porque a democracia não resistiu à força. As lágrimas precisavam rolar, porque as leis não resistiram à força. Eu sentia, naquele momento, que todos os conceitos e todas as teorias que inventamos, acreditamos e propagamos não serviam de nada; elas estavam em outro plano; era pura ficção argumentativa! Sentia, também, que ontem, hoje e sempre, o mais forte vai predominar. Retorno à parede lateral do prédio da Prefeitura. Após a última ofensiva policial, os manifestantes estavam cientes de que a resistência desencadearia, tão somente, mais violência. Veio, pois, a rendição. Aquela massa de pessoas ficou impotente diante da força bruta do Estado. Esse sentimento é amargo. Não ocupar nenhuma função de autoridade. Não ter poder para mudar aquela realidade. Esses pensamentos atordoavam a minha mente. Retornei ao meu local de trabalho. Chegando lá, deparei-me com diversas autoridades, nos gabinetes, rindo e conversando sobre as viagens para a Europa, sobre o modelo de Mercedez-Benz que cada um tinha e sobre as habituais fofocas dos bastidores da instituição, enquanto sorviam um cafezinho, como se nada tivesse acontecido. Era só mais uma “bomba” do dia na minha cabeça! Contudo, lembrei que o salário, o status e o tempo livre dessas autoridades, não condizente com a realidade nacional – muito menos com a dos professores que

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tinham acabado de apanhar no terreno ao lado – somente poderia fazê-los rir! Conversei rapidamente com colegas sobre o massacre. Sentei na cadeira, em frente ao computador. Durante essa uma hora e meia que estive no local dos fatos eu só pensava no caráter dos respectivos chefes dos Poderes do Estado do Paraná diante dessa batalha. O Poder Executivo deu a ordem para uma ação ilimitada da Polícia Militar. O Poder Legislativo agradeceu a medida. O Poder Judiciário foi conivente com ela. E aqui se encerra o que vi naquele dia. Depois de um ano, o que foi apurado até agora? O Ministério Público do Estado do Paraná propôs ação civil pública em face, dentre outros, do Governador do Estado (Beto Richa); do então Secretário de Segurança Pública (Fernando Francischini) e do então Comandante Geral da Polícia Militar do Paraná (César Vinícius Kogut). O processo está em andamento. O Ministério Público do Estado do Paraná colheu provas e as encaminhou ao Ministério Público Federal para a análise sobre a propositura de ação penal. O órgão do Ministério Público do Estado do Paraná que atua junto à Vara da Justiça Militar Estadual, curiosamente, requereu o arquivamento do inquérito militar. O juízo da Vara da Justiça Militar Estadual acolheu o pedido do Ministério Público e determinou o arquivamento do referido inquérito. Disse o magistrado, em trecho da decisão que determinou o arquivamento: “Muito embora o desfecho deva ser profundamente lamentado, não se pode esquecer que a missão imposta ao efetivo da Polícia Militar era a de não permitir a invasão da Assembleia Legislativa”. Prolator da decisão, não se pode apenas lamentar esse fato! Caro leitor, para que essa data não passe apenas como um fato histórico lamentável, permita-me apontar, tão somente, duas breves valorações fático-jurídicas sobre o caso: (i) houve excesso; e, (ii) não há óbices para que as autoridades sejam responsabilizadas no âmbito criminal. Justifico. Para o Direito Penal, ações têm sentido; atribuímos significados a elas; esse significado é obtido à luz das circunstâncias de determinado caso concreto.2 Ictu oculi, qualquer pessoa que esteve no local, como testemunha do fato, só pode atestar que a quantidade e as características de armamento utilizadas pela força policial foi excessiva para dispersar os manifestantes do local em que ocorreria a votação do projeto. Mais de duzentas pessoas ficaram feridas. Foram duas horas ininterruptas de uso de material bélico. Foram disparados mais de 2.300 projéteis de elastômero (balas de borracha). Foram lançadas mais de 1.400 bombas (de gás lacrimogêneo e de fumaça). Foi gasto aproximadamente R$ 1.000.000,00 do dinheiro público na operação. 2 VIVES ANTÓN, Tomás Salvador. Fundamentos del sistema penal. Tirant lo Blanch, Valencia, 1996, pp. 205 e 206.

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Tudo isso para dispersar professores desarmados! Respeito, profundamente, o labor dos milicianos. Mormente, o da tropa de choque (Batalhão de Operações Especiais). Enquanto eles lutam, cotidianamente, no fronte de batalha – em nossa comunidade ainda é necessário o uso desse grupo em situações pontuais no combate da criminalidade – pessoas como eu trabalham, confortavelmente, em gabinetes refrigerados, analisando, à distância, a realidade dos fatos que eles vivenciaram. Eles são leões, treinados para assegurar a ordem, com coragem e destemor. Entretanto, eles cumprem missões; não agem com independência funcional. Os policiais da tropa de choque receberam ordens superiores e as executaram. O problema é que, naquele dia, os leões morderam os professores. Não era a tropa de choque vs. os poderosos traficantes. Nem mesmo a tropa de choque vs. os assaltantes munidos com fuzil .50. Era a tropa de choque, com mais de 2.300 projéteis de elastômero e com mais de 1.400 bombas vs. os professores. Sim, apenas professores. Não havia os famosos black blocs das manifestações de 2013, nem mesmo outro grupo social para lutar pela bandeira dos educadores, como noticiou a mídia. O excesso da ação derivou, por inafastável, de comando de autoridades sádicas. Se existia a necessidade de dispersão dos manifestantes, para fazer cumprir a ordem, essa foi finalizada em poucos minutos. Ipso facto, o que veio depois foi excesso. As autoridades responsáveis pelo comando da operação, depois de alguns instantes, deveriam ter dado a ordem de cessar o uso de bombas e projéteis. Mas o fizeram apenas depois de duas horas! Essas autoridades queriam castigar os manifestantes. E conseguiram. Entenda-se que não se coloca em xeque, aqui, “se” deveria ser cumprida a ordem emanada pelo Poder Judiciário. É óbvio que os policiais deveriam cumprir a decisão judicial (não permitir a invasão da Assembleia Legislativa). A questão fundamental, aqui, cinge-se em “como” deveria ser cumprida a ordem. Sabe-se que a polícia, cuja força se manifesta como violência, é uma atividade administrativa formalmente organizada, que se reporta diretamente ao Poder Executivo.3 Esse “como”, portanto, é analisado, debatido e ordenado pelo Poder Executivo e percorre todo um poder vertical; uma hierarquia. Na cúpula da estrutura hierárquica estão geralmente os principais responsáveis.4 São eles que planejam a ação: os detalhes da realização; o dia e a hora; a estratégia a ser seguida; e possuem o domínio do último momento, quando podem abortá-lo quando as coisas não saem como o planejado. 3 FERRAJOLI, Luigi. Diritto e regione: teoria del garantismo penale. 8ª ed. Bari: Laterza, 2004, p. 798. 4 MUÑOZ CONDE, Francisco. ¿Como imputar a título de autores a las personas que, sin realizar acciones

ejecutivas, deciden la realización de un delito en el ámbito de la delincuencia organizada y empresarial?. In: Modernas Tendencias en la ciencia del derecho penal y en la criminología. Madrid: UNED, 2000, p. 507.

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Em seguida, em direta conexão com os integrantes da cúpula, vem os responsáveis em colocar em prática o plano acordado: eles se encarregam de arregimentar as tropas; servem de ponte com os chefes que levam as tropas às ruas; dão as ordens de disparar contra os cidadãos que se opõem aos propósitos do governo. E, no fim do aparato de poder, estão os meros executores: eles constituem a massa anônima de oficiais e soldados fungíveis que, com maior ou menor ligação com as ideias dos superiores, executam as ações armadas, enfrentando diretamente os demais cidadãos; são os atiradores, granadeiros, etc. Destarte, o “como” só pode ser dirigido pela cúpula da estrutura hierárquica. Essa estrutura hierárquica é característica dos aparatos de poder. E a responsabilidade criminal, em aparatos de poder organizados, admite a figura do autor por trás do autor. É viável o reconhecimento da autoria mediata contando com um executor plenamente capaz de ser igualmente tratado como autor.5 Mais. Em nosso ordenamento jurídico, nem mesmo precisamos de teorias e de conceitos alienígenas para imputar criminalmente esse fato do 29/04 às autoridades. Basta aplicar a lei (CP, art. 29, caput)!6 Não há dúvida de que houve excesso. Não há dúvida de quem são os responsáveis. Não há dúvida de que existem instrumentos jurídicos para puni-los. Não há dúvida de que não esqueceremos o 29/04. Nunca esqueceremos!

5 BUSATO, Paulo César. Direito Penal. Parte Geral. São Paulo: Atlas, 2013, p. 717. Não há espaço, nesse

ensaio, sobre a discussão acerca do uso do critério defendido por Roxin acerca da necessidade de que o aparato de poder atue à margem da ordem jurídica. Sobre o tema, remeto o leitor à seguinte obra: “Autoria como domínio do fato: estudos introdutórios sobre o concurso de pessoas no Direito Penal brasileiro” (GRECO, Luís, et alli. São Paulo: Marcial Pons, 2014). 6 GRECO, Luís; ASSIS, Augusto. O que significa a teoria do domínio do fato para a criminalidade de empresa. In: Autoria como domínio do fato: estudos introdutórios sobre o concurso de pessoas no Direito Penal brasileiro. São Paulo: Marcial Pons, 2014, p. 106: “É estranho, assim, que se recorra justamente ao domínio da organização para alegar que, com essa figura, será possível o homem de trás. Esse homem de trás sempre foi pela interpretação tradicional do art. 29, caput, CP”.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BUSATO, Paulo César. Direito Penal. Parte Geral. São Paulo: Atlas, 2013. FERRAJOLI, Luigi. Diritto e regione: teoria del garantismo penale. 8ª ed. Bari: Laterza, 2004. GRECO, Luís; ASSIS, Augusto. O que significa a teoria do domínio do fato para a criminalidade de empresa. In: Autoria como domínio do fato: estudos introdutórios sobre o concurso de pessoas no Direito Penal brasileiro. São Paulo: Marcial Pons, 2014 MUÑOZ CONDE, Francisco. ¿Como imputar a título de autores a las personas que, sin realizar acciones ejecutivas, deciden la realización de un delito en el ámbito de la delincuencia organizada y empresarial?. In: Modernas Tendencias en la ciencia del derecho penal y en la criminología. Madrid: UNED, 2000. VIVES ANTÓN, Tomás Salvador. Fundamentos del sistema penal. Tirant lo Blanch, Valencia, 1996.

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NOME AOS BOIS

Por Paulo César Busato1

A razão pela qual resolvi manifestar-me sobre o assunto é que sofri as piores feridas entre todos os afetados durante o evento que traduziu a página mais triste escrita na história do Estado do Paraná. Por isso, entendi necessário deixar registro de todos os que tiveram sua parte de colaboração em minhas múltiplas lesões, e como os vejo. Em primeiro lugar, queria lembrar que tudo teve origem porque o Sr. Carlos Alberto Richa, estando perdido na gestão de contas de sua casa, o Estado do Paraná, resolveu lançar mão do futuro – já bastante combalido – dos funcionários públicos. Para isso, pretendeu uma elevação de carga tributária e, paralelamente, uma importante redução ou exclusão de direitos e vantagens dos servidores públicos, ao lado de uma intensa alteração das regras previdenciárias. Entre outras coisas, pretendia lançar mão de oito bilhões de reais da previdência dos servidores públicos do Paraná, para pagar dívidas do Estado. Aí estava em curso já a agressão que causaria minha primeira chaga. Mas meu algoz não tinha as armas necessárias para conseguir perpetrar sua agressão. Seria preciso fazê-lo através da oferta de iniciativas de projetos de lei a serem votados na Assembléia Legislativa do Estado do Paraná e o veículo para isso tinha que ser o processo legislativo, com votações públicas. Senti-me à salvo porque o filtro era dos representantes do povo, de quem sou. Não tremeu a mão do carrasco. Ele convocou os representantes, através do envio de projetos de lei, propondo a reunião dos Deputados Estaduais para deliberar sobre a validade de sua pretensão. Foi nesse contexto que em 06 de abril de 2015 passou a tramitar na Assembléia Legislativa do Estado do Paraná o Projeto de Lei no 252/2015, o qual propunha transferir os aposentados e pensionistas com 73 anos ou mais, que eram pagos pelo Fundo Financeiro, para o Fundo de Previdência. A medida faria com que ficassem expostos aqueles que já tinham seu cálculo e fonte de pagamento de benefício assegurada, à fonte previdenciária geral. O projeto tramitou por todas as Comissões da Casa Legislativa, ficando definida a data de 27 de abril de 2015 para início das votações em Plenário. 1 O autor é Professor da Universidade Federal do Paraná e da FAE- Centro Universitário Franciscano e Procurador de Justiça no Estado do Paraná.

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Para minha surpresa, havia clara predisposição entre os parlamentares em unirem-se no esforço agressivo. Propuseram-se os deputados, em especial o seu presidente, Ademar Luiz Traiano, a deliberar sobre os termos do vilipêndio proposto ao futuro do funcionalismo paranaense, na condição de partícipes da violência legislativa. Naturalmente, nenhum dos participantes teria seu futuro posto em risco, pois a agressão tinha alvo dirigido: as camadas menos favorecidas dentro do funcionalismo público. No entanto, o povo pelo qual sou, levantou-se. Reuniram-se funcionários públicos, especialmente professores, para, exercer seu direito constitucional de manifestar sua oposição ao odioso estratagema. O plano era protestar dentro e em torno da Assembléia Legislativa, em plena praça Nossa Senhora de Salete, no Centro Cívico de Curitiba. O lugar escolhido para realizar a decapitação legislativa era sua própria casa, então, o povo – para quem sou – preparou-se para ocupar os seus lugares e, com a arma da voz, constranger, envergonhar e quiçá demover seus algozes do plano que se levaria a cabo. No entanto, não só a ousadia, mas a astúcia também orientava os verdugos. O Presidente da Assembléia Legislativa, Sr. Ademar Luiz Traiano interpôs um interdito proibitório contra a APP – Sindicato dos Trabalhadores em Educação Pública. O objetivo era claro, impedir as manifestações contrárias de acontecerem dentro do recinto da Assembléia Legislativa. Pleiteava-se, pois, uma ordem do Poder Judiciário visando impedir o povo de entrar em sua própria casa! Por mais incrível que possa parecer, representantes do povo – ao menos, assim autodenominados – postulavam pelo direito de esconder de seus representados a manobra legislativa que diretamente lhes afetava o futuro. E queriam fazê-lo, não apenas contra a vontade deles, mas completamente protegidos dos protestos, enfim, às escondidas. Menos por vergonha que por medo. Um rasteiro conhecimento jurídico baseado em senso comum bastaria para a identificação do quão vil era a iniciativa e do quão impossível era o seu objeto. Não obstante, o magistrado Eduardo Lourenço Bana, em inacreditável decisão liminar, interditou o espaço público, determinando inclusive o emprego de reforço policial para garantir “a posse do autor”, contra o “esbulho ou turbação” que então se planejava. Não é preciso passar das primeiras letras em direito para compreender que o Presidente da Assembléia Legislativa não tem, para si, a posse de absolutamente nada do espaço público ali representado. Ele apenas tem deveres de zelo, não sendo proprietário ou possuidor do espaço do povo! O Sindicato dos Trabalhadores em Educação Pública do Paraná agravou da liminar concedida, mas o Tribunal de Justiça, em decisão unânime da 5a Câmara Cível, no caso, composta pelos senhores Desembargadores Adalberto Xisto Pereira, Nilson Mizuta e Carlos Mansur Arida, mantiveram a decisão de primeiro grau, confirmando todos os seus termos.

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Não se tratava apenas de uma decisão injusta do ponto de vista jurídico, mas também conivente e cúmplice, do ponto de vista moral, com o afastamento entre representantes e representados, garantindo que a agressão legislativa se cometesse sem incômodo. Naturalmente, o povo, inconformado, foi à rua na data marcada para o assassínio do futuro dos funcionários públicos e para protestar, ainda que fora de sua casa, expulso delas por aqueles que lhes vilipendiavam descaradamente. Entretanto, mais um ator somou-se ao grupo que orquestrava o vilipêndio. Um Secretário estadual com ampla influência em setores policiais, o sr. Fernando Franceschini, quem, em companhia dos comandantes da polícia militar Nerino Mariano de Brito e Hudson Leôncio Teixeira manejaram uma das maiores mobilizações de concentração de forças da história polícia militar paranaense, ao reunirem em um espaço de apenas dois ou três quarteirões, mais de 1.500 (mil e quinhentos) policiais militares. Não para enfrentar qualquer crime ou criminoso, mas sim para dar cobertura a uma manobra legislativa de efeitos públicos catastróficos, orquestrada em conjunto pelos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, contra o povo paranaense. Para isso, armou-se uma guerra. Bombas de efeito moral, gás de pimenta, balas de borracha, cassetetes. Tudo contra pessoas do povo que apenas gritavam enquanto se lhes operava o futuro sem anestesia. O saldo foi de ao redor de 400 feridos civis (195 comprovados em inquérito policial). A lesão estava concluída. Mas não a história. O golpe contra mim, a ferida aberta, perpetrado. Não se podia fazer mais nada a respeito. Mas tenho um protetor, e nele tinha esperança. Um grupo de homens que ousaram voltar-se contra ditadores em nome do povo, há mais de um quartel de século, nomearam-me um protetor. Um protetor do meu regime: o Ministério Público. Ele já falhara em evitar que eu sofresse o golpe. Mas ninguém é infalível, e eu tinha fé de que, ao menos ele me trataria parte da ferida. Levaram-me para as suas mãos com o objetivo de que me curasse, buscando, se não para os mandantes, ao menos para os executores da minha agonia, o castigo que lhes era devido. Senti, outra vez na boca o gosto da traição. Quem fora designado meu protetor, comungava em pensamento com meus agressores, e também queria participar da minha chacina. Ao invés de bandagens e remédios, pôs o dedo em minha ferida e a fez sangrar em profusão, fazendo ouvidos moucos ao próprio mea culpa feito pelos encarregados iniciais da investigação – do mesmo grupo militar – e decidiu que a ninguém deveria imputar responsabilidades pela agressão por mim sofrida. O sr. Misael Duarte Pimenta Neto, Promotor de Justiça da Vara da Auditoria Militar, opinou pelo arquivamento da investigação policial militar que indiciara várias pessoas por todo o desenvolvimento do nefasto episódio de 29 de abril.

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Surpreendi-me! Estava ferida de morte, e no abandono. Minha última esperança era a discordância de um magistrado, o Dr. Davi Pinto de Almeida, quanto a esta iniciativa, pois se ele discordasse, outros membros do meu protetor poderiam dar orientação diferente ao curso das coisas. Mas era esperança tênue. Depois de quase um ano das chagas, ninguém mais estava preocupado em salvar-me. Ele apenas confirmou a opinião do seu colega do Ministério Público. E foi assim que morri. Escrevo apenas, do além, para ninguém esqueça que faleci em 29 de abril de 2015 na praça do Centro Cívico, em Curitiba, Paraná e nem desapareçam na história os nomes de quem foram meus assassinos. Com esperança eterna na ressurreição,

A Democracia.

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A POLÍCIA MILITAR E OS REFLEXOS POLÍTICOS SOBRE SUA ATUAÇÃO NO 29 DE ABRIL Por Patrícia Possatti Ferrigolo,1 Paula Fauth Manhães Miranda,2 Pedro Fauth Manhães Miranda3

No dia 29 de abril de 2015, no Centro Cívico de Curitiba-PR, professores da rede estadual manifestavam-se contrariamente às alterações no ParanaPrevidência, que estavam sendo debatidas na Assembleia Legislativa do Paraná - ALEP. Posicionada no entorno do Plenário, a Polícia Militar – cuja cadeia de comando tem relação direta com o cargo de Governador – tinha como funções resguardar o patrimônio público e facilitar a votação do projeto em questão, impedindo a entrada dos manifestantes no recinto político (e público). Considerando que as mudanças foram propostas pelo governador Beto Richa (PSDB), o presente texto problematiza a possibilidade de as ações da Polícia Militar se constituírem de fundamentos políticos, e quais os reflexos desta situação, tanto sobre os direitos dos manifestantes, como sobre a cadeia policial de comando. 1 OS DIREITOS DE MANIFESTAÇÃO E DE PARTICIPAÇÃO POLÍTICA O conceito de democracia passa por uma ressignificação, sendo, paulatinamente, aprofundado, a fim de se ampliarem os mecanismos de soberania e participação popular, alargando-se, por conseguinte, a ideia de cidadania. Há a preocupação de se encontrar novas formas e instrumentos eficazes de participação social na gestão pública e nas decisões políticas. Isso porque os reflexos das decisões políticas recaem sobre toda a população, sendo ela a maior interessada nos rumos escolhidos por seus representantes. Deste modo, a participação da população fornece maior legitimidade na tomada de decisões e também tem o condão de estreitar os laços entre Estado e sociedade civil, 1 Advogada. Professora do curso de Direito, do Centro de Ensino Superior dos Campos Gerais (CESCAGE).

Graduada em Direito pela Universidade Luterana do Brasil (ULBRA). Especialista em Direito Penal e Processo Penal pela Fundação Escola Superior do Ministério Público (FMP). Especialista em Direito Tributário, com formação para o Magistério Superior, pela Universidade Anhanguera. 2 Advogada. Graduada em Direito pela Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG). Especialista em Direito Aplicado pela Escola da Magistratura do Paraná (EMAP). Pós-graduanda em Direito Processual Civil pelo Centro Universitário Internacional (UNINTER). 3 Advogado. Professor do curso de Direito, do Centro de Ensino Superior dos Campos Gerais (CESCAGE). Graduado em Direito e Especialista em Direito Civil e Processo Civil, pela Universidade Estadual de Londrina (UEL). Graduando em Ciência Política, pelo Centro Universitário Internacional (UNINTER). Mestre em Ciências Sociais Aplicadas, pela Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG).

