29) O Panorama Visto em Mundorama (2015; 2a. edicao)

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Paulo Roberto de Almeida

O PANORAMA VISTO EM MUNDORAMA ENSAIOS IRREVERENTES E NÃO AUTORIZADOS

Brasília Edição do Autor 2015

O Panorama Visto em Mundorama Ensaios Irreverentes e Não Autorizados

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O Panorama Visto em Mundorama Ensaios Irreverentes e Não Autorizados

Paulo Roberto de Almeida Doutor em ciências sociais. Mestre em economia internacional. Diplomata.

Edição do Autor - 2015

Direitos de publicação reservados: © Paulo Roberto de Almeida 2015

_______________________________________________________ ALMEIDA, Paulo Roberto. O Panorama visto em Mundorama: Ensaios Irreverentes e Não Autorizados; Brasília: 2a. Edição do Autor, 2015. 374 p. 1. Política internacional. 2. Relações internacionais. 3. Economia. 4. História. 5. Sociologia. 6. Direito. 7. Globalização 8. Brasil. 8. América Latina. 10. Título _______________________________________________________

Informação sobre a capa: composição do autor sobre ilustração do Google Images

Contato com o autor: www.pralmeida.org [email protected] (55.61) 9225-4770 1a Edição: 7/05/2015; 2a Edição: 4/12/2015

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Al enfrentarme a su concepción... quise utilizar la historia... para reflexionar sobre la perversión de la gran utopía del siglo XX, ese proceso en el que muchos invirtieron sus esperanzas y tantos hemos perdido sueños, años y hasta sangre y vida. (...) En ese dilatado proceso, me resultó imprescindible... el conocimiento, las experiencias y las investigaciones previas... y hasta las incertidumbres sobre una historia las más de las veces sepultada o pervertida por los líderes que durante... años fueron los dueños del poder y, por supuesto, de la Historia. Leonardo Padura El Hombre que Amaba los Perros (Barcelona: Tusquets, 2009), p. 763-764.

........................................... Índice Apresentação O mundo visto no diorama de Mundorama

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Primeira Parte Política externa brasileira e diplomacia companheira 1. Fim das utopias na Casa de Rio Branco? 2. A política externa companheira e a diplomacia partidária 3. Continuidade e mudança na política externa brasileira 4. A diplomacia brasileira numa nova conjuntura política 5. O Brasil e a integração regional, da Alalc à Unasul: algum progresso?

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Segunda Parte Economia política internacional 6. Mudanças na economia mundial: perspectiva histórica de longo prazo 7. Os Brics na nova conjuntura de crise econômica mundial 8. A Guerra Fria Econômica: um cenário de transição? 9. Desafios da economia brasileira na interdependência global 10. A agenda econômica internacional: o cenário atual 11. Como o Brasil se insere no cenário mundial, agora e no futuro próximo? 12. Como e qual seria uma (ou a) agenda ideal para o Brasil? 13. O que o Brasil deveria fazer para maximizar a “sua” agenda?

55 59 68 74 80 85 91 99

Terceira Parte Globalização, Embromação 14. A globalização e o direito comercial: uma longa evolução 15. Fluxos financeiros internacionais: é racional a proposta de taxação? 16. Fórum Econômico e Fórum Social: dois mundos contraditórios 17. Fórum Social Mundial: uma década de embromação 18. Triste Fim de Policarpo Social Mundial 19. A falência da assistência oficial ao desenvolvimento

113 120 129 138 149 159

Quarta Parte Política internacional, Questões estratégicas 20. A guerra de 1914-18 e o Brasil: impactos imediatos, efeitos permanentes 21. O mundo sem o Onze de Setembro: explorando hipóteses 22. Wikileaks: verso e reverso 23. Wikileaks-Brasil: qual o impacto real da revelação dos documentos? 24. Digressões contrarianistas sobre o desarmamento nuclear 25. Um congresso de Viena para o século 21? 26. As ilusões perdidas do século 21

167 172 179 187 197 203 210

Quinta Parte Ideias, cultura, livros 27. A ideia do interesse nacional: onde estamos? 28. Imperfeições dos mercados ou “perfeições” dos governos 29. Miséria do Capital no século 21

217 223 229 9

30. Reformando o sistema monetário internacional 31. As quatro liberdades e um projeto para o Brasil 32. Algumas recomendações de leituras 33. Estratégia diplomática: relendo Sun Tzu para fins menos belicosos 34. Memória e diplomacia: o verso e o reverso 35. Da democracia à ditadura: uma gradação cheia de rupturas

233 241 249 255 264 269

Sexta Parte O Brasil e o mundo, de um século a outro 36. A diplomacia dos antigos comparada à dos modernos 37. A ordem econômica mundial, do século 19 à Segunda Guerra 38. The world economy, from belle Époque to Bretton Woods 39. Relações Brasil-EUA no início do século 21: desencontros 40. A falácia dos modelos de desenvolvimento: enterrando um mito sociológico 41. O TransPacific Partnership e seu impacto sobre o Mercosul 42. Quais são as grandes ameaças ao Brasil? 43. Desafios externos ao Brasil no futuro próximo

277 290 303 306 327 333 339 347

Apêndices Relação cronológica dos ensaios publicados em Mundorama Relação dos artigos publicados anteriormente em RelNet Livros publicados pelo autor Nota sobre o autor

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Apresentação O mundo visto no diorama de Mundorama

Diorama, segundo as definições e as representações costumeiras, é um modelo, que pode ser construído tanto em miniatura quanto em tamanho natural, representando, num formato tridimensional, algum evento, indivíduos ou integrantes do mundo natural, ou ainda, alguma configuração marcante de uma determinada sociedade, do presente ou do passado, que possua relevância suficiente para justificar sua reprodução de forma realista daquilo que se pretenda oferecer aos visitantes como comemoração histórica, ou antropológica, ou qualquer outra, geralmente fazendo parte de um museu ou construção especialmente construída para tal finalidade. Não chegam ao realismo extremo de certas figurações típicas da história patriótica americana – quando se reencenam, com atores do presente em trajes de época, batalhas ou cenas da formação progressiva do país – mas constituem, ainda assim, representações atrativas, pois se destinam justamente a finalidades didáticas, para o público leigo e infanto-juvenil. Alguns dioramas são extremamente sofisticados: sempre me lembro do realismo com o qual se recriou a batalha de Waterloo, na cidade belga desse nome, com todos os exércitos alinhados para a derradeira derrota de Napoleão. Os militares apreciam esses figurações, e lhes emprestam o maior realismo possível. Vem-me à mente, igualmente, o excelente Liberty Memorial da Primeira Guerra Mundial, em Kansas City, com um imenso painel relatando a entrada dos Estados Unidos na guerra, em 1917. Combinando diversas técnicas, é um dos mais completos que me foi dado visitar em torno da Grande Guerra, igualando, provavelmente, o Memorial de Péronne, na França. Pois bem, o veículo virtual com o qual tenho o privilégio de colaborar, o boletim eletrônico Mundorama, dirigido pelo ativíssimo professor Antonio Carlos Lessa, é uma espécie de diorama sobre o mundo contemporâneo (e do passado também). Trata-se, antes de tudo, de um empreendimento extremamente didático, ainda que bastante leve e diversificado, embora não tridimensional, mas suficientemente rico para atrair todos aqueles – estudantes, pesquisadores, curiosos, “livre atiradores”, como eu – que se interessam muito, pouco, ou mesmo muito pouco, pelas relações internacionais e pela inserção mundial do Brasil. Segundo sua definição editorial, “Mundorama é uma abordagem ágil sobre os temas da agenda

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internacional e da política externa brasileira” e nele “são publicadas contribuições breves versando sobre os temas da agenda internacional contemporânea.” Desde que comecei a colaborar, primeiro esporadicamente, agora de forma mais regular, com o boletim, confesso que não tenho sido muito breve, ou sintético. Como poderão constatar os que percorrerem estas páginas, mais uma compilação de meus escritos de uma década inteira, algumas dessas contribuições se estendem por mais de dez páginas, o que destoa das recomendações dos organizadores quanto ao caráter leve dos textos ali recolhidos. Devo, entretanto, à generosidade do professor Lessa o bom acolhimento que tenho encontrado para meus textos de certo modo prolixos, tortuosos, por vezes torturados, em torno de todos os problemas – nacionais ou internacionais – que clamam pela minha atenção na leitura diária de um volume razoável de periódicos e de boletins virtuais. Meus agradecimentos renovados pela compreensão e tolerância. Não estão aqui compilados todas as contribuições publicadas nas “páginas” de Mundorama, inclusive porque várias delas foram reproduzidas no boletim irmão, um tanto mais formal – quase de terno e gravata – que é o Meridiano 47, já objeto de uma anterior compilação minha, igualmente disponível: Paralelos com o Meridiano 47: Ensaios Longitudinais e de Ampla Latitude (Hartford: Edição do Autor, 2015), livro digital montado a partir de uma seleção de minhas colaborações a esse boletim (e disponível neste link: https://www.academia.edu/11981135/28_Paralelos_com_o_Meridiano_47_ensaios_2015_). Vou ainda aperfeiçoá-lo, graficamente, visualmente, e colocá-lo em minha página. Em todo caso, a lista das contribuições até agora oferecidas estão listadas no Apêndice, que também relaciona meus escritos no boletim predecessor de Mundorama, em sua primeira encarnação, as Colunas do RelNet, uma iniciativa pioneira dessa tribo de desbravadores do atual IRel-UnB, com a qual colabora sempre quando me chamam, mas sempre como livre atirador, jamais como representante de qualquer entidade ou escola de pensamento. Ser livre significa escolher em total autonomia todos e cada um dos temas que são aqui submetidos ao meu bisturi analítico: jamais recebi qualquer encomenda dos editores, ou de quem quer que seja, para tratar deste ou daquele assunto. Minto: nos anos comemorativos, tanto o professor Lessa quanto os editores ou responsáveis pelo IBRI e pela RBPI, me sugeriam algum escrito recapitulativo, isto é, de cunho histórico, o que eu teria feito voluntariamente de igual modo. Salvo essas poucas “encomendas”, todos os demais temas figuram nos meus cadernos de notas como sendo o resultado de leituras, reflexões, pesquisas e debates, que são mais raros, estes últimos, na medida em que eu prefiro o labor solitário, geralmente com o concurso dos livros e das 12

revistas, em frente à tela de um computador, na consulta virtual de todas as fontes disponíveis, sempre na companhia intelectualmente estimulante de Carmen Lícia, que costuma ter meus péssimos hábitos de leituras e trabalhos noctívagos. Não creio que eu necessite apresentar qualquer um dos textos aqui reproduzidos, pois acredito que eles falam por eles mesmos. A despeito de algum overlapping entre Mundorama e Meridiano 47, evitei as repetições entre os dois volume de compilações, com uma única exceção, o texto 6: “Mudanças na economia mundial: perspectiva histórica de longo prazo”, uma vez que penso que ele oferece uma boa introdução à problemática que vai discutida na seção dedicada à economia política internacional, como já tinha sido o caso no volume anterior. Aproveitei, tanto quanto possível, as belas imagens que decoravam a edição original de cada um dos escritos em Mundorama, ao qual os curiosos podem recorrer, para uma formatação mais agradável, ou conferir o texto de fato publicado (http://mundorama.net/?s=Paulo+Roberto+de+Almeida). Este volume está destinado a crescer em tamanho em futuras edições – ainda que não pretenda imitar os verdadeiros dioramas em seu formato tridimensional –, à medida em que novos escritos vierem completar os temas aqui tratados, geralmente de forma mais rápida que os trabalhos mais “pesados”. Mas, como os congêneres de museus, ele se pretende igualmente didático em espírito e em intenção, tanto quanto sintético de realidades sempre complexas e multifacetadas das relações internacionais e da inserção do Brasil nos seus vários ambientes. Não preciso, em absoluto, oferecer qualquer tipo de “disclaimer” quanto ao fato, deveras conhecido de todos que acompanham meus trabalhos, que as ideias e posições aqui expostas correspondem inteiramente ao meu próprio pensamento, não refletindo de nenhuma forma, posturas e políticas de qualquer corporação com a qual eu possa estar envolvido ou servindo. Ser livre atirador significa assumir inteira responsabilidade pelas tomadas de posição, pelas críticas mais amenas ou mais acerbas que possam estar aqui contidas, como aliás sempre foi minha postura ao longo de minha trajetória intelectual. Simples curiosos, alunos de áreas que são as de minhas leituras e pesquisas, colegas de profissão ou de academia, podem ter certeza de que todas as ideias aqui defendidas são sempre expostas com o mesmo ardor e convicção que desde anos animam os meus estudos. Vale! Paulo Roberto de Almeida Hartford, 21 de abril de 2015 Edição ampliada: Brasília, 2 de dezembro de 2015 13

Primeira Parte

Política externa brasileira e diplomacia companheira

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1. Fim das utopias na Casa de Rio Branco?

Houve um tempo, no Itamaraty e na política externa, em que se julgava que tudo fosse possível, que tudo fosse factível, realizável e alcançável, e tudo isso no horizonte visível, desde que sob o comando correto, tanto no país quanto na Casa de Rio Branco. Bastava afastar a submissão ao estrangeiro e a conformidade a políticas medíocres de ajuste, que nos condenavam ao baixo crescimento e à subordinação a uma ordem ditada de fora, para que assumíssemos nossa vocação à autonomia e à afirmação independente, num mundo ainda em construção, que seria aliás construído com a nossa participação. Consoante um cenário de reordenamento pós-imperial, deveríamos nos alinhar a novas potências emergentes, não dominadas pelo pensamento único, com as quais todas as possibilidades estariam abertas, tanto para a política externa, quanto para o próprio país. Chegamos perto desse ideal, não obstante o fato de que ele se parecia muito com essas utopias recorrentes que, volta e meia, povoam o universo dos crédulos. Foi um tempo em que “vestir a camisa” do governo do demiurgo prometia um futuro brilhante, não apenas para a instituição, mas para cada um dos seus componentes, do mais humilde secretário ao mais ousado embaixador. Empurrado pela bonança chinesa nas matérias-primas, o país tinha recursos suficientes para distribuir favores para dentro e para fora. Novos cargos, centenas deles, foram criados, novos postos foram abertos, dezenas de novas unidades surgiram como por geração espontânea na própria Secretaria de Estado, e tudo parecia se encaminhar para um estado de felicidade contínua, senão a perfeição dos últimos tempos. Utopia novamente? Provavelmente. Os traços comuns a todos os milenarismos, a todos os projetos utópicos, como ensina Isaiah Berlin, se situam em três propostas comuns a esse tipo de pensamento: a de que existe uma resposta precisa a questões legítimas (sejam elas relativas, digamos, 17

ao crescimento e ao desenvolvimento do país, seja no plano de suas relações externas); a de que existe um método infalível para encontrar e aplicar essa resposta, desde que os homens certos estejam no comando da situação; e a de que todas as vontades, todos os desejos e necessidades possam ser atendidos, com a correta aplicação daquela resposta e daquele método exposto e defendido pelos homens certos, infalíveis. Posso exagerar na simplificação, mas o Brasil, e o Itamaraty, viveram esses tempos não convencionais, em que nunca antes se tinha acertado tanto na busca, se não no atingimento, de todos os desejos e necessidades de cada um. No começo, bastava que todo brasileiro pudesse fazer três refeições por dia, e assistimos ao glorioso lançamento do Fome Zero; depois os objetivos foram sendo ampliados, para nada mais nada menos do que a perfeição no sistema de saúde, a política industrial ideal e o deslanche decisivo da inovação e da criatividade, inatas no povo brasileiro, como se sabe. Na política externa, nada menos do que o término definitivo da submissão aos cânones de fora, a substituição do velho Consenso de Washington por um (hoje quase esquecido) Consenso de Buenos Aires, a proclamação da vontade de refazer, junto com novos aliados emergentes, as “relações de força no mundo”, e nada menos do que a inauguração de uma “nova geografia do comércio internacional”, obviamente dominada pelas relações Sul-Sul, e não mais pela assimétrica relação Norte-Sul. Talvez eu também esteja simplificando um pouco as coisas, mas são conceitos que ouvimos dezenas de vezes nos últimos dez ou doze anos, até que nos convencemos que era isso mesmo que estava sendo descortinado no horizonte das possibilidades históricas. Sem exageros, o Itamaraty viveu dias gloriosos, em que o Brasil era respeitado, admirado e acatado, um pouco em todos os quadrantes do globo, em que nossa política externa era considerada superior até mesmo à antiga excelência autoproclamada, e quando a Casa podia contar com o melhor chanceler do mundo, segundo um jornalista influente do primeiro mundo. Tudo isso pode ter sido verdade, durante algum tempo, mas o fato é que nem as melhores utopias, daquelas que se realizam por autoindução, conseguem se manter à tona indefinidamente, indiferentes ao que vai pelo resto do mundo, ou até no país. Voltamos à velha – primeira e única – lei da economia, segundo a qual recursos são sempre escassos, por definição, daí que escolhas precisam ser feitas, entre infinitas possibilidades e necessidades. Como também já disse alguém, a primeira lei da política consiste em tentar desmentir aquela primeira lei da economia, e de fato é o que ocorre em quase todos os países, o tempo todo. Não poderia ser diferente no Brasil, como não 18

foi; estamos vendo atualmente o fim da bonança chinesa, e a triste vingança da economia sobre a política. Isso atinge, também, a política externa, e de uma maneira particularmente cruel. Por um lado, os jovens descobrem que as possibilidades de um futuro brilhante – bons postos no exterior, salários satisfatórios, promoções rápidas – não eram, assim, tão realizáveis quanto o imaginado no início, quando os concursos chegavam a atrair vários milhares de candidatos para preencher as muitas vagas abertas por um serviço em expansão. Por outro lado, os administradores se defrontam, brutalmente, com a redução drástica de recursos, o que é inevitável numa situação de vacas magras, mas poderia ter sido planejado de outra forma, se alguns princípios de racionalidade instrumental tivessem sido aplicados na origem das novas despesas criadas na fase de expansão. As opções não são fáceis, como sabe todo administrador encarregado de dividir a penúria; sacrifícios parecem inevitáveis, em todos os planos. No plano puramente orçamentário, as mesmas receitas que valem para um indivíduo ou para uma família, deveriam valer igualmente para uma burocracia mais encorpada: reduzir despesas acessórias, ou seja, não conectadas aos fins últimos, eliminar luxos e benesses auto-atribuídas – como o hábito de jantar fora, ou de tirar férias em lugares charmosos, ou de alugar residências acima de um padrão razoável. No plano funcional, as soluções são mais difíceis, ou nem sempre aplicáveis: afinal de contas, a burocracia vive invariavelmente em função de seus próprios meios, ou seja, ela existe, em primeiro lugar, para realizar seus próprios objetivos, isto é, internos. Quando os recursos são finitos – como sempre são – se estabelece uma competição entre os agentes, vencendo os que detêm as informações mais relevantes, um pouco como nos mercados de fatores. O Estado será chamado a arbitrar? Talvez, mas como o Estado não produz recursos, apenas os retira dos próprios agentes produtores, ficam os dilemas de sempre, vinculados a desejos não satisfeitos. A economia é um grande nivelador de terreno, ainda que o nivelamento não contemple a todos de maneira igualitária. Em resumo: não existem mesmo expectativas de que o céu de brigadeiro e o mar de almirante retornem no horizonte previsível. Se ouso ainda terminar com mais uma banalidade popular: não há bem que sempre dure, não há mal que nunca se acabe...

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2739. “Fim das utopias na Casa de Rio Branco?”, St. Petersburg-Clearwater, FL, 29 dezembro 2014, 3 p. Considerações sobre o clima reinante no Itamaraty e na própria política externa, em torno das expectativas que se revelaram frustradas ao cabo de doze anos de experimentos supostamente inovadores. Divulgado no Diplomatizzando (link: http://diplomatizzando.blogspot.com/2014/12/fim-dasutopias-na-casa-de-rio-branco.html); reproduzido em Mundorama (n. 88, dezembro de 2014; ISSN: 2175-2052; link para o boletim: http://mundorama.net/2014/12/31/boletim-mundorama-no-88-dezembro2014/; link para o artigo: http://mundorama.net/2014/12/30/fim-das-utopias-na-casa-de-riobranco-por-paulo-roberto-de-almeida/). Relação de Publicados n. 1158.

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2. A política externa companheira e a diplomacia partidária

O término de um mandato presidencial sempre é uma boa ocasião para se efetuar um balanço das coisas boas e das menos boas que transcorreram durante o período. Por deformação de ofício, mas também por inclinação pessoal, tenho feito esse tipo de avaliação ao final e até no início de novos mandatos, num terreno que por acaso é o meu pelas últimas três décadas, pelo menos: os das relações internacionais do Brasil e da política externa dos governos que se sucederam desde o final dos anos 1970 (em plena ditadura, portanto), até a atualidade. Uma lista nominal de todos os ensaios de avaliação que escrevi a esse respeito ao longo dessas décadas seria provavelmente enfadonha, mas talvez possa ser útil aos que manifestem o desejo, e o interesse, de conhecer, ainda que seletivamente, o que produzi de mais relevante nessa área. Por isso, permito-me enumerar os mais representativos desse tipo de produção ao final deste breve ensaio. Mas o que me motiva a novamente realizar o mesmo tipo de exercício é a publicação recente, no calor dos debates eleitorais, de dois ou três artigos dentro da linha do continuísmo diplomático, ou seja, escritos deliberadamente com a intenção de “provar” que a política externa companheira, em curso desde o primeiro dia do regime lulo-petista – que entrou para a história como a era do “Nunca Antes”, que aliás serviu de título a meu livro mais recente – é a única suscetível de defender a soberania do Brasil, e que ela deve ser preservada com todo o ativismo e altivez que supostamente a caracterizam (segundo a figura de estilo, pro domo sua, de um ex-chanceler). Como eu acho que esses artigos nada mais são do que propaganda enganosa a serviço do partido no poder, publicidade encomendada travestida de análise acadêmica, resolvi apresentar aqui outros elementos de discussão, ao alinhar alguns argumentos em favor de uma outra visão, que pelo menos tem a vantagem, sobre essas, de oferecer uma perspectiva 21

“interna” da diplomacia companheira, e sem que ninguém me tivesse encomendado tal tarefa. Ni Dieu, ni maître, como diria um anarquista; e eu: nem mestre, nem patrão. Primeiro: distinguir a política externa da diplomacia, stricto sensu Cabe distinguir, primeiramente, entre política externa e diplomacia – que são assemelhadas mas não devem ser confundidas –, para, a partir daí, fazer uma avaliação de ambas ao longo do período recente. A primeira não se distinguiu muito, ou praticamente nada, da política externa conduzida nos dois mandatos do presidente Lula, ou seja, significou uma continuidade conceitual, em suas grandes linhas, ainda que tenha representado certa diminuição no ímpeto para novas iniciativas e no impulso para projeções exageradas no plano internacional. A segunda, a diplomacia, foi certamente diferente, ainda que ambas tenham apresentado forte ênfase na chamada diplomacia presidencial, ou seja, o envolvimento direto do chefe de Estado com certos temas, embora com certa diminuição na intensidade das ações, como aliás ocorreu na transição de uma para outra política externa. Foram estilos diferentes, digamos assim, na maneira de conduzir a política externa e a diplomacia: um pouco diferentes entre si, mais na forma do que no conteúdo, ainda que continuassem pertencendo e aderindo, ambos, aos mesmos princípios e modos de funcionamento. Cabe, portanto, examinar uma e outra em sua substância, e não apenas na forma sob a qual foram respectivamente desenvolvidas. Quando se diz que a política externa não se distinguiu muito entre os dois mandatos anteriores do presidente Lula (20032006, e 2007-2010) e o mandato da sucessora, é porque esta preservou basicamente as mesmas orientações, as mesmas linhas essenciais que estavam em curso desde o início do primeiro mandato lulo-petista, do qual esta foi mera continuação, quando não foi uma simples projeção no tempo, por pessoas interpostas, da mesma política externa. Cabe registrar, desde logo, que essa política externa (e sua diplomacia) foi muito bem recebida pelas correntes ditas progressistas da opinião pública, o que significa quase toda a academia, por ter sido considerada como bastante inovadora em relação às linhas anteriormente conhecidas da política externa brasileira, que era influenciada (se não determinada, em grande medida) pelo Itamaraty. Esta é a principal característica da política externa lulo-petista, da qual a política externa “dilmista” (se é possível, de fato, falar de uma) representa, como já se disse, mera continuidade. Avaliação da política externa e da diplomacia de 2011 a 2014 22

A avaliação que se pode fazer, de uma e de outra, é, portanto, válida para todo o período lulo-petista e seus grandes traços são bastante conhecidos pelos observadores dos meios de comunicação, tanto quanto pelos analistas acadêmicos. Se trata de uma política que se pretende – numa espécie de classificação pro domo sua, ou seja, em causa própria – “ativa e altiva”, e que se quer soberana, ou mais exatamente defensora da soberania nacional. Como elogio em boca própria pode ser vitupério, digamos que ela se conforma a certos traços que seus próprios protagonistas selecionaram para si: uma diplomacia voltada para o Sul – como se uma orientação para o Norte constituísse um pecado original – e basicamente orientada a “mudar as relações de força” no cenário internacional, tido como prejudicial às novas aspirações do governo para o país. Essa foi a intenção proclamada pelo anterior chefe de Estado, e confirmada pelo seu único chanceler mais de uma vez, que ainda acrescentava que se pretendia criar uma “nova geografia do comércio internacional”. Como ocorreu em várias outras esferas da vida nacional, e de suas políticas públicas, se pretendia romper com o universo anterior, considerado uma “herança maldita” sob diversos aspectos, ainda que esta caracterização tenha mais de demagogia política do que de análise objetiva. Na política externa, em todo caso, as pretensões eram bastante ambiciosas, e em torno delas se mobilizou uma diplomacia que foi convidada a “vestir a camisa” do novo governo. Em síntese, se acreditava que a ordem mundial anterior estava caracterizada por uma “extraordinária concentração de poder econômico, militar, político, ideológico, cultural” (e vários outros mais) nas mãos das antigas potências coloniais europeias e, principalmente, do império americano. Esta é a análise que o principal ideólogo daquela diplomacia – o ex-Secretário-Geral do Itamaraty, Embaixador Samuel Pinheiro Guimarães – fez de maneira recorrente da situação internacional encontrada pela diplomacia lulo-petista no início do milênio, e que seus protagonistas e principais proponentes tentaram modificar. O caminho estaria numa aliança entre potências emergentes e países do Sul de maneira geral, para se opor a esse poder desmesurado do hegemonismo arrogante, de maneira a poder “democratizar as relações internacionais”, redistribuindo aquelas fontes de poder entre novos atores. A Weltanschauung dos companheiros e seus objetivos táticos Este é o arcabouço mental, e o quadro conceitual, em torno do qual se construiu a política externa lulo-petista, e em função do qual se mobilizou uma diplomacia voltada essencialmente para esses grandes objetivos. As metas táticas para alcançá-los, 23

pelo menos parcialmente, foram apresentadas, ao início daquele governo, como estando integradas por três prioridades: (a) reforço e ampliação do Mercosul e constituição de um espaço econômico integrado na América do Sul; (b) conquista de um assento permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas; (c) finalização das negociações comerciais multilaterais da Rodada Doha, com aquela orientação de aliança com os países do Sul, no sentido de criar a “nova geografia do comércio internacional”. Qualquer que seja a posição do observador jornalístico, ou do analista acadêmico, podese avaliar, então, se esses objetivos foram alcançados, ou cumpridos parcialmente, com base na diplomacia mobilizada para atingi-los. Uma avaliação honesta diria que eles sequer foram arranhados, ainda que os adeptos dos governos lulo-petistas sempre terão motivos para se explicar quanto ao atingimento apenas parcial ou nulo de tais objetivos. Ainda que os fieis seguidores da causa companheira possam dizer, por exemplo, que o Mercosul “deixou de ser apenas comercial, para também ser político e social”, um critério honesto e objetivo de aferição teria de reconhecer que o Mercosul é, sempre foi, um tratado de integração comercial, e é isso que o define como instrumento de criação de um espaço econômico comum no cone sul. O Mercosul está mais próximo, hoje, das metas fixadas institucionalmente no Tratado de Assunção em 1991? Ou seja, de um mercado comum? Sequer uma união aduaneira completa ou uma zona de livre comércio acabada foram realizadas; ao contrário, a convergência interna diminuiu, para não dizer que as divergências de política comercial, mas também em outras políticas setoriais, só fizeram aumentar ao longo dos últimos doze anos. O Mercosul é hoje uma sombra do que foi, e não se pode pretender que a adesão política de países tão pouco propensos ao livre comércio, como a Venezuela, a Bolívia e o Equador, o fará mais forte em seus objetivos essenciais, que continuam sendo aqueles estipulados no artigo 1o do TA. Quanto ao assento permanente no CSNU, é óbvio que a reforma da Carta das Nações Unidas e a ampliação do seu órgão de segurança não dependiam da postura assumida pelo Brasil, num processo tão complexo quanto a ascensão e declínio de novos atores nos cenários geopolíticos mundiais. Mas o ativismo da diplomacia lulista pode ter contribuído, também, para o acirramento da rigidez oposicionista de outros atores regionais, a começar pela própria Argentina, preocupação sempre mantida pela anterior diplomacia – a de FHC – para não causar, justamente, desacertos públicos numa questão que merecia iniciativas mais discretas e profissionais. Tampouco o terceiro objetivo dependia da capacidade negociadora do Brasil, ou mesmo de seus muitos aliados no sistema de comércio internacional, mas não houve, nesse terreno, 24

realismo suficiente para atuar nas duas vertentes: a do multilateralismo do sistema de comércio regido pela OMC, e o minilateralismo dos blocos e acordos comerciais de menor amplitude geográfica, e mais suscetíveis de serem implementados de modo mais rápido e com objetivos práticos mais bem definidos, ainda que mais limitados. Quando o governo Dilma assumiu, porém, esses dois últimos objetivos já estavam praticamente “congelados”, e não cabiam mais iniciativas nesses dois terrenos. Mas a via do minilateralismo comercial continuava sempre aberta para novas iniciativas brasileiras, muito embora o Mercosul pudesse ser, como é, de fato, uma espécie de “pedra no sapato” para a busca de acordos comerciais regionais. Não que o Mercosul possa ser infenso a acordos de liberalização comercial com outros países e blocos comerciais, mas é que a postura de alguns de seus sócios – nomeadamente a da Argentina – tem dificultado sobremaneira a definição de posições comuns para permitir o avanço em negociações desse tipo. Não se espera, a esse respeito, que o ingresso político dos novos associados bolivarianos venha a facilitar as coisas nesse terreno, muito pelo contrário: as perspectivas, portanto, são as de um Mercosul paralisado e introvertido, situação já configurada a partir do neoprotecionismo demonstrado pelos países membros a partir da crise de 2008 (na Argentina desde sempre) e que promete continuar vigente caso não ocorra uma mudança radical na política comercial. Esta é, portanto, a avaliação que se pode fazer da política externa dos governos lulo-petistas, mas exclusivamente em relação aos objetivos diplomáticos estabelecidos pelo próprio chefe de Estado e seu chanceler, ao início do regime companheiro. Não é preciso, aqui, fazer menção a diversos outros elementos de continuidade, igualmente nítidos entre um governo e outro, e que tem a ver mais com a diplomacia partidária do que com opções de política externa que pudessem representar itens de uma agenda “normal” das relações exteriores do Brasil. Alguns casos podem servir de ilustração. O lado obscuro da política externa companheira O apoio incondicional a algumas das piores ditaduras do continente, e alhures, por exemplo, não figuraria na “agenda normal” do Itamaraty, em circunstâncias “normais” da política externa. O apoio irrestrito a vários candidatos tidos por progressistas, ou de esquerda, na região e fora dela, foi outra iniciativa que rompeu tradições bem assentadas no Itamaraty, e até alguns princípios constitucionais muito claros da tradição brasileira, como a não intervenção nos assuntos internos de outros países. Como explicar de outro modo, senão por uma diplomacia totalmente partidária, 25

e ideologicamente comprometida com o chavismo militante, o envolvimento no caso da crise política em Honduras? Como justificar o apoio repetido, continuado e incondicional, ao regime chavista, e a seu sucessor, em face de tantas violações às cláusulas democráticas da OEA e do próprio Mercosul? Como explicar a existência de empréstimos secretos bilionários, e todos os tipos de apoio financeiro, à mais velha ditadura do hemisfério americano, senão pelo comprometimento de vários membros do partido hegemônico com a filosofia e a história de um regime que encarna as piores violações dos direitos humanos e dos princípios democráticos na região? Em quais circunstâncias, exatamente, o Paraguai foi suspenso do Mercosul – contrariamente, aliás, aos procedimentos determinados pela própria cláusula democrático do bloco – e admitida a Venezuela no intervalo? O Itamaraty foi acatado em seus pareceres jurídicos e em sua análise política? Estes são elementos que também devem entrar em qualquer avaliação que se faça da política externa seguida nos últimos doze anos, fruto de uma diplomacia marcada pelas opções partidárias mais exacerbadas que foram dadas contemplar por um Itamaraty basicamente profissional, em toda a sua história, mas que foi submetido aos novos objetivos e opções do regime companheiro. Se houve alguma novidade na diplomacia do terceiro mandato do regime lulo-petista foi a perda da pirotecnia anterior que era garantida pelo próprio chefe de Estado, com seu estilo peculiar de conduzir as relações exteriores do Brasil: diminuíram o ativismo, as iniciativas, e a diplomacia dita presidencial assumiu contornos mais discretos; mas não se podem apontar elementos realmente novos nessa política externa. O que houve de novidade, como o ingresso “pleno” da Venezuela no Mercosul, por exemplo, já estava embutido nas propostas do governo anterior, cujas principais iniciativas diplomáticas – como as reuniões de cúpula entre chefes de Estado e de governo da América do Sul, por um lado, e seus contrapartes da África, e dos países árabes, de outro – ficaram mais ou menos “congeladas”, ou pelo menos sofreram sensível redução em seu ímpeto.

O Itamaraty foi ignorado pela presidência na gestão de 2011 a 2014? Não se pode ignorar simplesmente um ministério que conduz uma agenda relevante nas políticas públicas do país. Talvez essa impressão seja o reflexo do modo de ser da presidente, que também não parece se relacionar muito bem com os líderes congressuais, com os representantes partidários, com empresários e líderes sindicais e 26

de movimentos populares, como fazia, por exemplo, e com grande sucesso, seu antecessor. São traços de personalidade que definem toda uma gestão, e não apenas o relacionamento com o Itamaraty. Provavelmente uma menor empatia pelos temas internacionais tenha gerado essa imagem de um distanciamento entre a presidente e o Itamaraty, e claramente não havia, nunca houve, entre ela e seus dois chanceleres, o mesmo tipo de intimidade que ela pode ter exibido em relação a alguns de seus ministros mais próximos. Mas deve-se levar em conta, também, o fato de que a presidente nunca foi uma petista “fundadora”, e não parece ter gozado das mesmas alavancas de apoio no partido de que dispunham alguns companheiros “históricos”. Ou seja, outros ministérios setoriais podem também ter se ressentido do mesmo tratamento “distante” registrado, provavelmente, no caso do Itamaraty. Para saber se o Itamaraty foi realmente “ignorado” seria preciso fazer um levantamento preciso, primeiro, das dotações orçamentárias, e de sua distribuição e evolução ao longo deste mandato, depois dos compromissos inscritos na agenda do Itamaraty que a presidente eventualmente desdenhou ou não pretendeu assumir. Apenas a partir de uma avaliação objetiva desse tipo seria possível defender a tese explicitada na questão, a de que o Itamaraty foi “ignorado” na gestão Dilma. Em relação aos recentes cortes de verbas, aparentemente lineares e válidos para todos os ministérios, seria preciso saber se eles foram mais profundos no caso do Itamaraty do que nos demais órgãos da administração direta. Registre-se que o Itamaraty possui um perfil de gastos bastante modesto no conjunto da administração pública, mas que a maior parte deles é quase rígida, pois que correspondendo a compromissos e obrigações externas que não podem ser suprimidos ou reduzidos facilmente, sem mencionar o fator cambial, que pode ser muito negativo em caso de desvalorização da moeda nacional. Caberia também considerar que os dois mandatos anteriores foram tão vistosos, tão resplandecentes, tão eloquentes em matéria de política externa e de diplomacia, que seria muito difícil, senão impossível, tentar estabelecer uma postura equivalente em qualquer outro governo, passado, presente ou futuro. Nunca antes na história do Brasil tivemos um presidente tão eloquente, tão verborrágico, tão envolvido em questões internacionais, talvez por gosto, mais provavelmente por alguma obsessão de fundo psicológico, alguma necessidade de afirmação, desejo de ganhar algum Prêmio Nobel – ao lado das dezenas de doutorados honoris causae jamais acumulados por qualquer outro político na face da Terra – ou outros sentimentos ainda mais obscuros para nossa condição de simples observadores da diplomacia lulista. Frente a ela, todas as demais se 27

apagam em sua normalidade ou mediocridade: este é um fato da história política recente do Brasil, independentemente do julgamento que se faça sobre o conteúdo daquela diplomacia e da avaliação objetiva que se tenha quanto aos resultados (ou falta de) de sua política externa. Não obstante, considerados todos esses fatores, é muito provável, sim, que em função de peculiaridades individuais e pessoais, tenha ocorrido alguma falta de sintonia entre o Itamaraty e a presidente, inclusive porque existem certos rituais do cerimonial diplomático, ademais de constrangimentos derivados de situações externas que não podem ser facilmente administrados por apenas uma das partes, que reforçaram essa impressão de distanciamento entre a Casa de Rio Branco e a presidente. Pode-se dizer, em suma, numa linguagem goethiana e weberiana, que nunca existiram suficientes “afinidades eletivas” entre a presidente e a Casa de Rio Branco, embora isso possa ter ocorrido com outros presidentes também. Mas, o fato é que, vindo logo após o mais pirotécnico de todos os nossos presidentes, travestido de diplomata, ficava realmente difícil igualar certos padrões de comportamento, e até de compostura, no plano das relações exteriores do Brasil. Lista seletiva de trabalhos do autor sobre política externa do Brasil: Nunca Antes na Diplomacia...: A política externa brasileira em tempos não convencionais (Curitiba: Appris, 2014, p. 289; ISBN: 978-85-8192-429-8; link: http://www.pralmeida.org/01Livros/2FramesBooks/NuncaAntes2014.html). “O Brasil e a integração regional, da Alalc à Unasul: algum progresso?”, Mundorama (11/06/2014; ISSN: 2175-2052; link: http://mundorama.net/2014/06/11/o-brasil-ea-integracao-regional-da-alalc-a-unasul-algum-progresso-por-paulo-roberto-dealmeida/). “Mercosul, do otimismo à resignação”, Boletim de Economia e Política Internacional (Ipea: n. 16, jan.-abr. 2014, p. 43-56; ISSN: 2176-9915; link: http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/boletim_internacional/140512_ boletim_internacional016.pdf). “Rumos adequados à política externa brasileira na próxima década”, blog Diplomatizzando (link: http://diplomatizzando.blogspot.com/2014/07/rumosadequados-politica-externa.html). “Pensamento diplomático brasileiro: introdução metodológica às ideias e ações de alguns dos seus representantes”, in: José Vicente Pimentel (org.), Pensamento Diplomático Brasileiro: Formuladores e Agentes da Política Externa (1750-1964). (Brasília: FUNAG, 2013, 3 vols.; ISBN: 978-85-7631-462-2; vol. 1, p. 15-38; link: http://funag.gov.br/loja/download/1057-1058-1059-pensamento-diplomaticobrasileiro-colecao.epub). “A diplomacia da era Lula: balanço e avaliação”, Política Externa (vol. 20, n. 3, dez./jan./fev. 2011-2012, p. 95-114; ISSN: 1518-6660; link: www.pralmeida.org/05DocsPRA/2344DiplomEraLulaBalRevPolitcaExterna.pdf). 28

Relações internacionais e política externa do Brasil: a diplomacia brasileira no contexto da globalização (Rio de Janeiro: LTC, 2012, 330 p.; ISBN 978-85-2162001-3; http://www.pralmeida.org/01Livros/2FramesBooks/RelaIntPExt2011.html) “Continuidade e Mudança na Política Externa Brasileira”, Mundorama (1/04/2011; link: http://mundorama.net/2011/04/01/continuidade-e-mudanca-na-politica-externabrasileira-por-paulo-roberto-de-almeida/). “A diplomacia brasileira numa nova conjuntura política”, Mundorama (29.12.2010; link: http://mundorama.net/2010/12/29/a-diplomacia-brasileira-numa-novaconjuntura-politica-por-paulo-roberto-de-almeida/). “Never Seen Before in Brazil: Lula’s grand diplomacy”, Revista Brasileira de Política Internacional (vol. 53, n. 2, 2010, p. 160-177; ISSN: 0034-7329; link: http://www.scielo.br/pdf/rbpi/v53n2/09.pdf). “La diplomatie de Lula (2003-2010): une analyse des résultats”, In: Denis Rolland, Antonio Carlos Lessa (coords.), Relations Internationales du Brésil: Les Chemins de La Puissance; (Paris: L’Harmattan, 2010, vol. 2: Représentations Globales, p. 249-259; ISBN: 978-2-296-13543-7). Postado no blog Diplomatizzando (link: http://diplomatizzando.blogspot.com/2010/10/relations-internationales-dubresil.html). “Pensamento e ação da diplomacia de Lula: uma visão crítica”, Política Externa (vol. 19, n. 2, set.-out.-nov. 2010, p. 27-40; ISSN: 1518-6660; link: http://diplomatizzando.blogspot.com/2010/09/pensamento-e-acao-da-diplomaciade-lula.html). “Lula’s Foreign Policy: Regional and Global Strategies”, In: Werner Baer and Joseph Love (eds.), Brazil under Lula (New York: Palgrave-Macmillan, 2009, 326 p.; ISBN: 970-0-230-60816-0; chap. 9; p. 167-183; link: http://www.pralmeida.org/05DocsPRA/1811BrForPolicyPalgrave2009.pdf). “A diplomacia do governo Lula em seu primeiro mandato (2003-2006): um balanço e algumas perspectivas”, Carta Internacional (São Paulo: Nupri-USP, vol. 2, n. 1, jan-mar 2007, p. 3-10; ISSN: 1413-0904; link: http://www.pralmeida.org/05DocsPRA/1733DiplomLula1roMandCartaInter2007.p df). “¿Una nueva ‘arquitectura’ diplomática? Interpretaciones divergentes sobre la política exterior del Gobierno Lula (2003-2006)”, Entelequia: revista interdisciplinar (2, Otoño 2006, p, 21-36; ISSN: 1885-6985; link: http://www.eumed.net/entelequia/es.art.php?a=02a02); “A política internacional do PT e a diplomacia do governo Lula”, In: Guilhon de Albuquerque, José Augusto; Seitenfus, Ricardo; Nabuco de Castro, Sergio Henrique (orgs.), Sessenta Anos de Política Externa Brasileira (1930-1990) (2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, ISBN: 85-7387-909-2; v. I: Crescimento, Modernização e Política Externa; p. 537-559), “La politique internationale du Parti des Travailleurs: de la fondation du parti à la diplomatie du gouvernement Lula”, In: Denis Rolland et Joëlle Chassin (orgs.), Pour Comprendre le Brésil de Lula (Paris: L’Harmattan, 2004, ISBN: 2-74756749-4; p. 221-238; link: http://www.pralmeida.org/01Livros/2FramesBooks/73BresilLula.html). “A política internacional do Partido dos Trabalhadores: da fundação do partido à diplomacia do governo Lula”, Sociologia e Política (Curitiba: UFPR; n. 20 jun. 2003, p. 87-102; ISSN: 0104-4478; link: www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-44782003000100008). 29

[Muitos outros materiais, e comentários tópicos, podem ser encontrados, geralmente sob a rubrica “diplomacia companheira” ou “política externa companheira”, no blog Diplomatizzando, desde vários anos, onde também tenho registrado os artigos dos companheiros de viagem do novo pensamento único, os acadêmicos gramscianos.]