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os quais passam a estabelecer um diálogo, criando-se um espaço público propício às discussões e que possibilita a renovação das demandas junto aos Poderes Públicos. A cidadania, portanto, não se exaure com o voto, devendo ser exercida diariamente por meio da reivindicação de instrumentos como as ações populares, os referendos, os plebiscitos, as leis de inciativa popular, as audiências públicas, o assento nos mais diversos Conselhos Municipais, Estaduais e Federais, pautando-se em direitos fundamentais, tais como a liberdade de manifestação e reunião. Ou seja, participação na gestão pública e liberdade de expressão são institutos absolutamente conectados, seja por meio dos referidos instrumentos democráticos, nas manifestações ou nas reuniões. O direito de liberdade de reunião encontra guarida na Constituição da República4, caracterizando-se por ser de titularidade individual, mas exercido coletivamente, sendo um direito típico de primeira dimensão, uma vez que exige abstenção do Estado. Desta feita, aprioristicamente, o Estado não deve intervir no direito de reunião, apenas zelando para que ninguém ou nenhum grupo frustre o direito de reunião de outrem. Por outro lado, as manifestações devem ser pacíficas, sendo vedado o seu caráter paramilitar e, ainda, exige-se prévio aviso à autoridade competente (o que não se confunde com autorização da mesma), a fim de que esta assegure o direito de reunião. Em regra, protestos e manifestações, visam, por meio de uma ação coletiva, se insurgir à realidade posta, com o intuito de modificá-la. Ocorre que as manifestações surgem diante das mais diversas demandas e insatisfações da sociedade civil, a qual não é um grupo uniforme e nem sempre tem anseios convergentes, uma vez que vivemos em uma realidade extremamente heterogênea e plural. Assim, a nova visão de democracia conclama a população para ser protagonista (e não mais mera espectadora) dos acontecimentos políticos e sociais, com papel mais relevante na busca por mudanças e na efetivação dos direitos fundamentais, inclusive utilizando-se das manifestações, entre outras possibilidades de participação para tanto. O Direito e a insurgência caminham lado a lado, inexistindo direitos que são cedidos gratuitamente aos governados, mas sim conquistados e reafirmados por meio das batalhas históricas e lutas diárias. Neste viés, Ihering ressalta que: “A vida do direito é a luta: luta dos povos, dos governos, das classes sociais, dos indivíduos. Todos os direitos da humanidade foram conquistados pela luta; seus princípios mais importantes tiveram de enfrentar os ataques daqueles que a eles se opunham [...]”5. 4 “Art.5º. XVI. Todos podem reunir-se pacificamente, sem armas, em locais abertos ao público,

independentemente de autorização, desde que não frustrem outra reunião anteriormente convocada para o mesmo local, sendo apenas exigido prévio aviso à autoridade competente”. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, 5 de outubro de 1988. 5 IHERING, Rudolf Von. A luta pelo direito. São Paulo: Martin Claret, 2005. p. 27.

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Infelizmente, apesar de ser um direito fundamental e pressuposto do Estado Democrático, não raras vezes o direito de manifestação é desrespeitado, pela utilização de um pesado aparato policial para reprimir protestos e dispersar manifestantes, sob o pretexto de protegê-los (discurso que nem sempre corresponde à realidade). Além disso, é corriqueiro o fenômeno de criminalização dos movimentos sociais, o que, geralmente, é agravado pela mídia, passando-se a ideia de que aqueles em busca de seus direitos não seriam mais que meros “baderneiros”. Por outro lado, não se quer afirmar que os manifestantes não possam cometer excessos, mas que, em regra, tais condutas são isoladas (partindo de um ou outro manifestante e não da maioria), não se podendo conceber a criminalização e a repressão, em bloco, dos mesmos. Vislumbra-se que a democracia e a cidadania não podem existir apenas no papel, mas devem ser construídas e reafirmadas cotidianamente pela sociedade civil e movimentos sociais, constituindo-se os direitos de reunião e de manifestação em importantes instrumentos de participação da população na gestão pública, na atualização das demandas e na proteção dos direitos fundamentais. Mas, não obstante sua importância, os direitos de manifestação e de participação não são absolutos, como nenhum direito o é, haja vista a necessidade de coexistirem com outros igualmente fundamentais, como o direito de ir e vir e o direito à segurança pública. Diante de eventual conflito entre direitos – manifestação e segurança pública, por exemplo –, o Estado é chamado a atuar, por meio dos seus aparatos de controle social, sendo um deles a Polícia Militar, cuja estrutura será abordada a seguir. 2 A POLÍCIA MILITAR DO PARANÁ E SUA CADEIA DE COMANDO Os cidadãos brasileiros, descontentes com alguma situação social e/ou política, concretizam a democracia na qual vivem, ao protestarem e se manifestarem. Mas nem todos brasileiros são titulares dos direitos de liberdade em iguais condições, já que “aos militares do Estado da ativa são proibidas manifestações coletivas sobre atos de superiores, de caráter reivindicatório e de cunho político-partidário”6. Assim, não se faz razoável tratar do Poder Ostensivo sem pontuar o princípio da isonomia (art. 5º da CRFB/88), garantia constitucional conectada de forma indissolúvel à própria democracia. E, segundo lição aristotélica de Nelson Nery Junior7, “dar tratamento isonômico às partes significa tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na exata medida de suas desigualdades”. Do princípio decorrem, inclusive, os limites de atuação de autoridade pública e mesmo do particular. Ao contrário dos docentes (servidores civis estaduais), aos policiais (servidores 6 MANOEL, Élio de Oliveira; ARDUIN, Edwayne A. Areano. Direito disciplinar Militar. 1. Ed. Curitiba:

Comunicare, 2004, pág. 15. 7 NERY JÚNIOR, Nélson. Princípios do processo civil à luz da Constituição Federal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, pág. 42.

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militares estaduais) não são conferidos os direitos de manifestação de suas opiniões8, de sindicalização, greve ou filiação partidária9. Ademais, o ordenamento jurídico militar pune como crime qualquer atitude tida como insubordinação, desobediência hierárquica à autoridade ou a disciplina. Tamanha é a rigidez da vida na caserna, que tais atos são tipificados no Código Penal Militar como crimes militares (motim - art. 148; recusa de obediência - art. 163; o descumprimento de missão - art. 19610). Alexandre de Moraes fundamenta e justifica muito bem tal desigualdade entre civis e militares, pois, segundo o autor “os tratamentos normativos diferenciados são compatíveis com a Constituição Federal quando verificada a existência de uma finalidade razoavelmente proporcional ao fim visado”11. E exemplo tal finalidade está disposto no Código da Polícia Militar-PR, mais precisamente em seu artigo 49, que impõe ao PM do Estado do Paraná a obrigação de voltar-se inteiramente ao serviço do Estado e da Pátria, cuja honra, integridade e instituições, deverá defender com o sacrifício da própria vida, se necessário, tendo como nobre objetivo a preservação da ordem, das instituições e da segurança de cada cidadão paranaense12. Deste modo restam claras as vigas mestras da instituição militar, quais sejam, a disciplina e a hierarquia. A começar pela Constituição, o art. 144, §6º13 reporta a subordinação das Polícias Militares aos Governadores. Encontramos ainda, no art. 4º do Decreto-Lei nº 667/69, a menção de que os Policias Militares dos Estados devem cumprir as ordens do órgão responsável pela segurança pública, no caso o Secretário de tal pasta, sem prejuízo da subordinação administrativa ao respectivo Governador.14 A lei estadual15, por certo, não inova, especificando apenas que o Comandante 8 “Art. 166. Publicar o militar ou assemelhado, sem licença, ato ou documento oficial, ou criticar

públicamente ato de seu superior ou assunto atinente à disciplina militar, ou a qualquer resolução do Govêrno: Pena - detenção, de dois meses a um ano, se o fato não constitui crime mais grave”. BRASIL. Código Penal Militar. Decreto-lei nº 1.001/69. Brasília, 21 de outubro de 1969. 9 “Art. 142, §3º, IV - ao militar são proibidas a sindicalização e a greve; V - o militar, enquanto em serviço ativo, não pode estar filiado a partidos políticos”. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, 5 de outubro de 1988. 10 BRASIL. Código Penal Militar. Decreto-lei nº 1.001/69. Brasília, 21 de outubro de 1969. 11 MORAES, Alexandre de. Direitos Humanos Fundamentais. 7. Ed. São Paulo: Atlas, 2006, págs. 86-87. 12 PARANÁ. Código da Policia Militar. Lei Estadual nº 1.943/54. Curitiba, 23 de junho de 1954. 13 Art. 144, §6º As polícias militares e corpos de bombeiros militares, forças auxiliares e reserva do Exército, subordinam-se, juntamente com as polícias civis, aos Governadores dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios”. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, 5 de outubro de 1988. 14 “Art. 4º - As Polícias Militares, integradas nas atividades de segurança pública dos Estados e Territórios e do Distrito Federal, para fins de emprego nas ações de manutenção da Ordem Pública, ficam sujeitas à vinculação, orientação, planejamento e controle operacional do órgão responsável pela Segurança Pública, sem prejuízo da subordinação administrativa ao respectivo Governador”. BRASIL. Decreto-lei nº 667/69. Reorganiza as Polícias Militares e os Corpos de Bombeiros Militares dos Estados, dos Território e do Distrito Federal, e dá outras providências. Brasília, 2 de julho de 1969. 15 PARANÁ. Lei Estadual nº 16.577/2010. Dispõe que a Polícia Militar do Estado do Paraná (PMPR) destina-se à preservação da ordem pública, à polícia ostensiva, à execução de atividades de defesa civil, além de outras atribuições previstas na legislação federal e estadual. Curitiba, 28 de setembro de 2010.

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da PM/PR é nomeado pelo Governador do Estado (art. 10º), e que tal corporação é subordinada ao Secretário de Segurança – cargo que, vale lembrar, também é empossado por nomeação do Governador (art. 3º). Diante disso, fica claro que o servidor militar obedece rígida hierarquia, estabelecida numa cadeia de comando, executando serviços dos quais não pode declinar. “O Militar Estadual figura no polo passivo dessa relação jurídica, porque ele é o responsável pela prestação principal, ou seja, cumprir os deveres estabelecidos em leis, normas e regulamentos, e a Administração Pública Militar figura no polo ativo, porque ela detém o direito público subjetivo de poder exigir do Militar de Polícia o cumprimento de seus deveres, aplicando as sanções cabíveis no caso de falta ou exação daquele16”. É inegável que a atuação das polícias, inclusive a Militar, concretiza o controle social, necessário a qualquer Estado, principalmente democrático e de Direito (se o faz bem ou mal, é questão ainda a ser analisada). Outrossim, também nos parece evidente que há, no mínimo, a possibilidade de tal atuação ser “manobrada” politicamente. Assim, passemos à análise concreta do 29 de abril de 2015, de modo a verificar, na prática, o que foi abordado, até este momento, de maneira apenas teórica. 3 REFLEXOS POLÍTICOS NA CADEIA DE COMANDO DA PMPR No dia 27 de abril de 2015, ocorreu, na ALEP, o primeiro turno da votação do projeto que promoveu mudanças no ParanaPrevidência, ao qual foram apresentadas 16 emendas. O projeto – submetido pelo Governador Beto Richa (PSDB) – tramitava em regime de urgência, pois era fundamental para tentar regularizar as contas do governo paranaense, junto a outras propostas que formavam o “pacote de maldades”, assim apelidado por diminuir direitos sociais e aumentar impostos. Tal votação se deu com a Assembleia do Plenário vazia, em face de um mandato proibitório, solicitado pela presidência da Casa, com o objetivo de impedir a entrada de populares, que se manifestavam do lado de fora, mas, até então, em número reduzido. Diante da votação favorável ao projeto, os professores da rede estadual deliberaram por entrar em greve (que, aliás, duraria 44 dias), formando caravanas para ir à Curitiba acompanhar o restante do procedimento. 16 MANOEL, Élio de Oliveira; ARDUIN, Edwayne A. Areano. Direito disciplinar Militar. 1. Ed. Curitiba: Comunicare, 2004, pág. 16.

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No dia seguinte, 28 de abril, uma terça-feira, duas liminares já determinavam a suspensão da proibição dos professores em acompanhar a sessão, a primeira referente ao Habeas Corpus nº 1.129.993-2, e a outra, acompanhando aquela, relativa ao Mandado de Segurança nº 1372056-8. O Relator desta, Dr. Ruy Cunha Sobrinho transcreveu, aliás, parte da decisão do Juiz Márcio José Tokars, já que ambas eram monotemáticas: “Tendo em vista a urgência da ordem, defiro liminarmente e preventivamente, a suspensão de qualquer eventual proibição da ALEP, que impeça a entrada dos pacientes nas galerias do plenário durante a votação do projeto de Lei n. 252/2015, ressalvada a capacidade máxima de público comportada pelas galerias [...]17”. A decisão ainda apontou18 que a proibição aos docentes, deferida liminarmente pelo magistrado Eduardo Lourenço Bana, nos autos nº 0010977-69.2015.8.16.0013 de Medida de Interdito Proibitório, apenas determinava à APP Sindicato de se abster de promover turbação ou esbulho no interior da ALEP, com multa diária de R$ 100.000,00 (cem mil reais), sem, contudo, vetar qualquer acesso às dependências da mesma. Tais explicações se fazem necessárias para comprovar que a presença dos professores na ALEP encontrava-se respaldada legalmente, o que, se de fato realizada, apenas concretizaria os princípios democráticos da transparência e publicidade dos atos administrativos. Não obstante, em 29 de abril de 2015, os professores foram impedidos pela PM de participar da gestão pública, ação que revela, em sua manifesta ilegalidade, um cunho político, já que a presença dos mesmos poderia dificultar a aprovação das medidas, tão necessárias para o bom (?) andamento do Governo de Beto Richa. Os resultados da ação policial, expostos por inúmeros veículos de comunicação, foram os seguintes: 213 pessoas feridas, segundo a Prefeitura de Curitiba; segundo o Estado, teriam sido 61 pessoas, incluindo 21 policiais; um ambulatório foi improvisado no subsolo da prefeitura, no qual equipes do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu) realizaram 150 atendimentos; ademais, 63 feridos foram 17 PARANÁ. Tribunal de Justiça do Estado do Paraná. Mandado de Segurança 1372056-8. Foro Central da Comarca da Região Metropolitana de Curitiba. Impetrante: Antônio Tadeu Veneri. Impetrado: Mesa Executiva da Assembleia Legislativa do Estado do Paraná. Órgão Julgador: Órgão Especial. Relator: Des. Ruy Cunha Sobrinho. Curitiba, 28 de abril de 2015. 18 PARANÁ, loc. cit.

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encaminhados para as Unidades de Pronto Atendimento (UPAs) Matriz e Boa Vista; e, também de acordo com o Samu, 15 pessoas tiveram de ser hospitalizadas com ferimentos graves, inclusive um cinegrafista que foi mordido por um pitbull e teve que passar por uma cirurgia19. Poder-se-ia argumentar que, diante de um universo estimado de 20 mil professores, e 1.600 policiais, a ação militar tenha sido “concluída exitosamente”20, como asseverado pelo promotor Misael Duarte Pimenta Neto, da Vara da Auditoria Militar em Curitiba. Em tal oportunidade, o promotor requereu o arquivamento do processo, movido pelo MP-PR, contra todos os seguintes 6 indiciados: os coronéis Arildo Luiz Dias e Nerino Mariano de Brito e o tenente-coronel Hudson Leôncio Teixeira, além dos soldados Marcos Aurélio de Souza e Daniel Arthur Borba (da Companhia de Cães) e o cadete Adilson José da Silva21. O referido processo foi, de fato, arquivado pelo juiz Davi Pinto de Almeida, em 22 de março de 201622. Contudo, o êxito de tais ações pode – e deve – ser colocado em questão. Se o 29 de abril de 2015 foi, realmente, exemplo de uma operação militar isenta de falhas, como se explicam as subsequentes desavenças entre os coordenadores de tal ato, e seus desligamentos do Governo? Figura central nos acontecimentos relatados, o então secretário de Segurança Pública do Paraná, Fernando Francischini (Solidariedade) tentou minimizar a própria responsabilidade: “O controle de uma operação de campo é da polícia. A secretaria é responsável por fazer a gestão da pasta. Isso [atribuir a responsabilidade à secretaria] é tentar politizar a questão”23. Ora, a não politização dos acontecimentos seria impossível, seja pela já exposta correlação entre a cadeia de comando da PM e a política estadual, ou mesmo pelas razões políticas do Governo paranaense que levaram às mudanças na previdência dos docentes. Sem mencionar que, na seção anterior, já restou comprovada a conexão entre as ações da PM e Governo Estadual e Secretaria de Segurança Pública. Todavia, as figuras políticas diretamente afetadas não foram tantas quanto se haveria de imaginar. Em relação às declarações de Francischini, César Kogut as repudiou, pois aquele teria sido “alertado inúmeras vezes pelo comando da Tropa empregada e pelo Comandante-Geral sobre os possíveis desdobramentos durante a ação”24. Ademais, frisou que o Plano de Operações havia sido “aprovado pelo escalão superior da SESP, tendo inclusive o Senhor Secretário participado de diversas fases 19 LIMA, Julio Cesar. Confronto entre PM e professores no PR deixa cerca de 200 feridos. Estadão. 30 de

abril de 2015. 20 PIMENTA NETO, 2015 apud COISSI, Juliana. Ação policial com 200 feridos no Paraná foi ‘exitosa’, diz promotor. Folha de São Paulo. 15 de fevereiro de 2016. 21 COISSI, loc. cit. 22 ANÍBAL, Felippe; RIBEIRO, Diego; GARCIA, Euclides Lucas. Justiça Militar arquiva processo da “Batalha do Centro Cívico”. Gazeta do Povo. 22 de março de 2016. 23 FRANCISCHINI, 2015 apud REDAÇÃO. Francischini ajudou a planejar ação que feriu 200, diz PM do Paraná. Carta Capital. 06 de maio de 2015. 24 KOGUT, 2015 apud REDAÇÃO, loc. cit.

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do planejamento, bem como é importante ressaltar que no desenrolar dos fatos o Senhor Secretário de Segurança Pública era informado dos desdobramentos”25. A discordância entre Kogut e Francischini evidencia a dificuldade em se estabelecer a correta responsabilização pelos atos de comando, executados pelos Policias Militares no 29 de abril curitibano, não obstante a hierarquia encontrar-se bastante clara na legislação, conforme já demonstrado. A desordem fica mais óbvia, ao percebermos a intenção dos políticos em se distanciarem dos acontecimentos. Valdir Rossoni, o presidente do Partido da Social Democracia Brasileira – PSDB, também do Governador Beto Richa, praticamente, demandou o seguinte: “Espero – e tenho certeza – que o governador, com profunda análise dos fatos, tenha clareza para tomar as medidas necessárias que restabeleçam com urgência a verdade e a tranquilidade do povo paranaense. A começar pelos responsáveis pelas atitudes desmedidas, pelos desmandos, pelos exageros. Que sejam exonerados ou que peçam para sair26”. Mesmo nas entrelinhas, é plausível supor que Rossoni indicava Kogut e Francischini como responsáveis, retirando de Richa qualquer culpa. Quanto à Francisco Xavier, secretário da Educação, o presidente do PSDB foi explícito, afirmando que ele se encontrava “fora do contexto da pasta”27. Não nos parece coincidência que nos dias 06, 07 e 08 de maio daquele ano, tenham ocorrido, respectivamente, as substituições do comandante-geral da PMPR, César Vinícius Kogut; do secretário de Educação, Fernando Xavier; e do secretário de Segurança Pública, Fernando Francischini. Portanto, difícil concluir que a ação policial na “Batalha do Centro Cívico” tenha sido, de fato, exitosa. Ainda assim, a responsabilização pelo 29 de abril, seja ela política ou jurídica, não chegou até o Governador Richa, o que na opinião do procurador de Justiça Eliezer Gomes é uma falha grave. “Ficou clara uma dolosa omissão, e a pessoa é responsabilizada não só pelo que faz, mas pelo que deixa de fazer. O governador é o grande comandante das forças de segurança e que garante 25 KOGUT, 2015 apud REDAÇÃO, loc. cit. 26 ROSSONI, 2015 apud REDAÇÃO, Presidente do PSDB do Paraná pede a cabeça do secretário de Segurança Pública. Revista Fórum. 03 de maio de 2015 27 ROSSONI, 2015 apud REDAÇÃO, loc. cit.

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os direitos fundamentais, como o de ir às ruas se manifestar, acompanhar a votação de um projeto. Na medida em que teve amplo conhecimento da ação, ele poderia ter interferido, afinal, toda a operação foi centralizada no Palácio Iguaçu, onde fica o gabinete do governador, inclusive foi no terceiro andar que os comandantes foram elogiados, após a ação. Houve até o emprego de um helicóptero que fica a serviço do governador28”. Parece-nos óbvio o argumento exposto. Sendo o comandante das forças de segurança, e também responsável por nomear o comandante geral da PM e o Secretário de Segurança Pública, o Governador deveria sofrer alguma sanção pelo acontecido, tal qual os demais responsáveis. Sem mencionar que a necessidade de serem realizadas as alterações na previdência dos professores surgiu de sua gestão político-econômica. A urgência de se aprovar o projeto de lei em questão foi, enfim, o fundamento da ação policial militar. Ação esta que, de acordo com inúmeros veículos de comunicação, não teria sido homogênea, em face da suposta recusa de 17 PMs em participar dos atos realizados por seus pares29, o que foi logo desmentido pela Polícia Militar do Paraná: “Não houve recusa e não houve prisão de policiais militares”30. A nitidez da declaração é sintomática da própria estrutura da corporação, cujas ações são realizadas conforme obediência à cadeia de comando hierárquica, que impossibilita seus sujeitos mais capilares de tomarem decisões baseadas no livrearbítrio. O Dr. Davi Pinto de Almeida, magistrado da Justiça Militar Estadual, na já citada decisão que arquivou inquérito contra os policiais militares que teriam se excedido em suas funções, asseverou neste sentido: “O militar estadual que deliberadamente deixasse de executar a missão que lhe foi confiada, estaria sujeito à prisão em flagrante e, posteriormente, à ação penal que 28 GOMES, 2015 apud LIMA, Julio Cesar. MP responsabiliza Beto Richa e Francischini por confrontos no

Paraná. Estadão. 29 de junho de 2015. 29 ESTADÃO CONTEÚDO. No PR, 17 policiais se recusam a fazer cerco a professores e são presos. Estadão. 29 de abril de 2015. 30 SANTOS, 2015 apud UOL. Nenhum policial foi preso durante manifestação, diz porta-voz da PM do PR. UOL. 30 de abril de 2015.