2684. “A política externa companheira e a diplomacia partidária: um contraponto aos gramscianos da academia”, Hartford, 4 outubro 2014, 9 p. Reelaboração das primeiras duas partes do trabalho 2683. Publicado em Mundorama (4/10/2014; ISSN: 2175-2052; link: http://mundorama.net/2014/10/04/a-politica-externacompanheira-e-a-diplomacia-partidaria-um-contraponto-aos-gramscianos-daacademia-por-paulo-roberto-de-almeida/ ). Relação de Publicados n. 1144.

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3. Continuidade e mudança na política externa brasileira

Toda política externa, ou toda política governamental, em geral, é feita de mudanças e continuidades. Talvez a política externa tenha bem mais continuidades do que mudanças, pela própria natureza do “negócio”: não se muda o sistema de relações internacionais, a política regional, as relações bilaterais e menos ainda a agenda de trabalho de grandes organismos internacionais da mesma forma ou com as mesmas “facilidades” com que se pode imprimir mudanças de direção, algumas até repentinas, no plano das políticas domésticas. Partindo, portanto, do pressuposto de que as continuidades são mais frequentes do que as mudanças, podemos, talvez até mais facilmente, detectar mudanças de ritmo, de estilo e até de orientação na política externa de um estado emergente como o Brasil. Vendo o mundo como uma ordem em transição, o Brasil está interessado, justamente, na mudança de padrões nas relações internacionais, que sejam suscetíveis de acomodar suas novas pretensões ou seus pleitos quanto ao estabelecimento de uma nova agenda mundial e quanto ao funcionamento desse sistema, ou seja, no quadro de medidas operacionais. As primeiras mudanças que podemos detectar, entre a diplomacia de Lula e a de Dilma se situam, obviamente, no plano do estilo, já que ninguém saberia, nem poderia, imitar, ou mimetizar, o estilo inigualável do ex-presidente, qualquer que seja o julgamento que se faça sobre as suas qualidades de chefe de Estado, de governo e de condutor da diplomacia brasileira. Fosse outro o governo, ou fosse outro o chefe de 31

Estado, muitos dossiês internacionais poderiam estar sendo conduzidos pelo chefe da chancelaria ou pela burocracia normal do Ministério das Relações Exteriores. O ex-presidente se envolvia pessoalmente na condução, e até na definição de posições negociadoras, em vários dos mais importantes assuntos da diplomacia oficial, a começar pela política regional, as questões da integração, a presença do Brasil em diversos foros, ou fóruns internacionais – a diplomacia dos Gs: G3, G4, Brics, o G20 financeiro e vários outros – sem esquecer as muitas visitas bilaterais e encontros regionais (como os com dirigentes sul-americanos e destes com os africanos e árabes). É previsível que a presidente Dilma conduza os assuntos externos bem mais através da própria chancelaria, o que já constitui uma mudança substantiva. Essa mesma conformação permitirá restaurar a unidade da formulação e implementação da política externa, anteriormente fragmentada numa espécie de tríade constituída pelo assessor especial da presidência em assuntos internacionais, pelo secretário-geral das relações exteriores e pelo próprio chanceler. Já se trata, portanto, de uma grande mudança. No plano da forma, mas isto também tem a ver com a substância, outras são as prioridades e outro é o estilo da presidente Dilma Rousseff, a começar pelas suas preocupações naturais com a política interna e com a economia doméstica, inclusive porque a herança de problemas deixada pelo ex-presidente é pesada, sobretudo em termos de gastos públicos e a consequente deterioração orçamentária, a aceleração inflacionária em função da expansão exagerada do crédito (privado e público), a diminuição do superávit primário e as inúmeras maquiagens contábeis feitas em 2010 para mistificar o crescimento da dívida pública, entre outros legados negativos da presidência Lula. Mas, formada a base parlamentar do governo, para assegurar boas condições de governança interna, e anunciados os cortes orçamentários e outras medidas de ajuste para combater a inflação, o governo Dilma pode então dedicar uma parte dos seus esforços a questões de política externa. Ela o fez, aliás, ainda antes de tomar posse, pois sua primeira entrevista à imprensa foi concedida ao jornal Washington Post, em novembro de 2010, quando ela justamente se distancia da política de direitos humanos do governo Lula ao declarar sua total contrariedade com o apoio que o Brasil concedia, então, ao Irã, país considerado um violador contumaz dos direitos humanos de seus cidadãos. Dilma, na verdade, se pronunciou especificamente a respeito do possível, até provável naquela ocasião, apedrejamento da iraniana Sakineh Ashtiani, possibilidade que a presidente eleita considerou, com razão, um ato bárbaro, contrário a qualquer 32

sentido de humanidade e de padrões civilizacionais. No fundo, ela estava condenando, sem o dizer, a proximidade e até o apoio da diplomacia lulista em relação a algumas das piores ditaduras remanescentes no mundo contemporâneo. Esse é, pode-se dizer, a principal diferença, ou inovação diplomática, do governo Dilma em relação ao governo Lula, postura confirmada recentemente quando o governo brasileiro votou a favor do envio de um consultor em matéria de direitos humanos para investigar violações no Irã, objeto de decisão específica, para imenso desprazer dos iranianos, no Conselho dos Direitos Humanos da ONU em Genebra. O desprazer iraniano já tinha sido criado com o convite formulado anteriormente à Prêmio Nobel iraniana, advogada de direitos humanos, Shirin Ebadi, para almoçar na Residência da delegação do Brasil para assuntos de direitos humanos, inaugurando, portanto, um diálogo oficial do governo brasileiro com a oposição política ao atual governo do Irã, em total contraposição às posições favoráveis exibidas pelo governo precedente, ou pelo menos pelo presidente Lula e pelo seu chanceler. A outra inovação é, obviamente, observada no relacionamento com os EUA e em temas da agenda multilateral que possuem uma grande interface com a política dos EUA, como nos recentes episódios envolvendo a guerra civil na Líbia e questões de natureza econômica envolvendo comércio, moedas e a China. Existe uma evidente boa vontade e até iniciativas concretas para melhorar o diálogo e o relacionamento com os EUA, em outro claro sinal de distinção vis-à-vis a política externa do trio GarciaGuimarães-Amorim sob a orientação geral do Supremo Guia. A intenção, manifestada explicitamente pela presidente e seu chanceler, era a de criar novos espaços de cooperação entre o Brasil e os EUA, podendo incluir até a revisão do processo de compra de novos caças para a FAB e outros áreas de interesse mútuo no comércio, investimentos, energia, G20, etc. Depois da visita do presidente Obama – considerada um sucesso mesmo sem grandes resultados aparentes, pelo simples fato de se ter realizado antes de passados três meses da posse da presidente Dilma, segundo o chanceler – a presidente Dilma teria veiculado – a crer em matéria da Folha de S. Paulo do dia 28 de março de 2011, a partir de fontes autorizadas do Palácio do Planalto – seu descontentamento com o excesso de simbolismo e a pouca substância como resultado desse encontro. A presidente gostaria, ao que parece, de uma “diplomacia de resultados”, uma expressão que esteve identificada, pela primeira vez, com um chanceler que era um empresário: Olavo Setubal, chanceler escolhido pelo presidente 33

não-empossado Tancredo Neves, e que ficou dois anos sob o vice-presidente empossado presidente José Sarney, em 1986 e 1986. O outro sinal de distanciamento, ainda a ser confirmado, seria na relação com a China, potência com a qual o governo anterior entreteve diversas ilusões de aliança estratégica, declarando-se a favor do reconhecimento desse país como economia de mercado e esperando receber dela apoio para suas pretensões exageradas a um grande papel internacional, a começar pela reforma da Carta da ONU e a inclusão do Brasil como membro permanente do Conselho de Segurança das Nações Unidas. A presidente Dilma estaria descontente, ao que parece, mas aqui pressionada pelos industriais brasileiros, com o papel reservado pela China ao Brasil, de simples provedor de matérias primas e de grande mercado para suas manufaturas baratas, que estão competindo fortemente com equivalentes brasileiros não apenas no plano doméstico mas também em terceiros mercados, especialmente na América Latina. Mas ainda temos de aguardar a visita a ser feita pela presidente à China, ainda agora em abril, inclusive para reunião dos Brics, que passou a incluir a África do Sul, com o total apoio da China e para desconforto do Brasil, que pretendia manter separadas as agendas do Ibas e dos Brics. Também ainda resta esperar pelos testes da nova política externa no contexto regional, campo por excelência do que tinha sido designado, na gestão anterior, de exercício de liderança brasileira, para grande desconforto dos profissionais do Itamaraty. Este talvez seja o elemento crucial a fornecer elementos mais concretos para se avaliar se a diplomacia de Dilma se distingue, ou não, da diplomacia de Lula. No contexto regional, todo o empenho dos auxiliares diplomáticos de Lula se exerceu no sentido de afastar os sul-americanos do império e afastar o império dos assuntos latinoamericanos. O esforço começou pela implosão da Alca, bem sucedido, aliás, e em torno da qual seus autores se orgulharam pelo mérito da obra. O processo continuou pela constituição de agrupamentos políticos claramente autônomos em relação aos vetores de influência imperiais na região, quando não em oposição à presença americana no continente sul-americano. Esse foi o sentido da constituição da Comunidade Sul-Americana de Nações, criada por iniciativa do Brasil numa reunião de cúpula ocorrida em Cuzco, no Peru, em dezembro de 2004, à qual, por sinal, não compareceu nenhum dos demais dirigentes do Mercosul. O Brasil ofereceu o Rio de Janeiro para sediar o que seria um secretariado da Casa, no que não foi seguido pelos demais países da região, que se empenharam em encontrar substitutivos ao projeto 34

brasileiro. A Casa foi substituída em 2008 pela Unasul, com sede em Quito, como proposto pelo presidente Chávez. Pode-se dizer que a Unasul constitui uma continuidade apenas parcial do primeiro projeto de integração sul-americana proposto pelo Brasil, mas que hoje escapa largamente ao seu controle. Em todo caso, diferentemente da IIRSA, que constituía um projeto de integração física do continente, proposto pelo Brasil na primeira reunião de chefes de Estado e de governo da América do Sul, em 2000 – que por ter sido iniciado por Fernando Henrique Cardoso foi descontinuado parcialmente – a Unasul ainda não conseguiu dar continuidade à carteira de projetos desenhados pelo BID nos mais diversos campos da infraestrutura: energia, comunicações, transportes, etc. Onde também ocorreu descontinuidade na agenda da política externa herdada pelo governo Lula de FHC foi na área reputada estratégica e prioritária por ambos governos: o processo de integração sob a égide do Mercosul. Sua vertente econômica e comercial, que constitui o cerne mesmo do processo, ficou praticamente intocada, ou talvez tenha até retrocedido, a partir das inúmeras salvaguardas abusivas e ilegais introduzidas pelo governo argentino contra produtos manufaturados brasileiros, em total contradição com o espírito e a letra do Tratado de Assunção, e com a complacência leniente demonstrada pelo governo brasileiro. Em seu lugar, foram impulsionadas as vertentes políticas e sociais da integração, que podem até ser interessantes em seu mérito próprio, mas não constituem propriamente uma base sólida sobre a qual ancorar a integração. Pois bem: ainda não se sabe, aqui, se haverá continuidade na mesma política de “compreensão generosa” com as violações argentinas dos seus compromissos sob o Tratado de Assunção ou se o governo Dilma seguirá uma política de defesa da legalidade e de conformidade com os engajamentos assumidos no quadro dos diversos protocolos de integração assinados pelos quatro países membros. O ingresso da Venezuela poderá constituir um teste, já que o país andino liderado pelo coronel socialista ainda não atendeu aos requisitos básicos do processo de integração, que são a internalização da Tarifa Externa Comum do Mercosul e a aceitação das demais regras de política comercial. Por outro lado, ainda é cedo para dizer como se desenvolverão as relações com a Bolívia e o Paraguai, dois países que pretendem extrair mais vantagens econômicas e financeiras de suas relações com o Brasil, ambas no terreno energético. Tampouco se pode avançar agora o grau de continuidade que será exercido em torno de uma das 35

principais insistências do governo Lula no plano multilateral: a conquista de uma cadeira permanente no Conselho de Segurança. O bom senso recomendaria uma mudança de ênfase nesse capítulo, já que se imagina que, se e quando houver reforma da Carta da ONU, o Brasil desponta, desde já, como candidato natural ao cargo, independentemente de qualquer ação mais militante. Aliás, muitas das mudanças registradas recentemente na política externa obedecem a simples regras de bom senso: determinadas posições anteriores, como o apoio a ditadores e suas violações de direitos humanos, se chocavam tão frontalmente com as tradições diplomáticas nessa área, e até com a Constituição brasileira, que bastava aplicar o bom senso para restabelecer a dignidade perdida. Ocorreu aqui, portanto, uma mudança para restabelecer a continuidade com a situação anterior à politização e partidarização da diplomacia brasileira: certas rupturas são bem vindas, mesmo quando se pretende retornar ao passado de profissionalismo pelo qual sempre foi conhecido o Itamaraty. Finalmente, o que deve ser visto também como uma mudança para assegurar a continuidade é o restabelecimento da unidade conceitual e operacional da política externa, antes fragmentada e dividida entre diversos atores, formuladores e executores, agora aparentemente retomando seu leito natural, de unidade de comando, uniformidade de propósitos, homogeneidade na execução. Previsibilidade, credibilidade, estabilidade e legitimidade são condições e elementos importantes para a qualidade de qualquer diplomacia, desde sua fase de concepção e planejamento, até o momento de sua execução e implementação. Certas mudanças são a melhor garantia de continuidade, ou vice-versa. 2259. “Continuidade e Mudança na Política Externa Brasileira”, Brasília, 31 março 2011, 6 p. Texto de palestra na Universidade Tuiuti, do Paraná, abertura do curso de pós-graduação em relações internacionais, em 1o. de Abril de 2011. Blog Diplomatizzando (http://diplomatizzando.blogspot.com/2011/04/continuidade-emudanca-na-politica.html). Mundorama (1/04/2011; link: http://mundorama.net/2011/04/01/continuidade-e-mudanca-na-politica-externabrasileira-por-paulo-roberto-de-almeida/). Refeito em 31/05/2011, em formato reduzido, sob o título de “A diplomacia brasileira em mutação”; Via Política (13/07/2011); Dom Total (14/07/2011; link: http://www.domtotal.com/colunas/detalhes.php?artId=2088). Relação de Publicados n. 1024.

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4. A diplomacia brasileira numa nova conjuntura política

A crer nas declarações, após o 31 de outubro de 2010, do presidente Lula, responsável inquestionável pela vitória eleitoral da candidata oficial Dilma Rousseff, o novo governo será constituído e conduzido à imagem e semelhança da presidente eleita. Ele também negou que vá ter, pessoalmente, qualquer influência sobre as decisões de governo a partir de 2011. A despeito dessas declarações, é provável que o novo governo conserve, grosso modo, as grandes linhas seguidas durante os dois mandatos do presidente Lula, o que foi aliás confirmado pela candidata eleita, que pautou sua campanha como estando marcada pela continuidade das mudanças empreendidas desde 2003. A rigor, a afirmação vale tanto para a economia e para as políticas sociais, que respondem por grande parte do sucesso do mandato que se encerra, quanto para a política internacional do Brasil e suas relações diplomáticas, de modo geral, terreno no qual as avaliações são mais circunspectas. Partindo, justamente, do pressuposto de que a base política do novo governo se manteve, e até se reforçou, como resultado das eleições de outubro de 2010, bem como da possibilidade de que o principal artífice pela vitória de Dilma nestas eleições pretenda, em função de projetos políticos futuros, manter-se ativo no “mercado de consultoria presidencial”, é possível, assim, vê-lo articulando contatos e iniciativas que compreendam a frente interna, mas que também alcancem, de algum modo, a esfera diplomática. Independentemente, porém, desse tipo de interface operacional, aparentemente inevitável nas circunstâncias que cercaram o mais recente escrutínio 37

presidencial – a mais de um título inédito na história política nacional –, a força do cargo, quando assumido plenamente, e características pessoais ligadas a cada uma das personalidades citadas, fazem com que se venha a assistir, necessariamente, um cenário bastante diferente daquele registrado nos últimos oito anos. Peculiaridades especiais na forma de conduzir os assuntos de Estado, seja na frente interna, seja no âmbito externo, assim como simbologias ligadas a histórias de vida diferentes, sustentam o diferencial que pronto se observará. Dificilmente se poderá reproduzir, por exemplo, o protagonismo de Lula nos foros internacionais e nas relações bilaterais (em especial na África), assim como não se deve assistir novamente às suas formas especiais de interlocução, mais baseadas no instinto e no gosto da improvisação, do que propriamente no seguimento dos cânones burocráticos tradicionalmente ligados à figura presidencial. Assim, mesmo deixando de lado escolhas funcionais quanto ao novo titular da chancelaria – se de carreira ou não, de um ou outro gênero, como especulado abundantemente na imprensa – o mais provável é que a nova presidente imprima suas preferências pessoais e suas prioridades políticas à diplomacia que lhe caberá comandar a partir de 1o. de janeiro de 2011. Nessa área, porém, o peso da continuidade costuma ser maior do que no campo das políticas internas, inclusive porque a agenda vem em grande parte “pronta” do exterior. Alguns temas encontram-se inclusive na ordem do dia, como é sempre o caso nesse tipo de atividade, a exemplo dos que serão examinados a seguir. Das três grandes prioridades do governo Lula na frente diplomática, não se pode dizer que alguma tenha sido encaminhada a seu termo lógico ou a resultados exitosos do ponto de vista do Brasil: o ingresso do Brasil no Conselho de Segurança das Nações Unidas, por exemplo, encontra-se no terrenos das possibilidades difusas, e assim promete permanecer no futuro indefinido, ainda que o status do Brasil, como ator de relevo no cenário internacional, seja hoje amplamente reconhecido; as negociações comerciais multilaterais, por sua vez, devem se arrastar penosamente por pelo menos mais um ano inteiro, completando assim um ciclo frustrante de dez anos de tergiversações, mas sempre com o ativo envolvimento do Brasil em todas as fases e configurações negociadoras; a integração sul-americana, finalmente, caminha num ritmo ambíguo, com muitas iniciativas no plano político, mas resultados menos seguros nos terrenos econômico e comercial (que deveriam ser, aliás, a base da integração). Todos esses temas serão retomados pela nova administração, que talvez queira imprimir novas características às demandas e ofertas brasileiras nos diferentes capítulos e frentes 38

de negociação. Vários dos itens na agenda, não dependem, a rigor, da postura brasileira, já que cada um deles, em seus contextos respectivos, carregam o peso de interesses muito diversificados por parte dos principais parceiros envolvidos. No plano da governança global, os avanços continuam sendo muito lentos ou frustrantes: meio ambiente, coordenação econômica internacional, segurança e terrorismo, constituem, por sinal, temas que transcendem a tradicional postura NorteSul, que, segundo certas visões maniqueístas, dividiria o mundo em países desenvolvidos, de um lado, e em desenvolvimento, do outro. Não se pode dizer, assim, que a ênfase na diplomacia Sul-Sul que caracterizou o governo Lula tenha as respostas e o formato adequados ao encaminhamento de todos esses temas inscritos na ordem do dia das negociações internacionais, tanto porque alguns dos supostos aliados na causa do desenvolvimento podem perfeitamente exibir posturas protecionistas e subvencionistas que confrontam diretamente nossos interesses exportadores agrícolas, entre outros exemplos. Assim, algum pragmatismo na formação de coalizões negociadoras é sempre recomendável. Em temas como o da integração regional, qualquer observador isento pode constatar a imensa distância que existe entre um modelo tradicional de liberalização comercial e de abertura econômica – que deveria situar-se, lógica e necessariamente, na base de qualquer processo “normal” de integração baseado em clássicas vantagens ricardianas – e um outro “modelo”, de caráter mercantilista, dirigista, estatizante e politizado, avesso ao capital estrangeiro e aos sistemas de mercados, como o que vem sendo impulsionado por alguns países na região. Assim, dificilmente se poderá dizer que o Mercosul sairá reforçado ou dotado de maior coerência intrínseca ao integrar novos membros que de fato perseguem um modelo situado nas antípodas do que se entende normalmente por integração econômica. Em temas essencialmente políticos, talvez se tenha, igualmente, de proceder a uma revisão de conceitos, a partir de questionamentos que surgiram quanto à postura brasileira em matéria de direitos humanos, por exemplo. Observadores da área, em geral representantes de ONGs humanitárias, não deixaram de observar – e alguns interlocutores até a questionar concretamente votos brasileiros nos foros pertinentes – a mudança de postura do Brasil em diversas ocasiões que envolveram resoluções críticas em relação a países reconhecidamente violadores dos direitos humanos, a pretexto de “não politização” desses temas e de uma preferência pelo “diálogo direto”. Causou especial constrangimento, nessas áreas, visitas e palavras amigáveis dirigidas pelo 39

presidente Lula a dirigentes desses países, que são os mais visados pela comunidade internacional envolvida na proteção dos direitos humanos e na defesa das liberdades democráticas de maneira geral. Em qualquer hipótese, a presença do Brasil cresceu enormemente no cenário internacional nesses anos de intenso protagonismo político e de uma ativa diplomacia presidencial, a um ritmo que talvez seja difícil de manter para personalidades menos carismáticas ou menos suscetíveis de manter a credibilidade nacional em situações de ambiguidade em face dessas questões de direitos humanos ou de clara seletividade no tratamento do princípio de não-intervenção. Amizades ostensivas com personalidades autoritárias e relações políticas com países vistos com desconfiança pela comunidade internacional – geralmente pelas mesmas razões, acima apontadas, que preocupam entidades voltadas para os direitos humanos e as liberdades democráticas – podem até se inscrever na lógica política de partidos cujos instintos primários se situem nessa tradição filosófica antidemocrática, mas certamente não contribuem para elevar a reputação moral de um país ou de seus dirigentes. Finalmente, a questão das parcerias seletivas certamente ganharia em ser vista menos do lado do anti-hegemonismo instintivo, com alguns laivos de anti-imperialismo démodé, e mais pelo lado pragmático dos benefícios que possa trazer uma cooperação bilateral fundada em critérios de excelência, independentemente de suas coordenadas geográficas. Para todos os efeitos práticos, fases de transição política são sempre carregadas de incerteza quanto ao itinerário futuro, mas nunca se pode excluir boas surpresas com base na renovação de quadros e de políticas.

2226. “A diplomacia brasileira numa nova conjuntura política”, Brasília, 26 novembro 2010, 4 p. Artigo para sobre a possível diplomacia do governo que toma posse em 1 de janeiro de 2011. Preparado para o Boletim ADB mas retirado pela sinceridade das críticas. Publicado em Mundorama (29.12.2010; link: http://mundorama.net/2010/12/29/a-diplomacia-brasileira-numa-nova-conjunturapolitica-por-paulo-roberto-dealmeida/?utm_source=feedburner&utm_medium=email&utm_campaign=Feed:+M undorama+(Mundorama)). Relação de Publicados n. 1012.

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5. O Brasil e a integração regional, da Alalc à Unasul: algum progresso?

Sistema multilateral de comércio e esquemas de integração: quão compatíveis? O sistema multilateral de comércio contemporâneo, teoricamente administrado pela Organização Mundial de Comércio (OMC), convive, na prática, com dezenas, mais exatamente centenas de acordos bilaterais ou plurilaterais de comércio preferencial (estes bem mais numerosos), de zonas de livre comércio (relativamente comuns, atualmente), de uniões aduaneiras (poucas) ou de mercado comum (de fato apenas um, a União Europeia, embora vários outros pretendam sê-lo, sem de verdade conseguir). O Brasil participa, cronologicamente, de uma área de comércio preferencial – a Associação Latino-Americana de Integração (Aladi), criada em 1980 para substituir uma anterior tentativa frustrada de livre comércio, a Alalc, fundada em 1960 – e de uma “união aduaneira em implementação”, o Mercosul, criado em 1991 para tornar-se um mercado comum em quatro anos, mas que não conseguiu completar sua zona de livre comércio e que sequer conseguiu fazer funcionar de modo adequado os requerimentos básicos de sua união aduaneira, que seria a efetiva aplicação da Tarifa Externa Comum e uma atuação conjunta dos membros com sentido convergente em torno de uma política comercial uniforme. O Mercosul integra, teoricamente, a Aladi. Muitos outros esquemas regionais ou sub-regionais de integração surgiram, 41

sobreviveram ou estagnaram no curso do último meio século, entre os quais o Grupo Andino (1969), oportunamente convertido na Comunidade Andina de Nações (CAN). Ela pode ser, também teoricamente, considerada uma experiência de união aduaneira – na verdade, tentativamente de mercado comum – que tampouco realizou seus objetivos. Existem diversos acordos preferenciais ou de associação que vinculam o Brasil e o Mercosul a países da CAN, a começar por diferentes acordos de alcance parcial (AAPs), ou de complementação econômica (ACEs) contraídos no âmbito da Aladi, embora todos eles tenham um escopo menos ambicioso – pela cobertura aduaneira e pelo grau de liberalização tarifária – do que seria no caso da existência de um único acordo de livre comércio, plenamente operacional, entre os dois blocos de integração. Em todo caso, a intensidade de comércio entre o Brasil e o Mercosul e os demais países da CAN, enquanto grupo (menos efetivo) ou individualmente, é bem maior, devido a fatores de proximidade geográfica e de laços historicamente consolidados, do que os tênues laços existentes entre o Brasil, de um lado, e países da Comunidade dos Estados do Caribe (Caricom) ou do Sistema de Integração Centro-Americano (Sica), de outro. O Brasil não está presente nesses dois blocos, tanto por razões de distanciamento físico, da penúria de vínculos diretos de transporte, quanto da falta de tradição no estabelecimento de acordos comerciais, inclusive porque o funcionamento do Mercosul demandaria negociações conjuntas entre os dois blocos (e não é seguro de que se poderia contar com perfeita unanimidade de visões e intenções em cada um deles). A existência desses blocos, ou mesmo de acordos não perfeitamente funcionais, poderia, sempre teoricamente, ser positiva para o Brasil, para o Mercosul, e para o próprio sistema multilateral de comércio regido da OMC, desde que todos eles fossem guiados pelo espírito do chamado “regionalismo aberto”, ou seja, de acordos de tipo preferencial mas que ainda assim preservem os princípios básicos dos entendimentos relativos às zonas de livre comércio ou união aduaneiras consagrados nos textos fundacionais (Artigo 24 do Gatt-1947), nos entendimentos posteriores (Parte IV do Gatt, de 1964, cláusula de habilitação da Rodada Tóquio, de 1979) e no memorando de entendimento sobre o Artigo 24 resultante da Rodada Uruguai (de 1993). Cabe, de fato, a expressão teoricamente, uma vez que muitos desses acordos, mesmo os simples esquemas de comércio preferencial podem ser discriminatórios em relação a terceiras partes, ou seja, países e territórios aduaneiros não membros. A tensão inerente aos princípios potencialmente liberais do sistema multilateral de comércio e a seus próprios dispositivos de exceção (artigo 24 e subsequentes), que 42

permitem fazer discriminação contra os não membros de acordos preferenciais, está presente desde o início do Gatt, e de fato, historicamente, desde os primeiros acordos consagrando versões limitadas da velha cláusula de nação mais favorecida. Com o surgimento do Gatt, e a versão ilimitada e incondicional de nação mais favorecida, diminuíram as chances de tratamentos especialmente discriminatórios, mas não resta dúvida de que a possibilidade permanece, senão sobre a base de princípios e regras consolidados nos instrumentos existentes, pelo menos na prática, dada a existência de dispositivos especiais que abrem espaço algum tipo de discriminação comercial. Em que medida os esquemas sub-regionais de integração afetam o Brasil? O Brasil, ou o Mercosul, não é tão afetado pela existência de acordos como os do Caricom, do Sica ou da CAN, quanto pela existência em paralelo de acordos bilaterais ou plurilaterais que estes blocos, ou seus países individualmente, possam ter contraído ou manter com parceiros mais poderosos, como os Estados Unidos e a União Europeia. O comércio interno aos blocos regionais pode ser, ou não, importante em termos de volume, o que depende mais do grau de complementaridade entre as economias nacionais do que propriamente dos acordos formais existentes: esquemas de livre comércio bilaterais (mantidos com aqueles dois grandes parceiros) ou plurilaterais (como o Nafta, por exemplo) conseguem ser mais abrangentes do que os esquemas puramente intrarregionais. Com efeito, o comércio recíproco entre os países membros desses blocos não é provavelmente tão importante – com algumas exceções – quanto os intercâmbios, regulados ou não por algum acordo comercial, mantidos com parceiros mais poderosos. Todos esses países, ou quase todos – no caso do Caricom, todos eles; nos casos do Sica e da CAN, existem exclusões – mantém acordos preferenciais, de associação ou de livre comércio com os Estados Unidos e com a União Europeia, com dispositivos especiais e profundidades diversas em cada um deles. Existe, assim, um mosaico de situações que pode tanto facilitar quanto dificultar o acesso de terceiras partes a seus mercados respectivos, tanto quanto os fluxos de comércio mantidos ao exterior desses acordos podem ser afetados por algumas das preferências trocadas entre os primeiros. Tanto é assim que empresas brasileiras procuraram contornar a não existência de acordos diretos com esses grandes mercados – o que foi provocado, por exemplo, pela implosão deliberada das negociações do projeto da Alca, proposto pelos Estados Unidos, pela ação conjunta dos governos Lula, Kirchner e Chávez – mediante sua 43

implantação física no território de alguns desses países, no Caribe ou na América Central, para a partir daí poder vender ao mercado dos Estados Unidos produtos já beneficiados com acesso preferencial. As politicas comerciais protecionistas ou defensivas adotadas por Brasil e Argentina (e por extensão pelo Mercosul) fazem mais mal ao comércio exterior brasileiro do que a existência desses blocos preferenciais. Criação e desvio de comércio são dois velhos fenômenos vinculados aos esquemas regionais de integração, plenamente identificados desde antes da existência do Gatt por estudiosos como Jacob Viner, que estudou o potencial discriminatório suscetível de ser produzido pelos blocos comerciais com base nos acordos pioneiros efetuados na Europa ou pela Comunidade Britânica de nações (por meio da Imperial Preference adotada na conferência de Ottawa de 1932, por exemplo). O Mercosul já foi acusado de provocar mais desvio do que criação de comércio, mas atualmente parece ser bem mais afetado pelo segundo processo, uma vez que não conseguiu efetivar praticamente nenhum acordo comercial significativo com outros blocos ou países desde que foi teoricamente consolidado como união aduaneira. A relutância da Argentina, e do próprio Brasil, em abrir-se em esquemas mais profundos de liberalização comercial explica essa frustração, o que tem preocupado a comunidade empresarial brasileira, ciente das perdas implícitas a qualquer isolamento das grandes correntes de comércio. Existe superposição de funções entre os diversos esquemas de integração? Dos três esquemas aos quais o Brasil está associado atualmente, a Aladi, o Mercosul e a Unasul, é praticamente inevitável alguma superposição de funções, entre eles. Mas os três órgãos não podem ser colocados no mesmo plano institucional e, sobretudo, não possuem os mesmos papeis, sequer funções similares, no quadro dos órgãos de integração regional da América Latina. O fato de haver temas comuns não significa que eles tenham surgido com os mesmos objetivos ou se destinam a preencher funções similares, ou semelhantes, a não ser pela designação genérica, em alguns casos equivocada, de “integração”. Essa aparente unidade conceitual em torno do objetivo da integração regional – no caso do Mercosul sub-regional – não pode descurar a realidade de que eles são muito diferentes, e possivelmente vão continuar existindo em paralelo, com alguma superposição de funções, mas não vão se fundir, não vão desaparecer, e tampouco coordenar-se para uma cooperação ideal visando alcançar objetivos semelhantes. Vejamos por que é assim. A Aladi é o mais antigo de todos: ela tem origem na frustrada Alalc (1960), que 44

procurou criar uma zona de livre comércio na América Latina sem que os países estivessem de verdade preparados para atender todos os compromissos do mandato original e sem, provavelmente, possuir a intenção real de cumprir as etapas e condições requeridas para o atingimento do objetivo final. Ela foi, assim, substituída, pela Aladi que, a despeito do nome mais ambicioso, representou de fato um recuo em relação ao livre comércio, para aspirar tão somente a acordos preferenciais de comércio de alcance parcial e limitado (em consonância com as novas disposições da chamada “cláusula de habilitação”, pela qual partes contratantes ao Gatt menos desenvolvidas estavam autorizadas a contrair entre si acordos preferenciais sem infringir disposições do Artigo 24 do Gatt original). Em outros termos, a Aladi possui objetivos bem delimitados que, mesmo considerando as metas de longo prazo de um espaço ampliado de liberalização comercial, dificilmente transformará a região numa área de livre comércio efetiva. Os países a utilizam – talvez fosse o caso de dizer as empresas, em especial as multinacionais – para objetivos delimitados de acessos recíprocos em setores definidos, de acordo com estratégias de alocação ótima de investimentos e de divisão de mercados, de acordo com um planejamento de tipo microeconômico. O Mercosul, por sua vez, nasceu de uma percepção de que os dois grandes parceiros do Cone Sul não poderiam ficar indiferentes à onda de acordos minilaterais que estavam sendo negociados a partir dos anos 1980, quando o sistema multilateral de comércio perdeu o grande impulso liberalizador do imediato pós-Segunda Guerra. Naquela época, a então Comunidade Econômica Europeia estava concretizando seu projeto de mercado unificado, com a ameaça de converter-se em uma fortaleza comerciais, ao passo que os Estados Unidos e o Canadá negociavam uma extensão geral do seu acordo de livre comércio automotivo dos anos 1960, no sentido de estabelecer uma zona de livre comércio, abrangendo temas e objetivos não cobertos, então, pelos dispositivos relativamente limitados do Gatt-1947 e alguns dos protocolos setoriais. O Mercosul avançou relativamente bem nos primeiros anos, mas logo deparouse com tarefas mais exigentes em liberalização e, sobretudo, em coordenação das políticas econômicas e setoriais dos países membros, com o que diminuiu o ímpeto original de caminhar rapidamente para um mercado comum. A bem da verdade, nem o livre comércio tornou-se efetivamente universal, nem a Tarifa Externa Comum foi implementada de maneira uniforme e abrangente para cobrir toda a pauta aduaneira comum dos países membros. Exceções nacionais persistiram nos dois âmbitos, e dinâmicas diferenciadas de estabilização econômica nos dois grandes países fizeram 45

com a coordenação de políticas macroeconômicas – em especial a cambial, mas também a fiscal e a monetária – fosse impossível de ser realizada na prática, a despeito de solenes proclamações em contrário. No meio do caminho, o Mercosul enfrentou alguns percalços, mas poderia ter continuado a avançar, se não fossem orientações totalmente contrárias ao espírito original do Tratado de Assunção, que passaram a guiar as ações desses dois países, a partir das administrações de Lula no Brasil e de Kirchner na Argentina, ambas inauguradas em 2003. Desde então, o Mercosul só fez recuar no plano do comércio e da abertura econômica, ainda que criando novos dispositivos de caráter político e social, que não estavam contemplados no tratado original, a não ser de modo muito vago e indireto. A Unasul, finalmente, a despeito de uma retórica ainda mais ambiciosa quanto aos objetivos da integração na América do Sul, não pretende (de fato não poderá) realizar esse objetivo, a não ser de forma totalmente vaga e sem dispor de qualquer meta precisa quanto aos meios e instrumentos pelos quais esse objetivo poderia ser alcançado. A Unasul deriva de uma iniciativa do governo Lula no sentido de criar uma espécie de “linha auxiliar” para o Mercosul, no terreno político e da coordenação dos países sul-americanos, podendo também servir de cobertura para projetos de integração física na região, sem precisar retomar a Iniciativa de Integração Sul-Americana que tinha sido iniciada no governo Fernando Henrique Cardoso, e sem precisar abrigar os objetivos mais comercialmente abrangentes com os quais o México já estava comprometido no âmbito dos seus outros compromissos de livre comércio na América do Norte e alhures. A estratégia brasileira não resultou totalmente satisfatória, uma vez que o projeto original – a Comunidade Sul-Americana de Nações – foi, ainda na fase constitutiva, parcialmente sabotado por outros países sul-americanos e, pouco depois, deliberadamente desviado de seu curso inicial pelo caudilho venezuelano Hugo Chávez, que fez aprovar o tratado da Unasul na Isla Margarita, em 2008, e colocou o seu secretariado na capital de um aliado, o Equador de Rafael Correa. Do ponto de vista prático, não há nenhuma possibilidade de que a Unasul realize a integração econômica sul-americana, inclusive porque ela serve apenas de tribuna retórica para os presidentes da região, e vem sendo utilizada, e abusada, de forma totalmente enviesada pelos chamados países bolivarianos, que se servem de uma suspeita legitimidade para justamente legitimar uma erosão sensível dos princípios democráticos em seus próprios países. Suas reuniões têm sido consistentemente políticas, e apenas políticas, sem qualquer conteúdo visível de liberalização comercial, e 46

muito menos de abertura econômica, inclusive porque os ditos bolivarianos operam um retrocesso notável para fases ultrapassadas da história econômica latino-americana, ao promoverem exercícios controversos de nacionalismo econômico, de intervencionismo estatal, de dirigismo comercial introvertido e defensivo, ademais de todas as demais ofensas contra direitos proprietários e o desrespeito a normas contratuais, inclusive no que respeita a proteção do investimentos estrangeiros (ações de que o próprio Brasil foi vítima, na Bolívia, por exemplo). Em resumo, a Aladi vai permanecer como um cartório de registro de acordos parciais e limitados de abertura mercantilista na área comercial, o Mercosul continuará como uma tribuna mais política do que efetivamente econômica pelos tempos que correm, e a Unasul seguirá sendo utilizada para outros objetivos políticos, e manipulada por países que pouco compromisso mantêm com um projeto realista e ordenado de integração econômica ou comercial. Não estranha que a região esteja sendo fragmentada em blocos diversos, e que a Aliança do Pacífico tenha sido criada por quatro países – Chile, Peru, Colômbia e México – bem mais voltados para objetivos pragmáticos de natureza econômica do que para a retórica gasta de uma integração ilusória. O Mercosul está condenado ao desaparecimento ou poderá sobreviver? Nunca ocorreu, a propriamente dizer, a realização dos objetivos estatutários do Mercosul, a despeito de alguns visualizarem uma “época áurea” nos primeiros nove anos de existência do bloco. Antes de 2003, ou mais exatamente antes de 1999, os países membros pareciam sinceramente comprometidos em alcançar os objetivos originais, procurando resolver as diferenças quanto aos ritmos da integração por meio de projetos concretos para superar as dificuldades, envidando esforços reais para continuar a liberalização do comércio recíproco e realizar a coordenação tentativa de suas políticas econômicas nacionais. A partir da crise cambial de 1999 no Brasil, e do aprofundamento da crise do regime de conversibilidade na Argentina, na mesma época, as divergências quanto às medidas a serem adotadas, nacionalmente ou de modo coordenado no bloco, foram aprofundadas. As administrações seguintes, de Lula no Brasil, e de Nestor Kirchner na Argentina, se desvincularam de modo claro dos objetivos originais do Mercosul, para impulsionar em seu lugar agendas políticas de reduzido, ou praticamente nenhum, conteúdo econômico ou comercial. Não cabe, no entanto, nenhuma culpa ao Mercosul, 47

enquanto bloco, nem pelo lado institucional, nem pelo seu funcionamento, uma vez que a responsabilidade pelos fracassos e retrocessos continuados incumbe inteiramente aos países membros, em especial aos dois maiores. Da mesma forma, não se pode atribuir à diplomacia profissional brasileira qualquer responsabilidade pelas turbulências surgidas nos últimos dez anos, uma vez que as principais decisões quanto ao curso adotado pelo Mercosul foram todas tomadas no âmbito do poder executivo, ou seja, em nível presidencial. A orientação seguida pela diplomacia presidencial foi a de tentar fazer do Mercosul um instrumento a serviço de uma pretensa vontade de liderança brasileira na região, que jamais foi impulsionada pela diplomacia profissional, pelo fato desta conhecer exatamente os limites desse tipo de exercício numa região fragmentada por visões divergentes sobre sua união política. O Mercosul sempre foi, desde a origem, um projeto prioritário da diplomacia profissional e das políticas presidenciais no âmbito externo, mas essas percepções podem ter variado tanto em função da dinâmica econômica em curso no Brasil e nos demais países, quanto em função de objetivos políticos dos diversos presidentes ao longo do tempo. Pode-se dizer que José Sarney e Fernando Henrique Cardoso tinham uma noção pragmática da integração sub-regional, de seus limites e possibilidades, ao passo que Lula esteve animado por objetivos que pouca relação mantinham com os objetivos originais do bloco, em especial sem conexões mais afirmadas com a abertura econômica e a liberalização comercial. O objetivo de um espaço econômico integrado no Cone Sul, e progressivamente na América do Sul, é de fato prioritário, não apenas para a diplomacia brasileira, mas sobretudo para o Brasil, enquanto economia e na condição de um ator regional de certa importância geopolítica. Os governos Sarney e FHC procuraram, de modo bastante engajado, impulsionar o bloco pela vertente de seus objetivos originais, mas a partir do governo Lula pode-se dizer que o Mercosul passou a ser utilizado para cumprir finalidades que pouca relação mantinham com suas metas econômicas e comerciais. Mas, mesmo esses objetivos não foram satisfatoriamente cumpridos, uma vez que a Argentina, a partir do governo Kirchner, desvinculou-se completamente do espírito do bloco para impulsionar seus próprios projetos de “reindustrialização” do país. Desde 2003, de modo sistemático, a Argentina adotou uma postura abertamente protecionista, inclusive e principalmente contra os demais membros do Mercosul, o Brasil em especial, cujo governo tolerou, e de certa forma foi conivente, com as medidas ilegais, arbitrárias e totalmente contrárias ao espírito e à letra do tratado de 48

Assunção, e até contra normas do sistema multilateral de comércio. Em consequência, o comércio intra-Mercosul recuou, tanto para dentro, quanto no que se refere a processos de negociações comerciais com terceiras partes, no âmbito multilateral e na interface inter-regional (com a UE, entre outros). Mais uma vez, não existe nada de errado com o Mercosul em si, mas ele não conseguirá recuperar seu perfil e objetivos originais a menos de uma mudança radical na postura dos seus membros principais. A mudança, na verdade, teria de ser um retorno ao mandato comercial e econômico inscrito no tratado de Assunção, sem mais desvios indevidos pelas áreas política ou pretensamente social. A diplomacia brasileira, pelo seu staff profissional, tem plena consciência de que o bloco foi desviado de suas metas originais, mas a responsabilidade por essa situação incumbe inteiramente às lideranças presidenciais. O Mercosul pode servir para a integração do Brasil a cadeias produtivas globais? Teoricamente sim, mas qualquer esquema de integração tem de guardar estreita correspondência com as demais políticas setoriais dos países membros, no sentido de fazê-los aproveitar as economias de escala e as possibilidades de modernização tecnológica e produtiva que normalmente estão associadas às ações em favor da integração, com vistas a realizar o objetivo econômico maior da inserção global. A orientação em favor da integração regional, estrito senso, pode ajudar na coordenação de políticas comuns nas organizações multilaterais, tanto quanto na atração conjunta de investimentos externos, passos essenciais para a inserção produtiva de amplo escopo. No caso do Mercosul, a articulação de votos nos organismos internacionais só tem valido, no que tange a integração, em relação a temas comerciais e econômicos estritamente vinculados aos objetivos listados no tratado de Assunção, e não para outros objetivos políticos que não respondem ao mandato original. Na prática, o desvio dos objetivos originais do Mercosul afastou o Brasil, e o resto da região, do atingimento dessas finalidades vinculadas a cadeias produtivas e inserção nas cadeias globais da economia mundial. Em outros termos, o Mercosul deixou de ser visto, pelos grandes investidores globais, como uma entidade homogênea, dotada de políticas comuns. Nos últimos dez anos, a integração na América Latina de fato recuou, o que explica que alguns países decidiram optar por outros esquemas, mais flexíveis, de integração, e avançar no terreno da liberalização comercial, inclusive com objetivos globalizantes. Este é o caso, justamente, da Aliança do Pacífico, menos voltada para o 49

comércio recíproco do que para sua inserção nos grandes arranjos que estão ocorrendo no âmbito da bacia do Pacífico. No caso do Mercosul, ocorreu certa desvinculação da concepção original, o que explica manifestações do empresariado brasileiro em favor de uma caminhada novamente solitária na região e fora dela. Assim, a despeito dos erros de políticas econômicas, da introversão econômica e do protecionismo comercial, cometidos pelos dois grandes países do bloco, as empresas brasileiras continuaram seu movimento de expansão na região, pois tais movimentos correspondem a necessidades objetivas de sua capacidade de projeção competitiva, podendo contar inclusive com o apoio de alguns órgãos governamentais – como o BNDES – para financiar iniciativas mais ambiciosas. Mas, essas iniciativas podem ser erráticas e descontinuadas, o que explica algum recuo na penetração comercial dos vizinhos pelas empresas nacionais. Na prática, são os Estados Unidos e a China que estão ganhando novos espaços na região – em função de acordos comerciais, ou de ganhos significativos com a exportação de produtos primários para o gigante asiático – em detrimento do Brasil e do Mercosul. Se o Mercosul estivesse de verdade unido em torno de objetivos comuns as posições dos países estariam alinhadas nas negociações multilaterais da Rodada Doha ou no longuíssimo processo negociador com a União Europeia, o que não ocorre de fato. Para que os objetivos teóricos de um processo de integração sejam plenamente realizados, seria preciso que as políticas econômicos dos membros, em especial as políticas comerciais e industriais, ademais da coordenação macroeconômica entre eles, correspondam aos ideais da abertura econômica e da liberalização comercial. Não parecer ser o caso atualmente, o que não quer dizer que tal situação não possa mudar. Para isso, seria provavelmente necessária a assunção de lideranças políticas com perfil de estadistas nos principais países membros. Não precisaria ser uma condição sine qua, se o processo de construção do Mercosul fosse mais institucionalizado e conduzido de maneira burocrática pelas diplomacias nacionais, mas o fato é que o curso do bloco tem sido mais determinado pelo que decidem politicamente seus presidentes do que comanda a agenda econômica dos tratados firmados pelos Estados membros. O Mercosul não vai deixar de existir, mas sua relevância política e sua importância econômica para os países membros, para o Brasil em particular, tem diminuído, de maneira provavelmente proporcional, no sentido inverso, à expansão do protecionismo comercial e do intervencionismo econômico nos grandes sócios do bloco. Não é seguro que ele volte a se recuperar plenamente de seu atual estado letárgico, mas 50

a superação da situação atual vai exigir algo mais do que discursos vazios em favor da integração, e ações concretas para se retomar o curso original do processo.