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poderia resultar em penas de detenção e/ou reclusão, sem prejuízo da instauração de processo disciplinar para exclusão da corporação31”. E a verdade é que, com o auxílio da atuação da PM, o Governo conseguiu aprovar as mudanças que almejava. Portanto, ainda que entremeada de outras patentes e cargos, a conexão entre os PMs e o Governador existe. E quanto mais direta e automática for esta ligação, mais políticas serão as ações destes subordinados, os quais, afinal, são trabalhadores e têm nesta obediência sua fonte de renda. Não por coincidência, o próprio Beto Richa já chegou a afirmar que “uma pessoa com curso superior muitas vezes não aceita cumprir ordens de um oficial ou um superior, uma patente maior”32. Assim, o potencial uso político da Polícia Militar se mostra, no mínimo, bastante provável. Porém, concluir que tão somente os PMs, em face da hierarquia, poderiam servir a fins políticos seria inverídico, já que os próprios manifestantes também poderiam ser levados a tanto. Mas afirmar, categoricamente, que todos os professores eram contrários ao Governo, ou mesmo que não votaram em Richa seria uma generalização, afinal estes coletivos são heterogêneos e, ainda que possuam comando unificado, são, em geral, apartidários. Por outro lado, apontar que todos os PMs devem se submeter às decisões do Governo estadual, mesmo discordando delas, é um fato. O fato é que o amálgama entre a política e o controle social coativo pode promover ações não democráticas ou, ao menos, baseadas em interesses exclusivamente partidários. No caso do 29 de abril, inúmeros foram os reflexos desta realidade: os PMs, claramente sob mando político, impediram que os professores exercessem seus direitos à manifestação e à participação na gestão pública; àqueles, até o momento, nenhuma responsabilização foi aquilatada, pela impossibilidade de se negarem a obedecer às ordens dos superiores hierárquicos; destes superiores, apenas três foram responsabilizados, servindo de bodes expiatórios (não sem culpa, porém) para que o Governador Beto Richa permanecesse ileso. Mas não sob sua própria ótica, já que ele afirma “que quem saiu mais machucado, ferido de todo esse confronto que houve fui eu. Eu fui ferido na alma, até porque não compactuo com violência, com agressão”33. Sem entrarmos no mérito de foro íntimo do Governador, o fato é que a responsabilização – jurídica, diga-se de passagem – de todos os envolvidos se faz necessária, para que a Democracia não seja solapada por equívocos que tenham a finalidade de encobrir outros mais. 31 PARANÁ. Tribunal de Justiça do Estado do Paraná. Inquérito Policial Militar n. 0027199-

15.2015.8.16.0013. Foro Central da Comarca da Região Metropolitana de Curitiba. Órgão Julgador: Vara da Justiça Militar. Juiz Auditor: Davi Pinto de Almeida. Curitiba, 22 de março de 2016. 32 RICHA, 2012 apud GALINDO, Rogério. Richa não quer PMs com estudo porque eles ‘se insubordinariam’. Gazeta do Povo. 26 de abril de 2012. 33 RICHA, 2015 apud O GLOBO. ‘Quem saiu mais machucado fui eu’, diz Beto Richa, sobre ação violenta da PM contra professores. Jornal o Globo. 09 de maior de 2015.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ANÍBAL, Felippe; RIBEIRO, Diego; GARCIA, Euclides Lucas. Justiça Militar arquiva processo da “Batalha do Centro Cívico”. Gazeta do Povo. 22 de março de 2016. Disponível em: . Acesso em 25 mar. 2016. BRASIL. Código Penal Militar. Decreto-lei nº 1.001/69. Brasília, 21 de outubro de 1969. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, 5 de outubro de 1988. BRASIL. Decreto-lei nº 667/69. Reorganiza as Polícias Militares e os Corpos de Bombeiros Militares dos Estados, dos Território e do Distrito Federal, e dá outras providências. Brasília, 2 de julho de 1969. COISSI, Juliana. Ação policial com 200 feridos no Paraná foi ‘exitosa’, diz promotor. Folha de São Paulo. 15 de fevereiro de 2016. Disponível em: . Acesso em 25 mar. 2016. ESTADÃO CONTEÚDO. No PR, 17 policiais se recusam a fazer cerco a professores e são presos. Estadão. 29 de abril de 2015. Disponível em: . Acesso em 22 mar. 2016. GALINDO, Rogério. Richa não quer PMs com estudo porque eles ‘se insubordinariam’. Gazeta do Povo. 26 de abril de 2012. Disponível em: . Acesso em 25 mar. 2016. IHERING, Rudolf Von. A luta pelo direito. São Paulo: Martin Claret, 2005. LIMA, Julio Cesar. Confronto entre PM e professores no PR deixa cerca de 200 feridos. Estadão. 30 de abril de 2015. Disponível em: . Acesso em 23 mar. 2016.

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LIMA, Julio Cesar. MP responsabiliza Beto Richa e Francischini por confrontos no Paraná. Estadão. 29 de junho de 2015. . Acesso em 27 mar. 2016. MANOEL, Élio de Oliveira; ARDUIN, Edwayne A. Areano. Direito Disciplinar Militar. 1. Ed. Curitiba: Comunicare, 2004. MORAES, Alexandre de. Direitos Humanos Fundamentais. 7. Ed. São Paulo: Atlas, 2006. NERY JÚNIOR, Nelson. Princípios do processo civil à luz da Constituição Federal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999. O GLOBO. ‘Quem saiu mais machucado fui eu’, diz Beto Richa, sobre ação violenta da PM contra professores. Jornal o Globo. 09 de maior de 2015. Disponível em: . Acesso em 30 mar. 2016. PARANÁ. Código da Policia Militar. Lei Estadual nº 1.943/54. Curitiba, 23 de junho de 1954. PARANÁ. Lei Estadual nº 16.577/2010. Dispõe que a Polícia Militar do Estado do Paraná (PMPR) destina-se à preservação da ordem pública, à polícia ostensiva, à execução de atividades de defesa civil, além de outras atribuições previstas na legislação federal e estadual. Curitiba, 28 de setembro de 2010. PARANÁ. Tribunal de Justiça do Estado do Paraná. Mandado de Segurança 13720568. Foro Central da Comarca da Região Metropolitana de Curitiba. Impetrante: Antônio Tadeu Veneri. Impetrado: Mesa Executiva da Assembleia Legislativa do Estado do Paraná. Órgão Julgador: Órgão Especial. Relator: Des. Ruy Cunha Sobrinho. Curitiba, 28 de abril de 2015. Disponível em: . Acesso em 23 mar. 2016. REDAÇÃO. Presidente do PSDB do Paraná pede a cabeça do secretário de Segurança Pública. Revista Fórum. 03 de maio de 2015. Disponível em: . Acesso em 26 mar. 2016. REDAÇÃO. Francischini ajudou a planejar ação que feriu 200, diz PM do Paraná. Carta Capital. 06 de maio de 2015. Disponível em: . Acesso em 24 mar. 2016. UOL. Nenhum policial foi preso durante manifestação, diz porta-voz da PM do PR. 30 de abril de 2015. UOL. Disponível em: . Acesso em 22 mar. 2016.

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MASSACRE DE 29 DE ABRIL DE 2015: EXCEÇÃO NO ESTADO DO PARANÁ OU PARANÁ COMO ESTADO DE EXCEÇÃO?1 Por Priscilla Placha Sá2

As cenas de terror (terror, etimológica e semanticamente considerado) acontecidas no Centro Cívico na última semana de abril de 2015, em Curitiba – Paraná, particularmente no dia 29 de abril de 2015, podem e foram muito bem denominadas como o “Massacre de 29 de abril”. São exemplos do uso político da polícia e do esfacelamento das três esferas do poder público (as únicas, provavelmente) das quais é possível inferir as marcas e as diretrizes de um Estado: a educação, a saúde e a polícia. Especialmente, quando as trabalhadoras e os trabalhadores dessas categorias, especialmente as categorias de base, são propositada e deliberadamente colocadas em lados opostos; mediadas, entretanto, não pelo diálogo (que, embora tenha sido tentado, particularmente por agentes externos que já vislumbravam uma tragédia), mas pelo terror. O diálogo, talvez sem querer ficar, cedeu lugar a um sem fim de balas de borracha, bombas de gás lacrimogênio, sprays de pimenta, paus e pedras. O fim do caminho (diria o tom de Tom). Embora não fosse março, era abril. O saldo, embora, controverso quando dito por um ou por outro lado, mas que tem aí – ao menos – uma centena de vítimas3, mesmo assim dá muitas pistas. É o “sintoma”. E nós já tivemos aqui outro abril, quase assim. Em 2016, são 20 anos de outro massacre. Para alguns, os fatos de agora evocavam os duros anos de chumbo da ditadura; para outros, sinal dos tempos; polarização partidária; crise financeira. Histórias. Argumentos. Fatos. Visões. Feridos. Sangue. Lágrima. Prisão. A polícia, com a remissão direta ao texto foucaultiano, ao refazer um percurso histórico pelo Antigo Regime, lembra que a polícia tinha por objetivo trazer felicidade ao cidadão, mesmo que houvesse uma razoável miríade de atividades, que hoje não mais pertence às instituições que se chama de “polícia”. Tal a importância da polícia, que estava implicada como ciência da política, seu estudo estava centrado 1 O texto foi originalmente publicado no site “Empório do Direito”, em 03 de maio de 2015. Disponível no

link: http://emporiododireito.com.br/massacre-de-29-de-abril-de-2015-excecao-no-estado-do-parana-ou-parana-como-estado-de-excecao-por-priscilla-placha-sa/. Sua redação inicial teve pequenas modificações para a presente publicação. 2 Advogada. Doutora em Direito do Estado pela UFPR. Professora Adjunta de Direito Penal da Universidade Federal do Paraná e da Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Professora do Programa de Mestrado em Direitos Humanos e Políticas Públicas da PUCPR. Vice-Chefe do Departamento de Direito Penal e Processual Penal da UFPR. Membro do Grupo de Estudos Modernas Tendências do Sistema Criminal. 3 Apurou-se no Inquérito Policial Militar – Autos sob n.º 002719915.2015.8.16.0013, que 218 pessoas sofreram lesões corporais e fizeram o exame de corpo de delito, sendo 195 civis e 23 militares; 2 civis e 1 militar sofreram lesões classificadas como “graves”, segundo o Código Penal (Despacho de Arquivamento – fls. 04).

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nas Universidades4. A polícia era o fiel da medida do modelo de poder. Ainda é. Do transcurso do Antigo Regime, pós-Revoluções burguesas, parece que perdemos a oportunidade de fundar um modelo realmente novo de poder de polícia, quando o modelo instituído convoca a Guarda Nacional Francesa, instituição contra quem tanto se tinha lutado. O período de terror instalado por Robespierre e o terror jacobino podem ter dado vida a um mesmo poder de polícia, que aspirou a permanência e a potência que detinha no Absolutismo. Séculos à frente, com a transição de permanências, que esse legado trouxe ao Brasil, por meio da Colônia que bebeu diretamente na fonte, transpôs-se tal legado para cá com o extermínio dos índios, a escravidão dos negros e a exploração dos imigrantes. Fez nascer um dos inimigos contra o qual parece que o poder de polícia tanto tem lutado: o comunismo. Com a criação da 4a. Delegacia (cuja atribuição era a da Ordem Política e Social), na então Capital federal5, nos idos de 1914, foram fichadas mais de 3.000 pessoas, “todas comunistas”, aquelas que iriam ameaçar a ordem posta no país. Três anos mais tarde, num prenúncio de guerra, em uma primeva “crise financeira e econômica em mundial” – tal como agora se anuncia – quando se falava (e se fala) em greve geral, elevação das taxas de desemprego e instabilidade econômica, convoca-se a 1a. Conferência Nacional de Polícia. A abertura dos trabalhos por Aurelino Leal, na Chefia-Geral da Polícia, tinha um tom que “[...] se fundava no medo. Medo da cidade e do cidadão. Medo da desordem urbana e das ‘classes perigosas’. Medo do desconhecido na cidade e da cidade desconhecida. [...]”6, dá um tom tão próximo ao da Secretaria do Estado do Paraná, que impressiona: “Manifestada que seja a greve, a intervenção da polícia deve ter lugar!” Essa cruzada contra o comunismo transpôs décadas e permitiu ver diversos momentos de terror, do mesmo terror de que ora se fala, todos eles envolvendo a polícia política, uma polícia de governo, de um governo, de um governante. De Filinto Muller, que teria protagonizado uma das noites mais longas e violentas da história do país7, a Sérgio Paranhos Fleury, que teria operado o regime militar e um grupo de extermínio8, até o momento em que, por ser violento demais e pelo fato das críticas externas, especialmente do governo norte-americano e da Igreja Católica, apareceu morto em Ilhabela. O mesmo Fleury que dava aulas de tortura no Presídio 4 FOUCAULT, Michel. Segurança, Território, População. Curso dado no Collège de France (1977- 1978).

Tradução Eduardo Brandão. Revisão Claudia Berlinger. São Paulo: Martins Fontes. 2008, p. 440 5 A divisão do trabalho policial e a criação das chamadas delegacias especializadas daria ensejo a um só tempo lugar (i) a um pretenso cientificismo policial, (ii) a burocratização do serviço, em particular com os fichamentos e as estatísticas e (iii) a um novo tipo de policial: o agente da delegacia especializada. Cf. BRETAS, Marcos Luiz. Ordem na Cidade: o exercício cotidiano da autoridade policial no Rio de Janeiro, 1907 – 1930. 1997, p. 74-80. Em especial, os dados acerca da atuação da 4a. Delegacia: Obra citada, p. 79. 6 PECHMAN, Roberto Moses. Cidades estritamente vigiadas: o detetive e o urbanista. Rio de Janeiro: Casa da Palavra. 2002. p. 346. 7 ZAFFARONI, Eugenio Raúlet al. Direito Penal Brasileiro: primeiro volume – Teoria geral do Direito Penal. Rio de Janeiro: Revan. 2003. 8 BICUDO, Hélio Pereira. Meu depoimento sobre o esquadrão da morte. São Paulo: PontifíciaComissão de Justiça e Paz de São Paulo. 1997, p. 36-44; 45; 53.

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de Tiradentes, aulas essas aprendidas pelas autoridades policiais civis e militares no convênio feito entre Brasil e Estados Unidos que fez nascer o SFICI - Serviço Federal de Informações e Contrainformações e a Escola Nacional de Guerra9. O fim da ditadura civil-militar não foi, entretanto, o fim do militarismo. Pudera! Desde o nascimento, a nossa República, que se pretendia antagônica ao Império, na verdade nasceu de mãos militares. O poder punitivo (ardorosamente desejado) tem no militarismo suas características essenciais: verticalidade, hierarquia e disciplina. O militarismo aqui é compreendido como o modo de operar um sistema de vidas e de mortes, e não apenas o uso de uma farda ou de armas, daí que não está adstrito às instituições militares. Embora a alardeada falência das demais instituições – como se as instituições fossem o recôndito de uma vida feliz – tenha feito evocarse recentemente o retorno da ditadura militar. O militarismo, que decorre do modelo romano, lá daquela Roma que não se sustentou e nem poderia se sustentar, pois sua hierarquia bélica, tocada pelo fio da espada que se embainha de sangue, constitui um poder que não faz questão, não constitui laço. Opera no real, matou e mata muita gente. Contabilizam, aproximados, centenas de mortos (há quem fale em milhares, inclusive, indígenas) durante os 21 anos de ditadura militar. Embora controversos os números por conta da falta de colaboração e da disponibilização de arquivos pelas Forças Armadas, estima-se uma violência letal e sistemática, operando por meio de torturas a detenções ilegais, chegando aos assassinatos e desaparecimentos forçados10. Entretanto, entre 2009-2013, a polícia brasileira matou mais do que a polícia americana (conhecida pela sua violência, é só ver o caso de Baltimore) em 30 anos; só no ano de 2013 eram 6 pessoas por dia. Não obstante as fraturas do modelo também façam muitas vítimas policiais, em ambos os lados muito acima da média. Registre-se, todavia, que 81,8% das mortes produzidas por policiais deram-se em serviço, ao passo que 75,3% dos policiais morreram fora do trabalho policial, ao menos, oficial11. Talvez a diferença que ainda concite tanto pensar sobre a ditadura é que a violência institucional lá se voltava contra intelectuais, jornalistas, sindicalistas, advogados e estudantes. Talvez pela primeira vez tenham sido colocadas “garotas mal saídas do colégio nuas no pau de arara”12. 9 FIGUEIREDO, Lucas. Ministério do Silêncio. 2a. ed. Rio de Janeiro: Record. 2011, p. 63-67. 10 Relatório sobre as violações de direitos durante a ditadura militar, divulgado em 10 de Dezembro de

2014, volume I, parte III, elaborado pela Comissão Nacional da Verdade. Disponível em: http://www.cnv.gov. br/images/pdf/relatorio/volume_1_pagina_275_a_592.pdf. Acesso em: 28 abr. 2015. 11 Dados obtidos no 8o. Anuário do Fórum Nacional de Segurança Pública, p. 6. Disponível em: http://www. forumseguranca.org.br/storage/download//anuario_2014_20150309.pdf. Acesso em: 03 mai. 2015. A respeito das mortes produzidas pelas instituições oficiais: ZAFFARONI, Eugenio Raúl. A palavra dos mortos: conferências de criminologia cautelar. Luiz Flávio Gomes e Alice Bianchini (coord.). Trad. SérgioLamarão. Saraiva: São Paulo. 2012, p. 371. 12 SANTOS, Joel Rufino dos. Quase dois irmãos. Instituto Carioca de Criminologia. Discursos Sediciosos: Crime, Direito e Sociedade. Rio de Janeiro: Revan. Ano 9, Número 14, 1º e 2º semestres de 2004, p. 28. O autor também usa a expressão “brancos-nãotorturáveis” para aludir ao fato de a tortura, durante a ditadura, ter

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Enquanto, desde sempre, os excluídos e marginalizados, sobretudo os garotos negros dos bairros pobres e das periferias, tiveram seu caminho abreviado do berço para o cemitério. Daí que nasce e se fortalece o discurso pela redução da maioridade penal, pois a capacidade letal do sistema esteve sempre à disposição de Tânatos. O militarismo da disciplina, da obediência e da ordem é a essência do poder punitivo e da constituição de uma polícia política, uma polícia colocada a mercê dos governos. Uma polícia que fará, por seu comando, coisas como a que se viu no dia 29 de abril de 2015. A lição foi (re)apreendida ou replicada ao término da ditadura civil-militar, e aqui, como lá “em França” não abrimos mão do uso da polícia como força, como polícia de governo. A transposição para a democracia não abriu mão do militarismo, nem da violência institucional e da violação de direitos. Ao se tentar um lugar para as Forças Armadas, presenteou-se um dos mais terríveis generais do Regime Militar (Gen. Nilton Cerqueira) com a Secretaria de Segurança Pública do Rio de Janeiro. Ali ele instituiu a premiação por bravura, cujo lema poderia bem ser “atire primeiro, pergunte depois”13. Quem sabe não vem desde aí a expressão que hoje sideriza mentes e corações ao vaticinarem que “bandido bom é bandido morto”. E que fez o, então, Secretário de Segurança Pública do Estado do Paraná comemorar quatro mortes na semana que antecedeu o massacre de 29 de abril14. O uso da polícia política não parece ser, entretanto, estratégia de um determinado partido ou governante. Embora, convenha-se, seja possível notar algumas peculiaridades, especialmente nos acontecimentos do dia 29 de abril. Em meio ao cenário de guerra, que vitimava muita gente, particularmente professoras e professores, sob um discurso articulado e estético de que a polícia agia por conta de “baderneiros” (mesmo as dezenas de vídeos mostrarem que diante da polícia de choque, os manifestantes saíam correndo; pessoas caídas e feridas não podiam sequer ser socorridas) e os “comunistas de hoje” chamados de “Black-blocs”, viam-se outros atores dos mais diversos espectros políticos, criticando hoje o que se fez ontem ou o que se fará amanhã. O uso político da polícia se multiplicava diante dos olhos da população que via estarrecida – em meio a uma literal e surreal cortina de fumaça – pessoas sangrando e correndo no Centro Cívico. A guarda municipal, que na noite anterior dava início a uma nova de abordagem chamada de “busca civil” com o intuito de higienizar o Alto de São Francisco e

recaído sobre gente que não se parecia com a clientela tradicional do direito penal, em particular da classe média, pode ter contribuído para a edição mesmo que tardia da Lei de Tortura (Cf. Direito Penal brasileiro: primeiro volume – Teoria Geral do Direito Penal. 2003, p. 479). Entretanto, cabe lembrar a comoção que a tortura e posterior execução de rapazes, protagonizada por policiais militares na Favela Naval de Diadema, em 31 de março de 1997, teve forte contributo para o trâmite do Projeto de Lei, que foi aprovado e sancionado poucos dias depois (em 07 de abril). 13 GALEANO, Eduardo. De pernas pro ar: a escola do mundo ao avesso. Trad. de Sergio Faraco. Porto Alegre: LP&M. p. 82. 14 “Francischini elogia policiais por quatro mortes em uma semana”: Disponível em: http://www.gazetadopovo.com.br/blogs/caixa-zero/francischini-elogia-policiais-por-quatro-mortes-em-uma-semana/. Acesso em: 01 mai. 2015.

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algumas vielas onde o poder alega estar se alastrando a doença e a violência, agora era usada por outro segmento político para se dizer discordante do outro fazendo às vezes de uma polícia próxima da comunidade. Criticando-se o partido governista do Estado (que não pode ser eximido dos atos que perpetrou) sua oposição – especialmente, no âmbito federal – a qual se valera da mesma polícia e de mais outra, para usar prender e reprimir as manifestações da Copa das Confederações e da Copa do Mundo, por meio da Lei de Segurança Nacional (aquela mesma editada em 1983, já no declínio da Ditadura militar) mostrava-se consternada com o que se via por aqui. Mais do mesmo. Polícia política como polícia de governo, de um governo, de um governante. A coletiva de imprensa dada pelo Comando-geral da Polícia Militar, na tentativa de eximir a Secretaria de Segurança e o Governo Estadual das responsabilidades pelos atos praticados, chega a ser pueril, pois quem conhece minimamente a estrutura e a forma de agir dessas instituições tem ciência de que uma ação como essa não é adotada sem o conhecimento e o consentimento prévio das instâncias superiores; do contrário, já teria “caído”. Na mesma linha, os atos que se sucederam com “cartas públicas” da Polícia Militar, escritas por seus Oficiais superiores, especialmente, os coronéis, a saída do então Comandante-Geral e do próprio Secretário de Segurança demonstram o, no mínimo, desacertado concerto orquestrado no Centro Cívico. Mesmo porque havia, segundo divulgado oficialmente, 1.500 policiais militares para proteger a votação do governo (segundo a decisão judicial de arquivamento do Inquérito Policial Militar: 1892 policiais militares). Na mesma linha, não impressionou o pedido da cúpula partidária do governo estadual para tirar o Chefe da Secretaria de Segurança, aludindo aos excessos e aos desmandos do massacre, deixando isenta a Chefia do Executivo, até porque tal pedido pouco depois foi retirado das redes sociais. Aprovada a lei da previdência dos servidores do Paraná (a protagonista oficial do episódio), socorridas as vítimas e apuradas as responsabilidades (ou não?! – e tal exclamação-interrogação já existia desde o início de maio de 2015, ora confirmada pelo parecer e despacho de arquivamento do Inquérito Policial Militar que, em síntese, concluiu pelo estrito cumprimento do dever legal), quando já tiver baixado a fumaça das bombas, o ardor do gás lacrimogênio e do spray de pimenta, os sons surdos das balas de borracha, segue a polícia de governo, fazendo a única função – também não rompida com o fim da ditadura – que o discurso externo consegue realizar com razoável adesão social, usando as balas de verdade, das armas de fogo, das pistolas .40, das armas 12 de cano longo, que atuam historicamente contra os mesmos excluídos e os desvalidos, varridos desde sempre para debaixo do tapete social. Para eles, jovens pobres, não raro, negros, dos centros urbanos, das três medidas de um Estado (educação, saúde e polícia), a única que chega é a última. Como dissera Michel Foucault, o direito à vida só é exercido pelo soberano porque ele detém também o direito de espada: “não é o direito de fazer morrer ou de fazer viver. Não é tampouco o direito de deixar viver e de deixar morrer. É o direito

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de fazer morrer ou de deixar viver.”15 Só que operando por meio de um genocídio racista. Exceção? Não, a regra da regra.