2606. “Integração Regional e Políticas Comerciais na América Latina”, Hartford, 16 Maio 2014, 9 p. Respostas a questões sobre o Mercosul e a integração regional para a Revista Sapientia (http://www.cursosapientia.com.br/index.php/revista-sapientia). Feita versão descaracterizada para Boletim Mundorama. Publicado sob o título de “O Brasil e a integração regional, da Alalc à Unasul: algum progresso?”, Mundorama (Divulgação Científica em Relações Internacionais, ISSN: 2175-2052, 11/06/2014; link: http://mundorama.net/2014/06/11/o-brasil-e-a-integracaoregional-da-alalc-a-unasul-algum-progresso-por-paulo-roberto-de-almeida/). Publicado em Sapientia (São Paulo: ano 3, vol. 18, junho-julho 2014, p. 31-36; disponível no link: http://www.cursosapientia.com.br/images/revista/edicao18.pdf). Relação de Publicados n. 1132.

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Segunda Parte

Economia internacional, globalização

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6. Mudanças na economia mundial: perspectiva histórica de longo prazo

A economia mundial, tal como a conhecemos atualmente, é um “arquipélago” em construção desde o século 16, pelo menos e, ainda hoje, ela não constitui um sistema perfeitamente unificado, sequer homogêneo, a despeito de toda a retórica em torno da globalização. Talvez, um dia, ela venha a ser unificada num mesmo universo de redes comerciais, financeiras e de recursos humanos circulando sem restrições sobre fronteiras e controles alfandegários. Por enquanto, contudo, trata-se de uma colcha de retalhos, reunindo pedaços hoje essencialmente capitalistas, é verdade, mas ainda dotados de características nacionais distintas em seu colorido diversificado. Ela poderá caminhar progressivamente para um conjunto mais homogêneo de sistemas econômicos nacionais, mas isso depende dos progressos da liberalização comercial, financeira e “humana”, o que ainda está longe de ser garantido. Vejamos esse processo com lentes de longo alcance, começando na era dos descobrimentos. Mesmo a partir da unificação geográfica conduzida por Colombo (1492), Vasco da Gama (1498) e Fernão de Magalhães (1521), a economia mundial do início da era moderna não era, em absoluto, universal. Nessa primeira onda de globalização, de caráter mercantil, tratava-se, mais exatamente, de um arquipélago de economias centrais, predominantemente de origem europeia, vinculadas a suas respectivas periferias nas novas terras descobertas, mediante um sistema usualmente conhecido como ‘exclusivo colonial’. Os demais centros regionais – o ‘Império do 55

Meio’ (China), o império Mogul, na Índia, o mundo muçulmano (que começava a ser unificado sob o jugo otomano) e outros ‘blocos’ sub-regionais, na Eurásia ou nas Américas – não tinham realmente condições de disputar qualquer hegemonia econômica mundial, como diriam os marxistas. Até o final do século 18, China e Índia constituíam duas grandes economias, produzindo bens valorizados nos mercados ocidentais, mas dotadas de instituições pouco adaptadas aos desafios da nova economia industrial, caracterizada pelo que se poderia chamar, ainda no jargão marxista, de um ‘modo inventivo de produção’. Foi precisamente a partir da revolução industrial na Inglaterra, nessa mesma época, que tem início a diferenciação dos centros econômicos mundiais, processo que os historiadores econômicos chamam de ‘grande divergência’, ou seja, a aceleração da transformação tecnológica no Ocidente, seguida da dominação absoluta das potências européias sobre o resto do mundo (destinada a durar cinco séculos, talvez até hoje). Essa segunda grande onda da globalização, de natureza industrial, conforma o que se poderia chamar, pela primeira vez, de economia mundial, uma rede integrada de centros produtores de matérias primas, de um lado, servidas pelos centros financeiros europeus – com a libra inglesa e os bancos britânicos em seu núcleo – e as oficinas manufatureiras, de outro, dotadas das novas tecnologias industriais de produção em massa. As economias nacionais, até então pouco diferenciadas entre si – posto que uniformemente e predominantemente de base agrícola ou mercantil – começam a exibir diferenças estruturais, a partir de níveis de produtividade bem mais elevados nos sistemas industriais. A defasagem de renda começa sua escalada para índices sempre crescentes, entre o centro e a periferia, num processo que se desenvolveria durante praticamente dois séculos, com um recrudescimento ainda maior durante a maior parte do século 20, para diminuir apenas a partir da terceira onda de globalização, a partir do último quinto desse século. No intervalo, a economia mundial capitalista seria desafiada por duas ameaças muito diferentes, entre si, mas concordantes em sua ação desagregadora de um sistema verdadeiramente unificado de relações mercantis e financeiras. A partir da primeira guerra mundial, as crises recorrentes dos centros capitalistas desenvolvidos no entre guerras (em especial a de 1929 e a depressão que se seguiu) e a implantação de sistemas coletivistas (de natureza soviética, desde 1917, e os fascismos, pouco depois), com suas experiências estatizantes e antiliberais, representaram uma ‘breve’ interrupção de setenta anos no processo de globalização. No imediato pós-segunda guerra mundial, as 56

muitas experiências de nacionalizações e de estatizações no Ocidente capitalista, com seu cortejo de práticas intrusivas, dirigistas e planos de ‘desenvolvimento’ (com muito planejamento estatal centralizado, mesmo no capitalismo) representaram, igualmente, um retrocesso na reunificação de um sistema de mercado verdadeiramente mundial, desde então colocado sob a égide dos dois irmãos de Bretton Woods (o FMI e o Banco Mundial) e do GATT (OMC, em 1995). Foi somente a partir das reformas econômicas ‘neoliberais’ iniciadas na China a partir dos anos 1980 e da implosão e quase completo desaparecimento dos regimes socialistas, entre 1989 e 1991, que o processo de reunificação da economia mundial é retomado, no bojo da terceira onda de globalização capitalista, desta vez dominada pela sua vertente financeira (mas que inclui também os investimentos diretos). O fim do socialismo representou pouco em termos de concorrência manufatureira – já que o socialismo era um medíocre produtos de bens industrializados – e menos ainda em termos de fluxos financeiros e tecnológicos – onde os países socialistas eram ainda mais marginais, senão irrelevantes – mas significou um impacto decisivo em termos de mercados e, sobretudo, de mão-de-obra (com um destaque absoluto para a China). A fase atual, se ainda não pode ser identificada com um novo processo de ‘convergência’ da economia mundial, caracteriza-se, pelo menos, pela diminuição da divergência entre as regiões – com notáveis exceções, como nos casos da África, do Oriente Médio e em grande medida da América Latina – e pelo rápido catch-up experimentado por alguns emergentes dinâmicos. No curso dos últimos vinte anos de globalização, a China e a Índia retiraram centenas de milhões de pessoas de uma miséria abjeta, colocando-as numa situação de pobreza moderada, justamente em função das reformas econômicas empreendidas e de sua inserção na globalização. Esse processo deve continuar, pelo menos naqueles países que decidiram substituir antigas políticas protecionistas e estatizantes por uma abertura ao comércio internacional e aos investimentos estrangeiros diretos. O lado financeiro permanece ainda a dimensão problemática da globalização, não porque a liberdade de circulação de capitais seria, em si, desestabilizadora das economias nacionais, mas porque os governos ainda insistem em praticar políticas monetárias e cambiais inconsistentes com os novos dados da economia mundial. O monopólio dos bancos centrais na emissão de moedas-papel, na fixação das taxas de juros (sem correspondência efetiva com o equilíbrio real dos mercados de capitais) e seu papel na manutenção de regimes cambiais irrealistas e desajustados explica muito das 57

crises financeiras ocorridas na segunda metade dos anos 1990 e em 2007-2009. As bolhas que se formam não são o resultado de ‘forças cegas do mercado’ – como políticos inescrupulosos e economistas pretensamente keynesianos proclamam – mas sim a conseqüência das manipulações dos governos em setores sensíveis da economia real. A possibilidade de maiores progressos em direção à convergência econômica mundial depende, assim, tanto da continuidade da abertura dos países ao processo de globalização quanto da habilidade dos governos em manterem soberania monetária e cambial no novo contexto criado pela unificação paulatina dos mercados de capitais. Não é provável que essa convergência se dê rapidamente, tendo em vista a resistência de muitos governos à abertura comercial e financeira e sua tendência a continuar manipulando taxas de juros e regimes cambiais, mas é previsível que a globalização continue avançando naqueles países e regiões propensos a aceitarem as novas regras de mercado. Independentemente do que digam aqueles que condenam as novas políticas ‘neoliberais’, é um fato que os países que mais progressos fizeram no plano do crescimento econômico e da prosperidade de seus povos são aqueles que mais rapidamente souberam integrar-se comercialmente na economia mundial, e dela puderam aproveitar os efeitos benéficos dos investimentos diretos, que trazem capitais, know-how e tecnologia. A lição parece ter sido aprendida, mas nem todos souberam dela retirar os ensinamentos adequados. Esse tempo chegará, um dia...

2124. “Transformações da economia mundial: visão histórica de longo prazo”, Rio de Janeiro 17 de março de 2010, 4 p. Revisão ampliada do segundo ensaio da série preparada para o Ordem Livre (trabalho: 2072; publicados: 951), tratando da evolução da economia mundial e de suas características mais marcantes. Publicado, sob o título “Mudanças na Economia: uma história de longo prazo”, na seção de Economia do Portal IG (23/03/2010). Republicado sob o título de “Mudanças na economia mundial: perspectiva histórica de longo prazo” em Mundorama (04.05.2010; link: http://mundorama.net/2010/05/03/mudancas-na-economiamundial-perspectiva-historica-de-longo-prazo-por-paulo-roberto-de-almeida/), reproduzido em Meridiano 47 (vol. 11, n. 118, maio 2010, p. 27-29; ISBN: 15181219; links: http://meridiano47.info/2010/05/03/mudancas-na-economia-mundialperspectiva-historica-de-longo-prazo-por-paulo-roberto-de-almeida/ e https://docs.google.com/viewer?url=http://meridiano47.files.wordpress.com/2010/0 7/v11n118.pdf&pli=1). Ensaio incorporado ao livro: Paralelos com o Meridiano 47: Ensaios Longitudinais e de Ampla Latitude (Hartford, 2015). Relação de Publicados n. 956.

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7. Os Brics na nova conjuntura de crise econômica mundial

O recrudescimento da crise econômica internacional, iniciada pelo estouro da bolha hipotecária, seguida pelas quebras bancárias nos Estados Unidos, em 2007 e 2008, agora sob a forma de esgotamento da capacidade de diversos países europeus – notadamente a Grécia, mas possivelmente Portugal também, podendo ainda repercutir sobre outros dois, maiores, Itália e Espanha – em manter os pagamentos de suas dívidas soberanas, em 2010 e 2011, suscitou em diversos observadores da imprensa especializada questionamentos sobre o papel dos Brics – Brasil, Rússia, Índia e China, agora acolhendo a África do Sul igualmente – nessa conjuntura de transição, eventualmente como novos atores de peso num eventual reordenamento da ordem econômica mundial. A imprensa nacional, sempre patriótica e grandiloquente, seguiu o coro de governistas entusiasmados com o fato de o Brasil não estar, por uma vez, envolvido ou ser o centro de alguma crise financeira, e passou a proclamar nossa nova condição de “emprestador de alguma instância”, além de repercutir, obviamente, “lições de economia” que os presidentes – o ex e a atual – ofereceram de graça (mas também sem qualquer resultado prático) a certos europeus, diminuídos em seu orgulho e convertidos em latino-americanos, por uma vez. O objetivo deste pequeno ensaio, que adota uma perspectiva essencialmente realista, é justamente o de examinar a possibilidade da inversão de posturas econômicas, como a alegada ascensão dos emergentes e o declínio irresistível de países tidos por avançados. Como se constatará, as evidências não suportam essa hipótese, aventada em análises de cunho bem mais superficial do que fundamentadas em dados empíricos concretos ou apoiadas em um conhecimento apurado sobre o funcionamento efetivo dos Brics. Como diria Mark Twain, rumores sobre o declínio do centro e a ascensão da 59

periferia são grandemente exagerados, inclusive porque a crise ainda não deu o seu último “suspiro”. Se e quando os Brics assumirem postura mais afirmada no quadro da economia mundial, isso dependerá essencialmente de seu desempenho individual, e não do fato de serem, ou não, Brics, que é um rótulo bem mais artificial, e de conveniência política, do que o resultado de ações concretas de coordenação econômica deliberada. Existe um papel para os BRICS na nova conjuntura de crise político-econômica? A imprensa econômica vem insistindo num papel econômico mais ativo para os Brics, apenas porque eles não foram atingidos pela crise econômica num sentido recessivo, como ocorreu com os EUA e a Europa, e também porque eles dispõem de reservas significativas em divisas, suscetíveis de serem mobilizadas para fins de pacotes de ajuda ou para reciclagem de títulos da dívida soberana de países enfrentando desequilíbrios temporários. Essa imagem dos Brics como bloco econômico coeso não corresponde, todavia, à realidade dos fatos, uma vez que, a despeito de reuniões políticas de seus chanceleres e dos chefes de Estado, ou mesmo de alguns encontros de seus ministros econômicos, os países do Brics não conformam, nem de longe, um grupo dotado de instâncias de coordenação de políticas econômicas e sequer de políticas homogêneas nos planos comercial, financeiro ou de investimentos. Obviamente, a China já é um ator de peso nos diversos cenários econômicos que possam ser traçados no plano mundial, mas ela não busca – nem precisa, aliás – formular políticas comuns com seus supostos parceiros emergentes, inclusive porque suas políticas nacionais não são, exatamente, aquelas desejadas pelos demais integrantes desse bloco que não pretende se apresentar como bloco. É sabido, por exemplo, que Índia e Brasil vem adotando medidas protecionistas contra a concorrência de produtos chineses em seus mercados, aventando a existência de uma “guerra cambial” iniciada em primeiro lugar pelos Estados Unidos, pelo derrame maciço de dólares nos mercados em sustentação de seus bancos e empresas fragilizadas pela crise iniciada em 2008. Na verdade, o único bloco econômico merecedor desse nome no contexto mundial é a própria União Europeia, pois nem mesmo o Nafta mereceria essa alcunha sinônima de coordenação de políticas econômicas nacionais. Os Brics podem se apresentar, eventualmente, como novos atores econômicos regionais e globais – embora essa capacidade seja muito restrita em vários casos – mas não dispõem de homogeneidade de propósitos ou de estratégias comuns de atuação no contexto mundial que justifique o uso do acrônimo na discussão em torno das medidas e 60

dos mecanismos que serão mobilizados para enfrentar e superar a atual conjuntura de crise. Ainda que alguns deles – na verdade só a China, com maior largueza de meios – sejam capazes de participar de operações de socorro e de apoio a ajustes administrados aos países periclitantes, esses empreendimentos financeiros de maior escopo terão necessariamente de ser conduzidos pelas instituições econômicas atualmente disponíveis efetivamente, quais sejam: o Conselho Europeu Monetário e Financeiro, em primeiro lugar, o Banco Central Europeu, em segundo lugar, o FMI, em terceiro, e só então, mas com várias dúvidas sobre seu papel real, o G20 financeiro, com destaque para os grandes atores exclusivamente. Uma simples confrontação de dados econômicos de base permite situar o peso efetivo de cada ator no jogo econômico global: dos (aproximadamente) 55 a 60 trilhões de dólares de PIB mundial, EUA e UE são responsáveis pela metade do valor agregado, sendo que a China e o Japão respondem por mais um quinto, sobrando outro tanto para as grandes economias do G7 mais Brasil e Índia; todos os demais são irrelevantes, sobretudo em termos de reservas em divisas e fluxos de capitais (investimentos e portfólio), terreno no qual a China é o único ator de peso entre os emergentes. Ou seja, as únicas “locomotivas” possíveis de uma economia mundial cambaleante continuam a ser os grandes atores, sendo que o poderio econômico da China, na verdade, foi construído sobre a base de investimentos e tecnologia ocidentais e japoneses e de saldos comerciais superavitários com os mesmos parceiros. A China ultrapassou, em 2011, o Japão, pela magnitude do PIB, e representa metade do PIB conjunto dos Brics, sendo aliás o elemento dinâmico do crescimento desse PIB no contexto global (já que tanto o Brasil, quanto a Rússia devem suas “emergências” respectivas à valorização cambial de suas moedas ou, mais especialmente no caso da Rússia, à valorização das commodities exportadas, basicamente o petróleo neste último caso). O “papel” econômico dos Brics – se existe – é, assim, muito diferenciado, em função de inserções totalmente diversas na economia mundial, não existindo, portanto, a possibilidade de que eles, isolada ou conjuntamente, venham a exercer alguma influência coordenada sobre movimentos e iniciativas tomadas pelos atores relevantes (que são, pela ordem: EUA, G7, UE-BCE, FMI e, só então, o G20 financeiro). A evolução econômica do mundo se dará independentemente de qualquer ação dos Brics, sendo o resultado não coordenado, sequer coerente, das decisões tomadas pelos agentes primordiais da globalização – as empresas transnacionais – e pelos governos nacionais, eventualmente em consultas recíprocas nesses foros de discussão, o que não garante, 61

porém, a convergência de suas ações e iniciativas. O que mais frequentemente ocorre é, justamente, a descoordenação de políticas, por mais reuniões retóricas que as autoridades econômicas e políticas desses atores empreendam a intervalos regulares. Existe a possibilidade dos Brics sustentarem a recuperação financeira europeia? Talvez, mas não certamente enquanto Brics; eventualmente enquanto economias nacionais, tomadas individualmente e atuando cada qual com base em seu interesse e possibilidades próprias. Uma alegada ajuda financeira dos Brics aos países europeus sob risco de insolvência, isolada ou conjuntamente, não pode, na verdade, ser feita apenas sob a forma de fluxos financeiros adicionais aos insolventes potenciais. Não se trata apenas da magnitude dos valores envolvidos – o que teoricamente habilitaria apenas a China a ser um “emprestador de segunda instância” – mas basicamente de questões de governança e de conformação a padrões aceitáveis de responsabilidade financeira, num contexto de mercados integrados e de riscos aparentes, ou pelo menos um pouco mais transparentes do que no passado (e não só em virtude do trabalho de avaliação conduzido pelas agências de classificação de riscos). Existe uma grande ilusão – provavelmente construída por analistas acadêmicos, mas também estimulada pelos governos interessados – de que os Brics poderão se converter em novos polos da economia mundial e, nessa condição, influenciarem decisivamente o processo decisório em determinadas instituições ou a prática econômica dos decisores microeconômicos, ou seja, os responsáveis de transnacionais que decidem sobre alocação de investimentos diretos e divisão de mercados (e que também influenciam as políticas comerciais e industriais, talvez até fiscais, das economias nacionais). Essa proposta, como aliás revelado já no primeiro substantivo deste parágrafo, não se sustenta, tanto no plano estritamente material, ou de capacidades “brutas” das economias, como no plano institucional, ou seja, no da organização política da ordem econômica mundial. A própria noção de “polo econômico” remete a uma concepção do mundo baseada na sucessão de hegemonias, na derrocada dos “impérios” e na ascensão de novos desafiantes da ordem em declínio. Sobre estes últimos, alguns chegam inclusive a falar de “superpotências pobres”, como se a ordem econômica precisasse necessariamente ser organizada em função de hierarquias excludentes e de substituição de superpotências, o que reflete não apenas a conhecida “teoria conspiratória da história”, mas também uma visão conservadora de como se organiza o mundo real. Mas, 62

ainda que se aceitasse a noção de “polo dominante” – que na verdade refere-se a um ordenamento econômico interpretado como constituído necessariamente de um “centro” e de uma “periferia” – o fato é que o Brics não preenche os requisitos formais do modelo e não se constitui, absolutamente, em novo polo da economia mundial, se tanto um agrupamento heteróclito de potências provisoriamente identificadas por um vago “anti-hegemonismo” mental. Seguindo uma noção mesmo rudimentar de como se organiza o mundo real, é evidente que toda ordem econômica historicamente conhecida, seja ela naturalmente existente ou socialmente construída – na verdade, qualquer sistema conhecido de organização humana, ou melhor, social –, compõe-se de um centro e de uma, ou várias periferias, sendo que esses elementos mantém uma relação dinâmica entre si, como muito bem analisado nos ensaios sociológicos de Edward Shils (Center and Periphery: Essays in Macrosociology; Chicago: University of Chicago Press, 1975). Cada um dos Brics, de certa forma, constitui um polo econômico em sua própria macrorregião e alimenta uma “periferia” que pode, ou não, estender-se a diversas outras regiões, inclusive numa relação de interpenetração com outros sistemas econômicos, dominantes ou “subordinados”. Quem quer contemple os fluxos de comércio e de investimentos nos últimos anos, bem como o impacto da demanda chinesa sobre os preços das principais commodities exportados por países latino-americanos – inclusive por um dos Brics, o Brasil –, teria de chegar à conclusão, por exemplo, de que a região pode já ter se convertido em “periferia” econômica da China, tal a dependência comercial e financeira criada nos últimos anos por essas relações de oferta e demanda absolutamente “assimétricas” (como gostam de acusar os críticos da velha dominação “imperial”). Em qualquer hipótese, aderindo ou não a essas concepções acadêmicas sobre a organização do mundo material e seus reflexos no plano institucional, parece claro que os Brics, individualmente tomados, participarão, ou não, de qualquer esforço de soerguimento de países desequilibrados do “centro” europeu em função de suas próprias possibilidades e conveniências, sendo a China o natural “dispensador” de novas “bondades financeiras”, em virtude de sua dotação própria de fatores econômicos e de recursos políticos, que a converteram, sem dúvida alguma, em ator relevante na presente (e na futura) ordem econômica internacional. É evidente, porém, que a China – única dentre os Brics a fazer uma diferença real na atual movimentação de placas tectônicas da geoeconomia mundial – não tem 63

condições, nem de longe, de assumir o papel que outrora foi do Reino Unido e que atualmente é desempenhado pelos EUA, enquanto provedor, real, de segurança política, de abertura econômica – ainda que relativa, atualmente – e, sobretudo, de outros instrumentos mais elementares de poder, como podem ser porta-aviões e veículos aéreos não tripulados. Existe toda uma literatura declinista – da qual o mais recente exemplo é um livro supostamente de economia, de Dambisa Moyo, How the West Was Lost?: Fifty Years of Economic Folly and the Stark Choices Ahead (New York: Farrar, Straus and Giraux, 2011) – que gostaria de transformar sonhos acadêmicos em realidades contemporâneas, mas que falha miseravelmente nos argumentos quanto à “sucessão dos impérios” (para uma visão mais realista, ver a reedição do livro de Fareed Zakaria, The Post-American World: Release 2.0 (New York: Norton, 2011); a primeira edição era de 2008, ou seja, antes da crise econômica iniciada naquele ano). Impérios econômicos não são feitos apenas de criação – ou extração – de recursos e muitos dos que escrevem sobre ascensão e queda das grandes potências estão talvez mentalmente vinculados ao modelo dos velhos impérios tributários que organizavam a exploração de seus satélites em seu benefício exclusivo. Ainda que isso fosse verdade, a China não parece perto de cumprir todas as funções de um “império”, que não implica apenas a extração de recursos, mas também a garantia de ordem e a possibilidade de que os próprios satélites participem da ordem normativa assim criada e mantida com base em critérios de adesão voluntária, e não apenas de coerção física. Ademais dos elementos de inovação e de absorção de cérebros “estrangeiros” que todo império legítimo deve ser capaz de exibir, existem outros componentes mais “virtuais”, ou intangíveis, que devem necessariamente integrar qualquer ordem estável e suscetível de liderar “satélites periféricos” ou mesmo “aliados subalternos”, entre eles a capacidade de liderar por consenso e o fato de se fazer admirado e invejado, e não apenas temido ou tolerado.

A ascensão dos Brics faria o mundo se tornar mais multipolar e democrático? Uma outra noção acadêmica que vem ganhando curso em certos círculos – sendo, aliás, endossada por alguns governos, inclusive dos Brics – é a de que a “ascensão do resto”, como já caracterizada nos trabalhos de Parag Khanna – The Second World: How Emerging Powers Are Redefining Global Competition in the Twentieth64

first Century (New York: Random House, 2008); How to Run the World: Charting a Course to the Next Renaissance (New York: Random House, 2011) – e do já referido Fareed Zakaria, poderia implicar no “fim do século americano”; aventa-se também a hipótese de que a nova descentralização permitida pelo relativo declínio do gigante americano equivaleria a uma “democratização” do mundo e o estabelecimento de relações mais “igualitárias” entre os grandes atores, sem a típica arrogância imperial ainda hoje manifesta. Não há dúvida de que o “resto” – e mais particularmente os emergentes dinâmicos – vai se aproximar, mais ou menos rapidamente segundo os casos, dos padrões de vida e de consumo dos atuais países membros da OCDE, convertendo o mundo numa grande “classe média” relativamente estabilizada demograficamente, ainda que não totalmente democrática e respeitadora dos direitos humanos, como parecem ser os critérios de inclusividade nesse atual “clube restrito de países ricos”. Estima-se que em três ou quatro décadas, eles possam ascender aos níveis de renda e de prosperidade relativa que são os da Europa continental atualmente, que poderá (ou não, dependendo de sua capacidade de reformar-se e avançar) ter progredido ainda mais, para patamares de abundância ainda mais afirmada. Os novos malthusianos – que são os ecologistas não equipados de conhecimento científico apropriado – podem até se alarmar ante essa perspectiva, imaginando que, se os chineses exibirem o perfil de consumo energético dos americanos, isso representaria o equivalente de uma população mundial de várias dezenas de bilhões de habitantes, condenando todos ao esgotamento dos recursos naturais e a uma crise irremediável dos padrões civilizatórios. O mais provável é que a engenhosidade humana – feita de novas tecnologias e de adaptações realistas aos preços de mercado – consiga responder a esses desafios, sem cair na abordagem romântico-alucinada dos novos rousseaunianos ingênuos (mas os velhos também eram...). No plano geopolítico existe a tendência a considerar que esses novos desenvolvimentos seriam eminentemente positivos, já que poderia haver a “redução do unilateralismo imperial”, a partir das novas condições de retração do “poder hegemônico” (ou qualquer outra variante dessas teses). Essa situação representaria um suposto “avanço democrático” – simbolicamente representado pela reforma da Carta da ONU e a ampliação do seu Conselho de Segurança, uma das principais reivindicações de três dos Brics que ainda não fazem parte do inner circle – e garantiria, supostamente, um horizonte politico mais conforme às novas realidades da economia mundial. Essa 65

descentralização pode até corresponder aos sonhos de ascensão de alguns emergentes, mas não significaria necessariamente uma “pacificação” mundial e as garantias de segurança e estabilidade que a atual “ordem hegemônica” garantiu – com uma pequena ajuda da dissuasão nuclear – nas últimas décadas. Alguns autores – entre eles o já citado Parag Khanna, mas também Robert Kagan, este em The Return of History and the End of Dreams (Nova York: Knopf, 2008) – já fizeram analogias históricas entre a “ascensão do resto” e situações geopolíticas anteriores, seja como um equivalente da “anarquia militar” do Renascimento, seja como a da paz armada europeia do final do século XIX, a do “equilíbrio dos grandes poderes”, feitos de alianças cruzadas e de muitos cálculos estratégicos. Uma situação desse tipo não significa, portanto, um mundo mais estável, mais justo ou mais pacífico, e sim um mundo mais instável e, talvez, potencialmente mais propenso a tensões setoriais podendo resultar em conflitos abertos. Não se deve esquecer, tampouco, que alguns dos Brics – os maiores, justamente, em termos geopolíticos e militares – não são exatamente modelos de democracia e de respeito aos direitos humanos, como aliás se pode constatar desde agora nos debates do CSNU em torno de alguns regimes repressivos do Oriente Médio ou alhures, objetos de projetos de resoluções “punitivas” que não logram superar o direito de veto exercido de modo cínico-realista pelos “ascendentes”. Pode-se, assim, dizer, que os Brics apresentam perspectivas “luminosas” para a nova ordem internacional? Talvez seja efetivamente o caso, se isso representar a conversão do mundo atual, desigual e assimétrico como querem alguns (de fato, ainda pobre e desequilibrado), em um planeta mais igualitário e de “classe média”, mais próspero e, portanto, mais pacífico, de conformidade com as teses de Montesquieu sobre o doux commerce como “temperador” das paixões humanas mais violentas. É possível que esse cenário ideal seja factível, pari-passu à evolução econômica e política do mundo, mas conviria guardar certo realismo nas análises que possam ser feitas num ambiente acadêmico (e até governamental). Que os Brics representem um fator positivo na geoeconomia mundial, isso é inegável. Que eles sejam um fator eminentemente positivo em todas as demais equações da geopolítica mundial, ainda é uma tese que precisa ser comprovada com base nas ações efetivas para tornar a governança mundial não apenas mais segura e estável em termos geopolíticos e econômicos, mas sobretudo mais democrática e mais respeitadora dos direitos humanos no terreno dos valores e dos princípios civilizatórios. CQD... 66

2325. “Os Brics na nova conjuntura de crise econômica mundial”, Brasília, 7 outubro 2011, 9 p. Ensaio sobre o papel dos Brics no contexto atual. Mundorama (10/10/2011; link: http://mundorama.net/2011/10/10/os-brics-na-nova-conjunturade-crise-economica-mundial-por-paulo-roberto-de-almeida/). Dividido em três partes para o Observador Político (1a. parte: 26/10/2011; 2a parte: 27/10/2011; 3a parte: 28/10/2011). Publicado na revista Espaço da Sophia (vol. 45, n. 1, janeirojunho 2012, ISSN: 1981-318X; p. 111-123). Relação de Publicados n. 1056 e 1964. Relação de Publicados n. 1056.

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8. A Guerra Fria Econômica: um cenário de transição?

Velhas Realidades A Guerra Fria geopolítica está encerrada definitivamente, ao que parece. A despeito de tensões políticas “normais” e fricções comerciais entre as grandes potências, não existem mais concepções totalmente opostas sobre como organizar o mundo, economicamente ou politicamente. Ninguém mais está dizendo algo semelhante a “nós vamos enterrar vocês”, como ocorreu no passado com um líder soviético. Daniel Bell, recentemente falecido, já tinha antecipado, desde meados dos anos 1950, o “fim das ideologias”, julgamento de certa medida confirmado por Francis Fukuyama. Mas, no que depender de gente como Eric Hobsbawm, e de inocentes úteis desse tipo, as ideologias ainda têm um brilhante futuro pela frente... O que estamos assistindo agora, na verdade, é uma Guerra Fria econômica, ou algo próximo disso. De fato, não parece haver nada capaz de provocar uma confrontação em grande escala entre as maiores potências. O que temos, na presente conjuntura, são fricções comerciais e desalinhamentos monetários, num cenário de ajustes pós-crise. Existem disputas políticas sobre como as políticas econômicas nacionais devem levar em consideração seus impactos sobre a situação econômica de outros países. Como Mark Twain poderia ter argumentado, os rumores sobre uma guerra cambial global são grandemente exagerados. É certo que ainda não superamos totalmente a presente crise financeira; mas ela é apenas uma, dentre muitas outras, que afetam mercados dinâmicos de forma recorrente desde o começo do capitalismo. 68

Profetas da crise final do capitalismo e outros utopistas do gênero vão novamente se sentir frustrados dentro de alguns meses (sem reconhecer o fato, claro). Existem muitas concepções errôneas sobre as origens e o desenvolvimento da crise atual, várias delas propagadas pelos mesmos utopistas conhecidos. Não é exatamente verdade que esta crise tenha sido provocada pela desregulação dos mercados financeiros, ainda que a regulação flexível, ou mal implementada, possa ter facilitado a expansão de várias bolhas nos mercados. O maior responsável pela bolha que provocou o desastre, porém, foram as baixas taxas de juros definidas pelos bancos centrais, a começar pelo Federal Reserve, durante um período muito longo. Da mesma maneira, mas talvez por meios e instrumentos um pouco diferentes, que os velhos Lords of Finance dos anos 1920 criaram as condições que levaram à crise de 1929 e à depressão dos anos 1930, pela sua ação ou inação, a presente crise é o resultado de políticas inadequadas dos novos Lords of Finance (ver o livro de Liaquat Ahamed, Lords of Finance: the Bankers who Broke the World; New York: Penguin, 2009.) Tampouco é verdade que a crise atual, ou as crises – já que são várias, interconectadas – são suficientemente severas para justificar o programa, que muitos recomendam, de um novo Bretton Woods, ou seja, um redesenho completo das relações econômicas mundiais, com a restruturação das organizações existentes. Menções a uma nova arquitetura financeira internacional, ou mesmo de redistribuição do poder econômico mundial, estão em contradição com as realidades mais prosaicas dos nossos dias. Comentaristas superficiais gostam de recorrer a grandes analogias históricas – que em geral são falsas – para falar dos eventos correntes, mas o fato é que não estamos vivenciando nenhum grande ajuste posterior a alguma crise de proporções monumentais, como gostariam alguns. Vivemos, é certo, uma transição, mas não uma revolução, qualquer que seja o sentido que possamos dar a esses conceitos. Vejamos os precedentes. Não estamos em face de um reordenamento radical e completo da ordem mundial, após algum evento cataclísmico, afetando todos e cada um dos grandes atores da cena internacional, ou mesmo regional. Não estamos em Wesfália, em 1648; não estamos em Viena em 1815; tampouco estamos em Paris ou Versalhes, em 1919, sequer em Bretton Woods em 1944, e muito menos em São Francisco, em 1945. Definitivamente, não estamos em nenhum momento de refundação fundamental da ordem política e econômica internacional. Simplesmente estamos, atualmente, no meio de algo semelhante aos anos 1930, tentando administrar uma grande crise por meio de 69

respostas nacionais, cada uma delas adaptada a circunstâncias específicas de cada país, e desvinculada dos maiores desastres afetando os demais e cada um dos países envolvidos no processo. Para ser mais preciso, estamos em algum ponto entre 1931 e 1933, ainda no meio de uma recessão, mas não numa depressão. O nível de desemprego não é tão alto quanto em 1933, e está provavelmente alinhado com os padrões dos nossos dias. Os fluxos comerciais e financeiros não foram tão desestruturados quanto nos anos 1930, ainda que a liberalização econômica tenha regredido: apenas revertemos a uma versão light do protecionismo comercial dos velhos tempos, mas sem cotas ou restrições quantitativas ao velho estilo. Esta nova Guerra Fria Econômica emerge a partir de mudanças estruturais na economia mundial, já em curso desde os anos 1980, quando a China começou a flexionar os seus músculos novamente. Ao mesmo tempo, os países em desenvolvimento deixaram de implementar projetos nacionais, introvertidos, de desenvolvimento nacional e abriram-se aos investimentos estrangeiros. Desde então, o a economia mundial foi transformada irreversivelmente, embora gradualmente. Mas nem tudo, obviamente, mudou. As principais instituições de tomada de decisões ainda continuam a ser o que sempre foram, com a mesma distribuição dos direitos de voto. O FMI e o Banco Mundial estão no meio de seus labores para definir uma nova repartição de votos, tendo já operado algumas acomodações. Os votos coletivos da China, da Índia e do Brasil é 20% menor do que os da Bélgica, dos Países Baixos e da Itália, a despeito do fato que o PIB conjunto do primeiros países é quatro vezes maior do que aquele de seus contrapartes europeus; eles têm uma população 29 vezes maior. Estas são algumas das razões para uma nova Guerra Fria econômica. Como administrar estas novas realidades no terreno econômico, dispondo das mesmas alavancas políticas e das mesmas velhas estruturas de tomada de decisão como nos processos do passado? Esta é uma questão complicada, sem uma resposta clara ao dilema. Administrar a economia mundial é uma pretensão que mesmo o velho G7 nunca conseguiu alcançar nos seus tempos gloriosos. Os países desenvolvidos controlavam então uma grande proporção do PIB mundial e dos fluxos comerciais e financeiros. Mas eles nunca foram capazes de coordenar suas políticas macroeconômicas entre eles mesmos; menos ainda se poderia esperar que eles estabelecessem regras e metas para o resto do mundo. 70

Atualmente, com uma penosa queda nas economias avançadas, parece difícil visualizar o que poderia ser feito para restaurar o crescimento a partir de níveis próximos da estagnação em várias economias europeias. Além dos problemas cíclicos afetando as grandes economias (com as exceções da China, da Índia e de alguns outros países), existem vários desafios globais à frente, entre eles o da pobreza nos países menos avançados, e grandes decisões a serem tomadas em relação a questões ambientais, a violações dos direitos humanos em países não democráticos, e vários outros temas relevantes. Uma estratégia singular poderia ser a definição de apenas uma grande meta global para a comunidade mundial: teria de ser a promoção do desenvolvimento global, não exatamente através da assistência (ou a tradicional Ajuda Oficial ao Desenvolvimento), mas prioritariamente através de uma real liberalização comercial, especialmente no setor agrícola, a única possibilidade efetiva para que os países menos avançados possam ser integrados à economia mundial. Os Estados Unidos e a União Europeia possuem, evidentemente, a maior responsabilidade nesse terreno. É altamente improvável que propostas consensuais relativas ao desenvolvimento global possam emergir de um fórum tão amplo quanto o G20 financeiro, muito heterogêneo para ser capaz de alcançar posições comuns. Talvez fosse mais indicado lograr uma evolução informal do atual G8 para um novo G13, interrompendo o ciclo do atual G20 (o que talvez já seja difícil de se obter). Isso representaria agregar aos atuais membros do G8 outras cinco grandes economias, nomeadamente Brasil, China, Índia, África do Sul, e ou Indonésia ou México. A experiência demonstra que pequenos grupos informais estão mais próximos de se entenderam sobre ações concretas do que grandes órgãos institucionalizados que acabam dominados pela lerdeza burocrática e desentendimentos políticos. Novas Perspectivas? O que deve ser feito? O maior problema nessa modalidade organizacional de se ter um G20 diminuído seria o de como adquirir a legitimidade implícita ao ato de falar para toda a comunidade mundial partindo de um fórum de apenas 13 países. Para resolver essa limitação se necessitaria de um grau de confiança política entre os líderes desses 13 países, definindo um terreno de entendimentos recíprocos entre eles que teria de ser compatível com a função de representação mais ampla que eles pretenderiam assumir em nome de toda a comunidade de nações. 71

Encontrar terrenos comuns é uma tarefa dura de ser alcançada no estado atual das relações internacionais, caracterizada, como já se sublinhou, por uma guerra fria econômica típica das fases de transição. Parece ser bastante difícil de se lograr uma coordenação perfeita das agendas dos grandes países avançados e das economias emergentes e, mais ainda, entre eles todos e os demais membros das organizações internacionais que eles pretenderiam “substituir”. O mundo não é, simplesmente, tão globalizado como se requereria para alcançar esse tipo de interação. Disparidades de interesses, diferenças entre níveis de desenvolvimento, desequilíbrios entre os países, vários fatores se combinam para tornar praticamente impossível um exercício de coordenação desse tipo. Uma proposta mais modesta poderia ser se obter uma interação mais frequente – uma vez ao ano – entre os líderes desse novo G13. Sherpas especialmente designados, encontrando-se duas vezes ao ano, poderiam ser mobiliados para discutir questões comerciais, assuntos ambientais, a proteção dos direitos humanos em países apresentando conflitos, missões de peace-keeping das Nações Unidas e outros temas do gênero, dotados de mandatos específicos de seus líderes políticos. Mas não se deve esperar pela ONU para organizar esse tipo de agenda. Já é difícil implementar qualquer coisa através da ONU, um órgão muito burocrático e passavelmente caótico. Melhor realizar a coordenação de agendas através das três mais importantes agências para a globalização contemporânea: o FMI, o Banco Mundial e a OMC. A tarefa principal dos “novos sherpas” seria a de assegurar a coordenação econômica internacional em torno dos temas mais relevantes para a comunidade global. Uma sugestão possível seria tentar estabelecer um “global new deal”, um novo pacto mundial, intercambiando uma proteção extensiva aos investimentos e à riqueza proprietária (patentes e coisas do gênero), assim como outras condições apropriadas para o desenvolvimento da atividade produtiva no plano microeconômico, do lado dos países em desenvolvimento (ou recebedores de IDE), contra práticas de licenciamento extensivo e investimentos efetivos e liberalização comercial da parte dos países ricos e dos investidores privados. Esse tipo de pacto, ao ampliar os direitos proprietários para os ricos, poderia resultar no fortalecimento dos fluxos de investimentos financeiros e de comércio para os pobres, dando um grande impulso à globalização. A assistência tradicional ao desenvolvimento, por ineficiente, deveria ser substituída, essencialmente, por um novo foco nas melhorias educacionais graduais, ou seja, um extenso programa para a qualificação de recursos humanos. A assistência, 72

enquanto tal, deveria ser as limitada à implementação de um programa consistente de erradicação da maior parte das doenças infecciosas nos países africanos e em vários outras nações em desenvolvimento. A maior razão para a persistência da pobreza nesses países não é exatamente a falta de recursos, mas a ausência de governança e sua nãointegração à economia mundial através de vínculos comerciais. Considerando que questões de governança democrática e de proteção dos direitos humanos podem ser um desafio para países como a China, ou mesmo, talvez, para a Rússia, o alvo principal da agenda de um novo G13 poderia ser a adoção de altos padrões de governança pública na acepção técnica desta expressão. Na atual fase de guerra fria econômica pode ser precoce a tentativa de se fazer da governança democrática e do respeito pelos direitos humanos o critério decisivo para a cooperação bilateral ou multilateral. Mas estes devem ser os fins últimos de qualquer tipo governança global. Em última instância, a agenda de Fukuyama permanece atual e absolutamente necessária. Remeto, a propósito, ao meu artigo: “O Fim da História, de Fukuyama, vinte anos depois: o que ficou?” (Meridiano 47, n. 114, janeiro 2010, p. 817; link: http://meridiano47.files.wordpress.com/2010/05/v11n1a03.pdf). Esse programa não tem nada a ver com o fim da história, e sim com o fim dos regimes autoritários e fechados economicamente. Se existe algum determinismo na História, este parece ser o único aceitável.

2241. “A Guerra Fria Econômica: um cenário de transição?”, Brasília, 31 Janeiro 2011, 6 p. Versão em Português, ligeiramente ampliada do trabalho n. 2202 (“Now, an Economic Cold War: Old Realities, New Prospects”). Publicado em Mundorama (01/02/2011; link: http://mundorama.net/2011/02/01/a-guerra-fria-economica-umcenario-de-transicao-por-paulo-roberto-de-almeida/#more-7197). Republicado em Via Política (07/02/2011) e em Dom Total (10/02/2011; link: http://www.domtotal.com/colunas/detalhes.php?artId=1809). Relação de Publicados n. 1020.

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9. Desafios da economia brasileira na interdependência global

A bonança dos anos 2000 e o início da crise econômica em 2008 A economia brasileira atravessou uma situação relativamente confortável a partir de 2004, depois que foram feitos os ajustes pós-crise-de 2002, justamente suscitados pelo ambiente de temor despertado pela vitória do Partido dos Trabalhadores nas eleições presidenciais daquele ano. Graças a uns poucos “neoliberais” do partido, mas também devido à gravidade da ameaça cambial e ao recrudescimento da inflação, as políticas econômicas foram mantidas – e até reforçadas – na exata linha do governo precedente, o de Fernando Henrique Cardoso. Os efeitos positivos das reformas conduzidas na década anterior e dos ajustes feitos depois da crise cambial de 1999 permitiram ao Brasil aproveitar ao máximo a fase de maior crescimento da economia mundial desde os choques do petróleo dos anos 1970 e da crise da dívida externa dos países latinoamericanos na década seguinte. Turbinado pela excepcional demanda chinesa por seus produtos primários, o Brasil voltou a conhecer taxas de crescimento que não via desde aquela época. Até o momento da crise imobiliária, e logo em seguida financeira, nos Estados Unidos, a maior parte das commodities tinha alcançado o seu mais alto nível histórico, com picos jamais vistos antes: 600 dólares a tonelada de soja, por exemplo, ou 180 dólares a tonelada de minério de ferro, e também outros recordes para as demais matérias primas. O Brasil surfou na demanda chinesa, com uma média de crescimento de 4% ao ano aproximadamente. Em 2009, é verdade, a taxa de crescimento despencou, 74

para menos de 1%, apenas para dar um salto quase “chinês” no ano seguinte: mais de 7% em 2010, o que permitiu a Lula, entre outras façanhas, eleger sua desconhecida candidata nas eleições presidenciais de outubro daquele ano. Desde então, infelizmente, o desempenho da economia brasileira entrou numa fase medíocre, com crescimento de menos de 2% ao ano. Entre os fatores está, mas apenas em parte, a moderação nos preços dos produtos primários de exportação, convertidos novamente, depois de várias décadas, na principal fonte de divisas no comércio exterior. Concorre também a perda de competitividade industrial, uma vez que o Brasil se tornou um país muito caro – e não apenas devido ao câmbio valorizado – em vista da carga fiscal extremamente elevada sobre os processos produtivos: a palavra da conjuntura passou a ser desindustrialização. Na verdade, os problemas mais importantes derivam dos erros de política econômica cometidos pelo governo desde 2008, pelo menos, com um crescimento contínuo da extração tributária, das despesas do governo e de uma taxa de inflação constantemente acima da meta fixada pelo próprio governo. Cabe com efeito recordar que, dentre os países em desenvolvimento, o Brasil possui uma carga fiscal típica de país rico, perto de 38% do PIB, para uma renda per capita cinco ou seis vezes inferior à dos países da OCDE. Pode-se mencionar igualmente um ambiente de negócios muito difícil para investidores e empresários em geral, dados os instintos intervencionistas e dirigistas tradicionais no Brasil mas exacerbados no Partido dos Trabalhadores. O fator principal, obviamente, se deve a que o Estado gasta sempre mais do que o crescimento do PIB e da inflação, et gasta mal, muito pouco em investimentos produtivos, e muito em despesas correntes, em especial subsídios a setores já privilegiados. Em lugar de empreender reformas, os responsáveis políticos continuam distribuindo favores setoriais ou recorrendo a medidas protecionistas que apenas agravam a situação, já que elas provocam mais inflação e um grau ainda menor de competitividade externa para a indústria. Esta foi praticamente confinada ao Mercosul, tampouco protegido da competição externa, sobretudo da China; o bloco é também afetado pelas medidas ainda mais protecionistas da Argentina, que era o terceiro parceiro mais importante do Brasil, depois da União Europeia e dos Estados Unidos, todos eles suplantados desde 2009 pela China. Com o país asiático, o Brasil passou a manter uma relação comercial quase colonial, feita de 95% de matérias primas para lá, e de 95% de manufaturados para cá. A balança comercial começou a se deteriorar, ela que constitui o único recurso em face de um déficit crônico na balança de serviços; a continuar a tendência negativa, 75

mesmo as enormes reservas financeiras do Brasil podem não ser suficientes, uma vez que estão quase todas aplicadas em Treasury bonds, que produzem um retorno insignificante comparativamente ao custo fiscal de sua manutenção. O fato é que a situação econômica se agravou sensivelmente, com ameaças reais ao processo de estabilização iniciado pelo Plano Real em 1994: depois de quatro anos de desacertos na política econômica, o que se tem é um crescimento medíocre e uma inflação crescente. Fatores positivos e debilidades estruturais da economia brasileira O Brasil dispões de enormes recursos naturais, que permitem, no agronegócio – empurrado por avanços tecnológicos impressionantes nas últimas décadas – uma posição mundial invejável como grande exportador de produtos agrícolas, tanto não processados quanto elaborados. Com as possibilidades de produção de energia renovável – sobretudo em etanol et biodiesel – estão dadas as condições para um processo sustentado de crescimento baseado em suas vantagens comparativas e competitivas. O agrobusiness brasileiro pode ser um vencedor absoluto nos mercados mundiais, se ele não fosse contido por uma infraestrutura lamentável além da porteira das fazendas; seria possível melhorar nos próximos anos com investimentos adequados, inclusive estrangeiros, com base num regime atrativo de concessões. As políticas industriais “stalinistas” do Partido dos Trabalhadores estão mudando por força da realidade, muito embora o processo de privatização conhecido nos anos 1990 não tenha mais chance de ser implementado novamente. Tais políticas anacrônicas ainda foram colocadas em vigor no setor do petróleo, cuja regulação foi totalmente alterada desde a descoberta das jazidas do pré-sal, uma imensa província petrolífera que demanda, entretanto, investimentos enormes, muito acima da capacidade da empresa estatal de petróleo, de resto mal administrada durante toda a era do lulo-petismo. Com a Petrobras ocorreu um dos processos mais clamorosos de desmantelamento gerencial, não apenas devido a decisões de investimento totalmente equivocadas, mas também em função de corrupção na mais vasta escala conhecida na história econômica do Brasil. Se o Brasil escapar da maldição do petróleo – o que pode estar sendo facilitado pela baixa dos preços do produto nos mercados mundiais – ele teria chances de recompor esse setor num sentido bem mais “norueguês” do que nigeriano ou venezuelano, como foi infelizmente o caso nos últimos anos. A demanda mundial de alimentos e de energia vai constituir um poderoso fator de indução do aumento da oferta agrícola e energética renovável, tanto em função da 76

extensão ainda mobilizável das terras agricultáveis, quanto em razão de ganhos de produtividade que vão continuar a se manifestar no agronegócio. Este será, certamente, a principal fonte de crescimento no futuro previsível, estimulando tanto a ciência aplicada, quanto equipamentos industriais e investimentos em infraestrutura. Do lado das fraquezas e debilidades estruturais, elas são numerosas, e têm a ver, em primeiro lugar, com o peso desmesurado do Estado na esfera econômica em geral, nas decisões dos empresários, em especial. Na vida diária, o cidadão é esmagado por uma burocracia bizantina, sem serviços correspondentes ao recolhimento de impostos diretos e indiretos. O mais paradoxal é que os brasileiros amam o Estado, estão sempre pedindo mais políticas públicas e também sonham em se converter em funcionários públicos – por uma razão muito simples: os salários do setor público são, na média, cinco a seis vezes mais elevados dos cargos correspondentes no setor privado. No limite, as atividades econômicas no Brasil são estranguladas por uma espécie de fascismo corporativo que torna difícil o exercício de atividades empresariais (para comprovar, basta consultar o Doing Business do Banco Mundial, para se ter dezenas de exemplos concretos desse cenário). O Estado brasileiro, que no passado já foi um poderoso indutor do crescimento econômico, tornou-se, ao longo dos anos, o principal obstrutor do crescimento, com sua carga fiscal monstruosa, suas regulações intrusivas, não esquecendo a corrupção generalizada que se disseminou nos últimos anos. Entretanto, o principal fator limitante – em relação ao qual existem razões para um pessimismo absoluto – se situa nos níveis de qualidade deploráveis da educação elementar e secundária: o Brasil ocupa, sistematicamente, os últimos lugares nos exames comparativos do PISA-OCDE, com resultados extremamente negativos mesmos nas escolas privadas, que deveriam ser, supostamente, bem melhores do que as escolas públicas. Até mesmo nas universidades existe um grau anormalmente elevado de analfabetos funcionais, o que repercute nos níveis medíocres de produtividade do trabalho. Como os resultados nessa área tardam a se materializar, desde que as políticas corretas sejam aplicadas, não existem nenhum risco de que essa situação venha a ser revertida no médio prazo, uma vez que políticas e medidas totalmente equivocadas são continuamente adotadas na esfera educacional. Que chances teria o Brasil de superar sua condição de eterno emergente? A solução parece residir num conjunto de reformas estruturais que teriam de ter sido iniciadas pelo menos depois da segunda estabilização do Plano Real, em 1999, quando 77

se adotou um regime de metas de inflação, uma política de câmbio flutuante e a opção por uma política fiscal responsável. O fato é que esse tripé econômico foi desmantelado a partir de 2008, e precisa ser penosamente reconstruído em condições já não tão favoráveis quanto aquelas que vigoraram na maior parte dos anos 2000 justamente. Reformas econômicas são sempre possíveis de serem feitas sobre a base de uma autoridade política decidida e comprometida com políticas responsáveis, o que não parece ser o caso na atual conjuntura institucional. As reformas mais importantes, contudo, se situam no plano administrativo – ou seja, do próprio Estado e do seu modo de funcionamento --, no terreno da legislação laboral e, sobretudo, no plano da educação, em todos os níveis, com destaque para os dois primeiros ciclos e o ensino técnico-profissional. Uma verdadeira revolução seria necessária em todos esses setores, o que não parece perto de acontecer por falta de consenso nacional em torno do caráter dramático da situação em todas essas áreas. Durante muitos anos, líderes políticos, dirigentes sindicais e membros da academia foram dominados por uma ideologia populista-distributivista antiquada, que se opõe ferozmente a conceitos como eficácia, produtividade ou cobrança de resultados. No plano institucional, há o desafio de uma Constituição expressamente concebida para distribuir favores e benesses pela via estatal, o que implica necessariamente o crescimento das despesas públicas de maneira contínua e sistemática. No terreno da psicologia nacional, parece difícil vencer a mentalidade assistencialista que faz com que um quarto da população seja beneficiada com transferências diretas em moeda, que constituem bem mais um subsídio ao consumo do que propriamente uma indução à sua incorporação no mercado de trabalho. Outra deformação se manifesta nos gastos previdenciários, que já consomem uma parte considerável do PIB, sem que a fração idosa da população tenha crescido de maneira proporcional aos fluxos dirigidos para esse tipo de prestação estatal; em outros termos, o problema vai se agravar futuramente. Por fim, um nacionalismo canhestro conduz o Brasil a uma introversão das mais negativas numa fase de integração produtiva requerida pela globalização capitalista. O Brasil, como nos tempos do stalinismo triunfante, pensa construir “um capitalismo num só país”, ou pelo menos assim pensam os atuais dirigentes políticos, ainda que os discursos sejam pela atração de investimentos e participação no comércio mundial. As exigências sempre presentes de conteúdo local e de preferência pela oferta nacional impõem um custo adicional ao setor produtivo brasileiro, de resto já isolado dos processos mais dinâmicos da interdependência global pela mentalidade canhestra da 78

maior parte das elites políticas e econômicas. De fato, o Brasil não é um país tão atrasado no plano material quanto ele o é no plano mental de suas lideranças. Se e quando o Brasil for capaz de superar os grilhões que o prendem a concepções econômicas anacrônicas, ele teria chances de começar uma lenta retomada de um processo sustentado de crescimento econômico. O principal fator impeditivo, cabe repetir, se situa num Estado extrator das riquezas alheias e predador das energias empresariais: enquanto o ogro famélico não for contido, o Brasil continuará um eterno emergente.

2781. “Desafios da economia brasileira na interdependência global”, Hartford, 25 fevereiro 2015, 5 p. Análise da situação atual do Brasil feita com base no trabalho 2555 (“Le Brésil dans l’économie mondiale”). Publicado no Instituto Millenium (11/03/2015; link: http://www.institutomillenium.org.br/artigos/desafios-daeconomia-brasileira-na-interdependncia-global-2/); em Mundorama (30/03/2015; link: http://mundorama.net/2015/03/30/desafios-da-economia-brasileira-nainterdependencia-global-por-paulo-roberto-de-almeida/). Relação de Publicados n. 1167.

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10. A agenda econômica internacional: o cenário atual

Depois de oito anos de deslanchada a crise imobiliária e bancária nos Estados Unidos, da qual eles se recuperam lenta mas seguramente, os demais países avançados (o Japão certamente, os países europeus em ritmo mais diversificado) continuam a trilhar o caminho da superação dos piores problemas acumulados na passagem da década, mas ainda no baixo crescimento e enfrentando a tradicional irresolução de políticos timoratos em conduzir um programa consistente de reformas estruturais. O mundo só não está pior porque uma parte das economias emergentes dinâmicas serve de motor limitado para a economia global. Aquela expectativa de que, funcionando de maneira simbiótica, EUA e China poderiam representar uma poderosa locomotiva de expansão contínua do comércio e dos investimentos internacionais não se confirmou, e a própria China parece acumular alguns desequilíbrios – nas áreas financeira e imobiliária justamente – que podem prolongar a atual lentidão na retomada de um ritmo mais sustentado da economia global. Todos os países desenvolvidos podem ter exagerado nas medidas de “estímulo econômico” – ou seja, a velha injeção keynesiana de liquidez nos mercados – e de incentivo ao investimento – reduzindo as taxas de juros a praticamente zero, quando não são negativas em alguns – o que promete continuar desestimulando a poupança e agregar aos níveis já altos, até exagerados, de endividamento público. O consolo é que o 80

custo dessas dívidas ainda é relativamente baixo, mas o retorno a condições normais de juros, combinado ao declínio demográfico em vários deles, não augura um futuro brilhante para a atual geração de entrantes no mercado e suas respectivas aposentadorias. Uma eventual recessão na China – aparentemente improvável, mas não de todo impossível, ou descartável – pode piorar, e bastante, o cenário de médio prazo para os países que se tornaram parceiros comerciais privilegiados, em especial os exportadores de produtos primários da África e da América Latina, que se beneficiaram bastante bem do boom das commodities dos anos fastos, quando a China absorvia entre um quarto e um terço de várias mercadorias e insumos de base. O Brasil – o governo Lula em especial – foi um desses felizardos que se locupletaram de dólares com a soja a 600 dólares e o minério de ferro a 200 dólares a tonelada; ao que parece, esse tempo já passou, embora os preços dos agrícolas e das carnes não tenham declinado para profundezas tão tenebrosas quanto as dos fósseis e de alguns metálicos. Em todo caso, o mundo pode se beneficiar do petróleo barato e da nova demanda de manufaturados por parte das novas “classes médias” pipocando aqui e ali em diversos continentes (alô Apple, alô Samsung!). No terreno do comércio internacional, as perspectivas não são entusiasmantes: as negociações da Rodada Doha estão em crise, seus resultados até aqui foram mais do que decepcionantes e não se vislumbra sua conclusão próxima ou mesmo hipotética, muito embora se tenha registrado a preservação do básico, que é um respeito mínimo pelas regras multilaterais, com salvaguardas e antidumping registrando estatísticas mais ou menos “normais” (com exceção de alguns recalcitrantes e protecionistas renitentes, como pode ser o caso aqui mesmo na América Latina); mas, pela primeira vez em décadas, a taxa de crescimento do comércio mundial fica abaixo da expansão do produto, ainda que com grandes desigualdades regionais (na Ásia Pacífico, por exemplo, a expansão comercial se mantém em ritmo razoável dentro da própria região). No terreno das finanças e das moedas não se registraram as catástrofes que alguns profetas do apocalipse do passado – o da repetição da Grande Depressão dos anos 1930 – tinham anunciado quando das crises bancárias de 2008 e 2009, mas vários economistas falam da atual Grande Recessão com um prazer quase mórbido. Tensões e conflitos localizados se manifestam aqui e ali, a descoordenação é garantida nas políticas macroeconômicas dos integrantes do G20, mas não se tem mais a acrimônia de uma suposta “guerra cambial” do yuan contra as principais moedas ocidentais; aqueles 81

que falavam de “tsunami financeiro” se preocupam agora com a retração dos fluxos de dinheiro fácil que, jorrando, alimentavam alguns belos déficits de transações correntes aqui e ali (não é keynesianos de botequim de conhecidos países equilibristas bêbados?). Nos principais países desenvolvidos se observa, nesse capítulo, a continuidade da livre movimentação de capitais, com os controles esperados nos emergentes, e com as paridades cambiais evoluindo gradualmente, embora surpresas desagradáveis não sejam de se descartar (o tango dólar-euro é um dos mais interessantes). A inflação baixa está garantida nos principais países responsáveis, e só malucos localizados conhecem taxas a dois dígitos (mas esses são casos terminais de esquizofrenia econômica); inovadores monetários – como alguns que achavam que uma expansão irrefletida do crédito poderia sustentar um boom de consumo e de investimentos – se encontram hoje em maus lençóis, tendo de suportar greves e o descontentamento dessa classe média alimentada na ilusão do crediário “sem juros”. Aprendizes de feiticeiros econômicos acabam aprendendo da pior maneira, tendo de administrar a velha conhecida estagflação, ou seja, a combinação da estagnação econômica, com baixo crescimento e alto desemprego e uma inflação persistente, como tinha sido o caso nas principais economias avançadas pós-choques do petróleo dos anos 1970. Seria agora a vez do Brasil? Keynes deve ter escrito em algum lugar que nunca se é profeta duas vezes, mas tem gente que não lê nem orelhas dos manuais econômicos, quanto mais as obras completas do mais irreverente professor de Cambridge. Seus atuais seguidores de araque se contentam com as platitudes neo-Prebischianas de um coreano da mesma universidade, que também acha que existe um complô dos ricos contra os pobres, aqueles chutando a escada pela qual deveriam subir os novos desenvolvimentistas. Alguns até continuam repetindo as mesmas bobagens dos anos 1990 contra o Consenso de Washington, como se essas simples regras de bom senso reformista tivessem algo a ver com as agruras passadas ou com as angustias presentes dos neo-estagnacionistas. A despeito de todos esses percalços, o regime econômico multilateral se mantém mais ou menos intacto, tal como concebido em Bretton Woods mais de setenta anos atrás e reformado aqui e ali com remendos de ocasião por quem podia fazê-los. Outros países se contentam em absorver os choques e aproveitam para dar continuidade às mesmas políticas oportunistas que foram as suas nas fases de industrialização triunfante, o que de toda forma lhes assegurou certo aumento no bolo da interdependência global. Alguns certamente avançaram, como os emergentes da Ásia 82

Pacífico, bem mais, em todo caso, do que os saudosistas da América Latina, que parecem não sair do lugar, ou retroceder. No terreno da segurança, que também tem impactos econômicos, em lugar da diminuição gradual dos focos de tensão entre as grandes potências, observa-se o que alguns chamam de retorno à Guerra Fria, não se sabe se como farsa, ou se como simples sobressaltos de suspiros imperiais, na antiga periferia soviética. O Oriente Médio nunca decepciona em confirmar as piores expectativas que sempre marcaram aquela região, com o longo impasse entre Israel e Palestina, e os novos problemas do fundamentalismo islâmico agora convertido em califado expansionista e guerreiro. Com isso, o rebrote de tensões e de conflitos civis ou inter-religiosos, em estados semifalidos (ou por completo, como parece ser o caso da Síria e do Iêmen) promete dar continuidade a velhos problemas de pobreza, de miséria e de desesperança em sociedades já de ordinário martirizadas – se o termo se aplica – por intratáveis contradições entre a manutenção da tradição e as explosões de modernidade na população juvenil e conectada. No meio ambiente, finalmente, os compromissos são frágeis, as reconversões são difíceis e todos os atores prefeririam ter os custos da adaptação transferidos, segundo os casos, para os mais ricos, para os emergentes, para os poluidores históricos, para os novos poluidores, para os destruidores de florestas, etc. Se e quando alguns acordos forem ratificados, eles já estarão superados pelos esforços adaptativos dos agentes primários da globalização ambiental, que são as empresas de consumo de massa, no caso pressionadas pela opinião pública (atuando mais em função do politicamente correto do que de sólidos princípios econômicos relativos a preços de mercados de bens escassos). Alguma esperança nisso tudo? Talvez. Afinal de contas, o novo papa, que parece ser peronista em economia, promete ao menos fazer um aggiornamento necessário nos “costumes” da sua Igreja e continuar o diálogo com as outras comunidades de fé, o que talvez suscite algum avanço por parte de certos representantes do Islã no sentido de dar início a um também necessário trabalho de exegese da palavra do profeta. Nunca é demais esperar um pouco de racionalidade da raça humana. Mas não façam apostas...

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2807. “O Brasil e a agenda econômica internacional, 1: como se apresenta o cenário econômico internacional da atualidade?”, Hartford, 6 abril 2015, 4 p. Análise da situação econômica atual do mundo, em preparação para a discussão da posição e dos desafios para o Brasil. Mundorama (15/04/2015; link: http://mundorama.net/2015/04/15/o-brasil-e-a-agenda-economica-internacionalcomo-se-apresenta-o-cenario-economico-internacional-da-atualidade-por-pauloroberto-de-almeida/). Republicado no blog Diplomatizzando (link: http://diplomatizzando.blogspot.com/2015/04/o-brasil-e-agenda-economica.html). Relação de Publicados n. 1172.

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11. Como o Brasil se insere no cenário mundial, agora e no futuro próximo?

O Brasil, como qualquer outro país, precisa estar sempre atento à evolução – ou seja, às transformações, às mudanças – do cenário internacional, em especial na área econômica, para definir, fixar, manter ou reorientar, pelo menos tentativamente, suas grandes opções de inserção ou atuação nesse cenário, em função de uma visão própria que possa ter dos desafios colocados a ele – como economia, como nação – e dos instrumentos de que dispõe para retirar as melhores vantagens desse ambiente cambiante, por vezes surpreendente, que é o cenário internacional ou regional. Estar atento significar, em primeiro lugar, ter um responsável primeiro e último pelos destinos do país – nosso rei supostamente republicano, eleito, ou reeleito, a cada quatro anos (mas já tivemos por prazos maiores, sem reeleição, alguns que até se prolongaram indevidamente) –, um mandatário dotado de poderes legítimos e cercado de assessores próximos, em especial na área econômica e nas relações exteriores. Estes não devem ser apenas as antenas e os conselheiros de confiança do dirigente oficial, mas também chefes de equipe comandando assistentes competentes. Esse trabalho de prospecção, de diagnóstico, de previsão e de prescrição quanto ao que deve ser feito, ou seja, de políticas públicas, deve ser conduzido de maneira constante e meticulosa, praticamente o tempo todo. Estas são tarefas básicas de qualquer governo que se pretenda responsável pelos destinos da nação, ao assumir temporariamente as rédeas do Estado. Nas democracias de mercado, funcionando segundo o sistema representativo, são os partidos que disputam as preferências dos eleitores para exercer essas funções. As tarefas da governança já foram discutidas ao longo dos séculos, de diversas formas, desde Aristóteles e suas descrições do corpo estatal e dos regimes políticos, 85

passando por Maquiavel, e suas recomendações sinceras e brutais sobre como se deve conquistar, manter e monopolizar o poder sobre os homens, até os cientistas políticos funcionalistas da atualidade, em geral americanos. Estes últimos já tabularam todas as correlações existentes e possíveis entre os poderes, os agentes e suas motivações, por meio de elegantes curvas de regressão sobre os processos decisórios, tudo isso complementado por análises sobre a eficiência das instituições e suas ramificações. Não é o caso, portanto, de retomar aqui esses princípios gerais, e sim de examinar como o Brasil se insere no cenário internacional, o atual, o do passado recente, e o de um provável futuro, para estabelecer algumas constatações muito simples, sobre como temos reagido, ou como temos suportado o cenário mundial e seus desdobramentos regionais. Nesta quesito, pode-se deixar de lado a conjuntura imediata e passar a examinar as tendências de médio e longo prazo, para aferir como o Brasil vem se adequando, se ajustando, se adaptando às mudanças no cenário internacional, em especial o econômico, uma vez que não se espera que ele consiga moldar esse cenário, um empreendimento que atualmente foge ao alcance mesma das maiores potências econômicas. Hipoteticamente, EUA e China seriam capazes de, agindo conjuntamente, influenciar decisivamente a economia política e os dados econômicos do atual cenário, mas essa perspectiva não é nem plausível, nem possível, por uma série de razões que caberia tratar em análise específica. Vamos nos concentrar, portanto, no caso do Brasil, e a principal pergunta que deve ser feita a este respeito seria esta: estaria o Brasil bem inserido na região e no mundo, seus estadistas – se ele os possui – têm controle sobre os vetores principais de nossa inserção, eles têm, ao menos, consciência sobre os principais desafios que enfrentamos e os grandes problemas que precisamos superar para nos tornarmos não apenas uma nação mais próspera, mas também mais participante dessa coisa chamada comunidade mundial? Resumido: como o país trata, sofre ou “negocia” com o atual cenário internacional? Vamos por partes, seguindo, para tanto, o roteiro delineado nas perguntas acima enunciadas. A primeira tem a ver com a nossa região, a mais suscetível de ser “influenciada” por esse gigante que faz metade do continente, nas suas diversas dimensões: demográfica, econômica, territorial, industrial, talvez científica e, ainda talvez, tecnologicamente (seria preciso compulsar estatísticas relativas a produção de artigos científicos, registro de patentes, produção industrial, mas vamos supor, para fins 86

deste exercício, que o Brasil represente aproximadamente a metade do potencial sulamericano). A pergunta é, portanto: o Brasil está bem inserido na região? Quem observa os movimentos diplomáticos, os fluxos de comércio de bens e de serviços, os investimentos diretos, os empréstimos realizados e, sobretudo, as ações diplomáticas e as iniciativas tomadas nos últimos cinco anos (este é o prazo médio das conjunturas econômicas) tem a impressão que o Brasil tem, sim, algum peso na região, e algum grau de influência sobre certos países, talvez mais por inércia do passado do que propriamente por indução ou capacidade de atuação deliberadamente direcionada. A despeito de contar com um grande banco que realiza operações externas, de manter um fluxo regular de intercâmbios econômicos dentro da região, é um fato que o Brasil vem perdendo espaços no continente, não apenas em favor da China – o grande ator emergente não só nesta região, como em quase todos os cenários continentais – mas também como resultado de iniciativas independentes adotadas por outros países, mesmo sendo parceiros relevantes. O grande vetor da construção de um espaço econômico integrado na América do Sul, como tal pensado desde sua concepção, deveria ser o Mercosul, um projeto de mercado comum – enfim, fiquemos na união aduaneira, que deveria ser pelo menos completa e acabada, mas leva o nome de “incompleta” há mais de vinte anos – que tinha vocação a ser o núcleo organizador de uma rede regional de acordos de liberalização comercial (nas suas diversas modalidades operacionais) e podendo servir de base para o que foi chamado, uma vez, de Alcsa, a Área de Livre Comércio Sul-Americana, em lugar de aderir ao projeto americano da Alca (consoante nossa indisfarçável rejeição a qualquer projeto que tivesse os EUA como centro, isso em qualquer governo, mesmo um “neoliberal”). Ora, não é preciso ser nenhum gênio da análise política e econômica, ou dispor de uma central de informações, para constatar que o Mercosul é, hoje, uma sombra do que foi, um esquema quase moribundo de trocas comerciais, no qual os grandes parceiros parecem ter abdicado de sequer fazer menção aos objetivos sempre inconclusos (e cada vez mais distantes) do artigo 1o. do Tratado de Assunção, cada vez que se reúnem para exercícios repetidos de retórica vazia. O outro grande esquema favorecido em 2004 pelo Brasil, a Comunidade SulAmericana de Nações, e que deveria ter sede no Rio de Janeiro – mas depois convertida em Unasul, com sede em Quito, por manobras do ex-caudilho da Venezuela – tornou-se praticamente um instrumento de fácil manipulação pelos países ditos bolivarianos, e não é capaz de sequer observar sua própria cláusula democrática ante situações de clara, e 87

grave, deterioração da democracia num dos maiores membros da organização. Não se pode dizer, tampouco, que o Brasil possua alavancas próprias que possam fazer com que essa entidade sirva, pelo menos, para cumprir seu outro objetivo estatutário, que são projetos de integração física no continente. Não se tem notícia de nenhum grande empreendimento que tenha resultado do planejamento ou da ação da Unasul, embora tenham sido criadas diversas novas entidades – inclusive uma supostamente de defesa – que todas tem o objetivo implícito de retirar os países da área de influência dos EUA. Se essa diminuição de estatura e de influência ocorre no plano regional, não parece claro que o panorama seja mais positivo no plano mundial, não necessariamente universal, mas o do mundo que pode receber impulsos relevantes por parte do Brasil. Esse mundo é o do Ibas (com Índia e África do Sul), o do Brics, juntando mais a Rússia e a gigantesca China (que sozinha faz mais da metade de tudo o que representa o Brics), o de alguns países africanos de expressão portuguesa – onde existe algum espaço para a cooperação bilateral e plurilateral no âmbito da CPLP – e, talvez, o “mundo” do G20, em princípio comprometido com a coordenação de políticas econômicas em escala global, mas que aparece cada vez como mero esforço de coreografia para discursos bem intencionados dos principais líderes mundiais, sem grandes consequências práticas. Em todos esses cenáculos o Brasil aparece com um discurso em favor da “democratização das relações internacionais”, que é o slogan politicamente correto para sua reivindicação de uma cadeira permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas, mas que não parece dispor de apoios suficientes atualmente (sequer dentro do próprio Brics) para se concretizar no futuro previsível. Durante muito tempo, desde o início da década passada, o Brasil – ou, para ser mais exato, sua direção política – insistiu numa tal de diplomacia Sul-Sul, como sendo o vetor privilegiado de sua inserção internacional, e assim foi feito e agitado, nos vários continentes daquilo que outrora se chamava de Terceiro Mundo. Não se tem um balanço honesto, independente, de como essa diplomacia com nítido determinismo geográfico conseguiu, realmente, realçar a capacidade de influência do país no mundo, ou de como isso reforçou nossa presença econômica nas diversas interfaces de relacionamento no plano externo, em especial no campo econômico. O Brasil continua a exibir a mesma modesta participação no comercio internacional – pouco mais de 1% desde sempre – e se situa num patamar inferior – menos de 50% da média mundial – em termos de coeficiente de abertura externa, o que é um resultado inteiramente determinado por nossa própria política econômica, em especial a comercial e a industrial. 88

Para sermos absolutamente sinceros, e precisos no diagnóstico, é importante reconhecer que todos os nossos problemas – esses que impedem uma maior presença e participação, e capacidade de influência do Brasil nos assuntos regionais e mundiais – derivam de causas essencialmente internas, e de nenhuma maneira se devem a um ambiente hostil no plano externo ou a uma hipotética “crise internacional”. Enquanto os estadistas – se os há, como já questionado – nacionais não forem capazes de equacionar, com realismo, a origem dos nossos problemas, e eles são todos de natureza interna, o país vai ter dificuldades em empreender as reformas necessárias para ter uma maior capacidade de inserção internacional e de influenciar a agenda econômica mundial. A realidade atual, sem qualquer disfarce ou desculpa, é esta aqui: o Brasil não possui nenhuma grande estratégia de inserção global, pelo menos uma que se desdobre em ações concretas, para além dos discursos meramente retóricos com que dirigentes e ministros enganam a si mesmos, e tentam enganar os demais, nos cenáculos abertos ao engenho e arte de nossa diplomacia. Se existem alguns projetos parciais – que vão sendo desenhados pela proverbial excelência de nossa diplomacia, se ela de fato existe – eles vão se adaptando aos desafios de cada momento, como podem ser as questões do meio ambiente, da segurança na internet, das negociações comerciais multilaterais e de alguns poucos outros temas nos quais os profissionais da diplomacia conseguem se elevar acima da introversão também proverbial de nossa burocracia governamental. Na verdade, os desafios brasileiros, como já afirmado, são basicamente internos, e o mundo tem sido leniente, bastante generoso para com o Brasil; o comércio mundial, a despeito da “reprimarização” da economia brasileira, tem permitido saldos positivos nos terrenos em que somos competitivos. Se não conseguimos fazer mais, foi porque uma política econômica totalmente equivocada retirou competitividade das empresas brasileiras vinculadas ao comércio exterior. No plano das finanças globais, não se pode dizer que o mundo esteja carente de capitais, e o Brasil não precisaria, de nenhuma forma, aderir a bancos ad hoc – Banco del Sur, Banco dos Brics (NDB), ou o novo banco asiático de investimento em infraestrutura – para poder atrair todos os capitais de que necessita para impulsionar seus próprios projetos de desenvolvimento. Quando não existe confiança na qualidade da política econômica, pode-se cair rapidamente numa fuga de capitais, o que leva inevitavelmente a uma desvalorização cambial, um cenário já bem conhecido pelo Brasil e outros países latino-americanos. O que se observa na conjuntura recente, são ajustes erráticos tanto no plano das contas internas – um ajuste fiscal feito de mais impostos e encargos – quanto no plano das 89

transações correntes, infelizmente na direção de mais protecionismo. Os investimentos diretos, que já colocaram o Brasil nos primeiros lugares do ranking nos últimos anos, podem se retrair progressivamente, à medida em que se confirme a retração – a palavra correta é recessão – da economia interna e a morosidade na região. O mais relevante, porém, deriva de uma inacreditável característica da psicologia nacional, traço ainda mais reforçado depois de uma década e meia de dominação de uma vertente do keynesianismo rústico que vigora ainda na América Latina, a que transforma medidas anticíclicas típicas de conjunturas emergenciais em políticas de desenvolvimento: os brasileiros, em geral, aderem a um tipo de nacionalismo canhestro que os faz ser receptivos ao capital estrangeiro, mas profundamente adversos ao capitalista estrangeiro, o que parece ser esquizofrênico. É esse tipo de crença que sustenta medidas de preferência nacional, leis de conteúdo local, exclusões reiteradas a investimentos estrangeiros em determinados setores e históricos controles de capitais e de transações cambiais. Não há perspectiva, na atual conjuntura, que esse tipo de mentalidade possa reverter no futuro próximo. O Brasil tem condições de se projetar de maneira mais afirmada nos cenários econômicos e diplomáticos mundiais? Talvez, mas muito depende, de um lado, de reformas internas que possa ser capazes de apoiar um processo dinâmico e sustentado de crescimento e de participação nos intercâmbios globais e, do outro, do surgimento de lideranças políticas que se alcem à condição de estadistas responsáveis, uma hipótese aparentemente distante na presente conjuntura. Em conclusão: a despeito de sua presença relativamente importante entre as grandes economias do mundo, o Brasil exibe uma capacidade limitada de influenciar o cenário internacional, seja pela via econômica, seja pela via diplomática. Sem ser irrelevante, o Brasil carece de maiores alavancas materiais ou políticas para construir uma força própria no plano global.

2808. “O Brasil e a agenda econômica internacional, 2: como o Brasil se insere no cenário mundial, agora e no futuro próximo?”, Hartford, 10 abril 2015, 6 p.; revisto em 15/04/2015. Continuidade da série, tratando das questões internas ao Brasil. Mundorama (22/04/2015; link: http://mundorama.net/2015/04/22/o-brasil-e-aagenda-economica-internacional-como-o-brasil-se-insere-no-cenario-mundial-agorae-no-futuro-proximo-por-paulo-roberto-de-almeida/). Republicado no blog Diplomatizzando (link: http://diplomatizzando.blogspot.com/2015/04/o-brasil-eagenda-economica_22.html). Relação de Publicados n. 1175.

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12. Como e qual seria uma (ou a) agenda ideal para o Brasil?