Referências Bibliográficas BICUDO, Hélio Pereira. Meu depoimento sobre o esquadrão da morte. São Paulo: PontifíciaComissão de Justiça e Paz de São Paulo. 1997. BRETAS, Marcos Luiz. Ordem na Cidade: o exercício cotidiano da autoridade policial no Rio de Janeiro, 1907 – 1930. 1997. FIGUEIREDO, Lucas. Ministério do Silêncio. 2a. ed. Rio de Janeiro: Record. 2011. FOUCAULT, Michel. Em Defesa da Sociedade: curso no Collège de France (19751976). Trad. Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes. 2005. ______. Segurança, Território, População. Curso dado no Collège de France (19771978). Tradução Eduardo Brandão. Revisão Claudia Berlinger. São Paulo: Martins Fontes. 2008. GALEANO, Eduardo. De pernas pro ar: a escola do mundo ao avesso. Trad. de Sergio Faraco. Porto Alegre: LP&M. PECHMAN, Roberto Moses. Cidades estritamente vigiadas: o detetive e o urbanista. Rio de Janeiro: Casa da Palavra. 2002. SANTOS, Joel Rufino dos. Quase dois irmãos. Instituto Carioca de Criminologia. Discursos Sediciosos: Crime, Direito e Sociedade. Rio de Janeiro: Revan. Ano 9, Número 14, 1º e 2º semestres de 2004, p. 27-30. ZAFFARONI, Eugenio Raúl et al. Direito Penal Brasileiro: primeiro volume – Teoria geral do Direito Penal. Rio de Janeiro: Revan. 2003. ______. A palavra dos mortos: conferências de criminologia cautelar. Luiz Flávio Gomes e Alice Bianchini (coord.). Trad. Sérgio Lamarão. Saraiva: São Paulo. 2012, p. 371. “Francischini elogia policiais por quatro mortes em uma semana”: Disponível em: http://www.gazetadopovo.com.br/blogs/caixa-zero/francischini-elogia-policiais-por15 FOUCAULT, Michel. Em Defesa da Sociedade: curso no Collège de France (1975-1976). Trad. Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 287.

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quatro-mortes-em-uma-semana/. Acesso em: 01 mai. 2015. 8o. Anuário do Fórum Nacional de Segurança Pública, p. 6. Disponível em: http:// www.forumseguranca.org.br/storage/download//anuario_2014_20150309.pdf. Acesso em: 03 mai. 2015. Relatório sobre as violações de direitos durante a ditadura militar, divulgado em 10 de Dezembro de 2014, volume I, parte III, elaborado pela Comissão Nacional da Verdade. Disponível em: http://www.cnv.gov.br/images/pdf/relatorio/volume_1_ pagina_275_a_592.pdf. Acesso em: 28 abr. 2015.

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OS ARGUMENTOS DO ESTADO REPRESSOR

Por Esther Solano Gallego1

INTRODUÇÃO Passou-se um ano das terríveis cenas do massacre do Paraná. A máquina do Estado repressor, absolutamente despudorada, lançou uma mensagem clara: “cidadãos, se querem desafiar o poder, terão polícia, não política. Terão guerra, não argumentos democráticos”. Policiais contra professores ao tempo que os donos do poder político paranaense com seu máximo representante à cabeça observavam as cenas do drama desde as janelas da Assembleia Legislativa. Grotesco, brutal. Um Estado animal. E a responsabilidade?2 Beto Richa continua na sua cadeira. Os mesmos professores humilhados o dia 29 de abril de 2015 ainda são humilhados cada dia que ele passa como governador do Estado de Paraná. PROTESTO PACÍFICO, PROTESTO VIOLENTO Desde 2013, os cidadãos brasileiros estão cansados de escutar os mesmos argumentos que se repetem como uma total falta de inovação retórica. “Protesto violento não pode”, “baderneiro, mascarado, vândalo, vagabundo não pode”. Na prática estes argumentos têm sido utilizados historicamente nos mais diversos cenários de censura e repressão para colocar abusivamente limites à liberdade de expressão. Na prática, são muitos os casos em que alguns representantes políticos, das forças de segurança e de setores mais conservadores da sociedade brasileira utilizam estes conceitos para justificar restrições a manifestações que lhes sejam desfavoráveis. A sociedade brasileira, com uma média de 50.000 homicídios por ano3, defenderá um protesto que tenha sido acusado politicamente de ameaçar a segurança pública? O profundo impacto social desta manobra se funda no fato de que a dicotomia protesto violento versus protesto pacífico mobiliza o discurso do medo e da insegurança. Cria um inimigo e já sabemos do enorme capital político da figura do inimigo. Essa sociedade – que está exposta continuamente aos discursos punitivos de 1 Doutora em Ciências Sociais pela Universidade Complutense de Madri. Professora da Universidade Fede-

ral de São Paulo (UNIFESP). 2 “O governador do estado do Paraná, Beto Richa, e o comando da polícia militar do Estado precisam assumir total responsabilidade pela repressão violenta à manifestação de professores realizada ontem (29/04) em frente à Assembleia Legislativa” Nota de Anistia Internacional, https://anistia.org.br/noticias/ autoridades-precisam-assumir-responsabilidade-pela-violencia-contra-professores-parana/ 3 http://g1.globo.com/politica/noticia/2015/07/brasil-teve-em-media-143-assassinatos-por-dia-em-2014.html

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endurecimento penal, por muitos políticos ou certos jornalistas4, está muito vulnerável à utilização de argumentos de restrição de direitos. Daí sua eficácia para criminalizar protestos que não interessem às estruturas de poder. Mas quem é violento nesta história? Mesmo com uma democracia estabelecida em termos formais, as múltiplas violências estruturais observadas no Brasil impedem que milhões de cidadãos sejam tratados como tais, sendo sujeitos excluídos política e juridicamente e com baixa garantia de direitos. Num país onde menos de 1% dos contribuintes concentram cerca de 30% de toda a riqueza declarada5, 41% dos lares não tem rede de esgoto6 e dos mais de 50.000 homicídios anuais 77% das vítimas são negras,7 é evidente que a lei não protege a todos por igual. A ênfase das instituições governamentais, da imprensa, da sociedade civil organizada, de todo nós, deve ser denunciar os casos e espaços onde essa violência multifacetada do Estado ainda hoje ocorre, traduzida em leis e práticas que fomentam privilégios, representantes políticos corruptos e forças de segurança truculentas. Não podemos cair na retórica de criminalização de manifestações. A violência está em outro lugar. Só demorou algumas horas para que o governador Beto Richa utilizasse o tedioso pretexto de que na manifestação dos professores tinha Black Bloc, arruaceiros, baderneiros, e que, portanto, nada mais lógico e necessário que utilizar com contundência a força policial. “Mas lamentavelmente a presença de baderneiros, arruaceiros, black blocs que radicalizaram, partiram para cima dos policiais. E é uma defesa natural: eles agiram para preservar sua integridade física e suas vidas (...) E esses radicais acabaram buscando o confronto com os policiais (...) Agora, os filmes que eu assisti mostram agressões de manifestantes radicais, black bloc...8”. (Entrevista Beto Richa) 4 O exemplo mais relevante são os programas policiais com uma grande audiência no Brasil. Este telejorna-

lismo dramático tem um papel muito ativo na produção do medo e da insegurança: Brasil Urgente e Cidade Alerta, apresentados, respectivamente, por José Luiz Datena e Marcelo Rezende que estão o ar todas as tardes durante três horas. Neste ano, Brasil Urgente bateu recorde de audiência, com mais de 1.5 milhões de espectadores segundo o Ibope 5 Dados da Receita Federal de 2014 6 Pesquisa Nacional de Amostra de Domicílios (PNAD) de 2014, http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/ pesquisas/pesquisa_resultados.php?id_pesquisa=149 7 Dados de Anistia Internacional, relatório “Você matou meu filho”, de 2014, https://anistia.org.br/direitos -humanos/publicacoes/voce-matou-meu-filho/ 8 Entrevista ao jornal paranaense A Gazeta do Povo, 30-04-2015 http://www.gazetadopovo.com.br/vida-publica/richa-culpa-black-blocs-e-isenta-policia-ek24qc3ffzuqqc2yh91uxpv3w

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A criminalização do Richa não para por aí. Partidos, organizações sindicais também são alvo. Vejam bem que esta escusa foi muito utilizada durante as manifestações de 2014 onde especulava-se que por trás do Black Bloc haveria instigação de partidos políticos tais como PSTU ou PSOL. Criminaliza-se assim toda uma série de estruturas partidárias legítimas que operam dentro dos parâmetros do sistema democrático, mas que incomoda a quem está no poder. “O pessoal do PT, alguns do PMDB, PSOL e PSTU claro que instigaram. A CUT tem presença forte aqui9”. (Entrevista Beto Richa) A polícia deveria estar presente nas manifestações para proteger as pessoas que nelas se encontram. Infelizmente a Polícia Militar responde a um comando político que em inúmeras ocasiões utiliza a segurança pública como desculpa para manter o poder e sufocar dissidências ou instabilidades. Uso de armas letais, contingente policial desproporcional, detenções arbitrárias, intimidação e violência policial foram recorrentes nos protestos dos últimos três anos. De janeiro a dezembro de 2013, houve 696 manifestações no Brasil e os protestos deixaram 837 feridos e 2608 pessoas detidas10. As cenas de policiais agredindo ativistas, advogados e até jornalistas repetiram-se em muitos protestos de 2013 e 2014. Cassetetes, armas menos letais utilizadas de forma irresponsável, agressões verbais dos mais diversos tipos e até assédio sexual por parte de algumas tropas tem sido narrado por manifestantes. Esta atuação é justificada pelo rótulo do “protesto violento”, porque todo o mundo sabe que um conjunto de professores revindicando seus direitos representam uma grande ameaça para a segurança nacional e devem ser contidos... Neste contexto algo fica muito claro. É o conteúdo do protesto e o perfil dos manifestantes que é criminalizado. Durante esta recente onda de manifestações próimpeachment é comum ter pessoas pedindo o golpe militar e ainda estamos assistindo várias cenas de agressão a alguns indivíduos que simplesmente passavam pela rua vestidos de cor vermelha ou se identificavam como petistas. Ninguém definiu estes protestos como violentos. Óbvio. O objetivo do protesto serve a um projeto de poder muito definido e por outro lado a classe média branca representada nele está muito longe de ser a classe brasileira de indesejáveis das periferias que é sempre rotulada como baderneira e que tem seu direito de protesto cotidianamente negado. Um jovem branco anti-Dilma na Av. Paulista exigindo a volta dos militares, pode. Um jovem negro em Capão Redondo protestando pelo genocídio nas periferias, não pode. Temos observado um acirramento do discurso punitivo no país. A sociedade 9 Entrevista ao jornal Folha de São Paulo, 29-04-2015 http://www1.folha.uol.com.br/poder/2015/04/ 1622852-richa-defende-pm-ataca-pt-e-diz-que-truculencia-foi-de-black-blocs.shtml 10 Dados de Artigo 19, dossier “Protestos no Brasil 2013” (São Paulo, 2013)

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brasileira não confia nas instituições11 e diante de um quadro de criminalidade que só parece se agravar, a tendência é um movimento político e social de retração de liberdades em nome de uma ação mais repressiva do Estado: aumento da chamada “bancada da bala” formada por ex-membros das forças de segurança cujos projetos de lei vão no sentido de pedir maior coerção policial e revogar o Estatuto do Desarmamento; aumento dos linchamentos e a figura do justiceiro que perpetra a “justiça com a próprias mãos”. Num país como o Brasil – ainda profundamente desigual, onde, com gravíssima frequência os jovens negros da periferia, os integrantes dos movimentos sem terra e sem teto, os indígenas, são denominados de “bandidos”, e onde metade da população acredita na máxima “bandido bom é bandido morto12” – é evidente que o direito de manifestação desses grupos ou dos grupos que incomodem ao poder, corre imenso risco de não ser respeitado. Pensemos nas estruturas de representação brasileiras. No Congresso, as mulheres representam 10% dos parlamentares; negros e pardos, 20%13; não existem representantes dos povos indígenas. A “bancada ruralista” é composta por 374 deputados federais, a “bancada dos bancos” por 197, a “bancada dos frigoríficos” tem 162 representantes e a “bancada das mineradoras” tem 8514. No total, a composição atual do Congresso brasileiro é de 70% de fazendeiros e empresários15. Com um Congresso masculino, branco, elitista, que representa majoritariamente empresas e o agronegócio, os protestos de mulheres, negros, indígenas, sem teto ou sem terra, minorias sociais terão sérias dificuldades para ter legitimidade social. A imprensa tem um papel essencial nesta dinâmica de legitimação ou deslegitimação de protestos. No Brasil existe um elevado grau de concentração na propriedade dos médios de comunicação e o perfil da imprensa mainstream é muito conservador, com escasso espaço para participação e debate sobre minorias e grupos sociais vulneráveis. Além disso, devido ao elevado grau de confiança na imprensa tradicional, aparece com cada vez mais força a figura do pseudojornalista, aquele que faz comentários punitivos, fortes, apelativos, com grande conteúdo emocional, até raivoso. Pseudojornalismo este que polariza a sociedade, aumenta os discursos de ódio e fragiliza a convivência democrática. “O confronto meticulosamente

no Paraná planejado

foi por

11 Índice de Confiança na Justiça, ICJBrasil, da Fundação Getúlio Vargas, de 2014 mostra que só 39% da

população brasileira acredita no poder judiciário e na polícia, 19% no Congresso, http://direitosp.fgv.br/ publicacoes/icj-brasil 12 Pesquisa Datafolha encomendada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2015. Das 1307 pessoas ouvidas, 50% concordaram com essa afirmação, http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2015/10/1690176metade-do-pais-acha-que-bandido-bom-e-bandido-morto-aponta-pesquisa.shtml 13 http://www.inesc.org.br/noticias/noticias-do-inesc/2014/outubro/eleicoes-2014-congresso-nacional-permanecera-desigual-nos-proximos-4-anos 14 http://www.diplomatique.org.br/editorial.php?edicao=94 15 http://www.diplomatique.org.br/editorial.php?edicao=94

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extremistas e por profissionais da baderna (...) Por volta das 15h, os professores sob o comando da APP, liderados por aliados radicalizados, que usavam máscaras antigás, portavam coquetéis molotov, bombas caseiras e estavam armados de paus e pedras, partiram para o confronto direto e violento com a Polícia Militar16” (Blog de Reinaldo Azevedo) Grande parte da sociedade brasileira ainda não reconhece os protestos como elementos essenciais da democracia. Para muitos, as manifestações são momentos de “desordem”, “bagunça”, “que atrapalham a vida”. Esta ótica coloca a ordem pública e o direito de manifestação como se fossem opostos quando na verdade o direito de manifestação é o coração do sistema democrático. Lembro que durante a longa greve de professores em 2015, que paralisou as aulas em São Paulo, muitos se referiam à situação instalada como “caos geral”, exigindo das autoridades um fim a essa “greve caótica”. Pouco se discutiu mais aprofundadamente as condições lamentáveis da categoria e o fato de que o governo rejeitava repetidamente negociar com representantes da categoria. O Governo de São Paulo foi à justiça para pedir que os dias parados dos professores em greve fossem descontados, argumentando que a situação “violava a ordem pública, econômica e a segurança pública”17. Mais uma vez os professores eram responsáveis de instaurar o caos na cidade. Em fevereiro de 2014 o Secretário de Segurança Pública de Rio de Janeiro apresentou no Senado uma proposta de lei para tipificar o crime de desordem com o objetivo, segundo ele mesmo declarou, “de inibir a violência em manifestações” 18 no período da Copa do Mundo. Também em fevereiro de 2014, com a proximidade da Copa, o Ministério da Defesa publicou o manual Garantia da Lei e da Ordem ou MD33-M-1019 onde categoriza movimentos e organizações como forças oponentes, igualando-os a organizações criminosas, quadrilhas e contrabandistas. O inquérito e ação penal abertos contra 23 ativistas de Rio de Janeiro em julho de 2014, respondeu a esta mesma lógica. O juiz da Ação Penal decretou a prisão preventiva dos ativistas 16 Entrada de 30-04-2015, http://veja.abril.com.br/blog/reinaldo/geral/o-confronto-no-parana-foi-meticulo-

samente-planejado-por-extremistas-e-por-profissionais-da-baderna/ 17 Mais informações sobre o argumento da “ordem pública” na liminar na página do Superior Tribunal de Justiça, http://www.stj.jus.br/sites/STJ/default/pt_BR/noticias/noticias/Governo-de-S%C3%A3o-Paulo-podedescontar-dias-parados-dos-professores-em-greve 18 http://g1.globo.com/politica/noticia/2014/02/beltrame-leva-ao-senado-proposta-de-lei-para-tipificar-crime-de-desordem.html 19 http://www.defesa.gov.br/arquivos/File/doutrinamilitar/listadepublicacoesEMD/md33_m_10_glo_1_ ed2013.pdf

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por necessidade de “garantia da ordem pública” em virtude da “periculosidade dos acusados”. Este inquérito tem sido denunciado por inúmeras organizações por não atender aos parâmetros mínimos de devido processo legal e contraditório, além de apresentar total falta de embasamento probatório20. Violência, ordem pública, segurança pública, argumentos utilizados tantas vezes no sentido de impedir a liberdade daquelas manifestações que afetam a ordem de um status quo de desigualdade imperante. Os desafios sociais não encontram resposta na política e se transformam em casos de polícia. Sem dúvida, falta vontade política e sobra protagonismo policial. Episódios dramáticos como as reintegrações de posse de prédios ou terras ocupadas, envolvendo famílias e até crianças são um dos momentos sintomáticos desta visão policial dos problemas sociais. Os batalhões de choque têm a obrigação de intervir em “distúrbios civis”21, porém sua presença é constante em inúmeras manifestações, o que deixa muito claro, que para as instituições públicas os protestos são, de fato, “distúrbios civis” e devem ser tratados como assuntos de segurança pública. Mesmo admitindo a existência de abusos policiais, o discurso sempre gira em torno da figura do baderneiro, que causa o distúrbio, que provoca a tropa, que cria a confusão. A ausência ou a fraqueza da autocrítica com que as autoridades políticas e policiais afrontam frequentemente sua atuação nas manifestações faz com que a mudança seja difícil. “Temos duas obrigações agora. A primeira é instaurar um inquérito com todo rigor necessário e, inclusive, a designação de um promotor de Justiça para acompanhar todos os atos deste inquérito policial. A segunda é que também temos que avaliar a atuação desses grupos radicais, que foram o grande estopim desse movimento policial”. (Entrevista Secretário de Segurança do Paraná, Fernando Francischini22) Pensemos que num país com tão profundas desigualdades e historicamente governado por elites, a ordem pública, o protesto pacífico ou segurança, são categorias que a maioria das vezes buscam defender uma estabilidade social discriminatória, que excluí a milhões de cidadãos cujos direitos mais básicos como saúde, educação 20 Dossiê Artigo 19 “As ruas sob ataque: protestos 2014 e 2015”, p. 53 21 http://www.policiamilitar.sp.gov.br/unidades/2bpchq/artigos.aspx?cod=2 22 Entrevista ao jornal Zero Horas, 04-05-2015 http://zh.clicrbs.com.br/rs/noticias/noticia/2015/05/nada-justifica-diz-secretario-de-seguranca-do-parana-apos-confrontos-4753573.html#

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de qualidade ou acesso a um trato jurídico e policial justo, são negados. O Poder Público se utiliza desses conceitos como ferramentas de um discurso criminalizador. Por outro lado, opção do Estado policial-punitivo para lidar com o desafio das manifestações mostra ser, além de ineficaz, muito nociva para essa “ordem” que supõe manter, dado que alimenta continuamente a tensão e a violência chegando a cenários de abusos e riscos potenciais elevadíssimos e a um contexto de insatisfação geral tanto dos próprios manifestantes como dos policiais atuantes nas manifestações Conflitos criados por um modelo de desenvolvimento excludente, uma estrutura social dividida entre uma classe privilegiada e milhões de cidadãos nas periferias cujos direitos são negados, um modelo político que pensa manifestações como questão de segurança pública, uma segurança pública letal e militarizada, um punitivismo em aumento tanto no Congresso como nas ruas, uma imprensa altamente oligopolizada. Brasil é um país com muitos desafios sociais, mas também com uma sociedade civil cada vez mais organizada e reivindicativa. Os professores de Paraná em luta por seus direitos foram exemplo desta sociedade que não quer ficar calada. CONCLUSÕES Diante deste cenário, cabe a nós, sociedade civil denunciar os abusos do poder e suas estratégias de legitimidade. A linguagem sempre foi um poderoso instrumento para justificar os mais diversos excessos. Cabe a nós desconstruir a agenda de repressão que se esconde abaixo desta linguagem que muitos percebem como neutra ou inócua, mas que carrega consigo agendas de poder, preconceitos e desigualdades sociais. A figura do inimigo, do radical, do black bloc, do terrorista, o medo, a segurança, são discursos poderosos que têm um profundo impacto social. Estes discursos são perigosamente naturalizados até que formam parte do senso comum. Nada mais perigoso que o senso comum. Em nome dele cometemos as maiores barbaridades. “Protesto violento deve ser reprimido”. “Se tinha arruaceiros no protesto então a atuação policial estava justificada” Isto é o que me diz o senso comum. Cabe a nós questionar estas afirmações que parecem evidentes para grande parte da sociedade. Não esqueçamos que se existe violência policial é porque o poder político dá as ordens e a sociedade legitima este comportamento e inclusive o encoraja. De forma direta ou indireta todos nós somos culpados pelo massacre dos professores de Paraná, e seremos mais ainda se ficarmos num silêncio conivente que aceita, reproduz e justifica estas atitudes. Quando o Estado social se transforma num Estado hiperliberal, punitivo, policial, que exclui as classes indesejáveis da participação política e da proteção jurídica, a possibilidade de diálogo entre o poder instituído a as dissidências ou grupos de protesto, está cada vez mais longe e o instrumento da violência e a repressão cada vez mais perto. O diálogo é o coração da democracia e peça fundamental para uma política saudável e inclusiva. Infelizmente, o que observamos no Brasil atual

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são tantos grupos sociais raivosos, intolerantes, infantilizados, que cada vez mais preferem o grito ao argumento, a imposição ao debate e um poder público arrogante que prioriza projetos de poder personalistas em vez de projetos nacionais. Nesta ordem de coisas o Estado penal ganha força e legitimidade, a oposição ao status quo é reprimida continuamente com o beneplácito da imprensa, do poder judiciário e da própria sociedade que tantas vezes é vítima deste cenário. Numa manifestação que incomoda as estruturas de poder é quase impossível não encontrar de forma rotineira cenas de repressão jurídico-policial e manipulação midiática, que se repetem insistentemente contra os grupos que tentam “quebrar a ordem”. Estas atitudes são profundamente antidemocráticas. Está na nossa mão construir uma sociedade cujo futuro seja o diálogo, a política de construção de consensos e a luta contra a desigualdade e exclusão ou uma sociedade que reprima e que ofereça a seus cidadãos polícia em vez de política.