A agenda econômica externa do Brasil concerne, basicamente, a dimensão multilateral, pois esta é a principal plataforma negociadora internacional na área econômica desde Bretton Woods e a criação do Gatt, depois incorporado à OMC. Mas essa agenda também compreende as relações que se estabelecem no âmbito regional, pois este é o locus dos acordos de integração econômica, que são essencialmente comerciais, mas que nos últimos doze anos de reino dos companheiros acabou se transformando num aglomerado de compromissos políticos e sociais que pouca relação guardam com os tratados originais. Finalmente, também coexiste com essas duas dimensões, uma agenda no plano bilateral, mas seus componentes estão constituídos por acordos de cooperação, que também têm sua importância na capacitação de recursos humanos e na implementação de projetos setoriais, que geralmente complementam os acordos alcançados nos dois primeiros planos, mas que podem também ser ainda mais ambiciosos do que aqueles (cooperação nuclear, espacial, tecnológica, por exemplo). Pois bem, vejamos qual poderia ser uma agenda, talvez não ideal, mas pelo menos necessária para que o Brasil realize um enorme potencial hoje represado pelo peso enorme que o Estado exerce sobre cidadãos e empresas, potencial que também foi desviado de um curso que seria quase “natural” em função de uma agenda esdrúxula e exótica, imposta ao país nos últimos doze anos, quando os interesses nacionais foram sacrificados em favor de opções estritamente ideológicas e partidárias, que hoje se revelam estar igualmente vinculadas ao mais gigantesco processo de corrupção jamais visto em nosso país. A “importação” indevida de milhares de “médicos” cubanos, por exemplo, não obedece exatamente a um grande plano de prevenção em saúde da 91

população brasileira, mas tem muito a ver com a situação falimentar da ilha-prisão dos irmãos Castro, que hoje depende de aliados obsequiosos por mantê-la à tona. O plano multilateral apresenta inúmeras facetas, mas as principais são as de caráter comercial e de tipo financeiro. Neste último capítulo, não existem propriamente negociações a serem feitas, uma vez que o Brasil – depois de enfrentar historicamente crises de insolvência externa, e até uma ou duas moratórias – parece ter aprendido a respeitar os fundamentos de seus equilíbrios nas transações correntes e na balança de capitais; a despeito de déficits constantes nas transações externas, estas têm sido compensadas por investimentos diretos e, em situações normais, por saldos superavitários na frente comercial, o que contudo foi revertido nos últimos anos. A origem dos déficits atuais não é, entretanto, alguma deterioração do cenário mundial – mesmo se alguns keynesianos de botequim vivem alegando um ambiente de crise externa para justificar sua péssima condução da política econômica nacional – e sim a perda lamentável de competitividade por parte das empresas brasileiras vinculadas à exportação. Elas não são tão penalizadas pelo câmbio – uma variável que pode ser contornada por contratos de hedge – quanto pela absurda carga fiscal que é imposta às empresas brasileiras por um Estado extrator e extorsivo. Esta questão nos remete ao plano comercial multilateral, hoje totalmente paralisado pela incapacidade dos principais atores em dar continuidade à Rodada Doha, nas premissas otimistas em que foi lançada, no início da década passada. Mesmo que, por um milagre, se lograsse concluir essa rodada de negociações com compromissos mais ou menos moderados de liberalização recíproca de mercados e com padrões ainda mais moderados na regulação do acesso às demais áreas – serviços, investimentos, propriedade intelectual, etc. – o Brasil talvez não esteja preparado para desfrutar com maior vigor dessa abertura, tendo em vista sua já mencionada perda de competitividade por razões de ordem inteiramente doméstica. Trata-se de um dever de casa que ninguém e nenhuma negociação multilateral pode cumprir em seu lugar, ou seja, no do governo. Mesmo na área em que ele é notoriamente competitivo, que é a grande agricultura de exportação – ou seja, commodities agrícolas e carnes, mas podendo evoluir para alimentos processados – os produtores e exportadores brasileiros são penalizados por deficiências ainda mais notórias, a jusante, em sua infraestrutura, como na própria cadeia produtiva, a montante, portanto, em função da tributação generalizada aplicada a praticamente todos os insumos do setor. Como se sabe, a alta produtividade na produção de grãos (mas em outras linhas produtivas também) é neutralizada pelos 92

altos custos, e perdas, no transporte, por uma infraestrutura portuária lamentável, ou por diversos outros aspectos regulatórios e impositivos que fazem com que o produto brasileiro, mais barato do que o dos concorrentes diretos na porteira da fazenda, chegue ao porto de embarque ou de destino bem mais caro em vista dessas deficiências. Sobre isso, se agregam as dificuldades do setor em termos de seguro agrícola e as conhecidas lacunas no rastreamento e prevenção de epizootias e outras endemias típicas da produção comercial primária, sempre mendigando recursos de um governo que tem uma nítida inclinação ideológica por invasores de terras e outros pretensos agricultores familiares (na verdade de subsistência, e sempre assistidos por um ministério espelho ao da agricultura de exportação, que defende uma agenda totalmente diversa deste último). De resto, no terreno do comércio internacional, qualquer ganho em termos de liberalização agrícola teria de ser barganhado contra uma oferta brasileira de redução do seu próprio protecionismo industrial – sem mencionar a adesão a códigos proprietários mais elevados – o que parece notoriamente difícil a um governo que seguidamente vem implementando “políticas industriais” (aparentemente já foram cinco, sucessivamente) cuja principal característica é a de isolar o Brasil dos circuitos produtivos internacionais. O exemplo mais notório é a indústria automobilística, que permanece “infante”, e portanto protegida, desde mais de meio século. Por fim, ainda nesse terreno, os grandes parceiros parecem ter abandonado de vez qualquer entusiasmo por acordos abrangentes no âmbito da OMC, preferindo em troca negociar acordos minilateralistas, ou seja, tratados plurilaterais de livre comércio engajando os “like-minded countries”, que podem, ou não, situar-se na mesma região geográfica (as distâncias encurtaram, de toda forma). Dois exemplos disso, são o acordo transatlântico – entre EUA e UE – e o transPacífico, que reúne um número variado de países da Orla do oceano, inclusive sulamericanos como Peru e Chile. O ideal, para o Brasil, e os brasileiros – empresas e trabalhadores – seria que o Brasil participasse ativamente de todas essas frentes de trabalho de maneira aberta e receptiva, mas a condição para isso seria uma alteração drástica de quase todas as suas políticas setoriais, industrial, comercial e de investimentos em infraestrutura, algo que parece fora do alcance do atual governo. A parte industrial e de infraestrutura compete inteiramente, e soberanamente, ao Brasil, podendo portanto ser implementada por uma decisão política de alta inteligência econômica (o que não necessariamente é assegurado pela coalizão de protecionistas atualmente no poder). 93

Mas a parte comercial não pode, simplesmente, ser sequer considerada sem um entendimento de princípio, e prévio, com os demais membros do Mercosul, essa frágil construção integracionista que, nos últimos doze anos, serviu mais para exercícios de retórica grandiloquente, ou para discursos vazios, do que para, pelo menos, voltar a dar importância aos objetivos básicos e fundamentais desse bloco. Sem isso, ficam carentes de conteúdo tanto as negociações multilaterais, quanto as regionais (de que é exemplo o longuíssimo processo negociador com a UE, que não parece ter pressa de concluí-lo, depois que os três grandes membros do Mercosul implodiram, de modo gratuito e voluntário, o projeto americano de uma área de livre comércio hemisférica). No Mercosul, em lugar da liberalização recíproca – ou seja, a zona de livre comércio – e da coordenação de políticas macroeconômicas – desejável para o objetivo da união aduaneira –, o que se teve foi uma variedade não essencial de iniciativas secundárias, sobretudo em areas tidas por “sociais”, que não atenderam em nada aos requisitos da integração econômica, que permanece, ou deveria ser, o foco dos tratados originais. O bloco foi inclusive distorcido de sua arquitetura contratual – que requer a plena aceitação da Tarifa Externa Comum e das demais regras de política comercial – primeira pela adesão política, e altamente questionável, da Venezuela (que não cumpriu praticamente nenhum dos requisitos inerentes à união aduaneira), e logo em seguida pelas adesões também duvidosas de Bolívia e Equador, que tampouco parecem propensos a aceitar a estrutura regulatória comercial do Mercosul. Não é preciso mencionar, por outro lado, todas as infrações cometidas pela Argentina contra o espírito e a letra do Tratado de Assunção, ao impor salvaguardas e diversos outros tipos de barreiras contra produtos dos demais países membros, numa derrogação unilateral – e também contrária às próprias regras do Gatt – dos compromissos solenemente firmados. O ideal, neste caso, seria que o Brasil liderasse um esforço – a ser concluído por nova conferência diplomática – de revisão completa do Mercosul, com vistas a determinar se ele deve continuar com seu atual perfil de união aduaneira incompleta – ou em “implementação”, como pudicamente se proclama – ou se cabe fazê-lo retroceder a uma simples zona de livre comércio, concedendo, assim, liberdade, a cada um dos associados, para negociar acordos comerciais com quem lhes aprouvesse. O Chile, em lugar de ingressar no Mercosul, e ficar amarrado a uma institucionalidade precária, preferiu permanecer isento de qualquer compromisso mais “íntimo” com qualquer bloco – como aliás também é a prática dos Estados Unidos – o que lhe habilita a negociar esquemas de liberalização com ampla gama de parceiros: o país andino possui acordos 94

de livre comércio com algo em torno de 80%, ou mais, do PIB mundial, assegurando ampla penetração de seus bens nos maiores mercados do mundo, compreendendo todo o hemisfério, a UE e boa parte da Ásia e Oceania). Esse ideal, no entanto, parece difícil de ser concretizado nas atuais condições políticas e econômicas do Brasil, pois implicaria em séria revisão de toda a sua política comercial, industrial e em vasta gama de disposições setoriais regulatórias. Ademais, seria indispensável contar com lideranças políticas com visão de estadista, armadas de estudos econômicos da mais alta competência técnica, para poder decidir, em total conhecimento de causa, quais políticas de desenvolvimento e de relacionamento nessas diversas dimensões seria importante impulsionar na agenda econômica externa. O Brasil precisaria estar disposto a modificar aspectos importantes de seu sistema tributário, de modo a tornar suas empresas mais competitivas, assim como dispor-se a ficar sozinho, no Mercosul, por exemplo, quando decisões de estrita racionalidade econômica e de seu exclusivo interesse nacional assim o determinar. Da mesma forma, mesmo acordos bilaterais de maior escopo econômico – como podem ser as áreas de tecnologias sensíveis: nuclear, espacial, militar – podem requerer uma mudança fundamental de postura, o que esteve longe de acontecer nos últimos doze anos (ou mesmo antes). O Brasil recusou, por exemplo, todos os acordos de proteção de investimentos estrangeiros, em nome de um vetusto, arcaico, ridículo soberanismo jurídico, que tende a negar soluções arbitrais independentes nessa área, ou que se opõe ao princípio mesmo das controvérsias investidor-Estado a respeito de um investimento qualquer, como se este devesse sempre confrontar interesses privados e se opor a normas por ele mesmo estabelecidas para regular a atividade dos empresários estrangeiros. Algo semelhante ocorreu com o acordo de salvaguardas tecnológicas com os Estados Unidos, visando viabilizar o lançamento de satélites com componentes – próprios ou no foguete de lançamento – resguardados por segredos comerciais ou com tecnologias sensíveis, em nome, mais uma vez, de um soberanismo tecnológico totalmente equivocado; isso também acarretou imensas perdas tecnológicas ao país, e grandes prejuízos comerciais, pois inviabilizou totalmente a exploração comercial da base de lançamentos de Alcântara. Nessas duas áreas, o ideal seria que o Brasil – ou uma direção mais esclarecida – revisasse totalmente a postura restritiva que se manteve inalterada durante mais de uma década, atrasando de fato o país nesses campos. 95

A componente dos investimentos, assim como a dos movimentos de capitais também comportam aspectos multilaterais, mas a postura do Brasil infelizmente tem sido, invariavelmente, igualmente restritiva quanto a códigos multilaterais podendo enquadrar esses fluxos financeiros e cambiais (assim como intangíveis de modo geral). O Brasil se opôs, no passado, ao Acordo Multilateral de Investimentos, em negociação (frustrada) na OCDE, bem como sempre se opôs a qualquer regulação multilateral – ou seja, no âmbito do FMI – no tocante a capitais financeiros, ambos elementos possuindo aspectos sensíveis, é verdade, para as políticas monetárias, cambiais ou a respeito de ativos de não residentes. Moeda e finanças constituem os últimos redutos da soberania estatal, mas é preciso reconhecer que a abertura aos movimentos de capitais, a uma maior competição no sistema bancário nacional, a colaboração fiscal internacional (inclusive para prevenir crimes transnacionais, como lavagem de dinheiro e o próprio terrorismo internacional) fazem parte de um mesmo processo de elevação do grau de inserção do país na economia mundial, o que levará, em última instância, à plena conversibilidade do real, um aspecto que beneficiaria amplamente indivíduos e empresas (mas não necessariamente o Estado, que teria de ater-se a normas mais rígidas em todas essas áreas). Em qualquer hipótese, o que está em consideração em todos esses capítulos, é o aumento das liberdades econômicas dos agentes primários da criação de riquezas, que são as empresas e os próprios indivíduos, uma evolução não apenas natura, como absolutamente necessária se o Brasil pretende se alçar ao batalhão de frente das nações economicamente avançadas e abertas à interdependência global. A recente assinatura de um acordo marco do Brasil com a OCDE, concluído por decisão do novo ministro da Fazenda – contrariando, nisso, a antiga orientação anacrônica de dirigentes econômicos anteriores – é um fato auspicioso, pois significa que o Brasil pode começar a se enquadrar numa moldura de políticas econômicas sólidas, estáveis, e confiáveis, deixando para trás a volatilidade implícita nas mudanças bruscas, improvisadas, setoriais, que costumavam caracterizar os keynesianos de botequim que comandaram a economia brasileira durante vários anos. A OCDE representa, justamente, um tipo de racionalidade econômica estrito senso que há muito faltava às políticas públicas – macro e setoriais – do Brasil, ainda que contrarie todo o arcabouço mental antiquado dos “economistas” que pontificaram no governo desde a década passada. Amplas camadas de economistas, e de empresários, já se convenceram de que o que cria volatilidade no país não são os capitais externos, mas é o caráter errático das 96

políticas econômicas e das medidas regulatórias, que traz insegurança aos investidores externos, assim como aos próprios domésticos, e torna o ambiente regulatório pouco transparente e previsível. Uma agenda de abertura e de atratividade aos investimentos, que possa maximizar as chances do Brasil nas negociações internacionais tem de começar primeiro pela estabilidade de regras no plano interno, o que esteve longe de ocorrer nos últimos anos. Em consequência de políticas altamente distorcidas e extremamente intrusivas na vida das empresas, a acumulação de capital e os ganhos de produtividade sofreram enorme queda no Brasil, ao mesmo tempo em que se aprofundaram os desequilíbrios orçamentários internos e os de transações correntes no plano externo, trazendo o atual quadro de alta inflação, baixo crescimento, paralisia dos investimentos e perspectivas sombrias de ajuste e de desemprego. Talvez até mais grave do que as dificuldades materiais do presente seja o atraso mental dos seus dirigentes, a falta de lideranças políticas esclarecidas que consigam colocar o Brasil em compasso com o mundo globalizado. Daí a necessidade de o país adotar uma agenda de modernização em todas as áreas do terreno econômico, como condição para aproveitar as chances abertas pela globalização (como fizeram, aliás, desde muito tempo, o Chile, na América Latina, e diversos países asiáticos da franja do Pacífico). A adoção dessa agenda não depende do mundo, mas apenas de próprio Brasil ou de suas lideranças políticas e empresariais. Não se trata de empreendimento fácil, mas ele é absolutamente indispensável para que o país encontre seu espaço na interdependência global. Reformas são necessárias e elas são sempre controversas, colocando em confronto interesses diversos, como se vê ainda agora mesmo em países tão diversos quanto a França, o México, a própria China. Pode ser que os mecanismos de governança global – ou seja, a agenda dos organismos econômicos multilaterais, como os de Bretton Woods e a OMC – nos induzam a isso, mas é muito pouco provável. O mais provável é que ameaças de crises internas, ou sobressaltos nos planos financeiro e de balanço de pagamentos nos induzam a correções de rota. Afinal de contas, todas as reformas internas são difíceis e os países só são levados a mudanças profundas e significativas em seu ordenamento econômico e social sob a pressão de eventos desafortunados. O Brasil já acumulou todo um pacote de equívocos sistêmicos (a começar pela sua Constituição) e de erros monumentais de política econômica (como o distributivismo exacerbado, e demagógico, da atual “república sindical”) que está simplesmente atrasando nosso desenvolvimento, ou pelo menos reduzindo as taxas de crescimento econômico. Romper com essas amarras 97

mentais é indispensável para que o país recupere um processo sustentado de expansão de sua economia, única base possível para o aumento da prosperidade nacional. Quanto antes melhor...

2814. “O Brasil e a agenda econômica internacional, 3: como e qual seria uma (ou a) agenda ideal para o Brasil?”, Hartford, 18 abril 2015, 7 p. Continuidade da série, no seguimento dos trabalhos 2807 e 2808, tratando de uma possível agenda de reformas internas e de novas posturas externas para fazer o Brasil se inserir na globalização. Mundorama (29/04/2015; link: http://mundorama.net/2015/04/29/obrasil-e-a-agenda-economica-internacional-como-e-qual-seria-uma-ou-a-agendaideal-para-o-brasil-por-paulo-roberto-de-almeida/). Republicado no blog Diplomatizzando (link: http://diplomatizzando.blogspot.com/2015/04/o-brasil-eagenda-economica_29.html). Academia.edu (link: https://www.academia.edu/12159844/2814_Como_e_qual_seria_uma_ou_a_agend a_ideal_para_o_Brasil_2015_). Relação de Publicados n. 1176.

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13. O que o Brasil deveria fazer para maximizar a “sua” agenda?

1. Perguntas de uma investigação tentativa Nos últimos 80 anos, ou seja, desde os anos 1930, o Brasil deixou de ser um país “essencialmente agrícola”, como então se dizia, para engajar um dos mais bem sucedidos processos de industrialização da América Latina, e do conjunto de países em desenvolvimento. Com a aceleração do crescimento, sobretudo a partir dos anos 1950 e nos anos 1970, diminuiu a distância econômica, tecnológica e de nível de renda, entre o Brasil e os EUA, embora em escala bem modesta: de apenas um décimo da renda per capita dos americanos, no início do século 20, os brasileiros alcançaram um patamar de quase 30% do PIB per capita dos EUA em torno de 1980. Infelizmente, muito desse esforço se perdeu, nos anos de crise econômica, de hiperinflação e de desequilíbrios externos. Atualmente, mesmo depois de ter conseguido estabilizar a economia – ainda que caindo novamente numa fase de crescimento medíocre, que não se sabe até quando irá – a distância que nos separa dos níveis de bem-estar na América do Norte continua muito alta: cerca de um quinto, apenas, da renda per capita daquela região, com uma distância similar, talvez maior, em termos de produtividade total de fatores, devido ao péssimo desempenho educacional, como revelado pelos indicadores setoriais. O que falta ao Brasil fazer para que ele possa realizar todo o seu potencial? Existiriam barreiras ao seu progresso que estariam ligadas ao sistema internacional? O comércio mundial por acaso tem sido um fator negativo no desempenho econômico do país? O acesso a tecnologias de ponta tem sido cerceado por razões políticas, ligadas a 99

algum “projeto secreto” de países avançados de limitar nossos avanços nessa área, como acreditam alguns, ou estariam eles “chutando a escada” que poderia nos levar a níveis mais elevados de desenvolvimento material? O Brasil se sente prejudicado por não integrar o chamado “inner core”, o círculo restrito de potências que possui poder de decisão sobre a agenda da maior parte das instituições econômicas mais relevantes do multilateralismo contemporâneo? Em resumo: quão relevante é a agenda econômica internacional para os objetivos prioritários de desenvolvimento do Brasil? 2. Uma recapitulação sumária da história econômica contemporânea O ano de 1929 representa um marco na história econômica mundial, não tanto pela queda dos valores dos ativos negociados em bolsa e nos mercados de bens reais (um fenômeno já conhecido em ciclos anteriores), quanto pelo que representou de implementação de medidas equivocadas pelos governos nacionais, na tentativa de cada um se resguardar dos efeitos mais perniciosos da degringolada e de buscar “empurrar a crise para o seu vizinho” (beggar-thy neighbor), como se dizia então. De fato, a começar pelo Congresso americano, que aprovou um aumento nas tarifas de importação, passando pelos demais governos, que desvincularam suas respectivas moedas do padrão ouro, como forma de desvalorizá-las, e assim ganhar alguma vantagem competitiva, a atitude mais comum foi a de tentar isolar cada um dos países dos efeitos eventualmente nefastos que estavam em curso em praticamente todos eles. O resultado de todas essas políticas erradas foi que, em lugar de uma simples crise de mercados, o que se teve foi uma depressão geral que se estendeu durante anos a fio, carregando para baixo todos os indicadores econômicos e sociais. As lideranças mais esclarecidas dos Estados Unidos aprenderam a lição e, em plena guerra, começaram a traçar planos para uma reorganização da ordem econômica mundial, baseada no multilateralismo, na não-discriminação, no acesso igualitário aos mercados, na reciprocidade de tratamento e em diversas outras cláusulas que deveriam ser fundadas na cooperação e na coordenação de políticas. Daí nasceram Bretton Woods e os princípios do sistema multilateral de comércio, por meio século regido unicamente por um acordo provisório, o Gatt, que foi sendo mantido, até passar a ser administrado pela OMC, o terceiro pé do sistema concebido em 1944 para regular cooperativamente as relações econômicas internacionais. De certa forma, o tripé resultou bem sucedido, levando a economia mundial a patamares jamais conhecidos de crescimento e de prosperidade, até que os choques do petróleo dos anos 1970 e os abusos cometidos 100

pelos governos nos terrenos fiscal e monetário levaram às crises de estagflação – algo não previsto nos modelos keynesianos – e a uma profunda revisão das políticas econômicas. Os vinte anos seguintes foram de profundos ajustes nessas políticas, tanto nas economias avançadas, quanto nos países em desenvolvimento, processo que ficou conhecido no jornalismo superficial como sendo dominado pelo “neoliberalismo”, e que de fato implicou, em todos esses países, a revisão dos mecanismos de intervenção dos Estados na vida econômica, geralmente num sentido redutor e privatizador. Combinada à crise final e derrocada dos sistemas socialistas, o mundo entrou no que foi chamado de terceira onda de globalização – sendo as duas anteriores a dos descobrimentos do século 16, que unificaram o mundo pela primeira vez, e a da segunda revolução industrial, no final do século 19, quando intercâmbios de todos os tipos se expandiram enormemente – caracterizada pela integração progressiva de todos os mercados, em escala nunca vista até então. O Brasil também enfrentou as duas crises do petróleo, e depois uma ainda mais grave, derivada do seu endividamento excessivo, provocado justamente pela tentativa de continuar seguindo o mesmo modelo de expansão exagerada da economia, sem fazer os ajustes requeridos pela nova situação. O resultado foi a aceleração da inflação, a moratória sobre os pagamentos externos, e uma queda geral nos indicadores de crescimento e de emprego, a chamada “década perdida” dos anos 1980, que na verdade estendeu-se até meados da década seguinte. Feita a estabilização, pelo Plano Real, o Brasil começou novamente a trilhar o caminho das políticas econômicas responsáveis, embora sem resolver adequadamente o problema das despesas públicas, sempre em excesso em relação ao nível de receitas. A solução veio pela manutenção de uma taxa de juros muito elevada, de forma a permitir o financiamento público. A desconfiança quanto à capacidade do governo em honrar seus compromissos, aliada a uma nova onda de crises financeiras – iniciada pelo México, em 1994, prolongada na Ásia, a partir de 1997, e culminando na moratória da Rússia, em agosto de 1998 – engolfou novamente o Brasil em sérios desequilíbrios de balanço de pagamentos, o que o obrigou a negociar acordos emergenciais de empréstimo junto às instituições de Bretton Woods e outros credores institucionais. A crise ainda voltou a se manifestar no momento da derrocada argentina, no final de 2001, e quando das eleições presidenciais de 2002, quando os valores dos títulos brasileiros negociados internacionalmente chegaram a seus níveis mais baixos, e o dólar ascendeu a alturas inéditas. Os desafios eram importantes, mas eles foram sendo vencidos. 101

O governo empreendeu, durante essa fase de desequilíbrios, diversas reformas importantes nas políticas econômicas, o que preparou o país para uma nova etapa de crescimento econômico. A começar pela adoção da flutuação cambial e do regime de metas de inflação, complementada, logo em seguida, pela Lei de Responsabilidade Fiscal – que deveria impedir os dirigentes políticos de assumirem despesas sem indicar precisamente as fontes de receitas – e pelo compromisso assumido no orçamento de se liberar todo ano um superávit fiscal (para o pagamento dos juros da dívida pública), essas medidas deveriam manter o Brasil no caminho da estabilidade e das políticas econômicas responsáveis, condição de qualquer processo sustentado de crescimento econômico. O chamado tripé macroeconômico – flutuação cambial, metas de inflação e responsabilidade fiscal – foi de certa forma preservado durante a primeira metade da década do novo milênio, mas importantes reformas estruturais em regimes regulatórios e na modernização da infraestrutura deixaram de ser empreendidas, em favor de uma nova política de redistribuição de rendas que ultrapassou em muito as possibilidades de sua sustentação, por não ter correspondência com o ritmo de crescimento da economia e os seus níveis, medíocres de produtividade. Em feliz coincidência, o Brasil beneficiouse de um crescimento inédito na economia mundial, em especial em países emergentes. No bojo de uma nova crise financeira internacional, iniciada em 2007 nos sistemas imobiliário e bancário dos Estados Unidos, e disseminada internacionalmente a partir de 2008 e 2009, o Brasil reagiu de forma adequada, tanto porque vinha de uma fase de crescimento satisfatório, puxado pela demanda voraz da China por seus produtos de exportação: foi uma época em que a tonelada de soja chegou a valer 600 dólares, e a de minério de ferro quase 200. Depois de uma mini-recessão em 2009, o crescimento em 2010 registrou uma taxa praticamente “chinesa”: mais de 7%, inclusive com uma diminuição notável do desemprego. Infelizmente, a nova administração que teve início em 2011 atuou de forma totalmente irresponsável, como se pretendesse destruir os fundamentos do tripé econômico, e de certa maneira conseguiu: manipulando câmbio e juros, expandindo o crédito e aumentando de forma exagerada as despesas – pois que partindo de um diagnóstico errado de que o crescimento econômico deveria ser puxado pela demanda e não pelo investimento e pela oferta – e intervindo do modo totalmente improvisado em diversos setores da indústria, conseguiram produzir mais inflação, menos crescimento, volta do desemprego, aumento da dívida pública, déficits duplos no orçamento e nas transações externas, enfim, um desastre econômico completo. 102

Este era o estado lastimável da economia ao início da mesma administração, reconduzida nas eleições de outubro de 2014, mas fortemente contestada por uma oposição cívica que não aceita mais as falsas explicações do governo para o atual quadro de dificuldades de toda sorte. No início do segundo trimestre de 2015, não se tem certeza quanto à trajetória do governo atual, e do seu partido de sustentação, envolvidos nos mais clamorosos casos de corrupção jamais vistos na história do país. O que tudo isso tem a ver com a agenda econômica internacional, é o caso de se perguntar? Em princípio muito pouco, ou nada, a despeito dos esforços das lideranças políticas, de forma canhestra, em tentar explicar o péssimo desempenho econômico por causa de uma alegada “crise internacional”, quando a maior parte dos países já enveredou novamente pela retomada do crescimento. EUA e UE, as duas economias avançadas mais atingidas pela crise, apresentam níveis razoáveis de recuperação, e os emergentes dinâmicos continuam a exibir saudáveis taxas de crescimento econômico. Cabe examinar, então, o que o Brasil poderia fazer para maximizar a sua agenda, em face dos atuais desafios que o país enfrenta. 3. O que uma agenda econômica adequada poderia fazer pelo Brasil? Não existe, obviamente, uma única agenda econômica internacional que atenda às necessidades do Brasil e aos seus requerimentos de desenvolvimento. Existe, em contrapartida, uma diversidade de agendas setoriais, de organismos multilaterais, ou de entidades regionais que podem, se combinadas, contribuir para que o Brasil tenha um mix de políticas públicas adequadas, cobrindo tanto as reformas internas quanto a sua política econômica externa. Vamos repassar, portanto, os principais requisitos de um processo sustentado de desenvolvimento econômico, com transformações estruturais e distribuição social dos benefícios do crescimento, e que cobrem cinco frentes principais: a estabilidade macroeconômica, a competitividade microeconômica, a boa governança institucional, a qualidade do capital humano e a inserção na interdependência global. Estabilidade macroeconômica: esta é composta dos componentes usuais nessa área, mas encontráveis mais facilmente nos países de economia avançada e estabilizada: uma inflação baixa (e a média mundial das economias desenvolvidas tem se situado entre 1,5% e 2% ao ano); câmbio e juros o mais possível dentro dos níveis fixados pelos próprios mercados, e não por manipulações dos governos; equilíbrio nas contas públicas (ou um déficit orçamentário inferior a 3% do PIB) e uma dívida interna 103

não superior a um montante que permita o seu serviço também numa faixa inferior a 3% do PIB como pagamento de juros. A fiscalidade deve incidir antes sobre o consumo do que sobre os investimentos, o trabalho ou o lucro das empresas, e mais sobre o fluxo de rendas do que sobre o patrimônio, para evitar elisão fiscal ou diversas formas de fuga de capitais. As alíquotas também precisam ser moderadas, sobretudo sobre os bens de consumo popular, inclusive para evitar fraudes fiscais e contrabando. Os diversos comitês de trabalho da OCDE possuem uma larga experiência em todas essas matérias, e uma aproximação mais estreita do Brasil a essa entidade com sede em Paris poderia contribuir enormemente para a melhoria de qualidade de suas políticas macroeconômicas. Mas tudo isso, obviamente, em circunstâncias normais, o que não parece ser o caso do Brasil atualmente, que necessita antes passar por um sério ajuste em todas as suas contas públicas, e por uma rigorosa correção de todos os equívocos cometidos por meio de políticas mal concebidas e improvisadas. Competitividade microeconômica: está se falando aqui de políticas setoriais, e o princípio básico é melhorar o ambiente de negócios para as empresas, o que também passa pela correção de alguns atavismos governamentais, como o caráter extorsivo da política tributária. Não é preciso desfilar o imenso rol de medidas a serem tomadas, bastando, para isso, consultar um relatório anual do Banco Mundial: Doing Business. Esse estudo detalha, com rigor, todas as esquizofrenias cometidas no Brasil, que tornam a vida dos empresários um verdadeiro inferno em dose dupla, ou tripla: na constituição de empresas, sua gestão e até no seu fechamento. Basta dizer que a classificação do país no ranking geral se situa em torno de 125 entre 187 países, mas isto apenas porque o empresariado, acostumado a um ambiente de hostilidade governamental, faz milagres para garantir um mínimo de eficiência gerencial, o que reduz a componente “micro” do estudo para níveis inferiores a 90; se formos considerar, no entanto, os critérios que dependem de medidas governamentais (tributação, infraestrutura, regulação, legislação laboral, etc.), o ranking do Brasil despenca para algo acima de 150. O ideal para o Brasil seria adotar o Doing Business como benchmark absoluto em todas as áreas, e estudar o que fizeram todos os países que possuem rankings setoriais abaixo de 60, o que já seria um progresso notável para o país. Não é difícil identificar as medidas a serem implementadas; se o Brasil não tiver técnicos competentes em todas as áreas do Doing Business, o Banco Mundial pode organizar um programa em torno dele. 104

Cabe referir, incidentalmente, que o melhor remédio para a competitividade microeconômica é justamente a abertura à competição, o que recomenda liquidar com todos os monopólios indevidos – a começar do setor de energia e combustíveis – e com todos os carteis em determinados serviços coletivos (telefonia e telecomunicações, em geral, mas também em todos os tipos de transportes). Não é preciso dizer que compras governamentais limitadas a fornecedores nacionais, beneficiados ainda por um prêmio abusivo de sobre-preço aceitável (25%, ao que parece) são um convite aberto a práticas viciadas e sujeitas a corrupção. O nacionalismo pernicioso no setor da construção civil, mas também vigente em outras áreas (saúde e educação, por exemplo) é um dos casos mais nefastos de anti-competitividade, além de inerentemente promíscuo e corruptor. Boa governança: este é o núcleo das reformas estruturais, e que não se limita, e nem deveria começar pela “metafísica” da reforma política, ainda que os critérios de representação eleitoral e de presença no parlamento estejam totalmente deformados no Brasil atual. Dar início a um processo de reforma política pode significar a paralisia de todas as demais reformas setoriais indispensáveis à estabilidade econômica e aos ganhos de competitividade de que o Brasil necessita: pode-se limitar o processo ao voto distrital misto e a cláusulas de barreira para a atividade parlamentar (atualmente, apenas cinco ou seis partidos ultrapassam o limite de 5% do eleitorado, e se deveria ficar por aí, sem exceções para os partidos de aluguel ou minúsculos); não é preciso dizer que nada justifica o financiamento público de partidos ou de campanhas eleitorais, uma vez que se trata de entidades de direito privado, cabendo aos militantes e apoiadores essa tarefa. O núcleo da boa governança passa pela reforma do Estado – com uma redução radical do ogro famélico e suas centenas, ou milhares, de órgãos associados –, por uma reforma administrativa que reduza e limite severamente a estabilidade do funcionalismo (e o recurso a diferentes formas de contratação em setores abertos ao mérito individual, como na educação e na saúde, por exemplo), e por uma urgente reforma previdenciária que corrija as distorções ainda remanescentes nos tratamentos (inclusive os privilégios vinculados ao setor público). O Judiciário, extremamente moroso nos processos, precisa passar por uma reforma nos procedimentos, com vistas a agilizar o seu término, hoje se estendendo, na média, por até oito anos. A área trabalhista é a que necessita de amplas reformas, basicamente no sentido do contratualismo, da livre negociação direta e da solução de pendências por via arbitral; a justiça do trabalho é um órgão antes causador do que solucionador de conflitos e deveria simplesmente ser extinta. 105

A própria federação é um mito, tendo em vista a concentração de recursos na União, o que faz surgir “jabuticabas” absurdas como um “ministério das cidades” no âmbito federal. Esse estado republicano “unitário” cria distorções contínuas no plano da repartição de recursos e competências, o que obriga deputados a se converterem em vereadores federais, mendigando financiamento federal para programas paroquiais. A emenda constitucional que torna impositivo o orçamento unicamente reservado aos projetos dos parlamentares é um absurdo político de tal monta que por si só explica a “desgovernança” absoluta a que chegou o Brasil no terreno das práticas federativas: coexiste a chantagem recíproca do governo federal e dos parlamentares em torno da negociação orçamentária e da atribuição efetiva desses recursos para fins paroquiais. Qualidade do capital humano: o Brasil é um país terrivelmente penalizado pela péssima qualidade do ensino, em todos os níveis, o que se reflete na produtividade medíocre da mão-de-obra, em geral, e nos níveis anormalmente baixos de inovação tecnológica em face do seu grau relativamente avançado de industrialização. Não é preciso dizer que em termos de cobertura da educação formal – ensino compulsório – já acumulamos um atraso quantitativo absurdo em termos de taxa de matrículas em face de países mais avançados (mais de um século de atraso, e ainda carentes nos níveis médio e superior), mas o mais grave se refere mesmo à qualidade do ensino, cujo estado deplorável se reflete de forma recorrente nos exames do PISA (programa de avaliação internacional da educação média, conduzido pela OCDE), onde invariavelmente ocupamos os últimos lugares, na companhia de países com renda per capita inferior à nossa diversas vezes. O Brasil, na verdade, não necessita de uma reforma educacional, e sim de uma revolução nesse setor, o que passa basicamente pela formação adequada de mestres nos vários níveis; atualmente, a pedagogia educacional está contaminada por uma ideologia nefasta identificada ao “patrono” da área, o deseducador Paulo Freire e seu imenso rol de bobagens pedagógicas. Enquanto o Brasil não se libertar de quimeras e adotar o critério do rendimento nos estudos básicos, com aferição rigorosa de metas e critérios de progressão no ensino, e com remuneração de professores também vinculada ao mérito e aos resultados, não haverá progresso possível. O isonomismo-igualitarismo radical pregado pelos sindicatos é especialmente nefasto na tarefa de soerguimento da qualidade dos mestres empregados no setor. A OCDE também possui excelentes estudos nessa área, e o Brasil tem aí uma excelente agenda para seguir. 106

Inserção na interdependência global: estamos falando aqui, basicamente, de abertura a investimentos estrangeiros e ao comércio internacional. Trata-se, como nos demais casos, de uma agenda essencialmente interna, pois que não é preciso esperar nenhuma rodada multilateral de negociações, no plano internacional ou regional, para conduzir, por decisão própria, um amplo programa de abertura econômica unilateral e uma liberalização comercial compatível com os requisitos de upgrade tecnológico, para melhorar os padrões de competitividade das empresas exportadoras brasileiras. Nem é preciso esperar por acordos de livre comércio bilaterais – se o Mercosul for reformulado – ou do bloco para tais objetivos; basta reduzir as barreiras para-tarifárias, e reduzir as alíquotas da Tarifa Externa Comum (como exceção para baixo ou decisão conjunta) para que o Brasil se aproxime, idealmente, dos coeficientes de abertura externa vigentes no resto do mundo (na média, o dobro dos praticados atualmente pelo país). Tanto a OCDE, quanto os bancos multilaterais, assim como a própria OMC, possuem o know-how em todas essas matérias comerciais e de investimentos, e bastaria comparar, por exemplo, nosso exercício periódico de revisão da política comercial no âmbito da OMC e compará-lo, em todos os critérios, aos dos países melhor situados no grau de abertura externa. O fato é que o Brasil recuou nos últimos doze anos, tanto em matéria de protecionismo comercial – junto com a Argentina, no Mercosul, diga-se de passagem – quanto no terreno dos investimentos estrangeiros, uma vez que o partido no poder continua recusando até hoje ratificação a mais de uma dúzia de tratados bilaterais de proteção a investimentos que foram assinados pelo Brasil. 4. Conclusões não conclusivas: precisamos de uma agenda global para avançar? Do rol de medidas elencadas nos parágrafos precedentes, se deduz que todos os problemas do país são de origem doméstica, e que nenhum é causado por um ambiente externo negativo ou pouco cooperativo para nossos requisitos de desenvolvimento. O Brasil enfrenta aquilo que os economistas institucionalistas chamam de altos custos de transação, e estes são causados essencialmente – para não dizer deliberadamente – por um Estado disfuncional e por regras e normas totalmente prejudiciais ao funcionamento de um ambiente de negócios minimamente satisfatório para as empresas nacionais (e as estrangeiras aqui instaladas, obviamente, o que diminui a atratividade do investimento). Custos de transação são, em princípio, aferíveis, identificáveis e quantificáveis no plano técnico, ou seja, para o estabelecimento de um diagnóstico seguro, para em seguida merecer um conjunto de prescrições corretivas que deveriam colocar o país no 107

caminho do crescimento sustentado e sustentável. Se o Brasil conseguir cumprir, por exemplo, pelo menos a metade do rol de recomendações constantes do Doing Business já terá feito enormes progressos nesse caminho. Mas muito mais é possível fazer num plano estritamente técnico de políticas setoriais recomendáveis, inclusive a decisão de não ter nenhuma política setorial, em certos casos: na área industrial, por exemplo, em lugar de estímulos generosos – via BNDES – ou de proteção tarifária absurda para as empresas instaladas no Brasil, se poderia começar por uma regulação liberalizadora e pela baixa geral da absurda carga fiscal a elas impostas, para que o ambiente se tornasse mais respirável e mais propenso à reconquista da competitividade externa. Não existem obstáculos culturais nessa área, apenas comportamentos atávicos e antiquados. Existem, sim, idiossincrasias nacionais que serão mais difíceis de serem contornadas, e elas têm a ver com o atavismo estatal profundamente entranhado nos mais diversos estratos sociais do país: tanto trabalhadores quanto capitalistas pedem, esperam, imploram, todos os dias, por “políticas públicas” em uma área qualquer, em todas elas aliás, e tudo precisa ser constitucionalizado, ou tornado obrigatório, para que algo se faça, como se um fiat legislativo fosse capaz de resolver problemas estruturais. Essa cultura nefasta do estatismo, junto com seu irmão siamês, o nacionalismo rústico, constituem poderosos fatores de atrasos materiais, quando não são viseiras mentais a impedir soluções pelo lado dos mercados livres, da abertura econômica de modo geral. Alguns simples exemplos devem bastar. Por que a Anvisa precisa proibir as farmácias de vender chiclete? Seria ele um perigo tão grande à saúde pública? Por que a Ancine tem de regular cotas mínimas para exibição de filmes nacionais? Seria para elevar a qualidade da filmografia à disposição do público? Por que pena de prisão para carona remunerada? A ANTT pretende proibir cidadãos de disporem de seus carros livremente, ou está defendendo carteis de transportadores mancomunados a políticos? Por que os motéis são obrigados a fornecer camisinhas aos seus clientes? Por que o cidadão comum é cotidianamente enganado pela mentira dos “dez vezes sem juros”, quando todas as lojas escondem o custo do financiamento no crediário? Enfim, haveria uma infinidade de exemplos absurdos que apenas comprovaria que o Brasil não é um país normal, definitivamente. Um grande esforço de transformação, inclusive mental, precisaria ser feito, para aproximá-lo, um pouco que fosse, dos padrões de liberdades econômicas vigentes na maioria dos países. Aliás, uma consulta ao relatório anual das liberdades econômicas no mundo (http://www.freetheworld.com/) revelaria quão atrasados estamos nesses 108

quesitos: chegamos a perder inclusive da China comunista em diversos requisitos setoriais – embora não o geral – de liberdades empresariais. O país não apenas se situa em posições humilhantes em diversos rankings econômicos internacionais, como vem recuando ano após ano nos de competitividade microeconômica e nos de liberdades econômicas de modo geral. Não apenas nossa desigualdade distributiva apresenta níveis africanos no coeficiente de Gini, mas os níveis de corrupção são também africanos, num país que tem uma renda per capita superior à média daquele continente. Existe algo de muito errado no Brasil, como comprovam todos os indicadores comparativos no plano mundial. Na maior parte deles, uma simples consulta aos relatórios produzidos por essas entidades oficiais e privadas nos indicaria o caminho para melhorar nossos índices. Mais uma vez se constata que as reformas dos problemas internos passam por soluções absolutamente domésticas, ainda que elas possam ser guiadas por métodos e prescrições retirados das experiências nacionais de outros países, e que conformam um roteiro de boas práticas à disposição de qualquer administração engajada nos princípios e metas da boa governança. O que existe, finalmente, de internacional, na ampla gama de medidas que tornariam o Brasil um país melhor para si mesmo e para a comunidade internacional? Talvez começar por uma política externa promotora das democracias e dos direitos humanos, e não defensora de ditaduras e de regimes deploráveis nesses dois quesitos; já seria um progresso enorme em relação ao que assistimos nos últimos doze ou treze anos. Em síntese, nossa agenda para avançar nas reformas pode até ser global, ou internacional, mas apenas nos princípios e nas orientações básicas, uma vez que o mundo abunda em exemplos positivos e negativos de governança, o que se reflete claramente em todos os indicadores de qualidade de vida. Sem ser um desastre completo em todos os quesitos, o Brasil deixa claramente a desejar – até recuando – em vários deles, e os diagnósticos não são difíceis eles também se encontram em todos esses relatórios, à disposição de qualquer administração esclarecida, aberta, e disposta a empreender reformas (partimos do princípio evidente que todos os países necessitam de reformas, o tempo todo). Poderá o Brasil empreendê-las? Um simples julgamento de circunstância, com base no exame da situação em abril de 2015, indica claramente que não. O Brasil se arrasta penosamente no caminho de um sério ajuste em suas contas públicas, o que constitui uma condição preliminar, e indispensável, a qualquer processo de reformas estruturais e institucionais. Se e quando ele for bem sucedido na tarefa preliminar, e dependendo da qualidade de suas lideranças 109

políticas, ele poderá começar a discutir o conjunto de reformas aqui elencadas. Antes disso, parece utópico ou simplesmente inútil. Oitenta anos atrás, o escritor, folclorista e musicólogo Mário de Andrade já tinha chegado a uma conclusão relativamente frustrante para os nossos brios: “progredir, progredimos um tiquinho, que o progresso também é uma fatalidade” (poema “O Poeta Come Amendoim”, 1924). Se nada for feito, em tempo hábil, vamos continuar, no futuro previsível, progredindo um tiquinho, por saltos e recuos, como no espaço das duas últimas décadas. Pode-se fazer melhor? Certamente, mas isso depende de estadistas...

2815. “O Brasil e a agenda econômica internacional, 4: o que o Brasil deveria fazer para maximizar a “sua” agenda?”, Hartford, 19 abril 2015, 11 p. Continuidade, e fim, da série de artigos sobre a agenda de reformas internas. Mundorama (06/05/2015; link: http://mundorama.net/2015/05/06/o-brasil-e-a-agenda-economica-internacional-oque-o-brasil-deveria-fazer-para-maximizar-a-sua-agenda-por-paulo-roberto-dealmeida/). Republicado no blog Diplomatizzando (link: http://diplomatizzando.blogspot.com/2015/05/o-brasil-e-agenda-economica.html). Relação de Publicados n. 1177.

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Terceira Parte

Globalização, Embromação

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14. A globalização e o direito comercial: uma longa evolução

O direito comercial, em seu sentido estrito, é bem mais recente do que as formas mais primitivas de comércio entre as comunidades humanas: codificado de modo sistemático, tal como a conhecemos atualmente, ele pode ser considerado como historicamente contemporâneo da era das grandes navegações, quando, pela primeira vez na história da humanidade, o planeta se tornou efetivamente global, a partir da gesta colombina, em 1492, e do périplo marítimo de Fernão de Magalhães, em 1521. Desde então, ele vem conhecendo progressos formais e substantivos, impulsionando, no plano do rule-making, as diversas ondas de prosperidade que tanto beneficiaram as sociedades da era moderna e contemporânea nos últimos cinco séculos. Na sua expressão mais antiga, porém, ele pode ser visto como praticamente simultâneo aos primeiros estabelecimentos estáveis de ocupação humana em um determinado território, aqueles dotados de instituições estatais permanentes e, portanto, de regras formais para administrar as relações entre as pessoas e seus ativos materiais. A despeito do fato de que linhas regulares de comércio já existiam nas primeiras comunidades humanas de tipo urbano, desde o oitavo milênio antes de Cristo – com destaque para Çatal Hoyuk, na atual Turquia – a modalidade original de uma lex mercatoria primitiva está presente numa das 282 leis do Código de Hamurabi, conhecido por existir no primeiro estado “moderno” no começo do segundo milênio a.C., na Babilônia. Com efeito, diversos dispositivos desse código regulavam aspectos 113

privados e públicos da atividade humana, entre eles comércio, finanças e propriedade, influenciando, mais tarde, a redação do direito romano e suas derivações regionais nas mais diversas comunidades desse vasto império da antiguidade clássica. A presença do Estado, como regulador das relações entre agentes econômicos, ou a própria iniciativa dos agentes, entre si, se fazia presente numa das “leis” desse Código, especialmente a que determinava as obrigações recíprocas entre as partes numa transação qualquer. Essa lex mercatoria da Mesopotâmia dizia o seguinte: “Se o mercador conceder, a um agente, milho, lã, óleo, ou qualquer outro tipo de bem com o qual comerciar, o agente deve registrar o valor [da mercadoria] e retornar [o dinheiro] ao mercador; o agente deve tomar um recibo selado pelo [valor do] dinheiro que ele conceder ao mercador”.1 Como se vê, não apenas o direito comercial deita raízes nos exemplos mais precoces de intercâmbio comercial, mas o próprio intervencionismo estatal é bem mais antigo do que se imagina, com base nas formas modernas de mercantilismo e de ativismo econômico estatal, a partir da consolidação da forma atual do Estado centralizado, nas monarquias absolutas da Europa pós-medieval. Foi justamente nessa fase de unificação comercial do mundo por meio das grandes navegações ultramarinas e no alvorecer do mercantilismo enquanto doutrina oficial de vários estados engajados na expansão imperial que uma espécie de lex mercatoria universal começa a tomar forma, em padrões relativamente similares aos atualmente conhecidos. Ela nem sempre foi escrita, sendo bem mais “codificada” informalmente numa série de práticas reciprocamente aceitas por mercadores nos mais diversos portos do mundo. Menos de duas décadas depois que Vasco da Gama abriu o caminho das Índias aos comerciantes portugueses – e, de fato, a todos os demais concorrentes europeus – um farmacêutico português convertido em negociante e diplomata informa, chamado Tomé Pires, deixou, em sua Suma Oriental (1512), uma descrição saborosa do porto de Malaca, no estreito que leva do Índico ao Pacífico, uma aglomeração de 40 a 50 mil pessoas, mas dividida em 61 “nações” representadas em seu comércio de transbordo e em cujo porto se faziam negócios em 84 línguas, do Golfo Pérsico ao conjunto da Ásia. Ele expressava sua admiração pelo exuberante comércio e 1

Citado por Nayan Chanda, Bound Together: How Traders, Preachers, Adventurers, and Warriors Shaped Globalization (New Haven: Yale University Press, 2007), p. 30 e 339, com base em R. H. Pfeiffer, “Hammurabi Code: Critical Notes”, American Journal of Semitic Languages and Literatures (1920): 310-15; “Business in Babylon”, Bulletin of the Business Historical Society 12 (1938): 25-27. Existe uma edição brasileira desse livro: Sem Fronteira (Rio de Janeiro: Record, 2011).

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os altos lucros produzidos pelo intenso intercâmbio de mercadorias entre essas diversas partes do mundo, traduzindo empiricamente o que pode ser considerado como o início do direito comercial dos tempos modernos: Malaca é uma cidade que foi feita para mercadorias, bem mais do que qualquer outra no mundo; [é] o fim das monções e o começo de outras [os ventos e as correntes marítimas que aceleravam a navegação entre o Mar Vermelho e as costas da Índia]. Malaca está cercada e se situa no meio, e as trocas e o comércio entre as diferentes nações situadas a um milhar de léguas em todas as direções precisam se dirigir a Malaca... Quem for senhor de Malaca, tem a sua mão na garganta de Veneza.2 Desde então, o direito comercial abandonou suas formas mais espontâneas, tal como existentes na península itálica da Idade Média tardia, e passou a ser codificado num conjunto de regras e princípios que unem, de modo praticamente natural, uma das mais antigas comunidades globalizadas da civilização humana: a dos comerciantes, que constituem, segundo Nayan Chanda, junto com os pregadores, os guerreiros e os aventureiros, os agentes primários mais constantes da globalização. De fato, pode-se identificar antecedentes do direito comercial em tempos recuados, entre os fenícios, por exemplo, depois com os romanos e os comerciantes do Báltico, na alta Idade Média, como os legítimos predecessores dos progressos que seriam observados a partir dos tempos modernos, sempre vinculados ao comércio marítimo e às navegações de caráter exploratório e de penetração comercial. A partir de seus passos iniciais nas cidades florescentes da Europa medieval, ele terá intenso desenvolvimento nos séculos seguintes, sempre assumindo um caráter transnacional, o que o torna, efetivamente, um dos pilares da primeira onda de globalização, a que toma impulso na era moderna, antes mesmo da revolução industrial. Ocorreu, é verdade, uma distinção entre a sua aplicação pela common law, de tradição britânica, e sua regulação estatal pelas Ordonnances sur le commerce de terre (e de mer), na época de Luís XIV, como consagra a tradição dirigista continental, mais especificamente francesa. Depois dessa legislação da época absolutista, a França napoleônica promulgou, em 1807, seu Código Comercial, base de inúmeros outros instrumentos em diversos países. O Brasil não ficou imune a esse movimento, mas foi preciso aguardar quase meio século para que fosse aprovado o primeiro Código Comercial, em 1850. Essa

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Citado igualmente por Nayan Chanda, Bound Together, op. cit., com base em Armando Cortesão (tradutor e editor), The Suma Oriental of Tomé Pires… and the Book of Francisco Rodrigues (Londres: Hakluyt Society, 1944, p. 286-87), p. 52 e 342.

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importação do modelo francês de regulação mercantil não se fez sem certo prejuízo do comércio e das atividades econômicas em geral, já que internalizou igualmente o padrão dirigista e intervencionista do Estado sobre atividades eminentemente privadas. De fato, como indica um historiador do caso francês, o Code atribui preeminência às sociedades pessoais: “La société anonyme, qui est une association de capitaux, est regardée avec méfiance et doit être autorisée par l´État comme un cas d’exception. Ce régime restrictif entrave la création des grandes compagnies”.3 É verdade que os legisladores brasileiros aproveitaram não só elementos do código francês, mas também dos códigos espanhol (1829) e português (1833) para elaborar um instrumento próprio, mas esse processo não foi linear, pois que durante certo tempo ainda continuaram a vigorar no Brasil a legislação herdada do período português, no qual vigiam, em matéria comercial, as Ordenações Filipinas, ou ainda a Lei da Boa Razão, de 1769, em virtude da qual eram subsidiárias, nas questões mercantis, as normas legais “das nações cristãs iluminadas e polidas que com elas estavam resplandecendo na boa, depurada e sã jurisprudência”.4 Instalada em 1832 uma comissão de “pessoas probas e inteligentes” em matéria de comércio, concluiu-se dois anos depois um projeto elaborado sob a inspiração de que “um código de comércio deve ser redigido sobre os princípios adotados por todas as nações comerciantes, em harmonia com os usos e estilos mercantis, que reúnem debaixo de uma só bandeira os povos do novo e do velho mundo”.5 Após longos debates parlamentares e uma tramitação delongada nas duas Câmaras, foi finalmente promulgada, em junho de 1850, a lei nº 556, Código Comercial do Império do Brasil, com 913 artigos divididos em três partes: do comércio em geral, do comércio marítimo e das quebras (isto é, das falências); completava-o um título sobre os tribunais de comércio e sobre a ordem do juízo nas causas comerciais. Ele não fazia em princípio discriminação contra os não nacionais, colocando obviamente sob sua jurisdição todos os atos de comércio praticados por estrangeiros residentes no Brasil. O Código não reconhecia, porém, o ato de comércio isolado, exigindo, como condição de comercialidade, a intervenção de pelo menos um comerciante, ou seja um agente de profissão mercantil. A condição de comerciante estava pois reservada, além das 3

Cf. Gabriel de Broglie, Le XIXe Siècle: l’éclat et le déclin de la France (Paris: Perrin, 1995), p. 175. 4 Cf. João E. Borges, Curso de Direito Comercial Terrestre (Rio de Janeiro: Forense, 1969), p. 35. 5 Idem, p. 37.

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sociedades mercantis ou por ações, à pessoa física exercendo profissionalmente o comércio, sem distinção de nacionalidade. A partir do Código de 1850, qualquer estrangeiro capaz, residente no Brasil, podia legalmente ser comerciante, assim como as empresas constituídas sob as leis brasileiras; estas últimas, tendo a maioria ou mesmo a totalidade de seus sócios de nacionalidade estrangeira, nem por isso deixavam de ser nacionais, se registradas de acordo com a legislação do Brasil. De fato, os estrangeiros dominavam certos ramos do comércio de importação de maneira absoluta, como por exemplo os portugueses para os vinhos e os britânicos nos artigos de vestuário e objetos de metalurgia. O declínio relativo, depois da guerra do Paraguai, da presença dessa última nacionalidade, comparativamente a outros comerciantes estrangeiros, como os franceses e alemães, é explicado como resultante da ligação direta, via cabo submarino, entre a Europa e o Brasil, o que permitia um contato direto entre os fornecedores europeus e seus clientes brasileiros. Mesmo entre os comissários de café, atividade que a historiografia tradicional sempre acreditou ser dominada por brasileiros, a presença estrangeira era majoritária: de maneira geral, os brasileiros eram a minoria no comércio internacional. Salvo restrições específicas, decorrentes da legislação ordinária, os comerciantes de nacionalidade estrangeira se equiparavam aos nacionais. O próprio Código estabelecia algumas dessas restrições, na sua parte relativa ao comércio marítimo, por exemplo, que reservava prerrogativas e favores a embarcações brasileiras aquelas que pertencessem efetivamente aos súditos do Império. A proibição, nesse caso, era drástica: se alguma embarcação registrada como sendo brasileira pertencesse de fato a estrangeiro, ela poderia ser apreendida; a navegação de cabotagem, salvo durante um período, foi em geral reservada a embarcações brasileiras, da mesma forma como deveriam ser brasileiros e domiciliados no Império os capitães ou mestres de navios. Esta era, contudo, uma situação relativamente excepcional, pois que, no mais das vezes, o grosso das atividades econômicas estava aberto à participação de capitais e de cidadãos estrangeiros, operando em grande medida sem necessidade de autorização prévia, mediante mero registro na junta comercial. Alguns setores podiam exigir a concessão da autoridade, como as lavras das minas, os transportes ferroviários ou navais, a iluminação pública e a instalação de cabos telegráficos, o que implicava formalmente um ato administrativo, mais raramente a promulgação de uma lei, atribuindo permissão temporária para o oferecimento de algum serviço ou o desempenho de alguma atividade. 117

Mais para o final do Império, com o crescimento da presença estrangeira na vida econômica nacional, alguns setores começaram a expressar reservas quanto à sua conveniência para o País. Lei aprovada em 1882, que liberou a organização de empresas de responsabilidade limitada — até essa data, as empresas somente podiam operar legalmente após consentimento expresso do Conselho de Estado —, exigia em contrapartida que as empresas estrangeiras ainda conseguissem aprovação específica do Parlamento para se instalarem.6 De forma geral, o Brasil republicano vai operar uma nacionalização de grande parte das atividades econômicas – data do início do século XX a “lei do similar nacional”, de feição claramente protecionista –, tendência que seria reforçada ainda mais pela Constituição e pelos diversos códigos de exploração de recursos naturais surgidos a partir da revolução de 1930; a ditadura estado-novista exacerbaria o protecionismo e o nacionalismo estatizante, características que só seriam revertidas, praticamente, na última década do século, para novamente emergirem com força a partir de 2003, com a mudança de maioria política, e sua ideologia econômica, no Executivo e no Parlamento. O direito comercial no Brasil aparece e se desenvolve, portanto, não exatamente como uma emanação da própria sociedade econômica, mas possuindo estreitos vínculos com a soberania estatal, aspecto sempre cultivado na tradição jurídica brasileira, já que tivemos de esperar quase o final do século XX para, finalmente, aprovar uma lei de arbitragem, equiparando esse mecanismo facilitador aos laudos judiciais. De fato, até parece uma aberração que se tenha tido de aguardar décadas, senão um século inteiro, para que fosse finalmente incorporada a arbitragem ao ordenamento jurídico brasileiro, quando esse instituto integra desde muito tempo os procedimentos comerciais típicos nos países da Custom Law, inclusive quando estão envolvidos agentes nacionais e estrangeiros. A arbitragem é uma espécie de direito comercial alternativo aplicado pela própria classe dos comerciantes: ele não se apresenta apenas como um instrumento de utilidade prática, mas de fato como uma real necessidade, aliás plenamente compatível com os mecanismos e os processos mais característicos da globalização: rapidez, flexibilidade, liberdade dada aos próprios agentes de escolherem foro aplicável, base legal, instrumentos decisórios e os “juízes”, ou árbitros, da disputa. Dos albores da humanidade, ainda nos tempos de Hamurabi e suas tabletes de argila, rabiscadas em caracteres cuneiformes, aos nossos tempos, de escrita virtual e de 6

Cf. John Schulz, A crise financeira da abolição: 1875-1901 (São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, Instituto Fernand Braudel, 1996), p. 16.

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tabletes digitais, o comércio, de bens físicos ou intangíveis, continuará a se expandir em ritmo sempre superior ao do próprio crescimento da produção física no mundo. Sua expressão regulatória, o direito comercial, é consubstancial a esse desenvolvimento e o conhecimento adequado de suas normas por parte dos agentes diretos do comércio é essencial agentes primários da globalização. Mas mesmo não o conhecendo a fundo, todos o praticam, consciente ou inconscientemente: como o personagem de Molière, que fazia prosa sem saber, somos todos, um pouco, contrafações de Monsieur Jourdan na era da globalização.

2786. “A globalização e o direito comercial: uma longa evolução”, Hartford, 6 março 2015, 6 p. Adaptação do trabalho 2453 (“Lex Mercatoria: uma velha tradição da globalização, numa nova introdução”, Brasília, 18 Dezembro 2012), concebido como prefácio ao livro de Erick Vidigal: A lex mercatoria e sua aplicação no mundo contemporâneo (2013) e jamais publicado. Transformado em artigo independente. Mundorama (06/04/2015; link: http://mundorama.net/2015/04/06/aglobalizacao-e-o-direito-comercial-uma-longa-evolucao-por-paulo-roberto-dealmeida/); divulgado em Academia.edu (link: https://www.academia.edu/11855484/2786_A_globaliza%C3%A7%C3%A3o_e_o _direito_comercial_uma_longa_evolu%C3%A7%C3%A3o_2015_) e no blog Diplomatizzando (link: http://diplomatizzando.blogspot.com/2015/04/o-brasil-e-odireito-comercial-uma.html). Relação de Publicados n. 1171.

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15. Fluxos financeiros internacionais: é racional a proposta de taxação

1. O problema e a proposta Uma grande tribo de economistas profissionais, dedicados a trabalhos aplicados, de economistas acadêmicos, ou seja, trabalhando sobretudo com pesquisas econômicas teóricas (alguns deles servindo a governos), assim como de funcionários públicos nacionais e de tecnocratas de organismos econômicos internacionais, todos eles envolvidos com a recomendação de políticas públicas na área macroeconômica, têm se dedicado, nos últimos anos, ao tema da taxação sobre fluxos financeiros. A questão, muito em voga no imediato seguimento da quebra do padrão de Bretton Woods, no início dos anos 1970, foi obviamente reavivada recentemente, a partir da crise financeira surgida nos setores imobiliário e bancário dos EUA em 2007 e rapidamente disseminada pela economia mundial de 2008 a 2010. Aparentemente a crise ainda não amainou, com seu possível recrudescimento a partir dos problemas dos PIIGS europeus e eventuais repercussões em outros continentes, num espectro geográfico a que tampouco ficaria imune a América Latina. O tema é sem dúvida alguma importante, e até mesmo crucial para os países possuindo fortes “indústrias” financeiras, mas vem sendo considerado com alguma dose de maniqueísmo, colocando de um lado os partidários teóricos da taxação e, de outro, 120

seus opositores práticos. Seria útil, no entanto, que o questionamento dos conceitos associados à proposta da taxação, bem como o exame das medidas de implementação prática dessa ideia fossem feitos com base em fortes evidências econômicas, de maneira a evitar um experimento danoso que corresponderia mais ao preconceito contra os “capitais financeiros” do que ao bom senso econômico. Existe uma pressuposição implícita – ou até explícita – à ideia da taxação que é a de que a contenção nacional ou multilateral dos fluxos puramente financeiros poderia evitar a repetição das crises a que o capitalismo assiste de forma recorrente. A suposição está claramente associada ao pensamento econômico keynesiano, e a seus seguidores acadêmicos atuais, fortemente representados em alguns governos. Não se deve tampouco ignorar o fato de que mesmo governos normalmente associados ao pensamento econômico liberal tem recorrido a expedientes de tipo keynesiano na tentativa de superar a atual crise econômica do setor. Mas o raciocínio inverso também é válido: se partirmos do pressuposto que qualquer carga adicional sobre os fatores de produção – trabalho, capital, recursos naturais – distorce seus valores de mercado, e portanto suas condições de utilização, deveríamos ser pelo menos céticos quanto às “bondades” da taxação, de qualquer taxação sobre fatores de produção (governos racionais escolhem, em geral, taxar o consumo ou a renda, e também o patrimônio, mas este já um efeito da renda). A economia corrente, pelo menos aquela que se aprende nas boas faculdades de economia, começa pela teoria dos preços, que nada mais é do que a microeconomia aplicada, ou seja, utilização de fatores de produção em condições alternativas de custo-oportunidade. Se um dos fatores vem gravado por um elemento extra-econômico – e os impostos são uma decisão fundamentalmente política, não uma realidade decorrente da utilização desse fator em condições normais de mercado – já se tem uma distorção da utilização desse fator por critérios que não têm mais a ver com a raridade ou escassez relativa desse fator. Esse é o principal elemento em qualquer cálculo econômico. Um Grupo Internacional de Peritos – de onze países, entre os quais Brasil, Chile, Espanha, Alemanha, Grã-Bretanha e Japão, numa Força-Tarefa coordenada pela França – elaborou estudos e recomendações sobre a viabilidade técnica e política da taxação dos fluxos financeiros. A França e o Brasil esperavam que as recomendações do Grupo de Peritos fossem acolhidas por ocasião da reunião do G20 financeiro, realizada em Busan (na Coréia do Sul), em 5 de maio de 2010, mas esse foro intergovernamental 121

acaba de rejeitar a proposta, para grande satisfação dos banqueiros e especuladores dos mercados financeiros. 2. As crises do capitalismo e os descontentes de sempre Crises financeiras são tão recorrentes no capitalismo quanto as dores de cabeça na vida cotidiana: acabam acontecendo quando menos se espera (não necessariamente em virtude das causas mais frequentemente apontadas). Existem bons livros sobre as crises, desde o clássico de Kindleberger, Manias, panics, and crashes7, até o mais recente de Rogoff e Reinhart: This Time is Different8. Aparentemente, as velhas crises não ensinaram nada a banqueiros e tecnocratas. O mais recente livro de Liaquat Ahamed, Lords of Finance,9 que trata da crise de 1929 e dos banqueiros centrais que quebraram o mundo, confirma que seus atuais sucessores não aprenderam nada mesmo: continuam mantendo os juros em taxas irrealistas e permitindo o surgimento de bolhas especulativas que os próprios governos estimulam. Não só eles, contudo, já que os tecnocratas nacionais e internacionais que se dedicam ao financiamento do desenvolvimento tampouco parecem ter aprendido algo de relevante, a partir dos fracassos notórios da assistência multilateral ao desenvolvimento, que vem sendo tentado há pelo menos seis décadas, sem resultados muito brilhantes até aqui. Sobre essa questão, vale a leitura do livro de William Easterly, The White Man’s Burden10, que constituiu uma das bases empíricas de um artigo recente meu: “Falência da assistência oficial ao desenvolvimento”, Mundorama (24.05.2010; link: http://mundorama.net/2010/05/24/a-falencia-da-assistencia-oficialao-desenvolvimento-por-paulo-roberto-de-almeida/). Também existem aqueles que, sem muitos estudos teóricos ou práticos quanto à viabilidade técnica de uma taxação sobre os fluxos de capitais, vem propondo, desde muitos anos a criação de uma taxa Tobin, não mais especificamente voltada para as transações cambiais, como proposto originalmente, mas generalizada ao conjunto dos fluxos financeiros internacionais. Este tipo de proposta remete às demandas dos 7

Cf. Charles Kindleberger, Manias, panics, and crashes: a history of financial crises (New York: Basic Books, 1978). 8 Ver Kenneth Rogoff e Carmen M. Reinhart: This Time is Different: Eight Centuries of Financial Folly (Princeton: Princeton University Press, 2009). 9 Cf. Liaquat Ahamed, Lords of Finance: 1929, the Great Depression, and the Bankers Who Broke the World (Londres: Windmill, 2010). 10 Cf. William Easterly, The White Man’s Burden: Why the West’s Efforts to Aid the Rest Have Done So Much Ill and So Little Good (New York: Penguin Books, 2007).

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antiglobalizadores, desde muito tempo engajados em ações mais ofensivas, sob o estímulo inicial de militantes associados ao Le Monde Diplomatique (Bernard Cassen, Ignácio Ramonet). Foram esses franceses que criaram a Attac, que tem esse sugestivo nome como acrônimo de Association pour la Tobin Tax et en Appui aux Citoyens. Curioso que o próprio economista James Tobin, quem primeiro propôs esse tipo de taxação sobre transações cambiais, negou, depois, qualquer viabilidade a essa ideia e recusou, expressamente, qualquer vinculação pessoal com as atividades dos antiglobalizadores, ou altermundialistas, como eles preferem ser chamados. Tobin provavelmente julgou que, nas novas condições de integração financeira ampliada, a medida carecia de eficácia econômica ou qualquer sentido prático. Vários outros economistas pertencentes ao chamado mainstream economics tendem a concordar com sua posição, por considerar que os governos já liberalizaram amplamente os movimentos de capitais, tornando assim inócua uma medida que poderia ser facilmente contornada por mercados não regulados (e sempre os há). 3. Justifica-se economicamente a proposta pela taxação dos capitais? A suposição dos que são favoráveis a esse tipo de proposta é, obviamente, afirmativa, do contrário não se empenhariam com tanta dedicação intelectual e tantos esforços práticos para viabilizar a ideia e o princípio da taxação. Cabe, no entanto, respeitando o espírito acadêmico que deve permear qualquer proposta de política econômica com alto grau de incerteza, abrir um debate contraditório sobre o chamado “custo-oportunidade” da proposta, o que também passa por um exame mais detido do que se poderia chamar de “filosofia da coisa”. Por que a taxação sobre fluxos de capitais representaria uma melhor situação de “bem-estar” – como dizem os economistas – do que sua livre e desimpedida circulação? A resposta implícita a esta questão, do ponto de vista dos que lhe são favoráveis, seria porque os fluxos de capitais são desestabilizadores ou apresentam efeitos nefastos, incontroláveis, para as atividades econômicas dos países. Estes deveriam, em conseqüência, manter esses fluxos sobre estrito controle, para impedir seus efeitos nefastos do ponto de vista macroeconômico. Uma outra suposição implícita a essa corrente é a de que os reguladores estatais conseguem determinar o que é bom para a economia, podendo assim regular esses fluxos, para que eles representem apenas efeitos benéficos, eventualmente pela via da tributação.

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Vejamos a questão por um outro ângulo. Desde os albores da humanidade, a divisão do trabalho – sexual, social e crescentemente especializada – tem sido um dos fatores impulsionadores do crescimento econômico e da produtividade, sendo que a primeira pode eventualmente ocorrer sem a segunda, mas a segunda é feita expressamente para permitir maior crescimento econômico, maior eficiência produtiva e uso mais racional dos fatores de produção. Pois bem, o capital é, junto com o trabalho, um dos mais importantes fatores de produção, existindo sob diversas formas, e não apenas como liquidez financeira. Aliás, a conjunção de ambos, sob a forma de conhecimento (necessariamente embutido em pessoas, ou na memória coletiva da sociedade), é também um fator de produção que vários economistas distinguem dos tradicionais. A terra é sinônimo de recursos naturais, e a ciência econômica vem lutando, ainda, para incorporar a degradação ambiental nos cálculos econômicos da nova economia. Com a exceção (certamente não absoluta) dos recursos naturais, a circulação dos fatores produtivos é um dos melhores expedientes para melhorar a sua alocação segundo princípios de eficiência e custo-oportunidade, ou seja, sua remuneração em função da escassez relativa. Enfim, tudo isso é um beabá da economia, normalmente ensinado nos cursos de Economics 101 e 301 nas faculdades americanas, ou nos semestres de introdução à economia nas faculdades brasileiras. Se o pressuposto é verdade, qualquer taxação sobre o fator em questão incidirá negativamente sobre sua eficiência alocativa, já que alterando as condições sob as quais aquele fator viria a se deslocar entre os sistemas econômicos, diminuindo, portanto, os retornos esperados. Países que carecem de capital, e que necessitam importá-lo, não têm nenhum interesse em taxá-lo, pois o único efeito da medida é o de aumentar o seu custo para os usuários (empresários, consumidores, governo, enfim, agentes econômicos em geral). Autoridades econômicas podem ter interesse em modular o afluxo de capital em função do meio circulante (e seus efeitos inflacionários), o que pode ser obtido por taxação temporária ou outros mecanismos de esterilização. Mas, independentemente dos efeitos eventualmente ou potencialmente desestabilizadores dos fluxos de capitais, o princípio geral que deveria prevalecer seria o de que maior fluxo de capitais, sem restrições de qualquer espécie, é mais benéfico do que negativo do ponto de vista da estrita racionalidade econômica. Trata-se de uma realidade tão evidente que ela merece poucas comprovações empíricas para sustentar-se materialmente. 124

Tributar o trabalho ou tributar o capital torna qualquer sistema econômico menos eficiente, não mais eficiente, e isso vale para qualquer época e qualquer lugar. Empiricamente, sistemas econômicos nacionais que apresentam menor tributação sobre esses dois fatores costumam “entregar” maiores taxas de crescimento, que outros que taxam pesadamente esses dois fatores. Existem dezenas de estudos a respeito, assim como existem abundantes dados estatísticos (da OCDE, em primeiro lugar) que comprovam essa verdade elementar. Por que, então, defender a taxação dos fluxos de capitais? Vamos tentar compreender as razões dos propositores. 4. Fluxos de capitais são desestabilizadores? Existem muitas maneiras de responder a esta questão, seja pela teoria econômica, seja pela prática da política econômica, seja ainda pelo exame dos casos mais flagrantes de desestabilização concreta, no curso da era contemporânea. Creio que, por razões de economia de espaço, bastaria fazer algumas perguntas simples. Especuladores – a razão sempre invocada para regular impositivamente os fluxos de capitais – são capazes de desestabilizar um sistema? Talvez, mas uma realidade muito simples deve ser lembrada: especuladores apenas atuam em face de desequilíbrios reais e potenciais dos próprios fundamentos da economia. O que isso quer dizer? Nenhum ataque especulativo contra uma economia – fuga de capitais, manipulações nos mercados cambiais – é suscetível de manter-se se a economia apresenta fundamentos sólidos. Mas quando é que a economia deixa de apresentar fundamentos sólidos? Pergunta complexa, mas a resposta é muito simples. Orçamentos equilibrados, um comportamento fiscal responsável, câmbio respondendo à demanda e oferta da moeda nacional e as principais divisas dos intercâmbios externos, juros de referência compatíveis com os equilíbrios de mercado – que são os que neutralizam demandas de poupadores e investidores – e emissão monetária condizente com a dinâmica econômica estão na origem de uma economia sólida. Quando os governos – e são sempre os governos que atuam nos principais indicadores macroeconômicos – buscam se desviar (sempre por razoes mais políticas do que econômicas) desses equilíbrios fundamentais, eles criam as condições para a atuação dos especuladores. Fugas de capitais – que são as que impactam o câmbio e o balanço de pagamentos – ocorrem quando a política econômica é errática, prejudicial aos agentes econômicos ou imprevisível aos olhos destes últimos, ou quando os governos, 125

justamente, impõem uma taxação abusiva sobre esse importante fator de produção. A dependência em relação aos capitais externos ocorre quando o governo gasta mais do que arrecada e quando ele não consegue se abastecer de modo satisfatório no mercado interno. Muito se falou, por exemplo, de que a Grécia teria sido “vítima” dos grandes banqueiros ou dos “especuladores” habituais. Mas a pergunta correta deve ser esta: quem obrigou a Grécia – ou seu governo – a se entregar nas mãos dos “donos do capital”, ou dos “especuladores”? Quem forçou o país mediterrâneo a depender desse aporte de capitais externos e, depois, a maquiar suas contas públicas para que elas não registrassem esses desequilíbrios inconsistentes com uma “boa” situação econômica? Por outro lado, o afluxo indesejado de capitais ocorre geralmente quando a taxa de juros interna é superior, numa proporção razoável – ou seja, cobrindo a inflação e os riscos cambiais em dois ou mais pontos – aos juros de referência nos principais mercados mundiais. E por que os juros de um país precisam ser superiores aos de outros países: Isso ocorre geralmente quando o governo precisa reter os capitais nacionais, ou atrair os capitais externos, em virtude de desequilíbrios nas suas contas públicas ou nas transações correntes do balanço de pagamentos. Juros muito baixos – artificialmente deprimidos, como ocorreu nos EUA de 2001 a 2005 – ou juros muito altos provocam, naturalmente, esses efeitos desestabilizadores na economia, podendo provocar bolhas especulativas ou fugas de capitais (que começam pelos próprios capitais nacionais, obviamente, que são os mais bem informados). Não existe, em economia, maior tolice do que culpar os “mercados” por esses movimentos repentinos ou sustentados de capitais e de fatores de produção, essas alterações nos principais preços de mercado, em “desalinhamento” aos objetivos dos governos. Mercados são, por princípio e por definição, impessoais, incontroláveis e imprevisíveis, já que respondendo à ação não coordenada de milhares de agentes que buscam a maximização de seu bem estar com base nas informações de que dispõem esses agentes (sempre imperfeitas, obviamente). Culpar os mercados pela instabilidade na economia representa algo como culpar o movimentos do ventos pelos tornados, furacões e outras fatalidades naturais: os movimentos dos mercados ocorrem porque forças muito profundas se puseram em marcha, geralmente em contraposição ao que espera ou deseja o governo, que é uma força poderosa mas não onipotente (e, sobretudo, não onisciente). Vários dirigentes, desde 2008, criticaram os mercados financeiros “não regulados” pela crise que se abateu sobre os EUA e depois sobre o mundo a partir de 126

2007-2008, quando os mercados financeiros são dos mais regulados que possam existir. Poucos se lembram dos juros desalinhados, do câmbio artificialmente valorizado (ou desvalorizado), dos gastos correntes superiores às possibilidades da arrecadação, do volume da dívida pública exageradamente elevado. Dizer que os mercados não conseguem se corrigir a si mesmos é, também, uma das maiores impropriedades que possam existir, pois os mercados sempre se corrigem a si mesmos, tão pronto os agentes econômicos tomam consciência de que os resultados não serão aqueles esperados (mas isso pode demorar certo tempo, dependendo das informações disponíveis). 5. Fluxos de capitais devem ser taxados? De tudo o que foi argumentado acima, conclui-se, facilmente, que sou manifestamente contrário à taxação dos fluxos de capitais, por considerar esse tipo de medida irracional, ineficiente, prejudicial aos agentes econômicos criadores de riqueza e, sobretudo, uma medida que mascara as reais condições da economia, eventualmente em contradição com os dados dos mercados. Trata-se de um custo auto-imposto – ou melhor, imposto pelo governo aos agentes – que simplesmente aumenta os custos de transação, diminuindo, portanto, a competitividade da economia nacional assim taxada em face de outros sistemas econômicos com os quais ela se encontra em competição. Como disse uma vez Milton Friedman, “as pessoas sabem gastar o seu dinheiro melhor que qualquer governo”, o que também se aplica ao fato de ganhar esse dinheiro, que é sempre pela via produtiva, uma vez que governos são sempre tentados a “produzir” dinheiro pela via das emissões. Há uma evidente correlação entre a taxação interna e a “externa”, pois que governos muito “impositivos” costumam produzir, antes de qualquer outra coisa, elisão e evasão fiscais. O Brasil é um caso típico nessa categoria, já que são notórios tanto a alta carga fiscal em vigor quanto o alto grau de “informalidade” do sistema, que é uma espécie de “fuga de capitais” em curso no plano doméstico. É evidente, aos olhos de qualquer primeiro-anista de economia, que uma taxação moderada no plano interno provocaria muito mais empreendimentos produtivos, e maior taxação relativa para o governo, fossem as alíquotas e os procedimentos tributários mais reduzidos e mais simples. Como se vê, os mercados sempre se autorregulam, por mais que os governos se esforcem para provar o contrário. Economistas e burocratas governamentais que acham que podem “domar” os capitais e os mercados participam de uma auto-ilusão: geralmente, o único efeito de suas medidas de controle é o de provocar a fuga preventiva de capitais, a ineficiência 127

geral do sistema e o aumento de custos para empresários e consumidores. Mercados sempre farão exatamente aquilo que sempre fizeram e continuarão a fazer: corrigir as medidas equivocadas dos governos, punindo-os por criarem desequilíbrios implícitos a políticas econômicas desalinhadas ou por adotares medidas artificiais de “correção” dos “desequilíbrios” supostos dos mercados.

2150. “Seminário ‘Taxação sobre fluxos financeiros para um mundo melhor’: Comentários de quem acha que o mundo seria melhor sem taxação”, Shanghai, 8 junho 2010, 10 p. Comentários sobre seminário do Ipea, em 10-11/06/2010. Postado no blog Diplomatizzando (link: http://diplomatizzando.blogspot.com/2010/06/seminario-taxacao-sobrefluxos.html). Refeito em 11.06.2010, sem as menções ao seminário, no texto “Fluxos financeiros internacionais: é racional a proposta de taxação?” (8 p.). Publicado em Mundorama (Boletim 34, 14/06/2010; link: http://mundorama.net/2010/06/14/fluxos-financeiros-internacionais-e-racional-aproposta-de-taxacao-por-paulo-roberto-de-almeida/). Relação de Publicados n. 975.

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16. Fórum Econômico e Fórum Social: dois mundos contraditórios

Dois personagens à procura de um enredo Entre o final de janeiro e o começo de fevereiro de cada ano são realizados, sucessivamente ou por vezes simultaneamente, dois fóruns mundiais, mas “inimigos”: de um lado, o dos capitalistas de Davos – o Fórum Econômico Mundial, ou WEF, na sua sigla em inglês – e, de outro, nos últimos dez anos, o dos antiglobalizadores do Fórum Social Mundial (FSM), em diferentes cidades tidas como, momentaneamente, “alternativas” (e Porto Alegre o foi, enquanto esteve sob o comando do PT). Já passou o tempo em que os militantes do segundo grupo se organizavam para perturbar, ou mesmo para tentar impedir a realização do primeiro, como faziam com todos os demais encontros “capitalistas” de par le monde, formando correntes de bloqueio, destruindo algumas propriedades e enfrentando a polícia nas ruas dessa pacata estação de esqui da Suíça (ou de outras cidades que por acaso abrigam reuniões periódicas dos “poderosos” do mundo). Os antiglobalizadores – graças, justamente, à globalização, mas isso eles não reconhecem – se tornaram agora um grupo por demais “importante” para apenas protestar ruidosamente contra os encontros de capitalistas: eles já têm seu espaço garantido na mídia e na agenda de muitas ONGs e por isso se dedicam, hoje, com a mesma seriedade de uma multinacional “grisalha”, a transmitir suas próprias “soluções” aos problemas mundiais, chegando até a obscurecer, em algumas ocasiões, as propostas do primeiro grupo. Cabe, assim, tratar de suas agendas respectivas e de suas propostas, 129

se é que alguma proposta significativa pode “emergir”, de um ou outro fórum, para “resolver”, de fato, problemas cruciais da humanidade. Esses problemas, como se sabe, têm nome e “endereço”: pobreza ainda disseminada em diferentes regiões do planeta, ameaças à paz e à segurança internacionais em diversos hotspots do mundo, conflitos renitentes, sob a forma de guerras civis, enfrentamentos étnicos ou religiosos, em países próximos daquela condição associada a um “Estado falido”, poluição e perspectivas de novos cenários malthusianos com o aquecimento global antrópico, enfim, questões que estão há muito tempo na agenda das principais potências e organismos internacionais e que são, ou deveriam ser, tratadas também nos encontros mundiais de globalizadores e antiglobalizadores, onde quer que eles se reúnam. Vamos tentar ver um pouco mais de perto o que representam, de fato, esses encontros e analisar suas “soluções”. Fórum de Davos: capitalistas “arrependidos” e fora de foco O Fórum de Davos surgiu no início dos anos 1970 com a finalidade explícita de reunir representantes da elite do empresariado mundial e os dirigentes políticos com responsabilidade de governos em torno das questões mais relevantes da agenda mundial, num momento – choques do petróleo e revolução islâmica no Irã – em que o mundo se debatia entre a estagflação dos países ricos e as crises econômicas – geralmente de dívida externa – dos países em desenvolvimento. Seu organizador, Klaus Schwab, tinha a intenção de facilitar o diálogo entre esses dois grupos, já que o G7 se reunia praticamente a portas fechadas e que as reuniões das instituições de Bretton Woods – FMI e Banco Mundial – e do Gatt tampouco permitiam a participação do setor privado; haveria, portanto, um espaço a ser preenchido por uma ONG como a que ele criou precipuamente com essa finalidade: juntar reguladores e decisores em torno dos problemas do momento. Os objetivos eram, sem dúvida alguma, meritórios: encontrar um terreno neutro, quase de lazer (já que Davos sempre se distinguiu pelas suas pistas de esqui), para fazer avançar a coordenação de políticas entre os principais atores da economia mundial – Estados e companhias globalizadas –, sempre com intenção de, através do diálogo informal, despojado do peso das burocracias governamentais, fazer com que algumas novas ideias pudessem ser concretizadas no terreno das políticas práticas e das iniciativas intergovernamentais, com vistas a incrementar, de modo adequado e mutuamente benéfico, a chamada interdependência econômica global. Nesse sentido, a 130

agenda de Davos não era muito diferente daquela do G7, da OCDE ou daqueles entidades multilaterais, com a vantagem de oferecer um espaço de discussão informal, sem os rigores e os compromissos das declarações oficiais de governos e entidades. Passados quarenta anos de sua criação, qual seria o balanço a ser feito do WEF e de suas contribuições, eventualmente positivas, para a melhoria das condições econômicas e sociais no nosso planeta? Elas são inegavelmente positivas, pelo simples fato de se ter mais um espaço de diálogo entre a chamada “sociedade civil” – ainda que representada majoritariamente pelos capitalistas, ou seja, os “ricos e poderosos”, como diriam seus opositores – e líderes governamentais, tratando de problemas relevantes da agenda mundial: crescimento econômico, desenvolvimento sustentável (que é o novo mantra da agenda ecológica de radicais e cientistas do meio ambiente), comércio internacional (que sempre anda aos “trancos e barrancos”, ao sabor das rodadas de negociações comerciais multilaterais), sistemas financeiros (e a verdadeira anarquia monetária e cambial que existe nessa área), questões tópicas de saúde, segurança, comunicações, ou questões mais amplas, como desenvolvimento social, distribuição de renda, diversidade cultural, etc. Aos poucos, porém, essa agenda passou a refletir o “politicamente correto” das agências intergovernamentais, com uma linguagem cuidadosamente escolhida para não ofender “gregos e goianos”, e tomando o cuidado para tampouco contrariar as prioridades governamentais, para não afastar os líderes governamentais, que, junto com os capitalistas, são os que sustentam financeiramente o WEF. Na verdade, os encontros de Davos são uma ocasião adequada para que estes últimos, em suas missões de lobby e de novas oportunidades de negócios, encontrem os decisores de governo, ou seja, continuem a fazer aquilo que eles normalmente fazem em direção de suas capitais e nos países focados para investimentos e transações comerciais. Podem até ocorrer cenas implícitas de corrupção, dado que a profusão de atores tornam menos visíveis certos encontros e conversas que, no plano puramente nacional, seriam refletidas pela imprensa local e pelos competidores de outros países. Nesse ambiente de “mútuo congraçamento”, de troca de favores gentis, de palavras amenas uns com os outros, só poderia dar no que deu: a agenda do WEF foi capturada pelas prioridades repetidamente reincidentes – com perdão pela redundância – das agências intergovernamentais, das ONGs de “bem-pensantes” – como Raymond Aron se referia a essas “almas cândidas”, interessadas, equivocadamente, em fazer o “bem” para o mundo, mas sempre pelas vias erradas – e das personalidades 131

beneméritas, sempre prontas a agitar alguma “ideia generosa”, desde que aquilo lhes garantisse alguns minutos de publicidade gratuitas nas telas dos canais internacionais e dos grandes jornais de circulação mundial. Pois foi assim que pudemos ver, poucos anos atrás, uma conhecida artista de Hollywood, seduzida pela agenda de um cantor idiota (mas de sucesso) de “salvar os africanos” da miséria e da fome, conduzir numa plenária do WEF, ao vivo, uma campanha imediata de doações em favor do continente africano, anunciando imediatamente que estava depositando um milhão de dólares na caixinha de uma entidade qualquer que se dedicava, justamente a essa atividade benemerente. Foi o sinal para que os capitalistas entusiasmados – não tanto pela África, mas provavelmente pela atriz sedutora – passassem a soltar seus milhares de dólares pela mesma causa. No espaço de uma hora, a conta deve ter subido a vários milhões, que provavelmente foram perdidos nas semanas e meses seguintes com a triste realidade da assistência oficial e privada ao “desenvolvimento” africano: metade gasta nos meios e suprimentos adquiridos nos próprios países desenvolvidos, outro quarto nos canais de intermediação africanos (com pelo menos uma parte voltando para os bancos offshore que mantêm contas numeradas) e o que sobrou sendo finalmente aplicado na atividade-fim (sem qualquer esperança de algum tipo de mudança nas realidades africanas). Patéticos esses capitalistas de Davos, que agora precisam ser um pouco de tudo: sustentáveis, igualitários, socialmente conscientes, ecologicamente ativistas, politicamente equilibrados, culturalmente diversificados, inclusivos em matéria de gênero, raça e cor, sexualmente abertos, compreensivos com todas as religiões, favoráveis a cotas para todo tipo de minoria, apoiadores sinceros de uma “diplomacia supranacional da generosidade”, enfim, super-homens (e supermulheres), tudo menos simples capitalistas, vocês sabem, daquele velho estilo, interessados apenas em lucros e resultados para seus acionistas e proprietários. Eles estão quase pedindo desculpas por serem ricos e poderosos, por produzirem resultados tangíveis para suas empresas, ou simplesmente por serem capitalistas. Estão com a consciência culpada por terem um estilo de vida tão “luxuoso”, enquanto mais da metade da humanidade patina na miséria: “o que podemos fazer?”, suplicam eles... Eu diria que eles deveriam voltar a ser o que sempre foram: capitalistas, apenas isso. Sua função principal é, essencialmente, a de produzirem resultados para seus proprietários e acionistas, quanto mais lucro melhor. Como o lucro só pode ser proveniente de alguma atividade lícita de mercado – claro, tem aqueles que vão a Davos 132