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29 DE ABRIL DE 2015: EXPRESSÃO DO CONTROLE SOCIAL PENAL COMO REGRESSO DO COLONIAL E DO COLONIZADOR Por Silvia de Freitas Mendes1

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Ao se utilizar o termo cívico, remete-se à noção de quem seja cidadão ou cidadã, merecedor de respeito aos seus direitos. Em um espaço no qual se propõe construir o cívico, permitindo às pessoas que alcem à condição de cidadãs, a educação ganha (ou deveria ganhar) um valor inestimável. A educação passada como um valor pelas famílias ou pelo círculo de convivência entre pessoas, possibilita a compreensão e futura análise crítica dos acontecimentos no mundo. E essa mesma educação, permite em vários âmbitos e momentos da vida, que se trate as pessoas com o devido respeito. A educação, portanto, é bandeira de respeito, de promoção da dignidade, de lembrar do significado da palavra cívico e colocá-la em prática. Da palavra cívico não se projeta e não se espera cenas de barbárie ou violência. Apesar disso, a partir do dia 29 de abril de 2015, a referida palavra faz recordar 1 Professora Assistente da Universidade Estadual do Oeste do Paraná, Mestre e doutoranda em Ciências

Sociais Aplicadas pela Universidade Estadual de Ponta Grossa. 2 Foto publicada no portal http://noticias.terra.com.br/, disponível em http://noticias.terra.com.br/brasil/ pr-manifestantes-e-professores-entram-em-confronto-com-a-pm,0b2f002e0ad516190100b8f3508a959a3g7zRCRD.html

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atitudes violentas praticadas contra o funcionalismo público do Estado do Paraná e estudantes, na capital Curitiba, no local que outrora honradamente recebeu o nome de Centro Cívico. Na referida data, o cívico abriu espaço para violação de direitos de cidadãos e cidadãs, pessoas que lutavam por direitos já conquistados, pessoas que para além da qualidade de funcionários públicos, são membros de famílias e deixaram os seus, para pugnar por uma causa que já não se tratava mais de um direito social, mas por respeito integral à dignidade. O Centro Cívico foi o cenário no qual a manifestação do paradigma da apropriação/violência teve uma expressividade considerável. Tornou-se local de desespero de funcionários públicos do Estado do Paraná e estudantes, bombardeados, alvos de balas de borracha. Era o cívico marcado por pessoas feridas, física e psicologicamente; era o sofrimento daqueles que estavam longe tentando buscar notícias sobre aqueles/aquelas que lhes são muito caros. Para a tratativa deste marco histórico no presente ensaio, serão adotadas como premissas a concepção da existência de múltiplos controles sociais, acentuandose a importância de que o modelo de controle penal merece ocupar o último lugar na escala de controles, bem como a proposta de Boaventura de Sousa Santos em relação à existência do pensamento abissal, o qual possibilita o regresso do colonial e do colonizador, reforçando o paradigma da apropriação/violência. Com isso, busca-se demonstrar como pessoas podem passar a ser totalmente desconsideradas e vitimizadas, como se fossem não-cidadãs, verificando-se a sua inexistência e a desvalorização de seu discurso como inválido e inexistente. Ao se tentar resolver qualquer situação que a esfera estatal compreenda gerar desordem ou problema no meio social, são criados ou utilizados certos controles sociais. Porém, pensando-se que existem desordens e problemas que geram consequências que admitem um enquadramento de acordo com seu grau de prejudicialidade, também se permite avaliar a criação ou utilização de controles sociais de acordo com essa gradação. Dessa forma, faz-se necessário na análise da situação que se compreenda como causadora de desordens ou conflitos, a avaliação da ofensa possível ou já existente a bens jurídicos. E estes bens em situações de conflito, como no acontecido no dia 29 de abril de 2015, no Centro Cívico, permitem que qualquer pessoa identifique quais bens estavam em jogo. E neste sentido, era fácil perceber as vidas, as integridades físicas e morais que estavam efetivamente em risco e muitas das quais ofendidas. Levando estas considerações em conta, pode-se chegar à conclusão de qual controle social deve ser aplicado (ou deveria ser utilizado no marco histórico em discussão). Ou ainda de mais fácil conclusão, qual controle não deveria ser usado. Assim, a opção por um controle social ou outro, merece observar a escala de controles existentes. Neste caminho, conforme BUSATO:

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“Esta ordem entre os sistemas de controle obedece claramente uma primazia que é inversamente proporcional ao grau de coerção envolvido. A razão para isso é simples: a adoção de uma política adequada a um modelo de Estado a serviço do cidadão3”. Desse modo, o exercício do controle social, seja este de natureza familiar, educacional ou estatal, por exemplo, não poderá extrapolar limites que, desproporcionalmente, violem mais direitos, ofendam a dignidade de qualquer ser humano e que não se ajustam ao modelo de um Estado declaradamente Democrático de Direito, o qual necessariamente está a serviço dos cidadãos e cidadãs. Nesse sentido, a utilização do controle social penal aparece como última opção de controle a ser manejada pelo Estado, tendo em vista a própria gravidade que tal controle produz. Quando se menciona esta espécie de controle, pensa-se na descrição de crimes, na aplicação das penas, mas também se deve lembrar da atuação de cada órgão do aparato de controle penal. Em razão disso, também se pode referir à atuação policial, que deve ajustar-se ao modelo de proteção e respeito a cidadãos e cidadãs. Assim, para se exercer o controle social penal valendo-se da força policial, é preciso considerar seu caráter excepcional, pois na esmagadora maioria das situações outras formas de controle social são suficientes para encerrar uma situação conflituosa. E, destaque-se, que no dia 29 de abril de 2015, no Centro Cívico, funcionários públicos e estudantes, desarmados, não poderiam gerar um conflito que ensejasse a atuação policial como se deu. Desse modo, o controle penal antes de ser exercido, principalmente quando se deveria fazer prevalecer a cidadania, a dignidade e segurança de todos, deve abrir espaço para apresentação de argumentos sem balas de borracha, sem bombas de efeito moral, sem helicóptero sobrevoando a poucos pés do chão. A nenhuma forma de controle social pode-se atribuir a produção do medo, do desespero. Infelizmente o controle social penal não se mostra em situações excepcionais, em último caso. Apresenta-se pretensiosamente como a solução imediata e eficaz para combater inimigos, acabar com os problemas sociais. Esse discurso é veiculado diariamente, porém a análise e reflexão das causas dos problemas sociais são deixadas de lado. Precisa-se urgentemente que os espaços para estudo, discussão e reflexão acerca das políticas públicas adotadas, ganhem a mesma notoriedade que o discurso acima mencionado. Que as misérias da população, suas carências e a compreensão de que o controle penal não conseguirá superar ou limitar pessoas, abafar seus discursos, 3 BUSATO, Paulo César. Fundamentos do Direito penal brasileiro. 3ª ed. Curitiba: Edição do autor, 2012, p. 119-120.

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ganhem tanta visibilidade quanto o discurso que impunha a bandeira do controle penal como a solução para todos os problemas. Para além disso, que o controle penal não seja instrumento para a defesa de interesses de grupos, tampouco sirva para criminalizar as opiniões, as reivindicações, a luta pela manutenção e ampliação do rol dos direitos dos cidadãos e cidadãs. O modelo penal estampado como o melhor controle, e sempre com a defesa de que quanto mais severo melhor, poderá ser usado contra aqueles que de um modo ou outro atentem contra o que se entenda como ordem. E dentro do conteúdo ordem, ou ainda, manutenção da ordem, ficará a cargo da interpretação de quem possa fazê-lo de acordo com seus interesses. As estratégias de todo e qualquer controle social no Brasil, devem ajustar-se ao modelo de Estado Democrático de Direito. E no que respeita ao controle penal, os limites são ainda mais fortes, mas apesar de fortes, são ultrapassados com muita facilidade. Quando o controle social penal se expande, desrespeitando as pessoas, tratando manifestantes como criminosos, e é importante ressaltar que mesmo aquele que em tese pratica um crime, merece respeito aos seus direitos, tornando-se cada vez mais o primeiro instrumento a ser utilizado, é possível traçar um parâmetro sobre o que afirma Boaventura de Sousa Santos com o pensamento abissal, o qual permite o regresso do colonial e do colonizador. Defende Santos: “Em suma, o pensamento abissal moderno, que, deste lado da linha, tem vindo a ser chamado para regular as relações entre cidadãos e entre estes e o Estado, é agora chamado, nos domínios sociais sujeitos uma maior pressão por parte da lógica da apropriação/ violência, a lidar com os cidadãos como se fossem não-cidadãos, e com não-cidadãos como se se tratasse de perigosos selvagens coloniais4”. No pensamento abissal, percebe-se a tratativa dos sujeitos enquanto objetos, sem considerar sua condição de cidadão. Se o sujeito é objeto, contra ele pode ser aplicado quaisquer formas de controle social, não se observam os limites, nem direitos e garantias. Este pensamento abissal, permite o regresso do colonizador e do colonial, os quais possibilitam o prevalecimento do paradigma apropriação/violência, fazendo com que governos tomem atitudes de natureza colonial, opressora, violadora de 4 SANTOS, Boaventura de Sousa. Para Além do Pensamento Abissal: das linhas globais a uma ecologia de saberes. Revista Crítica de Ciências Sociais. Nº 78, out. 2007, p. 19.

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direitos humanos em relação aos seus cidadãos. O regresso do colonial seria a “(...) intromissão ameaçadora do colonial nas sociedades metropolitanas.”5 Assim, pessoas consideradas não-cidadãs manifestam-se contrariamente às opções estatais tornandose real ameaça nas atuais sociedades. Já o regresso do colonizador, “Implica o ressuscitar de formas de governo colonial, tanto nas sociedades metropolitanas, agora incidindo sobre a vida dos cidadãos comuns, como nas sociedades anteriormente sujeitas ao colonialismo europeu.”6 Nas sociedades atuais, portanto, o regresso do colonizador é evidenciado nas apropriações violentas, na violação de direitos e garantias das pessoas. Assim, o exercício desmedido, injustificável do controle social penal reforça a apropriação/violência. Permite o regresso do colonial e do colonizador. Transforma-se em meio que muito longe está de proteger bens ou promover a segurança dos cidadãos. Acaba por se constituir em instrumento que ameaça e ofende as vozes consideradas ameaçadoras da metrópole, operando um retrocesso em tema de atuações estatais. Portanto, o cenário vivenciado por muitos no dia 29 de abril de 2015, no Centro Cívico, em Curitiba, apresentou-se como o regresso do colonial e do colonizador. Pessoas que se manifestavam na luta por direitos foram tratadas com o controle social mais severo. Isso representa a apropriação/violência exercida no período pós-colonial, no qual o respeito à dignidade, aos direitos fundamentais mereceriam defesa por parte do aparato de poder estatal. Operou-se real retrocesso, atropelando-se quaisquer formas de respeito merecidas por todos os seres humanos, em especial àqueles que lá estavam e tiveram sua dignidade marcada pela violência. Esta forma de tratamento conferido às pessoas que se manifestavam em prol de seus direitos e dos direitos de futuras gerações no dia 29 de abril de 2015, causa repulsa que não se pode quantificar quando se é filho ou filha de pessoas que ensinaram o valor da dignidade e da educação, ainda mais somado à qualidade de ser professora ou professor, filho ou filha de professor que esteve naquela barbárie. Apesar disso, a linha do respeito à dignidade e à educação foi traçada lá na infância e continua entrelaçada nas mãos, na fala, nas condutas que tentam contribuir para a melhora das circunstâncias no chão em que se pisa sem precisar se valer da violência.

5 Ibid, p. 12. 6 Ibid, p. 15.

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Referências Bibliográficas BUSATO, Paulo César. Fundamentos do Direito penal brasileiro. 3ª ed. Curitiba: Edição do autor, 2012. Registro fotográfico utilizado no ensaio disponível em http://noticias.terra.com.br/ brasil/pr-manifestantes-e-professores-entram-em-confronto-com-a-pm,0b2f002e0ad 516190100b8f3508a959a3g7zRCRD.html. Acesso em 15 de março de 2016. SANTOS, Boaventura de Sousa. Para Além do Pensamento Abissal: das linhas globais a uma ecologia de saberes. Revista Crítica de Ciências Sociais. Nº 78, out. 2007, p. 03-46.

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UMA PERSPECTIVA EXTERNA – AS OPOSTAS ANÁLISES DA “OPERAÇÃO CENTRO CÍVICO” Por Gabriel Rodrigues de Carvalho1

O fatídico episódio ocorrido no dia 29 de abril de 2015, na praça Nossa Senhora de Salete, em Curitiba-PR, constitui um acontecimento verdadeiramente histórico para o Estado do Paraná, sendo amplamente noticiado no país e no mundo. Relembrá-lo, por mais dolorido que possa ser, é imprescindível para que, ao menos, tão lamentável ocorrido não caia no ostracismo – desejar que algo semelhante não se repita soa como utopia. Das diferentes perspectivas possíveis de abordagem do evento - às vésperas da data que marca um ano dos lamentáveis acontecimentos –, escolheu-se a perspectiva externa aos fatos. Nela, algo de relevante a se recordar são algumas espécies de análises efetuadas logo após os fatos; análises que ultrapassam meras considerações particulares, pois elaboradas em meios de comunicação de ampla divulgação, atuando como verdadeiras formadoras de opinião. Afinal, repita-se: o “29 de abril” - como ficou conhecido o episódio - estampou manchetes mundo a fora. A título de exemplo, o “The New York Times”2 e a “BBC”3 noticiaram o confronto e, de igual forma, o “El País”4 e o “Clarín”5 deram destaque ao assustador número de feridos. A importância dessa repercussão reside justamente na perspectiva externa. Para um número significativo de pessoas, o conhecimento sobre os fatos reside apenas e tão somente naquilo que é noticiado pela grande imprensa e, principalmente, no como é noticiado. A problemática que se extrai dessa abordagem se encontra no alerta que Nietzsche outrora fizera, a respeito de que “toda opinião é também um esconderijo, 1 Advogado criminalista. Graduado em Direito pelo Centro Universitário Franciscano do Paraná (UNIFAE).

Pós-graduado em Direito Penal e Processo Penal pela UniCuritiba. 2 BRAZIL: AT Least 150 Are Injured as Police Clash With Teachers. The New York Times. 29 abr. 2015. Disponível em: < http://www.nytimes.com/2015/04/30/world/americas/brazil-at-least-150-are-injured-as-police-clash-with-teachers.html?_r=1>. Acesso em 09 abr. 2016. 3 VIOLENT CLASHES at Brazil teachers’ protest in Curitiba. BBC. 30 abr. 2015. Disponível em: < http:// www.bbc.com/news/world-latin-america-32527969 >. Acesso em 09 abr. 2016. 4 ASSAD, German. Más de 200 heridos en una protesta de profesores en Brasil. El País. 30 abr. 2015. Disponível em: < http://internacional.elpais.com/internacional/2015/04/29/actualidad/1430337175_476628.html >. Acesso em 09 abr. 2016. 5 MÁS DE 200 heridos tras un violento choque entre profesores y la prefectura de Brasil. Clarín. 30 abr. 2015. Disponível em: < http://www.clarin.com/mundo/heridos-violento-profesores-prefectura-Brasil_0_1348665218.html >. Acesso em 09 abr. 2016.

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toda palavra também uma máscara”6. Recordar o “29 de abril” é também recordar que muitas das análises efetuadas logo após os acontecimentos em tela se encontram eivadas por trás de verdadeiras máscaras que escondem interesses alheios à isenção almejada por todos que buscam se informar a respeito do ocorrido. Para argumentar nesse sentido, inicialmente, importante uma breve contextualização: à época dos fatos em tela, já se constatava uma crise política que se agravaria nos meses seguintes, a exemplo da crise econômica. Tudo isso, destaca-se: meses depois de eleições para governos estaduais e federal. Da disputa eleitoral, o que muito se agravou em todo o país (e no Paraná não foi diferente) foi uma forte radicalização política, por vezes partidária, por vezes, ideológica; uma verdadeira polarização.

Para Bernhard Leubolt, professor da Universidade de Economia de Viena, na Áustria, em entrevista à Deutsche Welle Brasil7, a apertada vitória ocorrida na eleição presidencial de 2014 ocasionou uma “polarização política” que “passou então a fazer parte do dia a dia das pessoas, e não mais só da política. Esse sentimento vem sendo alimentado pelo grande escândalo de corrupção, que implica políticos de todos os principais partidos políticos”. Aparentemente, essa polarização afeta significativamente o modo como as pessoas enxergam os fatos que ocorrem no país, surgindo, por vezes, versões totalmente opostas de um único episódio. Numa breve análise de algumas repercussões sobre o fatídico episódio paranaense do dia 29 de abril de 2015, é possível verificar com clareza essa situação. Por exemplo: para Reinaldo Azevedo, conhecido colunista da revista “Veja”, a ação policial tratou de uma simples “reação” em face duma “multidão enfurecida e radicalizada”. Importante destacar a seguinte passagem de sua coluna a respeito dos fatos:

“Embora visualmente impressionantes e chocantes, as imagens do conflito, quando encaradas objetivamente, mostram apenas policiais militares reagindo a ataques de uma multidão enfurecida e radicalizada, instigada por lideranças irresponsáveis, despreocupadas com possíveis consequências graves desse tipo de confronto. A Polícia Militar foi obrigada, para cumprir uma deliberação judicial, a tomar as medidas necessárias para conter uma 6 NIETZSCHE Friedrich Wilhelm. Além do bem e do mal: prelúdio de uma filosofia do futuro. Trad. Antonio Carlos Braga. São Paulo: Lafonte, 2012, p. 209. 7 STRUCK, Jean-Philip. “Polarização se tornou parte do dia a dia no Brasil”, afirma professor austríaco. Deutsche Welle. 13 ago. 2015. Disponível em: < http://www.dw.com/pt/polariza%C3%A7%C3%A3o-se-tornou-parte-do-dia-a-dia-no-brasil-afirma-professor-austr%C3%ADaco/a-18647653 >. Acesso em 10 abr. 2016.

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turba que avançava violentamente, com o objetivo expresso de invadir a Assembleia e impedir o funcionamento de um Poder legítimo8”. A polarização política acima trabalhada é a justificativa de tal opinião. Isso porque o mencionado colunista, nessa mesma análise, efetuou a seguinte conclusão: “[...] curiosamente, onde o PT é governo, essas cenas de selvageria não costumam acontecer”. O lado oposto dessa polarização também pautou algumas análises. Também à título exemplificativo, o colunista do jornal Gazeta do Povo, Célio Martins, de maneira oposta, denominou9 o episódio de massacre, nos moldes do semelhante episódio ocorrido em 30 de agosto de 1988. Tal comparação serviu para a seguinte afirmação, igualmente política: “Por ironia, ou não, do destino político, Dias [Álvaro Dias, governador do Estado do Paraná quando do episódio de 30 de agosto de 1988, atualmente senador da República] pertence agora ao mesmo partido (PSDB)10 do governador Beto Richa, que trava embate semelhante com o professorado”. Importante salientar que, embora pessoais, ambas as visões não podem ser simplesmente ignoradas. Afinal, foram veiculadas em meios de comunicação de intensa circulação (versões on-line da revista Veja e do jornal Gazeta do Povo, respectivamente, que ganham ainda maior propulsão diante da disponibilização via internet), e bem exemplificam o que aqui se busca demonstrar. Inegável que tais análises (que foram comuns nos dias que se seguiram ao ocorrido) ocasionam forte influência ao público (perspectiva externa); influência essa que, porém, nem sempre é isenta como se espera. Diga-se no parecer evidente, que a total isenção – em toda e qualquer análise – é impossível. Dentre outros estudos e pensamentos que reforçam essa impossibilidade, tem-se o que Bakhtin já afirmara: “A língua, no seu uso prático, é inseparável de seu conteúdo ideológico ou relativo à vida”11. Entretanto, essa polarização que aqui se aventa é desproporcional, aparentando ser, em verdade, intencional - e, principalmente, prejudicial. Aqui reside, pois, a necessária atenção a (muitas das) análises efetuadas sobre 8 AZEVEDO, Reinaldo. O confronto no Paraná foi meticulosamente planejado por extremistas e por

profissionais da baderna. 30 abr. 2015. Disponível em: . Acesso em mar. 2016. 9 MARTINS, Célio. Massacre de professores em 1988 se repete. 29 abr. 2015. Gazeta do Povo. Disponível em: < http://www.gazetadopovo.com.br/blogs/certas-palavras/confronto-repete-massacre-de-professoresde-1988/ >. Acesso em mar. 2016. 10 Importa informar que, atualmente, o senador Álvaro Dias é filiado ao Partido Verde (PV). 11 BAKHTIN, Mikhail M. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais de método sociológico da linguagem. Trad. Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira. 16. Ed. São Paulo: Hucitec, p. 99.

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o “29 de abril”, pois, da perspectiva externa, a única maneira de se compreender o ocorrido é por meio da linguagem, a qual poderá se mostrar (exageradamente) tendenciosa e inegavelmente infrutífera. Isso porque, de algumas dessas linguagens, ao invés de se extrair um consentimento quanto às lamentáveis consequências do ocorrido, ou ao menos um início de debate voltado à identificação das verdadeiras causas (políticas ou não) do histórico acontecimento, perpetuaram-se discussões vazias sustentadas em um ódio injustificável pelo “outro” político. Diversas análises, como aquelas supramencionadas, limitaram-se à questão exclusivamente política, numa cegueira polarizada. Essa polarização política, porém, impede uma análise dos fatos como realmente deveria ocorrer. Não se quer afirmar que a questão política não pode ser aventada. Longe disso. A crítica reside na limitação do debate num único foco, principalmente quando essa limitação impede o debate – esse sim essencial para se evitar novas tragédias. Nessa toada, faz-se possível recordar os ensinamentos de Habermas, para o qual “Os processos de entendimento mútuo visam um acordo que depende do assentimento racionalmente motivado ao conteúdo de um proferimento”12. Esse “entendimento mútuo” compõe o agir comunicativo do filósofo alemão, no qual: “...os atores tratam de harmonizar internamente seus planos de ação e de só perseguir suas respectivas metas sob a condição de um acordo existente ou a e negociar sobre a situação e as consequências esperadas13”. O presente ensaio não busca esgotar as complexas discussões a respeito da filosofia da linguagem e do agir comunicativo de Jürgen Habermas (principalmente aquelas que podem advir da confrontação de tais filosofias com as análises do 29 de abril de 2015, especificamente). As limitações do autor e do espaço proposto são impedimentos para tanto. Porém, diante dessas breves menções, faz-se possível considerar os prejuízos da polarização política em debates como aqueles que compreendem as causas e consequências do “29 de abril”. Numa polarização tão acirrada, como almejar o entendimento mútuo voltado a combater fatos como aqueles desenrolados na Praça Nossa Senhora da Salete? O presente ensaio constitui – sem a intenção de esgotar o tema e suas possibilidades, repita-se – uma crítica semelhante àquela elaborada por Pat Carlen no 12 HABERMAS, Jürgen. Consciência moral e agir comunicativo. Trad. Guido A. de Almeida. 2. Ed. Rio

de Janeiro: 2003, p. 165. 13 Op. Cit.