para conseguir um contrato suculento com algum príncipe, mas esses são minoria – eles estarão cumprindo, assim, a função que lhes foi atribuída pela economia de mercado. Qualquer outra atividade “politicamente correta” que eles resolverem empreender, como empreendem de fato, é pura hipocrisia social, é uma rendição às novas patrulhas ideológicas que frequentam – infestam, seria o termo mais apropriado – esses encontros a partir dos organismos internacionais e das entidades não governamentais pretensamente caritativas e humanitárias. O mundo dos capitalistas é o mundo dos retornos de mercado, dos lucros crescentes, das inovações tecnológicas, da competição desenfreada, da promoção das novas ideias para vencer a concorrência, enfim, o mundo que eles sempre conheceram antes de começar essa onda do “politicamente correto” que se revela economicamente estúpido. Os capitalistas não vão produzir um “outro mundo possível”, melhor do que o atual, entenda-se, seguindo as recomendações economicamente irracionais de ONGs e dinossauros intergovernamentais; eles apenas vão prolongar os diferenciais de produtividade, as desigualdades sociais e regionais, a não-educação, a corrupção, a ineficiência dos aparatos estatais na maior parte dos países em desenvolvimento, enfim, as mesmas realidades a que assistimos atualmente, depois de quatro ou cinco “décadas do desenvolvimento” decretadas pela ONU. Mas também suspeito que eles vão para Davos praticar a mais velha das vaidades humanas, o exibicionismo do rico perdulário: “eu chego de jatinho particular, eu alugo um chalé a 300 mil dólares por um fim de semana, eu dou uma festa regada a champagne legítimo, eu vou esquiar em pista exclusiva, e depois, se sobrar tempo, passo naquela mesa-redonda para demonstrar minha compreensão com as causas do momento” (aproveitando para ver aquele velho corrupto do Oriente Médio). Enfim, isso também existe, e Davos até pode sair mais barato em matéria de lobby, ao concentrar toda essa fauna no mesmo lugar. Aposto como teremos mais quarenta anos de WEF, no mesmo estilo, com capitalistas cada vez mais encurralados no politicamente correto dos tempos que correm. Enfim, more of the same... Os “alternativos” do FSM: socialistas reciclados na economia solidária Outra é a fauna dos encontros anuais (e regionais) do FSM: viúvas do socialismo, órfãos do comunismo, frustrados com o prolongamento (várias vezes repetido) das “crises finais” do capitalismo, filhos ingratos da globalização, ingênuos de todo gênero e um gênero especial de velhos “velhacos” do altermundialismo 133

profissional, aqueles capazes de vender ideias vazias para mentes igualmente vazias, como são as dos jovens que frequentam em sua grande maioria esses encontros ruidosos e caóticos. Assim como Davos é um convescote de luxo para os capitalistas (e outros poderosos do globo), os encontros do FSM são um piquenique catártico, geralmente austero, para todos esses rebentos rebeldes da globalização. As grandes estrelas são esses embromadores de sempre, nomes conhecidos na academia e nos meios de comunicação para serem repetidos aqui gratuitamente. A eles se somam alguns populistas e demagogos do chamado Terceiro Mundo, em maior número, atualmente, da América Latina, um continente atrasado que costuma produzir esse tipo de fauna política (já que em outras regiões, o pessoal está mais ocupado em realmente fazer emergir suas economias). Eles vêm “debater” – conforme leio no programa – “a conjuntura global e a crise, a situação dos movimentos sociais e cívicos e o processo do Fórum Social Mundial.” Em matéria de resultados efetivos para a prosperidade do mundo, eles conseguem ser ainda mais negativos, e irrelevantes, do que os capitalistas de Davos, pois que estes últimos pelo menos produzem bens, serviços, utilidades mercantis que entram nos vastos circuitos da globalização, ao passo que os primeiros só produzem palavras, palavras e mais palavras. Nunca tantos se reuniram tanto, para transpirar tanto, sem qualquer inspiração útil, em torno de tão magras ideias (if any). Parece incrível, mas eles conseguem se repetir a cada ano, sem trazer nada de novo para o debate público. Senão vejamos. Leio no documento de base dos antiglobalizadores: “A situação global está marcada pelo aprofundamento da crise estrutural da globalização capitalista.” Ou então: “Análises do movimento altermundialista estão sendo aceitas, reconhecidas e contribuem para a crise do neoliberalismo. As propostas produzidas pelos movimentos são aceitas como base, por exemplo, para o monitoramento dos setores financeiro e bancário, para a eliminação dos paraísos fiscais, de tributos internacionais, para o conceito de segurança alimentar, até então considerados heresias, estão nas agendas do G8 e do G20.” Mais ainda: “Essas propostas tem sido acolhidas, mas não se efetivam por causa da arrogância das classes dominantes confiantes no seu poder.” (“O que está em jogo no Fórum Social Mundial 2011”; leitura em: 25/01/2011; link não disponível). Também leio na imprensa que um desses líderes latino-americanos presentes ao FSM de Dacar foi enfático em condenar a exploração e a dominação dos malvados de sempre, exaltando a liberação dos povos pela mão de dirigentes anti-imperialistas como 134

ele: “Assim como a África foi colonizada e submetida, a América Latina também foi invadida pela Europa, que para ali foi aniquilar povos indígenas.” O caminho para a liberdade, porém, passa pela correta identificação dos adversários: “Sabemos bem quem são os inimigos do povo: o capitalismo, o neoliberalismo, o neocolonialismo, que possuem instrumentos para seguir impondo políticas e saqueando as riquezas da população.” Basta isso: já sabemos o resto. O mais curioso, nesse tipo de catarse “social”, é que esses líderes condenam a exploração dos países ricos e poderosos, mas querem liberdade de emigração, ou seja, fronteiras livres para que seus “povos explorados” possam ter acesso aos mercados de trabalho das potências exploradoras. Não seriam eles cúmplices daqueles europeus que foram saquear as riquezas dos “povos originários”, querendo agora que esses mesmos povos sejam explorados desta vez no centro mesmo do sistema explorador? É isso, pelo menos, que deduzo de algumas palavras de ordem do documento de base, que pede um “mundo diferente da globalização dominante”. Para isso, os antiglobalizadores pretendem colocar a questão dos “direitos dos migrantes e da migração que questione o papel das fronteiras, bem como a organização do mundo.” Mas se é para escapar da globalização assimétrica, como é que eles pretendem agora oferecer seus povos no altar da globalização, como vítimas expiatórias de um “novo mundo possível”? Vai entender... E como é que os antiglobalizadores pretendem construir esse “outro mundo possível”? Segundo eles, mobilizando as forças de “movimentos de campesinos, sindicatos, grupos feministas, de juventude, habitantes locais, grupos de imigrantes reprimidos, grupos indígenas e culturais, comitês contra a pobreza e contra a dívida, a economia informal e a economia solidária, etc.” Enfim, majoritariamente os lumpen, e bem menos os trabalhadores da economia formal, que costumavam ser os “coveiros do capitalismo” naquela versão antiga das velhas teses alternativas à economia de mercado. Para piqueniques culturalmente diversos está muito bem, mas para construir uma alternativa real e credível a essa globalização assimétrica que está aí, deve-se reconhecer que essa tribo é bem menos homogênea do que os capitalistas de Davos. Vai ser difícil um entendimento sobre uma plataforma comum, e abrangente, de mudanças sociais e políticas que conduzam a esse “outro mundo possível”, se é verdade que os antiglobalizadores sabem onde querem chegar (o que eu duvido). Na sua linguagem sempre enrolada, típica de acadêmicos que vivem sua labuta constante na embromação cotidiana de alunos passivos, os antiglobalizadores 135

reconhecem que a luta não é fácil: “O processo do FSM pôs em cena as bases para essa nova cultura política (horizontalidade, diversidade, convergência das redes de cidadãos e dos movimentos sociais, atividades autogeridas, etc.) mas ainda deve inovar mais em muitas dificuldades relativas à política e ao poder, para conseguir superar a cultura política caduca, que para a imensa maioria persevera dominante.” Pois é, o mundo é mesmo pouco complacente com suas ideias vazias (se que eles têm alguma). Os capitalistas de Davos, pelo menos, costumam expressar seus objetivos apontando para resultados mais tangíveis: tanto de crescimento (descontada a inflação), lucros aumentados em x%, investimentos em y%, empregos criados em tal ou qual país, novos centros de pesquisa e desenvolvimento, z% do faturamento global aplicado em inovação, dividendos em alta, abertura de capital, etc. Se os antiglobalizadores tivessem algum tipo de benchmark, e fossem avaliados por uma dessas consultorias globais em organização e métodos, eles provavelmente seriam reprovados. Só não fecham a “barraca” porque conseguem operar a custos mínimos, graças, entre outras benesses do capitalismo, ao free lunch da globalização: email e blogs gratuitos (thanks Google), telefonia de graça por VOIP, patrocínio de empresas estatais e de governos “iluminados”, milhas acumuladas e passagens e diárias dadas pelas entidades de fomento à pesquisa pública, enfim, um sem número de benefícios do sistema que eles conspurcam de forma totalmente ingrata e incompreensível. Capitalistas e antiglobalizadores: defasados e esquizofrênicos Ao fim e ao cabo, tanto os capitalistas de Davos, quanto os antiglobalizadores do FSM (que são, em grande medida, anticapitalistas, com exceção dos jovens, que não são nada; são apenas a favor de um “mundo melhor”) estão de certa forma em descompasso com as realidades do mundo e aparentemente sem propostas sobre como empreender a construção desse “outro mundo possível” a que ambos os grupos aspiram (ao que parece). Os primeiros porque deixaram de ser apenas capitalistas para se apresentarem em “reformadores sociais”, quando esta não é a sua tarefa e a sua “missão histórica” (como diria Marx). Os segundos porque não têm mesmo nenhuma proposta viável a apresentar para a “reconstrução” do mundo, e se contentam em repetir slogans vazios e dar voltas em torno de suas teses requentadas sobre a globalização não-assimétrica e a economia solidária. 136

A rigor, ambas as tribos já fazem parte da paisagem da globalização, com seus rituais consagrados e seus estilos respectivos de promover encontros, convescotes requintados no primeiro caso, piqueniques rústicos no segundo. Não se espera que ofereçam, por isso mesmo, soluções inovadoras aos problemas do mundo atual. Os capitalistas porque parecem estar perdendo seus “espíritos animais” e domando aquela ganância por lucros em favor de “ações socialmente responsáveis” – que são um travestimento das únicas atividades que deveriam empreender vigorosamente, que são: inovar, vender e ganhar dinheiro – e os antiglobalizadores porque não dispõem, de nenhum modo, de estatura intelectual para apresentar propostas concretas a problemas concretos: eles ficam no seu mundo de palavras vazias, de discursos erráticos, de soluções utópicas, sem qualquer aplicabilidade ao mundo real. O mundo vai ter de esperar mais um pouco: talvez um recesso da onda de “politicamente correto” de um lado e um cansaço dos slogans repetitivos de outro. Quando isso vai ocorrer, eu não sei; só sei que os espetáculos anuais de Davos e dos encontros do FSM começam a ser aborrecidamente recorrentes, como esses produtos pasteurizados que já saíram do gosto popular. Um outro Davos é possível, um outro FSM é possível: ninguém tem nada a perder inovando em cada uma das frentes, só tem um mundo novo a ganhar.

2244. “Fórum Econômico e Fórum Social: dois mundos impossíveis e contraditórios?”, Brasília, 7 fevereiro 2011, 9 p. Comentários sobre o WEF e o FSM, criticando ambos. Publicado em Mundorama (8.02.2011; link: http://mundorama.net/2011/02/08/forum-economico-e-forum-social-dois-mundosimpossiveis-e-contraditorios-por-paulo-roberto-de-almeida/). Postado no Diplomatizzando (http://diplomatizzando.blogspot.com/2011/02/davos-e-fsmirmaos-siameses.html). Publicado sob o título de “Entre Davos e Dacar: dois mundos impossíveis?”, no portal iG de economia (10/02/2011). Relação de Publicados n. 1022.

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17. Fórum Social Mundial: uma década de embromação

1. A novela está de volta (com o mesmo enredo...) Como acontece todo ano, os alternativos da antiglobalização estarão reunidos neste final do mês de janeiro de 2010 para protestar contra a globalização assimétrica e proclamar que um “outro mundo é possível”. Eu também acho, mas a verdade é que eles nunca apresentam o roteiro detalhado desse outro mundo esperado, se contentando com slogans redutores contra a globalização, essa mesma força indomável que torna mais eficiente a interação entre essas tribos e permite que suas mensagens – equivocadas, como sempre – alcancem, em questão de minutos, todos os cantos do planeta. Em todo caso, eles já se consideram tão importantes que já nem mais se dão ao trabalho de protestar contra o outro Fórum Mundial, o capitalista de Davos, como ocorria todo ano naquela estação suíça de esqui: os capitalistas agradecem serem deixados em paz e prometem refletir sobre as propostas do fórum alternativo, se é que alguma será feita. Como também acontece todo ano, eu fico esperando para ver se alguma ideia nova e interessante – Ok, ok, também podem ser ideias velhas e desinteressantes, mas que sejam pelo menos racionais e exequíveis – vai emergir desse jamboree anual de antiglobalizadores e iluminar as nossas políticas públicas tão carentes de racionalidade e sentido de justiça. Como não confio, porém, que algo de novo vá surgir de onde nunca veio nada de inteligente, resolvi não esperar pela conclusão do encontro de 2010, e me proponho, sem cobrar copyright dos antiglobalizadores, antecipar suas conclusões conclusivas (se é verdade que algo do gênero pode ocorrer; isso corre o risco de nos surpreender). 138

Baseio-me, para esse propósito, na agenda oficial do encontro, que recebe o pomposo título de “Fórum Social Grande Porto Alegre”, devendo realizar-se a partir do dia 25, na capital do Rio Grande do Sul. O prato de resistência desse novo piquenique será um seminário internacional “10 Anos Depois: Desafios e propostas para um outro mundo possível”, cujos comensais serão os ‘suspeitos de sempre’, gente do calibre intelectual de Eduardo Galeano – já conhecido como o mais perfeito idiota latinoamericano –, Emir Sader – tampouco é preciso apresentar, dadas suas grandes contribuições à sociologia do desconhecimento e da empulhação ideológica – e esse monumento de justiça social e de uso correto da propriedade fundiária que se chama João Pedro Stédile (acreditem, o sujeito se diz formado em economia e nunca conseguiu entender como funciona a teoria do livre comércio, ademais de ser contra o simples ato de exportar; vai entender...). Retomando cada um dos pontos da agenda oficial, permito-me agora alinhar as principais conclusões desse encontro, o que não exige, longe disso, nenhum poder extraordinário de premonição ou de antecipação sociológica. Está tudo determinado pela interminável e recorrente ‘conversa mole’ que escutamos há dez anos. Portanto, não corro nenhum risco de errar em retomar os conceitos de dez anos de ‘bullshit’ antiglobalizador. Exponho os procedimentos aqui seguidos: após a enumeração de cada uma das mesas que animarão o conclave dos antiglobalizadores, transcritas em itálico, formulo, de minha parte, o que imagino serem as propostas que emergirão desses encontros de trabalho; por fim, complemento o exercício em cada rubrica, com meus comentários, que ofereço prévia e graciosamente a todos os participantes. 2. O diagnóstico do nosso mundo impossível (com os clichês de sempre...) Dia 26/01/2010: CONJUNTURA MUNDIAL HOJE Mesa 1: Conjuntura Ambiental FSM: Os grandes monopólios multinacionais se opõem à justiça ecológica, e pretendem continuar com plena liberdade para poluir a Terra e esgotar seus recursos naturais; o fracasso da conferência de Copenhagen confirma que os países desenvolvidos não pretendem assumir suas responsabilidades pelo aquecimento global, nem mudar um modelo perverso de crescimento, baseado no uso intensivo de recursos não renováveis e no consumismo exagerado. Os países em desenvolvimento não podem agora ter de pagar um preço pelas disfunções ambientais das quais eles não foram os 139

responsáveis e sobre as quais não podem assumir os custos de uma correção hipocritamente igualitária. PRA: Os antiglobalizadores, acompanhados de muitas delegações oficiais de países participantes, tentaram, em Copenhagen substituir os mecanismos disponíveis de controle da escassez relativa de bens – que é a simples lei da oferta e da procura – pelo controle administrativo de bens energéticos e recursos naturais, achando que o sistema de preços não consegue expressar com precisão o equilíbrio entre a disponibilidade desses recursos e seu uso responsável, no que estão ambos enganados. Se adotadas, as recomendações de uns e de outros imporiam um custo irracional à atividade produtiva no planeta, além de sinalizarem na direção errada que uma economia respondendo a impulsos de mercado deveria tomar. Se controles administrativos fossem sinônimo de eficiência ambiental, os países socialistas seriam exemplos de desenvolvimento sustentável e de preservação do meio ambiente, não o desastre ecológico que eles efetivamente foram. Mesa 2: Conjuntura Econômica FSM: A globalização capitalista produz miséria, desemprego, desigualdade e retrocessos sociais no mundo; a crise financeira é uma prova de que a economia capitalista só produz desastres, servindo para beneficiar um punhado de banqueiros gananciosos, que além de tudo se apropriam do dinheiro público para distribuir gordos bônus entre esses privilegiados; as políticas econômicas promovidas pelo G7 – e agora pelo G20 também – não tem servido para recolocar a economia mundial no caminho do crescimento e da distribuição de riqueza, posto que elas se caracterizam por uma adesão acrítica e incondicional às políticas neoliberais e às famosas regras do “consenso de Washington”, que só aprofundam a crise e a miséria das massas trabalhadoras. PRA: Em nenhuma outra esfera da atividade humana, desde a invenção da agricultura, dez mil anos atrás, a análise dos antiglobalizadores é mais carente de embasamento na realidade do que nesses diagnósticos sobre a situação econômica do planeta e sobre as causas das flutuações financeiras, cambiais e sobre os ciclos produtivos. Eles pretendem “demonstrar” que os países que entraram em crise o fizeram por sua submissão à economia liberal, quando poucos países podem ser considerados realmente liberais hoje em dia; todos eles tiveram juros e outras medidas macroeconômicas em desalinhamento com o que seriam, de fato, os níveis de mercado, em virtude, precisamente, da intervenção dos governos. Eles pretendem ‘provar’ que 140

China e Índia não entraram em crise por não se ajustarem a esse modelo, quando na verdade esses dois países caminham há vinte anos na direção de políticas liberais e de abertura econômica. Mesa 3: Conjuntura Política FSM: A despeito das promessas de mudança no país mais poderoso do planeta, as mesmas políticas imperialistas continuam a ser praticadas, e governos que tentam escapar do jugo do capitalismo monopolista vêm sendo sabotados em seus intuitos de mudar a orientação das políticas econômicas no sentido da distribuição e da igualdade; as políticas liberais de livre comércio e de liberalização dos mercados de capitais, promovidas pela OMC, pelo FMI e pelo Banco Mundial, só beneficiam os mais ricos, ao mesmo tempo em que aprofunda as desigualdades no planeta; os povos têm direito de lutar por uma agricultura sustentável, socialmente justa, que contemple os objetivos da segurança alimentar, contra as ameaças dos transgênicos e da agricultura capitalista. PRA: O FSM certamente vai apoiar os governos ‘bolivarianos’ em luta contra o ‘dragão da maldade’, nada menos do que o Império, que deseja eliminar esses valentes exemplos de independência política, de alternativa econômica e de insubmissão aos ditamos do colonialismo opressor. Esses governos serão mostrados como exemplos de luta dos povos pela liberação da dominação das grandes potências, quando em vários casos eles estão construindo sistemas autoritários, de permanência de seus líderes no poder, e de controle estatal da economia e dos meios de comunicação. Em matéria de conjuntura política, os antiglobalizadores conseguirão ser ainda mais regressistas do que no campo econômico, mas isso é esperado: a tribo é formada por jovens idealistas que lutam por direitos humanos e desenvolvimento sustentável, por sindicalistas pouco ingênuos, que pretendem escapar da ‘mais-valia’, e por seitas diversas de órfãos do socialismo que, nada ingênuos, pretendem garantir a sobrevivência de suas crenças emboloradas. Mesa 4: Conjuntura Social FSM: O racismo, a discriminação contra a mulher, a opressão dos povos periféricos, as violações dos direitos humanos e o próprio terrorismo fundamentalista são o resultado da globalização assimétrica e de um processo histórico marcado pela ocupação imperialista, que insiste em preservar a sua dominação, inclusive mediante o terrorismo de Estado; em todas as partes, o capital pretende eliminar os direitos – a 141

pretexto de ‘flexibilizar’ relações contratuais de trabalho – e aumentar o grau de exploração dos trabalhadores. PRA: O mais interessante é que, em todo e qualquer exemplo conhecido de luta vitoriosa dos trabalhadores contra o capital, os trabalhadores perderam muito rapidamente seus direitos trabalhistas e sindicais. O mesmo está ocorrendo atualmente na Venezuela, onde sindicalistas não comprados pelo poder estão denunciando a falta de liberdade sindical, de direitos tradicionais de organização independente dos trabalhadores; não se tem notícia de um “Estado de trabalhadores e camponeses” que tenha logrado preservar a independência e a autonomia dos trabalhadores, em sindicatos livres e atuantes, num clima forçado de colaboração com o Estado: mas isso é fascismo, não socialismo... 3. Construindo um outro mundo possível (e que provavelmente não vai funcionar...) Dia 27/01/2010: ELEMENTOS DA NOVA AGENDA I Mesa 1: Bens-Comuns FSM: Os bens comuns – espaços marinhos, florestas contínuas, atmosfera, patrimônios naturais da humanidade – não pode ser apropriados privadamente, nem objeto de transações comerciais. A OMC não pode submeter esses bens comuns às mesmas regras comerciais que presidem ao intercambio de bens manufaturados. Um novo regime de administração internacional tem de ser criado, com financiamento multilateral baseado na taxação dos movimentos de capitais especulativos. PRA: Administração coletiva de bens comuns nunca foi garantia de preservação ou de boa gestão dos recursos assim organizados; sua conservação é muito melhor obtida quando eles podem ser objeto de precificação nos mercados, pois essa valoração expressará seu exato valor de extração e de reposição; taxar fluxos de capitais não muda absolutamente nada os diferenciais de juros entre os países – que é o que atrai os especuladores –, apenas aumenta o custo das transações, geralmente em detrimento dos mais carentes de capitais, que são justamente os países em desenvolvimento. Mesa 2: Sustentabilidade FSM: O modelo atual de desenvolvimento é intrinsecamente insustentável, posto que apoiado no lucro irrefreável e na cobiça exagerada, típicos do capitalismo liberal; a sociedade tem de mudar os padrões de consumo, reduzir o uso de energia, reciclar tudo 142

o que puder sê-lo e adotar um novo estilo de vida, menos baseado em bens individuais e mais apoiado sobre bens coletivos (e não apenas transportes). Governos e organismos devem criar esses novos padrões e determinar seu acatamento em benefício de todos. PRA: O que é insustentável, no plano da lógica formal e da coerência com as realidades da economia, são as idéias dos conservacionistas, ‘sustentabilistas’ e outros terroristas do consumo corrente, como se os equilíbrios dinâmicos da economia de mercado não fossem capazes de adaptar os padrões produtivos e de consumo sempre quando os estímulos corretos – que são aqueles que refletem o real valor dos bens escassos, não a imposição de normas arbitrárias – estiverem funcionando naturalmente; utopias anti-consumistas não são apenas intrinsecamente autoritárias e ineficazes, mas também contrárias à racionalidade estrito senso das regras microeconômicas. Mesa 3: Economia e Gratuidade FSM: A economia da apropriação privada conduz o mundo a um impasse, devendo ser substituída por uma globalização solidária, na qual a economia não vise unicamente o lucro dos grandes monopólios multinacionais, mas promova o bem-estar de todos os cidadãos; bens públicos devem preferencialmente ser distribuídos gratuitamente, pelo menos aos cidadãos de baixa renda. PRA: Uma verificação rápida, visual, sobre os locais de carência e os de abundância confirma imediatamente as raízes da escassez, que é sempre criada por governos guiados por idéias coletivistas ou orientados pela ‘gratuidade’ dos bens públicos: basta comparar Cuba e Coréia do Norte, de um lado, com as economias típicas do capitalismo privado. As tentativas de distribuir bens de forma igualitária foram rotundos fracassos econômicos, não raro descambando no autoritarismo político e na completa ausência de liberdade. Mesa 4: Bem-Viver FSM: O outro mundo possível que propomos tende a valorizar mais o ser do que o ter, a vida em equilíbrio com a natureza, em lugar da devastação dos recursos em nome do consumo desenfreado, como na atual sociedade de mercados livres; relações humanas são mais importantes do que as contas bancárias ou o cartão de crédito; o bemestar resulta de uma vida mais simples, ajustada aos recursos disponíveis, o que está em contradição direta com a economia capitalista, com sua ênfase irracional no crescimento. 143

PRA: A ingenuidade de certos promotores da vida simples só encontra paralelo na inconsistência de seu raciocínio econômico: uma sociedade sem crescimento, sem acumulação, é uma sociedade estagnada, de baixa capacidade de inovação e, portanto, incapaz de buscar novas soluções para velhos problemas, não apenas nos terrenos da saúde e da educação, mas simplesmente para manter os padrões de vida existentes e acomodar as demandas legítimas de milhões de pessoas mundo afora que aspiram, sem que se lhes possa negar, uma vida mais confortável, ou simplesmente isenta das atuais restrições a um nível mínimo de bem-estar. 4. O mundo possível dos antiglobalizadores (na verdade, bastante improvável...) Dia 28/01/2010: ELEMENTOS DA NOVA AGENDA II Mesa 1: Organização do Estado e do Poder Político FSM: As velhas estruturas de organização do Estado e do poder político já não conseguem atender às necessidades das sociedades contemporâneas, nas novas condições da globalização, que, ela mesma, atua no sentido de fragilizar os Estados e diminuir sua capacidade de intervenção em aspectos cruciais, e tradicionais, do provimento de bens públicos. A democracia direta, os instrumentos de ampliação da participação cidadã e a mobilização da própria comunidade por meio dos movimentos sociais corresponde ao início desse ‘outro mundo possível’ demandado pelos grupos altermundialistas. PRA: A democracia participativa dos antiglobalizadores redunda, de fato, em menor participação, posto que apoiado na mobilização de movimentos politicamente motivados, dominados por militantes sectários e propensos a substituir a democracia representativa pelo ‘poder dos sovietes’, dominados, obviamente, por partidos afins. A recusa da democracia representativa, de natureza parlamentar, várias vezes estigmatizada como ‘burguesa’, resulta, de fato, num retrocesso da evolução política das sociedades modernas dos últimos dois ou três séculos, enveredando pelo caminho do autoritarismo centralizador do modelo marxista-leninista do século 20. Mesa 2: Direitos e Responsabilidades Coletivas FSM: Os Estados precisam recuperar seus instrumentos de atuação e “domar” as forças cegas da globalização, posto que os mercados livres não conseguem evitar crises sistêmicas, sobretudo financeiras, e são incapazes de distribuir renda – ao contrário, eles a concentram cada vez mais. O individualismo excessivo identificado com o 144

capitalismo isola as pessoas da comunidade e desperta sentimentos egoístas e excludentes, aliás naturais e aceitáveis nas economias de mercados livres. PRA: Essas tentativas de ‘reengenharia social’ baseadas prioritariamente em direitos coletivos, em oposição aos direitos individuais, acabam sendo profundamente autoritárias, posto que a promoção dos tais direitos coletivos requerem uma dose extra – em alguns casos maciça – de força para que eles possam ser ‘aceitos’ por cidadãos recalcitrantes. Todas as experiências totalitárias do século 20 – de cunha fascista ou comunista – expressaram em sua essência essa dominância coletivista, que na verdade acaba sendo representada por um Estado centralizador e onipresente, quase no modelo do Big Brother. Mesa 3: Novo Ordenamento Mundial FSM: A ordem internacional dos séculos 19 e 20 foi dominada pelas grandes potências imperiais e as estruturas criadas ao final da Segunda Guerra Mundial consagram essa hegemonia, inaceitável nos dias atuais. Uma nova ordem precisa partir do princípio da democratização plena das instituições de governança, expressando o peso relativo dos grandes países em desenvolvimento. Os órgãos econômicos devem refletir essa mudança do cenário internacional e construir um “outro mundo possível”, começando pela imposição de uma taxa sobre as transações financeiras internacionais para apoiar projetos de desenvolvimento nos países mais pobres, em especial os da África. PRA: Relações econômicas e políticas refletem não apenas a dotação de fatores primários, mas sobretudo a soma das capacitações construídas ao longo de processos de modernização econômica e social, que são representados, sobretudo, pela produtividade dos recursos humanos, um fator diretamente ligado à qualidade da educação em um dado país. A hegemonia imperial das grandes potências capitalistas não foi apenas construída de modo arbitrário ou de forma puramente violenta: ela também reflete a preeminência científica e tecnológica dessas potências, posto que para dominar elas precisam ser vários graus mais capazes do que as sociedades dominadas. O novo ordenamento mundial vai emergir gradualmente, à medida que os países em desenvolvimento se capacitarem nos planos científico e tecnológico e se colocarem em condições de oferecer exatamente aquilo de que o mundo necessita: segurança, estabilidade econômica no crescimento, inovação, recursos financeiros e militares e de disposição para aplicá-los, sobretudo em momentos de crise, de ameaças à estabilidade 145

econômica e política, de graves violações dos direitos humanos. Se e quando os emergentes forem capazes de cumprir esse mandato, já estaremos numa nova ordem mundial, não construída à base de retórica transformista como pretendem os antiglobalizadores, mas elaborada a partir de realidades concretas do desenvolvimento dos países emergentes, num processo reformista que transcende essas divisões artificiais com que trabalham os autoproclamados altermundialistas. Mesa 4: Como construir hegemonia política FSM: O processo de substituição de hegemonias começa pela união dos países emergentes e pela apresentação de modelos alternativos ao atualmente dominante, assim como uma mudança radical nos padrões econômicos e políticos em curso nos países dominantes. Trata-se de um processo de acumulação de forças, uma conquista gradual a partir do número de países periféricos e emergentes que contestam a hegemonia unilateral e arrogante das grandes potências ocidentais. PRA: Trata-se, obviamente de uma variante da conhecida tese gramsciana sobre a construção de hegemonias a partir de uma organização política decidida a contestar de forma ‘orgânica’ a ordem dominante. Pode até ser que os antiglobalizadores cheguem a uma conclusão desse tipo no próximo encontro do Fórum Social Mundial, mas o exercício é não apenas fútil, como passavelmente ridículo, tendo em vista a interdependência crescente do mundo global, capitalista, obviamente, e decidido a continuar a sê-lo. 5. A grande síntese antiglobalizadora (velhos conceitos, mesmas crenças...) Dia 29/01/2010: Sistematização das Grandes Questões e Contribuição para o Processo No último dia do encontro, os antiglobalizadores buscarão, ao que se presume, reafirmar seus princípios organizadores e seus objetivos principais; estes, desde 2001, estão orientados para a “formulação de propostas, a troca livre de experiências e a articulação para ações eficazes, de entidades e movimentos da sociedade civil que se opõem ao neoliberalismo e ao domínio do mundo pelo capital e por qualquer forma de imperialismo, e estão empenhadas na construção de uma sociedade planetária orientada a uma relação fecunda entre os seres humanos e destes com a Terra.” Tudo isso é muito vago, mas se espera que desta vez eles consigam produzir conclusões um pouco mais substantivas, talvez na linha das que eu tive o cuidado de formular por eles 146

antecipadamente nos parágrafos precedentes (não, não vou cobrar copyright por isso; eles podem usar sem problemas). Ao fim e ao cabo, os antiglobalizadores precisam continuar a acreditar em certas utopias, mesmo descoloridas pelo tempo, sem as quais elas não saberiam viver. Eles tem todo o direito de fazê-lo, e de mobilizar suas tropas de estudantes idealistas e de órfãos do socialismo (estes, um pouco menos idealistas), em torno de suas causas, por mais ingênuas que estas podem parecer. Afinal de contas, nas sociedades democráticas, ninguém é impedido de lutar por qualquer tipo de ideal, desde que pacificamente e atendendo certas regras mínimas de convivência democrática. Seja dito en passant, que o assédio, a censura e eventuais desencontros com órgãos de ‘segurança pública’, a propósito de ideais e objetivos não exatamente em conformidade com o que pensam certos caudilhos no poder só ocorrem em alguns países que provavelmente receberão pleno apoio dos participantes deste encontro de antiglobalizadores; e esta não será a menor das contradições desse encontro que deveria se desenrolar sob as bandeiras da liberdade de pensamento e de opinião. De nossa parte, a única tarefa a que nos propusemos ao iniciar este pequeno trabalho provocador era a de examinar com seriedade as teses que defendem esses bizarros personagens da globalização – filhos ingratos da modernidade global – e, de forma totalmente graciosa, antecipar as conclusões a que eles provavelmente chegarão, sempre em torno das mesmas idéias que eles insistem em defender, contra as melhores evidencias do mundo real. Quanto à minha própria conclusão, se me permitem uma opinião final, que expresso em toda honestidade intelectual, seria esta: o mundo ideal do altermundialismo, aquele que vem sendo projetado há dez anos pelos antiglobalizadores (mas eles nunca conseguem definir qual seria, exatamente, sua arquitetura), seria pior, bem pior do que o realmente existente neste nosso planeta globalizado. As propostas vagas dos antiglobalizadores, em sua maior parte inexequíveis, não resolveriam nenhum dos problemas deste nosso mundo e, provavelmente, levariam a soluções menos eficientes, talvez piores, do que aqueles a que estamos acostumados no mundo, tal como o conhecemos de fato. Sorry folks, não costumo fazer concessões a vendedores de ilusões...

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2104. Fórum Social Mundial 2010, uma década de embromação: antecipando as conclusões e desvendando os equívocos, Brasília, 20 janeiro 2010, 10 p. Mais uma vez, provocando o altermundialistas do FSM. Publicado em Mundorama (link: http://mundorama.net/2010/01/20/forum-social-mundial-2010-uma-decada-deembromacao-antecipando-as-conclusoes-e-desvendando-os-equivocos-por-pauloroberto-de-almeida/). Republicado em Via Política (25.01.2010). Relação de Publicados n. 948.

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18. Triste Fim de Policarpo Social Mundial

Todos aqueles medianamente familiarizados com a literatura brasileira, já devem ter lido ou, pelo menos, ouvido falar – inclusive por causa de um filme realizado muitos anos atrás – do romance meio humorístico, meio trágico, de Lima Barreto sobre o major Policarpo Quaresma, um militar idealista e ultranacionalista que tinha grandes projetos para o Brasil, todos extremamente bem intencionados e, em sua essência, humanistas, mas que, se aplicados, invariavelmente trariam mais problemas do que soluções à jovem República positivista. Não preciso falar aqui do “triste fim” do major Quaresma, tanto porque não estou prevendo o mesmo final infeliz para nossos bravos antiglobalizadores e suas propostas surrealistas. Por certo não vamos fazer como o Marechal Floriano, que dizia que receberia seus inimigos a bala, inclusive porque não considero essa tribo de sonhadores como meus inimigos intelectuais; se tanto, eles são um pequeno bando de idealistas equivocados, apenas os mais jovens, porém; não, obviamente, os velhacos de má-fé que tentam ludibriá-los. Algumas dessas propostas são verdadeiramente inocentes, ingênuas segundo os menos pacientes com esse tipo de brincadeira, em todo caso inócuas, em sua cândida inconsequência. Outras, em contrapartida, seriam essencialmente prejudiciais, ou até mesmo perigosas, se o tal de “outro mundo possível” desses altermundialistas servisse de critério para a formulação e implementação de políticas públicas. A julgar, todavia, pelo apoio que todos eles deram a um outro militar, bem menos pacífico que o nosso Policarpo, aquele coronel que lidera uma fazenda petrolífera ao norte do continente, pode-se imaginar que eles pretendam aplicar aqui, e em todo o mundo, as geniais lições de economia política que vem sendo aplicadas com tanto afinco naquela nova “fazenda 149

dos animais” (apud Orwell). Creio que todos podem imaginar o que aconteceria se o novo e mais agressivo coronel estendesse suas práticas bizarras de política econômica a todo o mundo possível ao alcance de suas propostas alopradas. Independentemente da aplicabilidade, ou não, das lições econômicas desses novos personagens de comédia, pode-se perguntar qual o balanço a ser feito do último convescote do Fórum Social Mundial, que prometia comemorar dez anos de eventos e dele retirar ideias concretas para construir um outro mundo possível. Confesso que li atentamente todos os resumos generosamente preparados pelos organizadores sobre cada um dos painéis de discussão, e deles retirei não mais do que algumas frases geniais, dessas que poderiam servir para compor mais uma brilhante coletânea dessas “pérolas de vestibular” que professores mal intencionados recolhem de alunos distraídos para incitar gargalhadas na galera. Em todo caso, vejamos as geniais contribuições que emergiram do “encontro síntese” do FSM, em seu último dia. Todas as minhas citações foram retiradas do resumo relativo ao dia 29 de janeiro, quando, segundo os responsáveis, “os participantes foram convidados a dar as suas impressões sobre o evento e fazer propostas tanto para os próximos fóruns como para a construção de um outro mundo possível” (ver: “Sistematização das Grandes Questões e Contribuição para o Processo Fórum Social Mundial”; disponível neste link: http://seminario10anosdepois.wordpress.com/2010/01/30/resumo-29-01-sistematizacaodas-grandes-questoes-e-contribuicao-para-o-processo-forum-social-mundial/). Meu esforço neste resumo do resumo, consiste apenas em reordenar as sugestões apresentadas e sobre elas formular meus comentários à la Lima Barreto. A maior parte das propostas pode ser incluída na categoria de “inócuas”, das quais cito apenas algumas, justamente pela absoluta inconsequência dessas sugestões. Sugeriu-se, por exemplo, a “formação de uma rede colaborativa de movimentos sociais para estimular a troca de experiência e permitir organizações que trabalham pela mesma causa, em diferentes locais, se articularem em torno de uma determinada luta”. Parece incrível essa sugestão: se não é isso que as organizações e movimentos sociais estavam fazendo nesses dez anos, onde eles estiveram então?: jogando bridge? Um outro gênio da raça propôs que se adotasse uma “metodologia que inclua nos painéis, além de intelectuais, pessoas que estão vivendo os problemas ou as soluções apresentadas”. Inteligente essa, mas pode-se perguntar por que eles confiam tanto nos seus “inteliquituais”, as pessoas menos propensas, justamente, a falar e a ouvir 150

“pessoas comuns”. Não faltou, tampouco, quem recomendasse que se incluísse nos debates do Fórum uma “variedade maior de profissionais, como os de tecnologia”. Incrível mas verdadeiro: como no caso da sugestão anterior, os antiglobalizadores já não sabem o que decidir, se não se cercarem de pessoas comuns e de tecnólogos. Bem, desejo sorte a eles: antes tarde do que nunca. A impressão que se tem, contudo, é a de que os antiglobalizadores não tem a mínima ideia do que pensar (se é verdade que eles já conseguiram chegar a essa conclusão). Surgiram também propostas que poderíamos chamar de “policarpianas”, que são de natureza idealista, ou ingênua, mas que podem encantar o público leitor. Foram aquelas que prometeram um mundo novo, mas que não se sabe quando e onde elas serão aplicadas, ou sequer se elas tem, realmente, condições de serem implementadas. Entre as mais brilhantes selecionei estas duas, antológicas: “estimular mudanças no comportamento dos indivíduos” (juro que está lá, mas confesso que não sei por onde eles vão começar); “melhorar a infraestrutura do Fórum com serviços médicos” (será que o pessoal do FSM sofreu com diarreias, picadas de mosquitos, coisas do gênero?). Uma delas não pode ser classificada nem de proposta, nem de sugestão, ou de qualquer outra coisa, pois ela apenas reflete o estado de confusão mental dos participantes do FSM. Transcrevo literalmente: “Tirar uma posição do Fórum a respeito das mudanças climáticas: queremos um desenvolvimento econômico que inclua a todos e gere trabalho ou vamos defender o crescimento zero para reduzir as emissões?” Bem, não sou eu quem vai ajudá-los a resolver a quadratura do círculo, mas eu diria simplesmente isto. Este nosso mundo possível não vai esperar que eles se resolvam – e aposto com vocês que ainda não teremos uma solução no 20o. encontro do FSM, em 2020, portanto – e vai continuar gerando empregos e distribuindo renda com todas essas tecnologias poluidoras do capitalismo, mas que, paulatinamente, vão se tornar mais e mais consistentes com esse palavrório inútil do ‘desenvolvimento sustentável’ a partir da correta aplicação dos princípios da microeconomia aos processos produtivos (sabem?: aquela coisa da precificação correta, com a escassez relativa dos bens no âmbito de uma economia de mercado com livre circulação de fatores; enfim, isso está nos manuais de economia que eles ainda não leram). Bem, a proposta “policarpiana” mais incrível que eles formularam está aqui, e eu a transcrevo por inteiro: “Investir para que a infraestrutura do Fórum reflita minimamente o que está sendo discutido. Para isso, banir a participação de empresas 151

transnacionais no evento e no lugar delas, usar serviços locais e economia solidária. Assim, o Fórum falará não só para seus participantes como para toda a sociedade, apontando alternativas concretas para um outro mundo possível”. Parbleu! Eu me pergunto como é que os antiglobalizadores vão fazer sem os seus celulares Nokia, Motorola, Samsung, LG, Sony Ericsson, BlackBerry e iPhone. Como eles vão se comunicar sem Hotmail, Gmail, Yahoo, sem Skype e MSN? Como eles vão buscar suas bobagens sem o Google e a Wikipédia? Como eles vão dispensar os computadores dessas multinacionais perversas?: vão pedir substitutos ao Chávez, ao Raul Castro, ao Ahmadinejad? Acho que não vai dar certo; o FSM simplesmente vai parar de funcionar. Nem mesmo o ultranacionalista major Quaresma poderia se deslocar pelos bairros do Rio de Janeiro sem os bonds da Light, nem conseguiria se comunicar sem os telegramas da Western Union. Bem, não vai acontecer, claro... Não faltaram, finalmente, propostas que poderiam ser classificadas de “chavistas”, como esta pérola de um antiglobalizador não identificado: “melhorar as conexões com a China e trazer o país de fato para as discussões do Fórum”. Essa é a melhor: o país asiático acaba de brigar com a Google, condenou a dez anos de prisão um advogado de causas políticas que assinou um simples manifesto pedindo liberdade de expressão e de opinião e mantém uma censura férrea sobre a internet, e os anti ainda querem trazê-lo para as discussões do FSM? Bem, pode ser que os chineses de fato concordem: depois de quarenta anos de socialismo delirante, eles começam, modesta mas rapidamente, a construir o seu capitalismo com características chinesas e os altermundialistas teriam muito a aprender com os novos plutocratas. Mas nem só de sugestões impossíveis viveu o FSM; algumas críticas foram formuladas. Alguém disse que “faltaram análises mais profundas sobre a conjuntura social e os impactos do capitalismo no nosso dia-a-dia”; eu também acho que faltou muita coisa no Fórum, mas peço que me incluam fora dessa parte sobre os impactos do capitalismo no “meu” dia-a-dia. Eu sei exatamente qual é esse impacto, em termos de oferta de bens e serviços, de liberdade de escolha, de diversidade de chances de torrar o meu dinheiro, enfim, tudo aquilo que me vier à cabeça e couber no meu bolso, algo que, infelizmente, nem cubanos, nem venezuelanos, nem talvez outros povos cultuados pelos altermundialistas podem, hoje, fazer livremente, sequer em intenção. 152

Um outro espírito inquieto reconheceu que as “discussões e o próprio Fórum foram muito fragmentados”; um segundo afirmou que, no Fórum, “continua havendo uma hierarquização de lutas e visões”; um terceiro, muito sincero, confessou ainda que estavam saindo dali “sem uma agenda política clara”, o que eu só posso lamentar. Eu estava justamente esperando que eles emergissem de Porto Alegre com uma agenda política clara, para eu poder criticar, e agora fico sem nenhum insumo para meus escritos provocadores. Não é justo! Quero meu dinheiro de volta! Essa falta de definições mais precisas sobre o outro mundo possível deixa confusos os estudantes universitários, que, com perdão da expressão, são a principal massa de manobra dos velhacos coordenadores do FSM, aqueles franceses da ATTAC e seus imitadores tupiniquins (não confundir com os tupis-guaranis do major Quaresma; ele não gostaria). Um líder do movimento estudantil – não está dito que se trata de um desses assalariados do PCdoB, com 32 anos – questionou o conteúdo das discussões: “Fiquei preocupado porque em todas as atividades que eu participei era recorrente a pergunta sobre qual caminho devemos seguir. Via de regra, eu desconfio de quem tem muita certeza e de quem diz que sabe como será o socialismo de um século que começou agora”, disse ele. Estou com ele; eu também desconfio, sobretudo porque nem o coronel petrolífero conseguiu explicar direitinho como funcionaria (ou não) o seu socialismo, que aparentemente está fazendo água. O mesmo estudante discordou da necessidade de um consenso apontada por vários debatedores como o caminho obrigatório para construção do socialismo do século 21: “Uma agenda consensual é impossível. Falar que a gente é a favor da democracia e contra o aquecimento global não nos diferencia de ninguém”, avaliou. Para ele, seria preciso “detalhar essas questões e radicalizar as discussões”. Pois bem, nisso eu acho que ele está redondamente enganado: eles não são, justamente, a favor da democracia, pois do contrário estariam se solidarizando com seus colegas venezuelanos que, naquele mesmo momento, estavam protestando nas ruas a favor da democracia e da liberdade de expressão. Os altermundialistas, os antiglobalizadores e todos os demais representantes daquela fauna variada reunida em Porto Alegre, velhos ou jovens, se diferenciaram justamente de muitos outros estudantes ao redor do mundo pela sua total falta de sensibilidade com respeito à tragédia autoritária em curso na fazenda petrolífera que passa por um experimento de “socialismo do século 21”. Eles não se deram conta, ainda, que sob a aparente roupagem progressista, esquerdista, anti-imperialista ou 153

socialista, sob a qual se esconde o ditador de opereta, encontra-se, na verdade, um discípulo de Mussolini, um fascista da mais pura gema. Os jovens idealistas, que ainda não tiveram tempo de ler bons livros a esse respeito, talvez não saibam que a história esteja agora se repetindo como farsa. Os mais velhos, que sabem identificar a natureza do fascismo, mas que preferem ficar calados, por conveniência política ou por oportunismo econômico, são desonestos intelectualmente, e só merecem um qualificativo: são velhacos consumados...