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âmbito da criminologia14, oportunidade em que destacou que “o evangelismo procura adeptos a uma perspectiva com base retórica oposicionista em vez de uma análise criativa”15. O que a autora denomina de “evangelização”, nós mencionamos como “radicalização” e “polarização”. Ainda para a criminóloga inglesa, os praticantes desse evangelismo (em especial nas ciências sociais, diga-se) “têm uma necessidade de amarrar latinhas promocionais às suas traseiras”16. É o que ocorreu em muitas das análises do “29 de abril”, ao se utilizarem do trágico ocorrido para, antes de tudo, levantar uma bandeira política, ignorando os fatos e os necessários debates a se travar a partir deles. Aqueles que preferem o “evangelismo” político ignoram as tão imprescindíveis críticas apartidárias, mas não de menor relevância. Cita-se aqui, como exemplo, a excelente abordagem realizada por Priscilla Placha Sá sobre o “uso político da polícia”, para além da crítica meramente partidária, da qual se faz necessário o seguinte (e fundamental) destaque: “O uso da polícia política não parece ser, entretanto, estratégia de um determinado partido ou governante. Embora, convenhase, seja possível notar algumas peculiaridades, especialmente nos últimos acontecimentos. Em meio ao cenário de guerra, que vitimava muita gente, particularmente professoras e professores, sob um discurso articulado e estético de que a polícia agia por conta de “baderneiros” (mesmo as dezenas de vídeos mostrarem que diante da polícia de choque, os manifestantes saíam correndo; pessoas caídas e feridas não podiam sequer ser socorridas) e os “comunistas de hoje” chamados de “black blocks”, viam-se outros atores dos mais diversos espectros políticos, criticando hoje o que se fez ontem ou o que se fará amanhã. O uso político da polícia se multiplicava diante dos olhos 14 CARLEN, Pat. Contra o evangelismo na criminologia acadêmica: pela criminologia como uma arte

científica. Trad. Leandro Ayres França. In: Revista Justiça e Sistema Criminal, Curitiba – PR, v. 5, n. 9, p. 101-118, jul./dez., 2013.

15 Op. cit., p. 109. 16 Op. cit., p. 108.

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da população que via estarrecida – em meio a uma literal e surreal cortina de fumaça –pessoas sangrando e correndo no Centro Cívico17”. É essa espécie de análise que precisa acontecer e ser incansavelmente compartilhada e debatida, motivo pelo qual o presente ensaio não passa de um (breve) alerta – diretamente de uma perspectiva externa aos acontecimentos – àquelas análises eivadas de ódio, mas carentes de conteúdo. Não basta recordar os eventos de “29 de abril” se essa recordação se limitar a um instrumento político de exaltação ou oposição meramente políticos, que nos cegue quanto aos verdadeiros problemas (como é a forma de utilização do poder de polícia, que se mostra conveniente a todos e a cada um dos governantes, eleição após eleição). Em contraponto com o evangelismo acima mencionado, estamos com Eliane Brum: “Quando a política demanda adesão pela fé, é preciso ter muito cuidado”18.

Referências Bibliográficas ASSAD, German. Más de 200 heridos en una protesta de profesores en Brasil. El País. 30 abr. 2015. Disponível em: < http://internacional.elpais.com/internacional/2015/04/29/ actualidad/1430337175_476628.html >. Acesso em 09 abr. 2016. AZEVEDO, Reinaldo. O confronto no Paraná foi meticulosamente planejado por extremistas e por profissionais da baderna. Veja. 30 abr. 2015. Disponível em: . Acesso em mar. 2016. BAKHTIN, Mikhail M. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais de método sociológico da linguagem. Trad. Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira. 16. Ed. São Paulo: Hucitec. BRAZIL: AT Least 150 Are Injured as Police Clash With Teachers. The New York Times. 29 abr. 2015. Disponível em: < http://www.nytimes.com/2015/04/30/world/ 17 PLACHA SÁ, Priscilla. Massacre de 29 de abril de 2015: Exceção no Estado do Paraná ou Paraná como

estado de Exceção? Empório do Direito. 03 maio 2015. Disponível em: < http://emporiododireito.com.br/ massacre-de-29-de-abril-de-2015-excecao-no-estado-do-parana-ou-parana-como-estado-de-excecao-por-priscilla-placha-sa/>. Acesso em 10 abr. 2016. Importante salientar que o referido texto, com algumas modificações, encontra-se publicado também na presente coletânea. 18 BRUM, Eliane. Na política, mesmo os crentes precisam ser ateus. El País. 14 mar. de 2016. Disponível em: < http://brasil.elpais.com/brasil/2016/03/14/opinion/1457966204_346156.html >. Acesso em 10 abr. 2016.

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americas/brazil-at-least-150-are-injured-as-police-clash-with-teachers.html?_r=1>. Acesso em 09 abr. 2016. BRUM, Eliane. Na política, mesmo os crentes precisam ser ateus. El País. 14 mar. 2016. Disponível em: . Acesso em 10 abr. 2016. CARLEN, Pat. Contra o evangelismo na criminologia acadêmica: pela criminologia como uma arte científica. Trad. Leandro Ayres França. In: Revista Justiça e Sistema Criminal, Curitiba – PR, v. 5, n. 9, p. 101-118, jul./dez., 2013. HABERMAS, Jürgen. Consciência moral e agir comunicativo. Trad. Guido A. de Almeida. 2. Ed. Rio de Janeiro: 2003. MARTINS, Célio. Massacre de professores em 1988 se repete. Gazeta do Povo. 29 abr. 2015. Disponível em: < http://www.gazetadopovo.com.br/blogs/certas-palavras/ confronto-repete-massacre-de-professores-de-1988/ >. Acesso em mar. 2016. MÁS DE 200 heridos tras un violento choque entre profesores y la prefectura de Brasil. Clarín. 30 abr. 2015. Disponível em: < http://www.clarin.com/mundo/ heridos-violento-profesores-prefectura-Brasil_0_1348665218.html >. Acesso em 09 abr. 2016. NIETZSCHE Friedrich Wilhelm. Além do bem e do mal: prelúdio de uma filosofia do futuro. Trad. Antonio Carlos Braga. São Paulo: Lafonte, 2012. PLACHA SÁ, Priscilla. Massacre de 29 de abril de 2015: Exceção no Estado do Paraná ou Paraná como estado de Exceção? Empório do Direito. 03 maio 2015. Disponível em: < http://emporiododireito.com.br/massacre-de-29-de-abril-de-2015excecao-no-estado-do-parana-ou-parana-como-estado-de-excecao-por-priscillaplacha-sa/>. Acesso em 10 abr. 2016. STRUCK, Jean-Philip. “Polarização se tornou parte do dia a dia no Brasil”, afirma professor austríaco. Deutsche Welle. 13 ago. 2015. Disponível em: < http://www. dw.com/pt/polariza%C3%A7%C3%A3o-se-tornou-parte-do-dia-a-dia-no-brasilafirma-professor-austr%C3%ADaco/a-18647653 >. Acesso em 10 abr. 2016. VIOLENT CLASHES at Brazil teachers’ protest in Curitiba. BBC. 30 abr. 2015. Disponível em: < http://www.bbc.com/news/world-latin-america-32527969 >. Acesso em 09 abr. 2016.

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DO GOVERNO À GOVERNANÇA: A DIFÍCIL CONCRETIZAÇÃO DA MUDANÇA DOS TEMPOS Por Alexey Choi Caruncho1

Na atualidade, pode-se afirmar que, tanto no âmbito das ciências políticas quanto jurídicas, existe um certo consenso de que as formas de elaboração e de implementação de direitos se transformaram, sensivelmente, mesmo quando observadas sob a perspectiva de seu passado mais recente. Desde a década de 90 do século passado, estas formas de regulação estariam associadas à uma proliferação e extensão de novas modalidades de governança, dentro de um processo que tem gerado a utilização de formas de governar distintas ao governo, ensejando um protagonismo diferenciado por parte de novos atores e de novos critérios de legitimação da ação política, interferindo, consequentemente, no próprio direito. De modo geral, o que tem sido intitulado como governança está relacionado à uma perda da centralidade do Estado e a fragmentação e disseminação dos poderes normativos e regulatórios que caracterizavam a tradicional estrutura políticoinstitucional. O conceito de governança, com isto, acaba referindo-se a um novo estilo de governo, por assim dizer, distinto do modelo de regulação estatal ostensivamente hierarquizado, já que caracterizado, necessariamente, por uma interação entre autores autônomos e de redes de organizações2. Esta nova realidade gera uma previsível incapacidade do modelo do Estado moderno, que passa a apresentar-se deslegitimado e obsoleto para organizar a tomada de decisões nas democracias representativas. O que se assiste, de forma cada vez mais intensa, parece ser uma aproximação das fronteiras entre o público e o privado, não necessariamente sob uma perspectiva pejorativa do público agir como se privado 1 O autor é doutorando em Ciências Jurídicas e Políticas pela Universidade Pablo de Olavide (Sevilha/Espa-

nha) e mestre em Criminologia e Ciências Forenses pela mesma Instituição e em Ciências Sociais Aplicadas pela Universidade Estadual de Ponta Grossa/PR. É especialista em Direito Penal Econômico e Empresarial pela Universidade de Castilla-La Mancha (Toledo/Espanha) e em Direito Penal Econômico e Europeu pela Universidade de Coimbra (Coimbra/Portugal). É Promotor de Justiça no Estado do Paraná e Professor da Fundação Escola do Ministério Público do Estado do Paraná (FEMPAR); [email protected]. 2 Já é extensa a doutrina que parte deste ponto de vista, podendo a título exemplificativo serem citados os trabalhos de RHODES, R. A. W. “The New Governance: Governing whithout government”, Political Studies, n. 44, 1996; RHODES, R. A. W. Understanding governance: Policy networks, governance reflexivity and accountabiity, Open University Press, Buckingham, 1996; ROSENAU, J. e CZEMPIEL, E. O. Governance without Government, Cambridge University Press, Cambridge, 1992; KOOIMAN, J. “Governance and governability: Using complexity, dynamics and diversity”, em KOOIMAN, J. (ed.) Modern Governance. New government-society interactions, Sage Publications, London-Newbury Park-New Delhi, 1993; MAYNTZ, R. “New challenges to governance theory”, Florence, European University Institute, Jean Monnet Chair Paper RSC, n. 50, 1998; MAYNTZ, R., “El Estado y la sociedad civil en la governanza moderna”, Revista del CLAD Reforma y Democracia, n. 21, 2001.

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fosse, mas sob a ótica de uma maior interferência por parte do privado num âmbito que, originariamente, era tão só público. Este movimento privilegia, justamente, aqueles mecanismos de governo que prescindem da autoridade estatal, mesmo naquelas searas em que o Estado costumava mostrar-se como o único protagonista. Figura como um bom exemplo o que se assiste na resolução de conflitos sociais, em que, também por esta razão, nota-se um contínuo incremento da utilização de vias de consenso, mediação e arbitragem. É o privado, enfim, assumindo um espaço originariamente público. Neste cenário, passam a surgir algumas estruturas de interação múltipla, onde as redes e os conselhos deliberativos parecem descrever mais adequadamente o mundo das decisões. O poder, muito mais instável e volátil, deixa de ser imposto e passa a decorrer de um processo de contínua e incessante negociação. O que se tem, enfim, são efetivamente novos esquemas de governo, baseados agora numa idéia de deliberação, de intercâmbio e de corresponsabilidade, apartandose dos tradicionais princípios da delegação e da hierarquia. O enfoque, a partir daí, passa a ser mais descentralizado e consensual, permitindo a coordenação dos múltiplos níveis de governo. Um enfoque que, neste sentido, termina por outorgar um grande papel a atores não estatais que assumem funções administrativas, reguladoras, de gestão e de mediação3. Este é um contexto macro que também explica, ao menos em parte, o que se assistiu no evento tratado na presente obra. Em 29 de abril de 2015, o Centro Cívico da Cidade de Curitiba/PR evidenciou, uma vez mais, um choque entre o antigo e o novo, em que parte dos atores insiste em ignorar, deliberadamente ou não, a necessária mudança de percepção para com o uso do outrora centralizado poder público. De fato, dentre as várias possibilidades de análise que aquele fatídico evento dá ensejo, a questão afeta à percepção do que se compreende por representação política não pode passar despercebida. Afinal, verificar que todo o conflito teve por cenário, literalmente, as portas da Casa do Povo sugere, no mínimo, uma incoerência na relação que deveria existir entre os representantes e os representados. Soa como risível crer que, dentro de um Estado que pretenda intitular-se, constitucionalmente, como democrático, pudessem estar presentes circunstâncias que justificariam que os representados, no contexto atual, poderiam ser impedidos de acompanhar os trabalhos de seus representantes. Assim compreender o ocorrido seria crer que os mandatos legislativos, por si só, seriam dotados de uma autorização para decisões arbitrárias, sob a chancela de uma suposta “liberdade de decisão” daqueles representantes. Seria ater-se a uma compreensão de representantes do povo como pessoas diferenciadas, a quem teria sido entregue um poder soberano indelével. Sob esta perspectiva, o que se vê é que o ocorrido também deu mostras de que o poder público, ao menos dentro da ótica de uma certa parcela dos tradicionais detentores do poder, ainda persiste sendo visto como algo que diz respeito, única 3 MERCADO PACHECO, P. “Experimentalismo democrático, nuevas formas de regulación y legitimación del derecho”. Anales de la Cátedra Francisco Suárez, n. 46, p. 37-68, 2012.

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e exclusivamente, aos próprios interesses individuais dos “escolhidos”. Conceitos de democracia participativa, de transparência, de impessoalidade no trato da coisa pública, dentre outros tantos que poderiam ser facilmente lembrados, num tal cenário, acabam se mostrando frágeis instrumentos de retórica, que se utiliza para entregar uma aparência de legitimação no processo de tomada de decisões estatais. Embora o evento tenha envolvido, essencialmente, os Poderes Executivo e Legislativo, bem se sabe que, não raro, ostensivamente ou não, se assiste igual proceder independentemente da esfera de poder público envolvida. O cenário, enfim, mais do que de uma democracia substantiva consolidada, é de um intento de democracia participativa em gestação. Uma gestação que, entretanto, não parece ser de todo desejada por, ao menos, uma das partes envolvidas. Parece desnecessário ir além para notar o vínculo do ocorrido com um equívoco a respeito da mudança na forma de governar referida ao início deste texto. Com efeito, embora não se desconheça a extensão que o termo governança vem ganhando já há algum tempo dentro das ciências políticas4, o que interessa destacar aqui diz respeito, única e exclusivamente, aos seus reflexos na seara da legitimação democrática da produção legislativa e de implementação de direitos. É que estas novas formas de regulação da governança estão diretamente relacionadas com as teorias de uma estrutura flexível do direito, que passa a fazer uso da expressão anglo-saxã soft law para referir-se à capacidade de auto-regulação de uma esfera privada articulada mediante novos e sutis vínculos institucionais com a esfera pública. Neste novo contexto, o direito passa a abdicar progressivamente do seu caráter normativo, abandonando uma pretensão de trazer uma regulação direta, para limitar-se a estabelecer premissas e procedimentos para a tomada de decisões, fomentando negociações e adaptando-se à casuística da situação. Daí a importância que passa a deter a existência de toda uma série de novos instrumentos normativos e técnicas de regulação jurídica distintos das formas e instrumentos de regulação tradicional5. E é a partir daí que devem ganhar diferenciado destaque as vantagens da governança em comparação ao governo, tornando-se a primeira preferível dentro da conjuntura atual, precisamente, por se mostrar como mais participativa e democrática. Em verdade, a noção de governança passa a ser efetivamente mais persuasiva nas práticas democráticas por pressupor uma menor hierarquia, uma participação mais horizontal, uma cooperação entre os múltiplos atores na tomada de decisões, uma adoção de formas de coordenação descentralizada e, consequentemente, uma mais intensa obrigação na prestação de contas por parte de todos os envolvidos. Eficácia, democracia, desregulação, participação e transparência acabam figurando como a matriz básica do enfoque da governança. Enseja, por isto, 4 Neste sentido, confira-se MAYNTZ, R., “El Estado y la sociedad civil en la governanza moderna”, Revista del CLAD Reforma y Democracia, n. 21, 2001. 5 MERCADO PACHECO, P. “Experimentalismo democrático, nuevas formas de regulación y legitimación del derecho”. Anales de la Cátedra Francisco Suárez, n. 46, p. 37-68, 2012.

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oportunidades tanto para o fortalecimento da eficácia do direito e das políticas públicas, como à concretização democrática do modelo de representação política, ainda preso aos estreitos moldes da soberania estatal. Uma soberania que, bem se sabe, de há muito vem se fragmentando6. Daí servir a governança como uma resposta à própria crise das democracias ocidentais, presente desde a década de 70 do século passado, diagnosticada como uma crise de legitimação7. Democracias, enfim, que ainda se apresentam presas aos marcos constitucionais e aos limites da soberania dos Estados. Fato é que, tanto sob a chamada perspectiva descritiva quanto sob a normativa, esta concepção de governança trouxe um verdadeiro desafio para este contexto de transição8. No plano descritivo, a governança passou a exigir a prestação de contas de como de fato se produz o direito nos nossos dias, das novas modalidades e formas de produção normativa, dos reais caminhos pelos quais passa o processo legislativo, de quem são os novos poderes normativos determinantes para a regulação jurídica e de quais são as racionalidades que inserem os novos cenários institucionais para governar. No plano normativo, por sua vez, deve-se avaliar se estes novos mecanismos institucionais são efetivamente capazes de satisfazer as demandas de democratização dos processos de tomada de decisões, em todos os níveis e esferas. O desafio, com isto, passa a ser pela adoção de uma incessante aferição da forma de governar, continuamente verificando se ela implica ou não em mais democracia e, consequentemente, num direito mais participativo, deliberativo e, portanto, legítimo. É desnecessário um maior aprofundamento para que se perceba que o enfoque da governança, neste ponto, sugere uma série de indagações relacionadas diretamente ao problema da legitimação democrática do direito criado no seio destas novas experiências reguladoras. Afinal, pense-se em como se pode adaptar os processos regulatórios à fragmentação, à complexidade, à incerteza que caracterizam a tomada de decisões, dotando-os de uns critérios de legitimidade democrática que não podem permanecer enraizados na soberania dos Estados-nação e de seus modelos de democracias representativas? Como conjugar uma legitimidade de origem baseada num esquema de democracia representativa com a abertura para um discurso jurídico em que o conhecimento experto e o conhecimento social prático devem conviver no processo de produção jurídica e na tomada de decisões? Como evitar que os espaços de deliberações sociais, por força de sua previsível fragilidade, não sejam utilizados como mera massa de manobra, entregue oportunamente aos tradicionais detentores 6 Por todos, confira-se FERRAJOLI, L. A soberania no mundo moderno: Nascimento e crise do Estado

nacional. São Paulo: Martins Fontes, 2007. 7 HABERMAS, J. Problemas de legitimación en el capitalismo tardío. Buenos Aires: Amorrortu, 1999 (ed. orig. 1973); OFFE, C. Contradicciones en el estado del bienestar. Madrid: Alianza, 1990; Do mesmo, Las nuevas democracias: transición política y renovación institucional en los países postcomunistas. Barcelona: Hacer, 2004. 8 MERCADO PACHECO, P. “Experimentalismo democrático, nuevas formas de regulación y legitimación del derecho”. Anales de la Cátedra Francisco Suárez, n. 46, p. 37-68, 2012.

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do poder público da ocasião? Por mais que estas questões assumam contornos complexos, cujo enfrentamento certamente é estranho a este espaço, são elas indicativas de que se vivencia uma conjuntura de transição também no tocante ao que se deve entender por representação política. Tais indagações, mesmo que dotadas de respostas em contínua elaboração, nos auxiliam ainda na compreensão, em certa medida, do que ocorreu naquele 29 de abril. Mesmo que este cenário não legitime o posicionamento adotado por quaisquer dos poderes constituídos envolvidos, traz uma parcial explicação de que a mudança de concepção governo-governança ainda não foi de todo absorvida por boa parte, senão a maior, dos integrantes dos poderes estatais. Seja como for, perdeu-se importante oportunidade de demonstrar que este contexto de transição de legitimação democrática já teria iniciado. Não se aproveitou a ocasião para evidenciar um arremedo de permeabilidade deste novo discurso na realidade político-institucional paranaense. Tal poderia ter ocorrido naquela data, bastando para tanto que a porta da Casa de Leis tivesse permanecido aberta aos representados. Afinal, devem ser eles tidos como os principais protagonistas dentro da conjuntura atual.

Referências bibliográficas FERRAJOLI, L. A soberania no mundo moderno: Nascimento e crise do Estado nacional. São Paulo: Martins Fontes, 2007. HABERMAS, J. Problemas de legitimación en el capitalismo tardío. Buenos Aires: Amorrortu, 1999 (ed. orig. 1973); OFFE, C. Contradicciones en el estado del bienestar. Madrid: Alianza, 1990. _____________. Las nuevas democracias: transición política y renovación institucional en los países postcomunistas. Barcelona: Hacer, 2004. KOOIMAN, J. “Governance and governability: Using complexity, dynamics and diversity”, em KOOIMAN, J. (ed.) Modern Governance. New government-society interactions, Sage Publications, London-Newbury Park-New Delhi, 1993. MAYNTZ, R. “New challenges to governance theory”, Florence, European University Institute, Jean Monnet Chair Paper RSC, n. 50, 1998. _____________ “El Estado y la sociedad civil en la governanza moderna”, Revista del CLAD Reforma y Democracia, n. 21, 2001.

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MERCADO PACHECO, P. “Experimentalismo democrático, nuevas formas de regulación y legitimación del derecho”. Anales de la Cátedra Francisco Suárez, n. 46, 2012. RHODES, R. A. W. “The New Governance: Governing whithout government”, Political Studies, n. 44, 1996. ________________. Understanding governance: Policy networks, governance reflexivity and accountabiity, Open University Press, Buckingham, 1996; ROSENAU, J. e CZEMPIEL, E. O. Governance without Government, Cambridge University Press, Cambridge, 1992.

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PRIMEIRO FORAM OS MEUS PROFESSORES, MAS NÃO ME IMPORTEI1 Por Gustavo Noronha de Ávila2 e Vera M. Guilherme 3

A partir do massacre ocorrido no Centro Cívico de Curitiba, entendemos ser vital expor os intestinos do que o Estado é capaz de fazer para garantir a “paz social”, a “ordem pública”, a “liberdade de votos” e outras tantas falácias que servem para legitimar suas práticas. Para garantir a possibilidade de governar, intimidar os “inimigos” é essencial. E, neste caso, são os servidores estaduais, em especial os professores do Paraná. Aquele Estado viveu, no dia 29 de Abril de 2015, um dos mais tristes capítulos de sua história recente. 213 professores ficaram feridos ao tentarem fazer aquilo que deveria ser absolutamente natural em uma democracia: acompanhar, na Assembléia Legislativa do Estado, a votação de um Projeto de Lei no qual tinham todo interesse, pois tratava da Previdência para a qual contribuíram durante muitos anos. Diversos foram os artifícios lançados pelo (des)governador Richa para impedir que os professores sequer tivessem acesso à Assembleia Legislativa. Contou com o apoio do Judiciário, que vedava, com o emprego da Polícia Militar, a entrada de manifestantes nas dependências da Casa do “Povo”, além do silêncio de vários setores (ditos) democráticos. É necessário, nesse contexto, interrogarmos: qual é o papel do Direito? Os dois lados, que não deveriam ser opostos, recorreram ao Poder Judiciário para preservarem seus interesses. Houve a concessão de um interdito proibitório, em favor do governo, que limitaria o acesso à Assembléia Legislativa, sob a alegação de uma grande possibilidade de “invasão”. O cerco militar passou a ser justificado, então, como simples cumprimento à ordem judicial. Por outro lado, coletivos impetraram Habeas Corpus preventivo, com a intenção de fazer valer a ideia de que a “casa do povo” só deveria possuir sentido com o povo ali dentro. A ordem foi concedida, porém, a seguir, derrubada para limitar 1 Texto originalmente publicado no Portal Justificando em 30 de abril de 2015: http://justificando.

com/2015/04/30/primeiro-foram-os-meus-professores-mas-nao-me-importei/ 2 Doutor e Mestre em Ciências Criminais pela PUCRS. Professor do Mestrado em Ciência Jurídica do Unicesumar. Professor de Direito Penal e Criminologia das Faculdades de Direito da Universidade Estadual de Maringá (UEM) e da Unicesumar. Autor da obra “Falsas Memórias e Sistema Penal: A Prova Testemunhal em Xeque”, publicada pela Editora Lumen Juris (RJ). 3 Bacharel em Pedagogia pela PUCRJ. Bacharel em Direito pelo Centro Universitário Ritter dos Reis. Mestre em Ciências Criminais na PUCRS. Bolsista da CAPES. Pesquisadora no Presídio Central de Porto Alegre. Autora da obra “Quem tem medo do lobo mau? Por uma leitura abolicionista do tráfico de drogas”, publicada pela Editora Lumen Juris (RJ).

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o acesso à votação do dia 29 de Abril apenas aos dirigentes sindicais, que rejeitaram a possibilidade. Ou seja, enquanto o Direito servir como instrumento de simples manutenção da ordem posta, será mera forma de realização, manutenção, perpetuação de (podres) poderes. Quando for (se é que seria possível) instrumento de subversão às desordens, terá atingido seu maior objetivo e horizonte, a liberdade. Richa arregimentou policiais militares do interior, a maioria ainda no início de suas carreiras, que viajaram por mais de 6 horas de ônibus em pé, sem receber diárias sequer para pagarem seus hotéis, de forma a aumentar o número de “combatentes” na guerra que ele mesmo declarou. E garantiu esse espetáculo grotesco a ser apreciado por seus assessores, conforme vídeo divulgado ainda no dia 29; ali assessores comemoram as agressões dos policiais aos professores, com risadas e gritos orgásticos. E, importante ressalvar, contou com o apoio de 31 deputados estaduais a sua forma de “fazer política”. Contou, ainda, com o silêncio do governo federal. Uma comissão do Senado chegou ao estado para acompanhar a questão apenas três dias depois dos revoltantes acontecimentos. Foucault nos ensina, com a noção de ilegalismos, que o Estado se beneficia das regras postas por ele próprio. Por um lado, não as cumpre. Por outro, exige que os demais o façam. As opressões e tiranias podem também existir em uma democracia e mais uma prova foi dada ontem, em Curitiba. Porém, desde Hobbes, conhecemos a noção de direito de resistência, ou seja, a possibilidade de o súdito se insurgir contra o soberano quando este descumpre as regras postas por ele próprio. Assim foi reeleito Beto Richa. Garantiu que o estado do Paraná estava prosperando, que as contas estavam em ordem, que sua administração primava pela eficiência. A maioria de seus eleitores, movida por uma repulsa imensa às práticas políticas de sua principal adversária no processo eleitoral, acreditou no que havia sido afirmado – e, diga-se, o mesmo fenômeno ocorreu a nível federal, com eleições polarizadas a partir dessa mesma lógica. O resultado no PR foi nefasto: a máscara caiu, a responsabilidade não foi assumida pelo desgovernante, e a conta deverá ser paga, inicialmente, pelos servidores que, apesar de contribuírem durante anos para o Paranaprevidência, viverão um futuro cada vez mais difícil. Aos que pensam “mas não sou servidor, eles que se danem”, cabe ressaltar que a fome institucional deste governo não tende a parar por aí. Em algum momento isso vai explodir e respingar em todos os que vivem no Paraná, seja através de serviços públicos cada vez piores em termos de qualidade ou, ainda, através de tributação. A fome pelo poder é proporcional, diretamente proporcional, ao exercício da violência em suas múltiplas formas. Isto acaba se materializando nos microterrorismos, diários, estatais. Para encerrarmos, deixamos com o leitor, que ainda pensa não ter nada a ver com isso, pois o caso ocorreu no Paraná (não sou morador do Estado), com professores (eu não sou professor) em greve (eu não faço greve), o poema Intertexto de Brecht.

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Que ele possa ecoar fundo e nos trazer de volta um pouco da liberdade e capacidade de indignação há muito perdidos: “Primeiro levaram os negros Mas não me importei com isso Eu não era negro Em seguida levaram alguns operários Mas não me importei com isso Eu também não era operário Depois prenderam os miseráveis Mas não me importei com isso Porque eu não sou miserável Depois agarraram uns desempregados Mas como tenho meu emprego Também não me importei Agora estão me levando Mas já é tarde. Como eu não me importei com ninguém Ninguém se importa comigo.” (Intertexto, Bertolt Brecht) que estava implicada como ciência da política, seu estudo estava centrado

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AS ATROCIDADES DAS PESSOAS COMUNS

Por Leandro Ayres França1

When I am king, you will be first against the wall. 1. Toda a perfumaria propagandeada pela Prefeitura de Curitiba – que alçou a capital do estado a um modelo de cidade civilizada (presumivelmente cercada por uma barbárie tropical), limpa (de uma assepsia que se traduz numa cultura excludente) e de estilo europeu (possível síndrome do colonizado) – não foi suficiente para atribuir a mesma ilusão à execução da segurança pública. Quando se trata das atividades das forças de segurança na Capital, é bastante evidente que a Polícia Militar do Paraná possui um histórico de subordinação pretoriana às elites políticas do Estado, de parca qualificação funcional e de truculência contra a população. Sempre houve algo de podre na “República de Curitiba”; isso não é novidade – e, para sermos honestos, tampouco diverge do cenário nacional. Sob certa e já conhecida perspectiva, uma possível explicação da violência policial manifesta no dia 29 de abril provém da constatação de que uma instituição militar de controle e repressão, historicamente voltada às suas atividades por meio de conflitos bélicos internos, concede espaço a abusos de seus agentes. Nos recentes anos, no Brasil, policiais foram responsáveis por uma morte a cada três horas, o que resulta numa média de três mil pessoas mortas por ano, em decorrência de direta intervenção policial (a razão entre mortes de civis e mortes de policiais militares durante o serviço é de mais de 20 x 1, desequilíbrio que exclui o argumento de igual vulnerabilidade em confrontos armados e evidencia um uso excessivo da força letal pelos agentes estatais). Somente no Estado do Paraná, as mortes causadas por policiais militares em serviço quase alcançam duas centenas de pessoas anualmente.2 Ainda assim, há uma expectativa compartilhada nos círculos acadêmicos de que boa parte dos policiais que atuaram na operação de 29 de abril não quiseram machucar aquelas pessoas que protestavam. Porque existe uma aversão cultural à 1 Leandro Ayres França é pesquisador, professor, escritor e tradutor. Doutorando e Mestre em Ciências Cri-

minais pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Professor de Direito Penal da Universidade Estácio - FARGS, campus Porto Alegre. Coordenador do Grupo de Estudos em Criminologias Contemporâneas e pesquisador do Grupo de Pesquisa Modernas Tendências do Sistema Criminal. Já (de)morou em Curitiba; atualmente, reside em Porto Alegre (talvez, por isso, não tenha sido ferido ou ferido alguém no dia 29 de abril de 2015). – O autor agradece as revisões e os comentários de Clara Masiero, Guilherme Dornelles e Rodrigo Cavagnari. 2 Dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2015. Os valores são subestimados porque alguns estados deixam de apresentar informações, omitem-nas ou as corrigem, após a compilação de relatórios, elevando os números

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agressão explícita. Porque, em especial, essa aversão se intensifica quando ela se relaciona à possibilidade de atingir pessoas das quais emana um tipo de imunidade derivada do respeito que tradicionalmente se atribui a certos ofícios; em palavras claras: não se machuca um professor. A própria ideia de vê-los agredidos nos parece hedionda. (E que quadro trágico imaginarmos a possibilidade de um dos professores ter sido ferido por um policial que, anos antes, foi aluno seu, numa moderna versão do encontro desafortunado de Laio e Édipo!) De fato, se perguntássemos, reservada e individualmente, a cada um dos 1682 policiais militares que participaram da Operação Centro Cívico se eles, no exercício de suas funções, desejaram lesionar os professores que se manifestavam, é bem provável que uma boa parte deles – reconhecendo ser impossível mensurar o número exato dessas respostas – responda que isso não fora prévia e intencionalmente planejado. O juiz que analisou o caso na esfera militar reconheceu isso: “seria desarrazoado acreditar que qualquer policial militar tenha assumido a escala de serviço com o propósito deliberado e nefasto de ofender a integridade física de professores”. E, como fundamento à sua decisão de determinar o arquivamento do inquérito policial militar, justificou: “Nenhum militar estadual empregado na operação era voluntário, portanto, estavam no local em cumprimento do dever (...) não caberia aos policiais militares escalados em serviço transigir ou negociar acerca das ordens recebidas”. Sim, eles apenas cumpriam ordens. 2. Talvez, num futuro qualquer, a sociedade passe a prestar mais atenção aos estudos sobre a fenomenologia do cumprimento de ordens. E talvez, para compreender como isso gerou tanta violência, estudiosos decidam reconstituir uma genealogia que nos envolva. Diante dessa eventualidade, devemos ter vergonha. Uma vez que na estrita obediência não há espaço nem tempo para complexidades subjetivas, seremos vistos, em retrospectiva, como broncos de pensamento, bestas rasas ou autômatos, tal como imaginamos os homens dos tempos antigos ou os soldados, armados ou não, que empreenderam cruzadas, ergueram muros e produziram mortos. O que aqui se propõe, portanto, não é dizer algo sobre o dia 29 de abril de 2015, mas analisar o que esse evento tem a dizer sobre a sociedade e os indivíduos contemporâneos. Uma primeira – e urgente – questão se impõe: O que o cumprimento de ordens por centenas de policias pode nos dizer sobre o mundo que compartilhamos? O acontecido pode ser interpretado como um desvio do padrão. Mas, além disso, sugiro que o evento não foi uma antítese do modelo de controle social que implementamos e aceitamos. O conflito deflagrado no Centro Cívico foi a expressão de uma potencialidade, de uma virtualidade – o que ainda não havia se revelado das muitas realidades latentes. 3. O evento expõe que um dos aspectos sombrios da modernidade foi a produção social do comportamento desumano por meio de mecanismos, tão evidentes e ainda assim invisíveis, que produzem a indiferença moral e, por consequência, a violência. Bauman (Modernidade e Holocausto) explicou como algumas condições, isoladas ou em conjunto, corroem inibições morais contra atrocidades. Uma das características

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da sociedade moderna, por exemplo, são as grandes distâncias entre intenções e realizações práticas, com o espaço entre esses momentos preenchido por uma mediação da ação, caracterizada pela infinidade de atos insignificantes e atores inconsequentes – o que é muito evidente na estrutura burocrática, na divisão funcional do trabalho e na cadeia hierárquica de comando. O aumento da distância física e/ou psíquica entre o ato e suas consequências anula todo conflito entre o padrão pessoal da decência moral e a imoralidade das consequências sociais do ato. Produz-se, socialmente, a invisibilidade moral. E o efeito dessa distância é ainda mais aumentado pela natureza coletiva da ação prejudicial. Assim, o que é intermediário esconde da vista dos atores os resultados da ação – e, no reverso, dificulta a imputação desses resultados aos atores. Eventual preocupação sobre o que sentem os agentes é suplantada pela análise da eficiência com que executam as ordens que lhe são impostas; substitui-se, assim, a responsabilidade moral pela responsabilidade técnica, sendo esta caracterizada pelo esquecimento de que a ação é um meio para se alcançar algo para além dela mesma – o ato burocrático se torna um fim em si mesmo. E o desenvolvimento de uma situação de contínua transferência de responsabilidade culmina na responsabilidade flutuante, que Bauman definiu como a própria condição dos atos imorais ou ilegítimos que têm lugar com a participação obediente ou mesmo voluntária de pessoas normalmente incapazes de romper as regras da moralidade convencional. Resultado disso são a violência autorizada pela autoridade e pelas práticas governadas por normas, a desumanização dos objetos burocráticos (por isso, não pode haver responsabilização – porque ela gera nomes, porque ela individualiza) e das vítimas da violência (por meio de definições e doutrinações ideológicas), e uma tecnologia de segregação e separação. 4. Essa percepção de uma violência sistêmica do mundo moderno, que possibilita que pessoas comuns cometam atrocidades, não fica restrita ao campo teórico. Alguns casos clássicos expuseram isso claramente, como a impressão causada pelo julgamento de Adolf Eichmann em Hannah Arendt – que, ao ver naquele réu um simples burocrata, um serviçal incapaz de refletir sobre seus atos, em vez de um monstro nazista, desenvolveu sua ideia sobre a banalidade do mal – e o argumento utilizado pelas defesas dos sentinelas do Muro de Berlim perante os tribunais alemães – de que os assassinatos de fugitivos que tentavam atravessar de um regime a outro foram permitidos ou justificados pelo ornamento jurídico da República Democrática da Alemanha à época. E essa percepção também tem sido confirmada por experimentos. Na década de 1960, Stanley Milgram realizou uma série de experimentos sobre a obediência a figuras autoritárias. Neles, os sujeitos da pesquisa eram ordenados por uma figura com autoridade científica a testar aprendizes, separados em outra sala. A orientação dada era de que, a cada resposta errada, o sujeito da pesquisa tinha de aplicar um choque ao aprendiz; à sequência de respostas erradas, os choques cresciam em intensidade. Em caso de recusa em dar o choque, quando se chegava a níveis altos de choques e

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ao ponto em que o sujeito que os aplicava ouvia gritos de dor vindos da outra sala – ou não recebia mais qualquer resposta, pressupondo um desmaio –, um pesquisador presente na sala – um ator que representava a autoridade – estimulava o sujeito, reforçando-lhe a necessidade de prosseguir com o experimento. (O que o sujeito não sabia é que o aprendiz era também um ator, incentivado a dar respostas equivocadas, e que as reações aos choques provinham de áudios gravados.) O experimento constatou o compromisso de indivíduos em ir a níveis extremos em razão do comando de uma autoridade. Milgram propôs, então, a hipótese de que a crueldade não é cometida por pessoas cruéis, mas por indivíduos comuns tentando desempenhar bem suas tarefas ordinárias: a crueldade decorre primariamente da relação de autoridade e subordinação, típicas das nossas estruturas normais de poder e obediência, e apenas secundariamente ela se relaciona às características individuais de quem a comete. O experimento de aprisionamento de Stanford, conduzido por Philip Zimbardo na década seguinte, também evidenciou que a orgia de crueldade executada pelos “guardas” – a quem fora conferido poder total, exclusivo e imoderado sobre os “prisioneiros” – resultou de um vicioso arranjo social e não de vícios próprios e “adormecidos” dos participantes. Em vez de justificar a perda da inibição para comportamentos lesivos em razão da figura de uma autoridade individual, como o fizera Milgram, Zimbardo avaliou a influência de uma instituição no comportamento das pessoas. Suas conclusões sobre como pessoas comuns podem cometer atrocidades também foram aplicadas ao caso de crimes (homicídio, tortura, estupro e outros abusos) cometidos por militares americanos contra prisioneiros na prisão de Abu Ghraib (Iraque), em 2003. Atuando como assistente técnico de um dos militares acusados, Zimbardo contestou os argumentos disposicionais (maçãs podres) e situacionais (cesto podre); para ele, as violências promovidas pelos soldados na prisão derivavam do sistema em que esses soldados estavam inseridos e para o qual não estavam preparados. 5. O episódio de violência ocorrido em 29 de abril tem sido erroneamente tratado como uma ex-ceção ou um ex-cesso. A preposição latina nos engana: ela pretende ex-cluir, levar para fora da normalidade, quando, em realidade, fomos apanhados pelo acontecimento tal como ele é e sempre foi. (E não por um mau funcionamento, como o imaginário maquinal poderia sugerir.) O poder dramático do evento sequer foi capaz de abalar o paradigma dominante; porque aquela violência foi somente uma expressão própria do modelo de controle instituído, porque ela não se encerrou naquela tarde – a violência acontece. E acontece de forma muito mais enraizada – por isso, invisível – e capilarizada – por isso, imperceptível – do que os relatos podem nos informar. Não nos limitemos à violência física, à qual associamos o confronto físico, a agressão e a destruição. Tampouco à violência simbólica, dos discursos e performances. Esses são apenas os níveis mais visíveis das suas possíveis manifestações. Além dessas, há uma violência fundamental e sistêmica, que se manifesta no próprio funcionamento de nosso sistema

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político e econômico, tal como na estrutura de repressão burocratizada, praticamente anônima. Esta violência primária acontece, seduz e nos asfixia submersos. Uma violência disseminada e latente que nos atrocida. Diante disso, o Nada afirmaria: “faço questão de lhes fazer, após este fogo de artifício, uma advertência gratuita: estamos nisso – e, cada vez mais, vamos estar nisso” (Estado de Sítio, de Camus). Uma fenomenologia da obediência às regras é capaz de explicar como pessoas comuns podem executar atos horrendos; desde como policiais agridem manifestantes; até como comandos militares levam jovens a matarem jovens na terrível arte da guerra; como estruturas burocráticas e argumentos científicos levam profissionais a colocar pessoas em situações miseráveis – nos campos de concentração, nas salas de tortura, nas prisões –; como, combinando o desligamento da distância, a assepsia da virtualidade, a sutileza da burocracia e a fineza da tecnologia, algumas pessoas aniquilam outras fazendo uso de drones. Acatamento, docilidade, submissão, subordinação excluem a responsabilidade individual e produzem burocratas, criam criminosos uniformizados, justificam crimes, desculpam carrascos e pelotões de execução. Não excepcionam, não excedem; apenas revelam e potencializam a violência. 6. E o que isso pode dizer sobre nós? No início da década de 1940, sob o bombardeio de uma Blitz da Luftwaffe, George Orwell assim iniciou um ensaio (England Your England): “Enquanto escrevo, seres humanos altamente civilizados estão sobrevoando, tentando me matar. Eles não sentem qualquer inimizade contra mim como um indivíduo, nem eu contra eles. Eles estão ‘apenas cumprindo seu dever’, como se costuma dizer. A maioria deles, não tenho dúvida, são homens de bom coração, obedientes à lei, que nunca sonhariam em cometer assassinato na vida privada. Por outro lado, se um deles tem êxito em me explodir em pedaços com uma bomba bem colocada, ele nunca perderá o sono por isso. Ele está servindo seu país, o qual tem o poder de absolvê-lo do mal”. Das muitas realidades latentes da nossa sociedade contemporânea, um potencial acontecimento é que nós podemos ser agredidos por policiais, criminalizados por nossos comportamentos, submetidos a tortura ou prisão, mortos numa guerra. Outra potencial realidade é que nós podemos efetuar os disparos, lançar as bombas, acreditar na burocracia da violência, trabalhar nela e com ela, justificar os abusos, excluir responsabilidades, criminalizar os outros, torturar, prender e assassinar. Percebo – e como é doído perceber isso! – que este outro – o administrador algoz, o policial obediente, o magistrado conivente – poderia ser eu. 7. Pra não dizer que não falei das flores... Nas provocações feitas em sala de aula e em espaços de crítica como este, tenho procurado demonstrar que é preciso superar a modernidade. Para tanto, impõe-se um novo indivíduo, um novo exercício de comportamento, construído por uma fórmula de ensino que realize a reflexão, a resistência e a responsabilidade. É preciso primeiro colocar as ações humanas em questão. O sujeito que deseja vencer seu papel meramente instrumental deve se propor a refletir sobre a estrutura no

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qual está inserido e sobre os dispositivos em atividade. Por isso, devemos incentivar e exercitar o questionamento. Há situações em que a única coisa realmente prática a fazer é resistir à tentação da ação imediata, para esperar e ver por meio de uma análise crítica e paciente. Diz-nos Žižek (Violência): Precisamos estudar, estudar e estudar. Para tanto, fundamental que se conserve uma distância com relação a tudo isso. Porque um rio não pode refletir sobre si mesmo (sua natureza, sua origem, seu fluxo, seu deságue), é necessário um afastamento, um deslocamento de perspectiva; um rio se contempla às suas margens. Em seguida, é preciso resistir. A resistência se manifesta de muitas formas. A resistência pode ser individualista (Henry Thoreau) ou empregada em movimentos sociais (Gandhi, Luther King). Pode ser passiva (escrivão Bartleby) ou tática e performática (black blocs). Pode ser um paradigma (Antígona) ou espontaneamente casual (a recusa dos negros em ceder aos brancos seus assentos nos ônibus; a recusa das empregadas doméstica em usar apenas o elevador de serviço; a exigência das mulheres em serem tratadas com respeito nas ruas e nos transportes coletivos, rejeitando o assédio como preço a pagar por sua mobilidade; a recusa de 17 policiais em participar do cerco aos professores que se manifestavam no dia 29 de abril). Com tantas e incontáveis possibilidades de interromper as dinâmicas de violência, a resistência merece ser reinterpretada – de um recurso desesperado a um novo modelo de conduta. Por fim, é preciso promover a responsabilidade existencial. Uma responsabilidade que nada tem a ver com a expectativa de reciprocidade ou recompensa, com o cálculo de benefícios mútuos, com uma obrigação contratual, nem com a submissão a um código moral ou legal. Mas, sim a responsabilidade como modo de existência: “Torno-me responsável ao me constituir como sujeito” (Bauman). A violência manifesta no dia 29 de abril de 2015 foi socialmente permitida e tecnicamente justificada; foi uma amostra das atrocidades cotidianas; foi cometida por pessoas comuns que cumpriam ordens. Diante desse cenário, buscamos a saída de emergência: superar a modernidade...Uma tal revolução se escreve com três erres.

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A ANGÚSTIA DA INSÔNIA OU NOTÍCIAS ANTECIPADAS: QUANDO SERÁ O PRÓXIMO ‘29 DE ABRIL’? Por Andressa Paula de Andrade1

Eu procurava uma música para iniciar esse texto. Pensei em um samba doce e saudoso, pois, cairia bem “ouça-me bem, amor. Preste atenção, o mundo é um moinho, vai triturar teus sonhos, tão mesquinho. Vai reduzir as ilusões a pó” (Cartola). Talvez algo mais clássico, quem sabe a cantata Carmina Burana que em toda a sua exuberância – posteriormente foi musicada por Carl Orff e não à toa apresentada pela primeira vez em 1937 na ascensão do III Reich – os goliardos produziram críticas as autoridades eclesiásticas, aos cultos, a hipocrisia e a promiscuidade do poder medievo. Creio que seja antiquado para o tema, embora o poder pouco tenha mudado. Quiçá o rebelde rock in roll do Pink Floyd – High Hopes? On the turning away? The dogs of war? Us and them? Fica difícil achar uma única música – para acompanhar a mão que segue expurgando os meus fantasmas mentais. Há muitas canções que podem integrar a trilha sonora. Feito isso, tentarei assumir o posto de bardo ao analisar o que se passou. Decidi dialogar com o Chronos – Χρόνος – em relação ao que se sucedeu no primeiro quadrimestre no Paraná e sobre o que acredito que possa ocorrer em breve. E refletir sobre um passado recente nos leva a ter a certeza que só há dois tempos possíveis: o passado e o futuro. O presente por ser fugaz e comprido, já é o passado. O futuro, por sua vez, é a expectativa e progenitor de dois sentimentos: o medo e a esperança. O medo é a expectativa de um mal não ocorrido e a esperança, a expectativa do bem que pode ocorrer. Se assim o é, temos outra conclusão: a única certeza é o passado. O que une esse avesso sobre o futuro, por sua vez, é a incerteza. Em outras palavras: só podemos conhecer o passado, mas não o transformar. O ‘29 de abril’ que chocou a todos, galgou as manchetes nacionais e internacionais, parece estar caindo em um rápido esquecimento. Em 30 de agosto de 1988, o Governo do Estado do Paraná utilizou a cavalaria da Polícia Militar, o Batalhão de Choque, bombas de gás, munição de elastômero (bala de borracha) e cassetetes para repelir os docentes estaduais que reivindicavam melhores salários e condições de trabalho na Praça Nossa Senhora de Salete em Curitiba. Foram mais de 10 (dez) professores feridos e o motivo para se envergonhar é imenso. Todavia, em 2015 temos um saldo ainda maior. Com uma atuação semelhante, mas em versão ampliada a de 1988, o atual governo foi capaz de ferir mais de 200 servidores públicos. A diferença 1 Pós-graduanda em Ciências Penais pela Universidade Estadual de Maringá. Bacharela em Direito pela

Universidade Estadual de Maringá (UEM). Membro do Núcleo de Estudos Penais (NEP/UEM). Membro do Núcleo de Estudos em Direito e Ambiente (NEAMBI/UEM). Membro do Grupo Modernas Tendências do Sistema Criminal (GMTSC/FAE). Advogada.

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em relação ao passado é que estamos sob a égide da Constituição Federal de 1988 que foi promulgada em 5 de outubro daquele ano. Este fato deveria bastar para que o dantesco episódio não ocorresse, porém, uma belíssima Lei em sentido formal não é apta por si só a materializar a era de direitos fundamentais do porte da liberdade de associação e expressão. A truculência policial utilizada no episódio é a revelação de que a ordem jurídica já não assegura uma atitude que o Estado deseja realizar. Nas palavras de Walter Benjamin: “...o “direito” da polícia assinala o ponto em que o Estado, seja por impotência, seja devido às conexões imanentes a qualquer ordem do direito, não consegue mais garantir, por meio dessa ordem, os fins empíricos que ele deseja alcançar a qualquer preço2”. E mesmo diante de tanta violência estatal há aqueles que avocam para si o papel de dissidentes, dos que margeiam o Direito, que reivindicam proteção de suas demandas, que cobram, que questionam e apontam os obscurantismos jurídicos. Sem a atuação destes, o paradigma desolador seria sempre o mesmo. A Democracia é um eterno ruminar. Os avanços, pressupõem, sempre, um novo problema a ser enfrentado. É possível dizer que a Democracia é o único regime que se reconhece inacabado e imperfeito. Para isso, é necessário que alguém ou grupos promovam levantes a fim de que suas pretensões sejam encampadas pela ordem jurídica vigente. E o ruminar crítico exige que estejamos encarando solidamente o horizonte, caminhemos de forma lenta pelo peso da responsabilidade e não deixemos de deglutir cada evento que representa uma ameaça democrática que retorna infinitas vezes a boca em busca de um refinamento e amadurecimento. A metáfora do gado adaptada ao pensamento crítico produz mais liberdade humana, ao passo que aqueles outros seres (o gado) inevitavelmente caminham em direção ao abate em escala de produção. Resta saber se estamos tão distantes assim da carnificina. Considero que o ‘29 de Abril’ segue na linha inquisitiva punitiva contra as profanações de poder. Em junho de 2013 o Brasil esteve as ruas gritando sua insatisfação tão plural que agregava desde ordens progressistas e libertárias a estratos conservadores e restritivos de direitos. Todos queriam se sentar à mesa. O elo entre os dois setores, a saber, progressista e conservador que pode ser moderado ou extremo – até mesmo pendendo para orientações fascistas, o que merece toda preocupação possível – é somente a insatisfação. A resposta imediata foi a Polícia como a personificação do castigo estatal irrestrito aos dissidentes e contestadores da autoridade soberana. Detenções arbitrárias, invocação da Lei de Segurança Nacional (LSN), culminando com a confecção de um manual denominado manual da ‘Operação de Garantia da Lei e Ordem (Op GLO)’ do Ministério da Defesa, em que se elege como forças oponentes: a) movimentos ou organizações; b) organizações criminosas, quadrilhas de traficantes de drogas, contrabandistas de armas e munições, grupos armados etc; c) pessoas, grupos de pessoas ou organizações atuando na forma de segmento autônomos ou infiltrados em movimentos, entidades, instituições, organizações ou 2 BENJAMIN, Walter. Para a crítica da violência. In: BENJAMIN, Walter. Escritos sobre mito e linguagem. 2 ed. Trad. Susana Kampff Lages e Ernani Chaves. São Paulo: Editora 34, 2013, p. 135.

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em OSP (órgãos de segurança pública), provocando ou instigando ações radicais e violentas; e d) indivíduos ou grupos que se utilizam de métodos violentos para a imposição da vontade própria em função da ausência das forças de segurança pública policial3. Destarte, iguala-se o tratamento conferido a ‘movimentos ou organizações’ a ‘organizações criminosas, quadrilhas de traficantes, contrabandistas de armas e munições, grupos armados etc.’, não importando o fim de cada um, apenas importa que ambos perturbam a ordem pública (mas o que é essa ordem?) e isso deve ser imediatamente contido. Eis o objetivo: pasteurizar todo discurso até que o mesmo se desfaleça. Uma democracia, cujo povo deveria ser o eixo fundamental, vez que estamos no maior período de estabilidade democrática (uma jovem de aproximadamente 30 anos), parece não estar contente com o curso que o país pretende tomar, já não considerando os integrantes do Estado como o esteio e passamos a encarar como uma força que ameaça – forças oponentes? – e coloca em risco as instituições, na iminente destruição dos símbolos sacros de poder, cujo templo se encontrava na Assembleia Legislativa, no Palácio do Iguaçu, no Centro Cívico (sic) no dantesco ‘29 de Abril’. Uma pergunta que poderia resultar em qualquer livro de autoajuda é a seguinte: o que fazer quando a insatisfação é coletiva? O primeiro passo é dizer. A segunda etapa é escutar. Para fechar, buscar um meio de mitigar ou extirpar a pedra do sapato. Obviamente essa sequência pode e deve ser retroalimentada a todo momento. O que fizemos em junho de 2013 Brasil afora e no 29 de Abril? Ignoramos e mais do que isso, castigamos os corpos, memórias e ideais de um amadurecimento democrático. Timbramos de força oponente ‘movimentos e organizações’ conforme o Manual de Garantia da Lei e Ordem. É como tratar uma febre sem conhecer a origem da enfermidade, minimizando os picos até que tudo cesse. Repetimos essa mesma sistemática em decisões jurídicas quando denominamos demandas legítimas dentro de uma Democracia de ‘facções radicais e regime político-ideológicos sectários e corruptos’ e de ‘usurpadores de todos os direitos, garantias e aspirações da nação’ 4. É essa violência verbal sistemática que sequestra a esperança. É esse sadismo incontínuo que arranha a expectativa de mudança positiva. Quando olho para o 29 de Abril eu me questiono: quem é o responsável pelo o que ocorreu? Como no documentário “Nuit et brouillard” sobre as atrocidades do Nacional-Socialismo perpetrados nos campos de concentração, produzido por Alain Resnais, o texto feito por Jean Cayrol que integra a obra diz o seguinte: “Quando os aliados abrem as portas… “Eu não sou responsável”, diz o Kapo. “Eu não sou responsável”, diz o oficial. 3 Na página 28: http://www.defesa.gov.br/arquivos/File/doutrinamilitar/listadepublicacoesEMD/

md33_m_10_glo_1_ed2013.pdf 4 Recomendamos a consulta ao Inquérito Policial Militar que visava apurar os excessos da Polícia Militar no 29 de Abril sob nº. 0027199-15.2015.8.16.0013

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“Eu não sou responsável”. Então, quem é responsável?” Apesar de distintos os tempos, de diferentes as formatações estatais, de diversa a situação, de dessemelhante a magnitude da violência empregada, de ser distinto o que se prega na democracia, a questão é a mesma: quem é o responsável? Todos se isentaram, todos cumpriram ordens, todos queriam manter a ordem e disciplina do local. ‘Arbeit macht frei’ (O trabalho liberta) era o cartão de boas-vindas insculpido em cada portão dos campos de concentração. No campo também se encontravam frases como ‘Judem das seine’ (A cada um o seu dever/cada um na sua). Ponto de conexão com o que se deu no século passado e o com que vivemos: não é possível contestar as autoridades, sob pena de punição. É o discurso ordeiro que deve ser ouvido e executado. Com todas as escusas, mas Jean Cayrol ainda tem a dizer na película: “Nós que fingimos crer que tudo isto pertence a uma só época e um só país e que não pensamos em olhar a nossa volta e que não escutamos os gritos sem fim”. O discurso ordeiro segue seu curso. A obediência a essas prescrições exige fé cega e discursos neopentecostais, mas no fundo todos já sabem que os ungidos não são detentores da verdade absoluta e nem servem aos propósitos que prometeram, mas participam de negociatas obscuras. O despertar lúcido do povo produz o ar da insatisfação, portanto, iminente profanação do poder promíscuo que outrora esteve acostumado com a nossa letargia, não podendo ser previsto o instante em que uma força começará a se agitar em nossas entranhas e produzirá a cólera necessária para um estopim. O poder posto, por sua vez, ancorado em bravatas lança a mão de um velho coringa conhecido, o poder policial, a panaceia dos (i)maturos que se recusam a dialogar. Imediatamente a propaganda toma um curso: nominar e timbrar de criminoso o revoltoso. Na sequência, empacotar e distribuir para que todos acreditem que a segurança, a ordem e a paz está ameaçada. Verbalizar e desconsiderar a insatisfação originária. Está resoluto. Existem reminiscências autoritárias entre nós, o que exige a vigilância de nossa parte. Quando ocorrerá outro encarceramento da Democracia? Quando ocorrerá um novo ‘29 de Abril’? Atenção, o que se segue pode conter spoilers. 1964-1985: quais foram as lições? O que sabemos? O que chegou a nós? Pouco, muito pouco. Só tivemos um conhecimento mais adequado com a constituição da Comissão Nacional da Verdade (criada pela Lei 12.528/2011 e instituída em 16 de maio de 2012) que buscou apurar graves violações de Direitos Humanos ocorridas entre 18 de setembro de 1946 a 5 de outubro de 1988. O relatório do órgão foi finalizado em 20155. Quase 30 anos após o fim da Ditadura nos demos conta da importância de resgatar o que se passou. Antes da Comissão, a Ordem dos Advogados do Brasil em 2008 ajuizou a ADPF 153 que solicitava uma interpretação conforme a Constituição do Artigo 1º 5 No Estado do Paraná, a comissão regional (Lei Estadual nº. 17.362/12) foi denominada de Teresa Urban.

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e §1º da Lei de Anistia, vez que a mesma concede a benesse a todos aqueles que praticaram crimes políticos e conexos6 durante a ditadura militar, questionando se a mesma se estenderia àqueles de viés comum. A ADPF foi julgada improcedente, permitindo a anistia ampla, irrestrita e geral. Porém, o assunto está longe de qualquer conclusão pacífica. A Corte Interamericana de Direitos Humanos (CtIDH) condenou o país em 2010 no caso Gomes Lund e Outros (Guerrilha do Araguaia) vs. Brasil por estar em desacordo com a jurisprudência da corte internacional, vez que a situação se tratava de crimes de lesa-humanidade, considerando a aplicação da Lei de Anistia como empecilho à investigação, julgamento e punição de crimes, tecendo severas críticas a decisão do Supremo Tribunal Federal na ADPF 153, avocando a CtIDH a palavra final quando a matéria versar sobre direitos humanos. A conclusão da Corte foi no seguinte sentido: “É preciso ultrapassar o positivismo exacerbado, pois só assim se entrará em um novo período de respeito aos direitos da pessoa, contribuindo para acabar com o círculo de impunidade no Brasil. É preciso mostrar que a Justiça age de forma igualitária na punição de quem quer que pratique graves crimes contra a humanidade, de modo que a imperatividade do Direito e da Justiça sirvam sempre para mostrar que práticas tão cruéis e desumanas jamais podem se repetir, jamais serão esquecidas e a qualquer tempo serão punidas”7. Se a punição levará a uma preservação da “memória, história e verdade” não sabemos. São dilemas a serem enfrentados. Mas uma coisa é possível concluir: a ausência ou uma minimalista Justiça de Transição pós-1985 possui suas consequências negativas. Revisitar o período muito tempo após o ocorrido nos coloca justamente nessa questão se a punição por meio do Direito Penal seria o caminho adequado ou não. Para uma compreensão mais açodada, de acordo com o International Center of Transicional Justice, a Justiça de transição seria um conjunto de medidas judiciais e não judiciais que têm sido implementadas por diferentes países, a fim de corrigir a herança oriunda de maciças violações dos direitos humanos. Enuncia um rol não taxativo 6 Art. 1º, §1º da Lei 6.683/1979: “§ 1º - Consideram-se conexos, para efeito deste artigo, os crimes de qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política.” 7 Consulte a sentença: http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_219_por.pdf

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de elementos a serem considerados: a) Processos criminais: responsabilização dos autores; b) Reparações: através do qual os governos reconhecem e tomam medidas para resolver os danos sofridos. Tais iniciativas têm frequentemente elementos materiais (tais como pagamentos em dinheiro ou serviços de saúde), bem como aspectos simbólicos (tais como desculpas públicas ou dia de lembrança); c) Reformas institucionais: do Estado abusivo, tais como forças armadas, polícia e os tribunais; d) Comissões da Verdade: ou outros meios para investigar e informar sobre padrões sistemáticos de abusos, recomendar mudanças e ajudar a compreender as causas subjacentes de graves violações de direitos humanos8. Com a finalização do Relatório da Comissão Nacional da Verdade, foram feitas 29 recomendações. Na seção ‘Reformas Constitucional e Legais’ há indicações de: a) Revogação da Lei de Segurança Nacional; b) Aperfeiçoamento da legislação brasileira para tipificação das figuras penais correspondentes aos crimes contra a humanidade e ao crime de desaparecimento forçado de pessoas; c) Desmilitarização das polícias militares estaduais; d) Extinção da Justiça Militar Estadual; e) Exclusão de civis da jurisdição da Justiça Militar Federal, etc. Com o encerramento dos trabalhos da Comissão no final de 2014, o que estamos fazendo para repensar o modelo posto? Eis o ‘29 de Abril’. Eis os estudantes presos nos protestos contra o fechamento de Escolas no Estado de São Paulo em 2015/2016. Quando o Movimento Passe Livre (MPL) indicou que retornaria às ruas em 2016 começaram as repressões, nos fazendo lembrar de Junho de 2013. Estamos longe de qualquer avanço. A metástase autoritária parece não ter fim. Em 16 de março de 2016 entra em cena a Lei 13.260. Era inevitável que a mesma não viesse a ser aprovada, vez que o país é signatário da Convenção Internacional para Supressão do Financiamento do Terrorismo, adotada pela Assembleia-Geral das Nações Unidas em 9 de dezembro de 1999, e assinada pelo Brasil em 10 de novembro de 2001, promulgada posteriormente através do Decreto nº. 5.640/2005, além de outros fatores internacionais. No âmbito econômico, o Brasil é membro do GAFI/ FATF9 que pode ser considerado o principal organismo internacional antilavagem de dinheiro. Em 2010, a nação passou pela avaliação do GAFI e no relatório elaborado, houve um levantamento sobre a problemática enfrentada pelos crimes lavagem de dinheiro e financiamento ao terrorismo; a pífia persecução criminal em crimes desse quadrante; a ausência de aparato especializado para o trabalho investigatório; o 8 ICTJ (International Center of Transicional Justice). What is transicional justice. Disponível em: https:// www.ictj.org/about/transitional-justice. Acesso em: 10 abr. de 2016. 9 “O Grupo de Ação Financeira sobre Lavagem de Dinheiro (GAFI), ou Financial Action Task Force on Money Laudering (FATF), foi criado em 1989 pelo G-7, composto por: Estados Unidos, França, Reino Unido, Alemanha, Itália, Japão e Canadá, com a inclusão da Rússia posteriormente. O grupo é compreendido na esfera da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), e consiste em uma organização intergovernamental, com sede em Paris, tendo por principais objetivos o desenvolvimento e promoção de políticas nacionais e internacionais de prevenção à lavagem de dinheiro ao financiamento do terrorismo”. CALLEGARI, André Luís; WEBER, Ariel Barazzetti. Lavagem de dinheiro. São Paulo: Atlas, 2014, p. 5455.

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número baixo de condenações por delitos financeiros, etc. Em suma: havia diversos elementos que levaram o pêndulo para a ponta da criação de uma Lei Antiterrorista. Sem adentrar no mérito da sua (i)legitimidade, apenas trazendo à luz os fatores que pressionaram a sua criação. A Lei 13.260 afirma no artigo 2º, §2º que a lei não será aplicada “à conduta individual ou coletiva de pessoas em manifestações políticas, movimentos sociais, sindicais, religiosos, de classe ou de categoria profissional, direcionados por propósitos sociais ou reivindicatórios, visando a contestar, criticar, protestar ou apoiar, com o objetivo de defender direitos, garantias e liberdades constitucionais, sem prejuízo da tipificação penal contida em lei”. E aqui deve ser lembrado uma coisa curiosa que não sabemos se foi propositamente desconsiderada: a Lei de Segurança Nacional (7.170/1983) não foi revogada. Bem, como conciliar o artigo 20 da LSN que define ‘atos de terrorismo por inconformismo político’ com a escusa do artigo 2º, §2º da Lei 13.260? Há uma solução híbrida duvidosa nesse fato, exigindo um cuidado interpretativo (volte e leia as recomendações da Comissão Nacional da Verdade). Profetizando o caos, pode-se dizer que não será espantoso um novo ‘29 de Abril’. É possível considerar que a aplicação da Lei de Segurança Nacional em 2013 foi feita de forma anacrônica, porém, perdemos uma oportunidade de extirpá-la do ordenamento jurídico. Quiz: a LSN é anacrônica ou ela é interessante para algo ou alguém? Oxalá eu não seja uma profeta do Apocalipse. Voltando a questão central sobre o ‘29 de Abril’: quem é o responsável pelo o que ocorreu? Talvez eu, talvez você, talvez nossos governantes, talvez o órgão de segurança pública, talvez...talvez a culpa seja coletiva por comungar das omissões e da indiferença. Só a indiferença é capaz de nos retirar a subjetividade da vergonha e do rubor. Somente ela é idônea para emitir o som de ‘eu não sou responsável’. Apenas ela é capaz de dar chancela e elogiar a violência. Única e exclusivamente esse sentimento é apto a levar alguém a comemorar ao ver uma pessoa ferida, desmaiada e detida. E sem dúvida alguma ela leva a apatia para que possamos seguir sem olhar para trás, vez que se vasculharmos este porão saberemos o que nos espera mais adiante. É essa indiferença coletiva que segue arquitetando diversos ‘29 de Abril’, lançando bombas, disparando a munição de elastômero e construindo novos algozes. Vou praticar a confissão: talvez eu tenha sido cúmplice. Talvez eu tenha culpa em algum momento por ter sido indiferente. Talvez a minha ausência em alguma questão tenha recrudescido forças para que tudo tenha ocorrido. Eu ainda preservo a minha subjetividade da vergonha, do rubor e de prantear. Ainda tenho sangue a correr em minhas veias. Se ninguém se sente responsável, eu me sinto. Não praticarei a delação, mas espero que a consciência de cada um os acuse como a minha me acusa neste instante. Não há noite tranquila para os atormentados de sentido. Sigo noite adentro na angústia dessa insônia a esperar um novo episódio desolador. Porém, neste diálogo silente comigo mesmo, busco ser menos errante, menos omissa e menos

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indiferente em minhas práticas diárias. Assinado, uma cúmplice do 29 de Abril.

Referências bibliográficas BENJAMIN, Walter. Escritos sobre mito e linguagem. 2 ed. Trad. Susana Kampff Lages e Ernani Chaves. São Paulo: Editora 34. CALLEGARI, André Luís; WEBER, Ariel Barazzetti. Lavagem de dinheiro. São Paulo: Atlas, 2014. ICTJ (International Center of Transicional Justice). What is transicional justice. Disponível em: https://www.ictj.org/about/transitional-justice. Acesso em: 10 abr. de 2016.

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