2107. “Triste Fim de Policarpo Social Mundial”, Brasília, 2 fevereiro 2010, 5 p. Resumo e conclusão sobre o FSM-10: uma farsa, como sempre. Publicado em Mundorama (02.02.2010; link: http://mundorama.net/2010/02/02/triste-fim-depolicarpo-social-mundial-por-paulo-roberto-de-almeida/). Revista Espaço da Sophia. Relação de Publicados n. 950.

Cui prodest? (Ou, para quem escrevo?) Comentários a meus críticos a propósito do artigo sobre “Triste Fim de Policarpo Social Mundial”. Postado, sob o titulo “Estudantes, estudai! (acho que é isso)”, no blog Diplomatizzando (18.02.2010; link: http://diplomatizzando.blogspot.com/2010/02/1681-estudantes-estudaiacho-que-e-isso.html) e como comentário no blog Mundorama (http://mundorama.net/2010/02/02/triste-fim-de-policarpo-social-mundialpor-paulo-roberto-de-almeida/).

De vez em quando eu perpetro a ousadia de escrever para o Mundorama. Ou melhor, seus responsáveis é que cometem a ousadia de me publicar, já que eu não escrevo especialmente para o Mundorama, em todo caso muito raramente, ou quase jamais, pensando em Mundorama, que é um boletim muito simpático e variado de relações internacionais, animado por esse gigante (stricto et lato sensi) da didática internacionalista que é o professor Antonio Carlos Lessa. Estudantes, leiam, visitem, eu recomendo: http://mundorama.net/ Pois bem, meu último coup pervers foi um post sobre o inacreditável Fórum Social Mundial. Digo inacreditável, pois que nem mesmo seus promotores desonestos 154

acreditam de fato nas bobagens que eles dizem (se o fizessem, além de desonestos, seriam ingênuos, o que talvez seja muito pior). Eles apenas vivem daquilo, de preferência sem trabalhar, com dinheiro público, ou melhor, com o meu, o seu, o nosso dinheiro. Como eu tenho alergia a burrice, mas ojeriza absoluta à desonestidade intelectual (se a palavra se aplica), eu não deixo passar uma oportunidade para cobrar um pouco, só um pouco, de coerência nas ideias (if any), como se isso fosse possível (mas, não custa cobrar, e eles deveriam pelo menos tentar). Meu último post no Mundorama foi este aqui: Triste Fim de Policarpo Social Mundial, por Paulo Roberto de Almeida (http://mundorama.net/2010/02/02/triste-fim-de-policarpo-social-mundial-porpaulo-roberto-de-almeida/; 2 de fevereiro de 2010) Recebi, como seria de se esperar sendo tão provocador (confesso que deliberadamente), muitos comentários, alguns sorrindo comigo ante tantas inconsequências desse bando de malucos que são os antiglobalizadores, outros indagando questões específicas (que respondo quando consigo entender, o que nem sempre é o caso), e um ou dois, finalmente, me criticando, o que é sempre bem-vindo (e agradeço sinceramente, não hipocritamente; tenho vários defeitos, mas não o dom da hipocrisia). As criticas são de dois gêneros, e já descarto a primeira por inepta, incompetente ou descartável: 1) Eu seria um apologista do capitalismo, do neoliberalismo, seja lá o que for isso, e meus argumentos estariam errados, pois o capitalismo é de fato perverso, etc., etc., etc. Bem, digo que é inepta pois as pessoas que fazem esse tipo de rejeição de minhas críticas às posições dos antiglobalizadores, nunca, NUNCA dizem em que as propostas dos maluquetes do FSM teriam alguma coerência intrínseca (ou até extrínseca, vá lá). Por outro lado, eu não sei porque ainda ando de carro velho e de baixa potência sendo um defensor tão acirrado do capitalismo: Wall Street certamente ainda não ouviu falar de mim, e ainda não me colocou no seu contracheque. Bem, não quero me estender, mas essas pessoas não distinguem racionalidade econômica e raciocínio lógico da simples peroração ideológica: elas devem estar com o parafuso dos modos de produção um pouco desajustados, e a cada momento de distração, soltam um capitalismo para variar. Elas talvez não saibam a diferença entre capitalismo e economia 155

de mercado, ao que eu diria: minha gente, leiam Max Weber, leiam Fernand Braudel, leiam Albert Hirschmann, Jean Baechler (não confundir com o Jean Ziegler, por favor, pois este é do bando de perfeitos idiotas). 2) A segunda crítica é aparentemente mais “séria”, mas ela se engana totalmente de foco. Diz um desses jovens afoitos que se o FSM não fosse importante, eu não estaria escrevendo tanto sobre ele. Se eu insisto em voltar ao assunto, repetidamente diz ele, é porque suas ideias (sic, três vezes) são relevantes. Bem, esse jovem ainda não percebeu uma coisa: eu escrevo justamente para ele, não para o bando de velhacos desocupados que animam e promovem esses piqueniques anuais sem qualquer relevância para o mundo real. Repitam comigo: nada do que se diz ou se aprova, unanimemente (comme il faut, quando se trata de pensamento único) nesses encontros regados a slogans vazios tem a mínima importância para o mundo real. Nada, nadica, necas de pitibiribas. Quem quiser me provar o contrário, ou seja, que alguma nova e relevante proposta emergiu desses jamborees, eu posso oferecer um livro ou dois. Precisando: que tenha emergido do FSM, não que já exista nas faculdades de humanidades – que também produzem uma tonelada de ideias inúteis – ou que circule na sociedade como produção, digamos, intelectual. Pois eu escrevo justamente para esses jovens idealistas que querem salvar o mundo dele mesmo, ou melhor, salvá-lo do capitalismo globalizador (ou vice-versa), mas que ainda leram pouco, estudaram menos ainda, e aprenderam só um tiquinho (e, no que depender de certos professores, vão aprender menos ainda, no que lhes resta de diversão universitária). Como eu sou uma pessoa que aprendeu nos livros ou com pessoas mais espertas, considero ser assim meu dever, digamos, espiritual, transmitir um pouco do que aprendi a esses jovens sedentos de sabedoria globalizante, mas que acabam encontrando apenas essas fontes barrentas da pilantragem universitária e das imposturas intelectuais desses velhacos da antiglobalização. Que posso fazer? Tenho essa vocação didática voluntária – e já vou avisando que não é dela que retiro meu sustento, nem faço desse hobby minha ocupação principal – e por isso fico assim de noite escrevendo para esses moços – como diria o Lupicínio 156

Rodrigues – que não sabem o que eu sei. Não por qualquer virtude extraordinária, ou inteligência excepcional, longe disso. Eu sou apenas um gajo esforçado, que lê muito, que pensa muito sobre o que leu, observou e retirou de sua experiência de vida, e que coloca essas reflexões à disposição dos mais jovens, posto que eu também já fui jovem e tive professores honestos e outros desonestos (talvez involuntariamente, concedâmolhes essa dúvida). Finalizando, meu jovem, você que me acusa de bater em "cachorro morto" (talvez seja bem o caso), não é para o cachorro que estou escrevendo, nem para os “donos” dos cachorros, pois estes já incorporaram o cérebro dos cachorros. Estou escrevendo para você mesmo, e apenas aconselhando-o a abrir os olhos, ler e se informar um pouco mais, viajar pelo mundo (Davos é uma excelente estação de esqui, mas talvez você ainda não tenha dinheiro para ir lá), enfim aprenderem, de preferência de maneira autodidata, pois sempre se deve desconfiar de professores (inclusive deste que aqui escreve). Ser cético é um dever, mas deve-se sempre cultivar um ceticismo sadio, ou seja, opor ideias melhores, e mais coerentes, a ideias más, que são estas que não se conformam à realidade empírico, que não seguem os mínimos preceitos da lógica formal, enfim, que ficam no slogan vazio em lugar de ir para a pesquisa e confrontar os números. Ou seja, exatamente essas que estão no centro (e nas bordas também) do FSM. Eu, na verdade, estou pouco preocupado com os velhacos do FSM, meu objeto próprio são os jovens. Como observo com certa preocupação a marcha da mediocrização na universidade brasileira, e como constato que os jovens que me escrevem cada vez escrevem mais mal, sem uma exposição coerente das ideias, sem se fazer entender direito, eu me sinto, como dizer?, compelido a escrever estas bobagens que escrevo noite adentro, para ver se evito um pouco da mediocrização em curso e contribuo, minimamente que seja, com a tarefa da elevação intelectual de jovens como esse que me escreve me acusando de apologista do capitalismo. Acho que ele não encontrou argumentos para me rebater, e aí foi logo sacando o capitalismo e o neoliberalismo. Puxa vida, está ficando aborrecido debater assim... 157

2115. “Cui prodest? (Ou, para quem escrevo?)”, Brasília, 17 fevereiro 2010, 3 p. Comentários a meus críticos a propósito do artigo sobre “Triste Fim de Policarpo Social Mundial”. Postado, sob o titulo “Estudantes, estudai! (acho que é isso)”, no blog Diplomatizzando (link: http://diplomatizzando.blogspot.com/2010/02/1681estudantes-estudai-acho-que-e-isso.html) e como comentário no blog Mundorama (http://mundorama.net/2010/02/02/triste-fim-de-policarpo-social-mundial-porpaulo-roberto-de-almeida/).

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19. A falência da assistência oficial ao desenvolvimento

O conceito de cooperação, num entendimento puramente formal da palavra, implica uma ação voluntária de dois ou mais parceiros em prol de objetivos comuns, sendo subjacente ou implícita a ideia de que juntos eles conseguirão fazer algo que talvez não pudessem alcançar isoladamente. Nessa compreensão, a realidade da cooperação é relativamente recente na comunidade internacional, posto que até o advento dos primeiros organismos intergovernamentais, a partir de meados do século 19, e mais especificamente da ONU, um século depois, não havia espaços políticos ou instrumentos para o estabelecimento de uma cooperação genuína entre Estados soberanos. Até então, a realidade das relações entre Estados era feita, na melhor das hipóteses, de concorrência em bases autônomas, ou, na pior, de animosidade ou de hostilidade, que podiam resultar, inclusive, em conflitos militares, sendo muito comum a relação de dominação, de exploração e de subordinação entres os países. Na acepção moderna do termo, a realidade da cooperação está intrinsecamente ligada aos objetivos da Carta da ONU e à atuação de suas agências especializadas, nos diversos campos estabelecidos desde 1945 e que vem sendo ampliados gradualmente desde então, sempre quando novos temas – energia nuclear, direito do mar, meio ambiente, direitos da criança e da mulher, habitação, e vários outros – recolhem certa 159

unanimidade dos Estados no sentido de seu tratamento multilateral. Os dois objetivos prioritários da ONU são a cooperação entre os Estados para a preservação da paz e da segurança internacional e para promover o desenvolvimento dos povos dos países membros. Obviamente, como não se pode contornar a questão central do poder – ou seja, quem manda e quem obedece –, a ONU (como, antes dela, a Liga das Nações) não poderia dar um encaminhamento satisfatório ao primeiro conjunto de objetivos sem fixar mecanismos não igualitários de resolução de disputas, hoje consolidados no seu Conselho de Segurança (não muito diferente do sistema oligárquico da Liga); aí não se trata tanto de cooperação, mas de coerção, o que, também, é por vezes necessário e, em certas circunstâncias, até incontornável (como quando certos Estados “vilões” ameaçam a paz e a segurança internacionais, por exemplo). Descontados, porém, os poucos episódios de coerção multilateral – ou seja, as operações de peace keeping (muitas) ou de peace making (pouquíssimas) da ONU – a maior parte da agenda onusiana (PNUD e a dúzia de agências especializadas atuantes) está prioritariamente voltada para a cooperação ao desenvolvimento, cenário que implica a mesma relação desigual já existente na questão do poder, ou seja, países que prestam cooperação, de um lado, e países que recebem cooperação, de outro. Esse tipo de relação assimétrica – que desde o início da ONU dividiu os países em desenvolvidos e em desenvolvimento, com a situação bizarra, mas temporária, dos chamados “socialistas” – tem sido preservado desde então, sem mudanças relevantes ou significativas no plano das capacitações nacionais. Em outros termos, a interação entre cooperação e desenvolvimento não parece ter produzido os resultados esperados pelos seus promotores multilateralistas de 60 anos atrás. A questão, portanto, que deve ser colocada de forma clara é se esse tipo de ação cooperativa, nas formas que vêm sendo prestadas tradicionalmente, pode, de fato, produzir o que propõe, ou seja, desenvolvimento. O registro histórico do período transcorrido desde a aplicação sistemática e institucional da cooperação técnica ao desenvolvimento só pode ser avaliado em categorias inferiores, do tipo sucesso moderado até o fracasso evidente, numa gradação que possui vários casos de lento progresso, mas nenhum de rápida prosperidade em direção ao desenvolvimento. A realidade do desenvolvimento mundial, nos últimos dois séculos e meio – grosso modo, desde o início da Revolução Industrial – não foi feita de grandes alterações na quase imóvel hierarquia econômica do desenvolvimento: a despeito do 160

desaparecimento de alguns grandes impérios e a descolonização completa do chamado Terceiro Mundo, a grande divergência se manteve praticamente intacta durante a maior parte do período. Os que já eram desenvolvidos no século 19 continuaram desenvolvidos no decorrer do século 20, e as economias atrasadas e periféricas permaneceram, em grande medida, atrasadas e periféricas. Os únicos países a terem saltado a barreira do desenvolvimento durante esse período foram, de uma parte os nórdicos, de outra o Japão, todos por terem reunido condições culturais e institucionais que resultaram num processo autogerado de crescimento sustentável e transformador das antigas estruturas conservadoras e fixadas na economia primária. A situação não conheceu mudanças notáveis durante a maior parte do século 20, sendo apenas alterada pela emergência de algumas nações asiáticas à plena capacitação industrial, logo sendo chamados de NICs, ou novos países industriais. Coréia do Sul, Taiwan, Hong Kong e Cingapura são provavelmente os únicos exemplos de países que alcançaram o desenvolvimento na segunda metade do século 20, tendo partido de patamares quase tão medíocres quanto os da maioria dos países da Ásia, da África e da América Latina, que, aliás, ainda patinam no subdesenvolvimento. Instrutivo constatar que nem o Japão ou os nórdicos, nem qualquer um dos países que se qualificaram posteriormente deveram a melhoria de suas situações respectivas à cooperação ao desenvolvimento. E resulta pelo menos estranho que dos países que mais receberam cooperação ao desenvolvimento desde os aos 1950 – como os africanos, em cifras equivalentes a muitas dezenas de bilhões de dólares – nenhum conseguiu escapar do não-desenvolvimento. De fato, como confirmado pelo livro frustrante, mas realista, de William Easterly, The White Man’s Burden, os sistemas multilateral e bilaterais de assistência oficial ao desenvolvimento, mantidos essencialmente pelos países ocidentais de economia capitalista avançada, desembolsaram, nas últimas cinco décadas até meados da década passada (seu livro foi publicado em 2006), cerca de US$ 2,3 trilhões nos países mais carentes do globo, sem que a distância com relação aos países mais desenvolvidos tenha diminuído: ao contrário, em alguns casos ela até aumentou. Seu livro foi escrito, aliás, a partir da percepção que a AOD – como é frequentemente chamada a cooperação oficial ao desenvolvimento – fracassou redondamente em cumprir os objetivos que lhe tinham sido fixados desde a primeira década onusiana de cooperação pela via de programas oficiais (grosso modo a partir da descolonização, nos anos 1960). Ele constatou o fracasso parcial ou completo da maior parte dos programas 161

implementados, e até uma diminuição do ritmo de crescimento econômico em vários dos casos investigados de países que mais receberam ajuda externa.11 Isto não quer dizer que essa ajuda seja absolutamente ineficaz, podendo ser útil, ou até mesmo necessária, nos casos mais dramáticos de inexistência de estruturas físicas e institucionais de um Estado ‘normal’ e de grande atraso educacional. Mas ela não é decisiva, ou suficiente, a ponto de mudar os dados básicos de um pais que não consiga reunir ele mesmo as condições para um processo endógeno de desenvolvimento (que implica a manutenção de um processo contínuo e sustentável de crescimento econômico, com transformações estruturais via inovações tecnológicas e distribuição social dos resultados da prosperidade assim criada). Ao contrario, ‘excesso’ de ajuda pode até prejudicar o processo de desenvolvimento, ao tornar o país em questão dependente da assistência externa, quando ele deveria estar buscando suas próprias fontes de crescimento num ciclo autogerado de investimento produtivo, poupança e atividades empreendedoras. Os exemplos enunciados no livro de Easterly – que trabalhou na cooperação internacional para o desenvolvimento no quadro do Banco Mundial durante 16 anos, tendo saído justamente por discordar das abordagens convencionais nessa área – são dramáticos e eles evidenciam um divórcio quase completo entre as intenções e os resultados. Um dos gráficos mais eloquentes de seu livro (p. 46) registra uma notável inversão das curvas de AOD e de crescimento: de 1970 a 2000, a ajuda externa aumenta de 5,5% a 18% como proporção do PIB na África, ao mesmo tempo em que as taxas de crescimento do PIB per capita declinam de 2% a 0%, sendo que em vários anos da década de 1990 foi bem menos do que isso, registrando valores negativos. Obviamente, muito do fracasso pode ser explicado pela chamada “falência dos Estados” – crises políticas, conflitos étnicos, guerras civis, etc. – mas a ajuda também contribuir para “dopar” (no pior sentido possível, isto é, de drogar) as administrações nacionais, desviando-as de suas responsabilidades primárias pelos próprios processos de desenvolvimento, carreando um “maná” externo que frequentemente era desviado para bancos no exterior. Em vários casos, a ajuda externa passou a representar uma fração significativa dos orçamentos nacionais, criando uma dependência estrutural que só pode

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Cf. William Easterly, The White Man’s Burden: Why the West’s Efforts to Aid the Rest Have Done So Much Ill and So Little Good (New York: Penguin Books, 2007). Ver, igualmente, seu livro anterior: The Elusive Quest for Growth: Economists’ Adventures and Misadventures in the Tropics (Cambridge, Mass.: The MIT Press, 2002).

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deformar ainda mais o funcionamento normal de um Estado (supondo-se que este não seja dominado por grupos políticos que Easterly não hesita em chamar de “gangsteres”, tal a semelhança com “colegas” dedicados inteiramente ao crime em outras circunstâncias e países). Em resumo, a cooperação não tem a capacidade de mudar o destino dos países se os recebedores não souberem se organizar para inserir a economia nacional nos circuitos da economia mundial, pelo lado do comércio e dos investimentos, não pela vertente da assistência externa. Em retrospecto, a única ajuda a ser prestada por países ricos aos países pobres deveria ser aquela que simplesmente qualifica a população desses últimos no domínio do ensino universal de base e aquele técnico-profissional; todo o resto deveria ser deixado em segundo, ou terceiro, plano. Mas esta é uma lição que não precisaria estar sendo repetida agora, tendo sido recomendada desde antes das independências africanas por um economista britânico trabalhando na África oriental inglesa (Quênia e Tanganica, atual Tanzânia), Peter Bauer: ao analisar as perspectivas de crescimento e desenvolvimento das colônias que se preparavam para tornar-se Estados independentes ele recomendou que, sobretudo, eles não fosse objeto de ajuda, e sim beneficiados pela abertura dos mercados dos países desenvolvidos a seus produtos de exportação, ou seja, que sua inserção internacional se desse pelo lado do comércio exterior, não pela via da ajuda oficial ou da “cooperação ao desenvolvimento”. 12 Ele não foi ouvido, e deu no que deu: a África continua tão subdesenvolvida – talvez mais – do que à época das descolonizações, quando o aparato estatal deixado pelos colonizadores ainda funcionava razoavelmente bem. Depois disso, a deterioração foi constante, em alguns casos de maneira acelerada (ou induzida por verdadeiros larápios oficiais, como o presidente Mobuto, do ex-Congo Belga, que já foi Zaire, e que continua retrocedendo na escala do desenvolvimento).

12

Ver, por exemplo, Peter Bauer, Economic Analysis and Policy in Underdeveloped Countries (Durham, N.C.: Duke University Press, 1957), bem como dois outros livros seus sobre a mesma temática: Dissent on development: studies and debates in development economics (Londres: Weidenfeld and Nicolson, 1971); Equality, the Third World, and Economic Delusion (Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1981).

163

2138. “A falência da assistência oficial ao desenvolvimento”, Shanghai, 3 maio 2010, 5 p. Sobre o fracasso da cooperação e assistência financeira externa, adaptado do trabalho n. 2076. Publicado no portal de Economia do IG (03.05.2010). Republicado em Mundorama (24.05.2010; link: http://mundorama.net/2010/05/24/a-falencia-da-assistencia-oficial-aodesenvolvimento-por-paulo-roberto-de-almeida/#more-6091), em Via Política (27.06.2010) e em Dom Total (8.07.2010; link: http://www.domtotal.com/colunas/detalhes.php?artId=1461). Relação de Publicados n. 965.

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Quarta Parte

Política internacional, Questões estratégicas

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20. A guerra de 1914-18 e o Brasil: impactos imediatos, efeitos permanentes

1. O que era o Brasil em 1914, e o que representou a guerra europeia? Para abordar o impacto da guerra de 1914-1918 sobre o Brasil seria preciso ter bem presente o que era o Brasil em 1914, o que era a Europa, o que ela representava para o Brasil nessa época, e o que a guerra alterou no padrão de relacionamento, direta e indiretamente. Vamos resumir um complexo quadro político, econômico e diplomático. O Brasil de cem anos atrás era o café, e o café era o Brasil. Toda a política econômica, aliás toda a base fiscal da República e dos seus estados mais importantes, assim como a própria diplomacia, giravam em volta das receitas de exportação, que compreendiam tanto ao próprio produto, e que faziam a riqueza dos barões do café, quanto os impostos de exportação, que afluíam ao orçamento de São Paulo e dos demais estados produtores. Dez anos antes, angustiados por um problema que eles próprios haviam criado, a superprodução de café, esses estados realizaram um esquema de valorização do produto, via retenção de estoques, no famoso Convênio de Taubaté, para cujo financiamento tivemos, pela primeira vez, a participação de bancos americanos. Os próprios banqueiros oficiais do Brasil, os Rothchilds de Londres, haviam se recusado a fazer parte do esquema, pois se tratava de uma típica manobra de oligopolistas contra os interesses dos consumidores. O Brasil dominava então quase quatro quintos da oferta mundial de café, e essa posição lhe assegurava a capacidade de fazer grandes manobras. Mais tarde, em 1914, justamente, outros concorrentes tinham entrado nesse lucrativo mercado, a Colômbia, por exemplo, que sem poder competir em quantidade, 167

começou a dedicar-se a melhorar a qualidade dos seus cafés. Na mesma época, o Brasil estava sendo processado em tribunais de Nova York, por praticas anti-concorrenciais na oferta de café, justamente. Foi também quando os mercados financeiros se fecharam repentinamente para o Brasil, com o estalar da guerra em agosto desse ano. O Brasil sempre dependeu do aporte de capitais estrangeiros, seja para financiar projetos de investimento em infraestrutura – que eram feitos sob regime de concessão, num esquema muito similar ao que viria a ser conhecido depois como PPP, ou seja, parcerias público-privadas, com garantia de juros de 6% ao ano –, seja para o financiamento do próprio Estado, que vivia permanentemente em déficit orçamentário. O Brasil já tinha efetuado uma operação de funding-loan en 1898, isto é, um empréstimo de consolidação trocando os títulos das dívidas anteriores por novos títulos, e tinha conseguido fazer um novo pouco antes da guerra, e já não mais teve acesso ao mercado de capitais durante toda a duração do conflito europeu. Este representou um tremendo choque para a economia brasileira, pois os mercados europeus ainda eram importantes consumidores dos produtos primários de exportação, e os principais ofertantes de bens manufaturados, equipamentos e, sobretudo, capitais, ainda que os Estados Unidos já fossem o principal comprador do café brasileiro desde o final do século 19, e que suas empresas já tivessem começado a fazer investimentos diretos no Brasil. 2. Impactos imediatos do conflito iniciado em 1914 O espocar dos canhões de agosto representou, em primeiro lugar, uma interrupção nas linhas de comunicação marítimas, já que a Alemanha tinha construído para si uma marinha de guerra quase tão importante quanto a da Grã-Bretanha. Mais adiante a British Navy consegue desmantelar boa parte da frota germânica, mas de imediato, os transportes marítimos com os portos da Europa do norte foram bastante afetados pelas batalhas navais e pela ação dos surpreendentes submarinos alemães. Mas mesmo os estoques de café nos portos de Trieste, no Mediterrâneo, ficaram retidos, sob controle dos impérios centrais, neste caso da monarquia multinacional representada pela Áustria-Hungria, que seria desfeita com a derrota em 1918. O produto mais importante de exportação do Brasil foi, assim bastante afetado pela perda de importantes mercados consumidores, o que aumentou tremendamente a dependência da demanda americana. Mas, os principais financiadores externos da jovem República ainda eram banqueiros europeus, agora comprometidos com a compra 168

de títulos da dívida nacional de seus próprios países. A Alemanha também se tinha convertido num importante parceiro comercial do Brasil, além de ter iniciado um itinerário promissor com alguns investimentos diretos de suas empresas e casas comerciais. Outros mercados do velho continente também se viram engolfados no conflito, causando novos e continuados prejuízos ao Brasil. O debate interno, sobre quem o Brasil deveria apoiar na guerra europeia, também foi importante, colocando importantes intelectuais em oposição, assim como tribunos e magistrados dos dois lados da cerca. O grande historiador João Capistrano de Abreu foi considerado um germanófilo, ao passo que Rui Barbosa insistiu na culpa moral da Alemanha, que tinha invadido e esquartejado a Bélgica, um país neutro. Uma das vítimas desse debate passional foi o próprio sucessor de Rio Branco, o chanceler Lauro Muller, considerado talvez menos isento por causa de sua ascendência alemã: ele renunciou ao cargo quando o Brasil fez a sua escolha. A maior parte da classe culta no Brasil, os membros da elite que adoravam gastar seus mil-réis nos cabarés de Paris, era evidentemente francófila, mas os alemães ajudaram a empurrar o Brasil para o lado da aliança franco-britânica ao atacarem navios comerciais brasileiros no Atlântico, quando o Brasil ainda era oficialmente neutro no conflito. Acabamos entrando modestamente na guerra, quase ao seu final, enviando um batalhão médico para a França. No conjunto, a guerra representou imensas perdas comerciais e financeiras para o Brasil, que tentou se ressarcir, na conferência de paz de Paris, sem obter de verdade satisfação plena por suas reivindicações de obter compensação pela apropriação de navios alemães: os próprios países europeus se encarregaram de extorquir a Alemanha o máximo que puderam, e o caso do Brasil não era julgado realmente importante em face do conjunto de demandas dos países mais afetados pela guerra. 3. Impactos de mais longo prazo, efeitos permanentes Os efeitos mais importantes da primeira guerra mundial, porém, não se limitaram aos terrenos militar e comercial, mas foram verdadeiramente impactantes no domínio econômico no seu sentido mais lato, provocando mudanças extremamente importante nas políticas econômica de todos os países, com consequências negativas para todo o mundo, e moderadamente positivas para o Brasil. Uma das primeiras consequências econômicas da guerra foi a cessação de pagamentos entre os inimigos, o que era lógico, com a cessação de toda relação comercial, confisco de bens e sequestro de ativos financeiros. Os países suspenderam o famoso padrão-ouro, ou seja, a garantia 169

em metal das emissões de moeda papel; ainda que teoricamente em vigor, para alguns países, e a despeito de tentativas de seu restabelecimento ao final do conflito, ficou evidente que o lastro metálico tinha deixado de fato de ser um fator relevante nas políticas monetárias dos países. Todos os governos, depois de esgotadas as possibilidades de financiamento voluntário interno do esforço de guerra – via emissão de bônus da dívida pública, e até mediante empréstimos compulsórios – passaram a imprimir dinheiro sem maiores restrições, provocando a primeira grande onda inflacionária nas economias contemporâneas. Mais impactante ainda foi a intervenção direta na atividade produtiva, não apenas desviando para a produção de guerra quase todas as plantas industriais que tivessem alguma relação com o aprovisionamento bélico, inclusive alimentar, de transportes e comunicações, mas também via controles de preços, restrições quantitativas, mobilizações laborais e vários outros expedientes intrusivos na vida do setor privado. Nacionalizações e estatizações foram conduzidas por simples medidas administrativas e a planificação nacional tornou-se praticamente compulsória. O mundo nunca mais seria o mesmo, e nesse tipo de economia de guerra estaria uma das bases dos regimes coletivistas que depois surgiriam na Europa, o fascismo e o comunismo. O Brasil não foi tão afetado, naquele momento, pela estatização, mas ele também sofreu esses impactos de duas maneiras. De um lado, as dificuldades de aprovisionamento e de acesso a mercados levaram ao estímulo a novas atividades industriais no país, ainda que com todas as restrições existentes para a compra de bens de produção nos principais parceiros envolvidos no conflito. O mercado interno se torna mais relevante para a economia nacional. De outro lado, o nacionalismo econômico conhece um novo reforço nesse período. O Brasil já tinha uma lei do similar nacional desde o início da República, mas a guerra ajuda a consolidar a tendência introvertida, a vocação de autonomia nacional que já estavam presentes no pensamento de tribunos e de empresários. O Brasil encontrou naquela situação uma espécie de legitimidade acrescida para continuar praticando aquilo que sempre fez em sua história: a preferência nacional e o protecionismo comercial como políticas de Estado. Este talvez seja o efeito mais importante, ainda que indireto, da guerra europeia sobre o pensamento econômico brasileiro, especialmente em sua vertente industrial. As gerações seguintes, sobretudo aquelas que ainda viveram a crise de 1929, e uma nova guerra mundial, dez anos depois, consolidaram uma orientação doutrinal em economia que também tendia para o nacionalismo econômico, uma política comercial defensiva, 170

uma vocação industrial basicamente voltada para o mercado interno e uma tendência a ver no Estado um grande organizador das atividades produtivas, quase próxima do espírito coletivista que vigorou na Europa durante o entre-guerras e mais além. Essencialmente, a geração de militares que passou a intervir de forma recorrente na vida política do país, ao final da Segunda Guerra, e que depois assumiria o poder no regime autoritário de 1964, era em grande medida formada por jovens cadetes que tinham feito estudos e depois academias militares no entre-guerras e na sua sequência imediata, e que tinham se acostumado exatamente com esse pensamento: um intenso nacionalismo econômico, a não dependência de fontes estrangeiras de aprovisionamento (sobretudo em combustíveis e em materiais sensíveis), a introversão produtiva, a ênfase no mercado interno, enfim, tudo aquilo que nos marcou tremendamente durante décadas e que ainda forma parte substancial do pensamento econômico brasileiro. Tudo isso, finalmente, foi o resultado político e econômico da Primeira Guerra Mundial, que durante muito tempo ficou conhecida como a Grande Guerra. Os custos e as destruições da Segunda foram mais importantes, mas as alterações mais significativas nas políticas econômicas nacionais, no papel dos Estados na vida econômica, já tinham sido dados no decorrer da Primeira. O mundo mudou, a Europa começou sua longa trajetória para o declínio hegemônico, e o Brasil deu início ao seu igualmente longo itinerário de nacionalismo econômico e de intervencionismo estatal. Parece que ainda não nos libertamos desses dois traços relevantes do caráter nacional. 2622. “A guerra de 1914-1918 e o Brasil: impactos imediatos, efeitos permanentes”, Hartford, 26 junho 2014, 5 p. Roteiro para gravação de um depoimento em vídeo para emissão especial do Observatório da Imprensa, sobre o impacto da Primeira Guerra Mundial sobre o Brasil em termos políticos, econômicos, culturais e militares depoimento por meio de webcam). Emissão “Os 100 anos da guerra que não acabou”, com Alberto Dines (Programa n. 736, em 5/08/2014; link: http://www.observatoriodaimprensa.com.br/videos/view/os_100_anos_da_guerra_q ue_nao_acabou; participação PRA: entre 35:44 e 37:14, ou seja, 1,5mns). Publicado em Mundorama (28/07/2014; ISSN: 2175-2052; link: http://diplomatizzando.blogspot.com/2014/07/a-primeira-guerra-mundial-e-obrasil.html); postado no Diplomatizzando (link: http://diplomatizzando.blogspot.com/2014/07/a-primeira-guerra-mundial-e-obrasil.html). Relação de Publicados n. 1138.

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21. O mundo sem o Onze de Setembro: explorando hipóteses

Imaginemos, por um momento, que não tivesse ocorrido o Onze de Setembro. As duas torres gêmeas ainda fariam parte do skyline do sul de Manhattan e o Pentágono não teria sido renovado, continuando, portanto, a exibir sua horrível arquitetura stalinista (que, por sinal, ele ainda tem, a despeito das fachadas mais limpas e menos cinzentas). Mais importante, 3 mil pessoas não teriam sido barbaramente eliminadas – e me desculpo imediatamente por não mencionar isso em primeiro lugar – por um dos mais espetaculares (e cinematográficos) atentados jamais ocorridos na história. Claro, outras matanças “terroristas” produziram muito mais vítimas, algumas delas até em doses concentradas (ou delongadas, como os crimes igualmente bárbaros ou genocídios perpetrados por déspotas e tiranos como Hitler, Stalin, Mao e outros candidatos menores), mas nenhuma, até aqui, frequentou tanto os espaços da mídia quanto aquela perpetrada numa bela manhã de céu azul do final do verão americano. Nenhuma dessas outras matanças – historicamente mais relevantes – foi vista ao vivo por milhões de pessoas ao redor do mundo; a repetição contínua, nos canais de TV, dos ataques às torres gêmeas ainda nos enche de horror e de estupefação (ainda que sem mais a completa surpresa daqueles momentos terríveis). 172

Imaginemos, então, que não tivessem ocorrido esses ataques – aliás dotados de “tecnologia” relativamente ingênua, cujos autores poderiam ter sido detectados e interceptados a caminho de seu intento criminoso – ou que, simplesmente, o cérebro que esteve por trás de seu planejamento pudesse ter continuado suas ações “normais” de terrorismo localizado, sem conceber tal tipo de ação verdadeiramente espetacular. O mundo não teria esse “marco fundador do século XXI” assim classificado por cronistas e observadores contemporâneos (e que talvez seja confirmado pelos historiadores). Não teria deixado de existir Al Qaeda e atentados terroristas, mas teríamos sido poupados do horror desse marco simbólico do terrorismo fundamentalista da era contemporânea. Sem esses ataques o mundo teria sido muito diferente? Vejamos, por meio de um exercício de imaginação, como seria, ou como poderia ser, o mundo atual, sem o Onze de Setembro. O Afeganistão, em primeiro lugar, seguiria por alguns anos mais – não sabemos exatamente quanto tempo mais – com o horrível regime dos talibãs, que continuaria a oprimir as suas mulheres (e os homens também), seguiria desmantelando estátuas e símbolos iconoclastas em sua concepção (como a lamentável destruição dos Budas gigantes de Bamian) e continuaria, obviamente, a abrigar bases de treinamento de grupos terroristas ao estilo da Al Qaeda (que continuaria planejando ataques contra alvos americanos e ocidentais, como o do U.S.S. Cole, nas costas do Iêmen, ou das embaixadas em Nairóbi e em outros lugares). O Paquistão vizinho, em segundo lugar, continuaria abrigando grupos terroristas, que continuariam atacando alvos na Cachemira ocupada ou na própria Índia. Palestinos e israelenses continuariam se matando uns aos outros, em pequenos e grandes atentados. A teocracia iraniana também continuaria oprimindo seus dissidentes e sustentando grupos terroristas e nacionalistas da região, como os do Hamas ou do Hezbollah. A violência anticristã dos fundamentalistas islâmicos do norte da Nigéria continuaria produzindo vítimas entre os habitantes de pequenas aldeias no centro do país. As ditaduras árabes continuariam oprimindo seus povos, na indiferença geral... Os Balcãs, com exceção do Kosovo, continuariam talvez pacificados pelas forças da OTAN, mas se encaminhariam progressivamente para a integração europeia, como já parecia inevitável. Mas os grupos antiglobalizadores continuariam, na Europa, nos EUA e em outros lugares, a perturbar as reuniões multilaterais, provando, mais uma vez, que não é difícil reunir multidões de ingênuos em torno de teses idiotas que 173

pretendem lutar contra a globalização, como se fosse possível interromper marés, maremotos e furacões... A Europa e talvez o mundo continuariam, por alguns anos mais, como efetivamente ocorreu, a enfrentar a doença da vaca louca, assim como a Ásia continuaria a se debater com epidemias animais que ocasionalmente ameaçam transmigrar para a espécie humana. Terremotos, maremotos e outros acidentes naturais continuariam a produzir seu lote de enormes desastres humanos nos lugares e países mais desprovidos de condições materiais para minimizar seus efeitos catastróficos. Ecologistas ingênuos e ambientalistas científicos continuariam a anunciar as catástrofes decorrentes da ação industrial do homem, dizendo que o “fim está próximo” se não nos arrependermos de nossos progressos tecnológicos e não gastarmos algumas centenas de bilhões de dólares em medidas “preventivas” de duvidoso efeito real. O bug do milênio e a paranoia que ele despertou já teriam passado, mas hackers, crackers e outros cyberterrorists continuariam a trazer preocupações aos órgãos de defesa e de inteligência, assim como aos simples webmasters de sites oficiais de governos e de empresas... A América Latina continuaria com o seu cortejo de miséria, de desigualdades sociais, de corrupção e, claro, com o seu lote habitual de caudilhos histriônicos e de demagogos candidatos a qualquer coisa, a dilapidar os recursos públicos e a enganar populações de pobres e dependentes. O Haiti, provavelmente, não teria conseguido evitar sua trajetória de desastres naturais e humanos, e continuaria a depender da ajuda humanitária para evitar cenários ainda mais pavorosos. A África, muito pior, continuaria seu itinerário horroroso de conflitos étnicos, guerras civis, ditadores bilionários e doenças endêmicas, com alguma recuperação aqui e ali, e muita assistência pública internacional, como tem sido o caso no último meio século. Russos e cidadãos das repúblicas da Ásia central ainda teriam remanescentes dos antigos aparatchiks comunistas no poder, sobrevivendo na “maldição do petróleo” e continuando a construir o “modo capitalista-mafioso de produção”, uma modalidade não exatamente prevista por Marx. O mundo, enfim, não seria muito diferente do que ele foi, na década que passou desde o Onze de Setembro, e do que ele é, hoje, com seu desfile de grandezas e misérias, grandes invenções e pequenos acidentes de percurso, filmes de Hollywood (e, cada vez mais, de Bollywood), prêmios Nobel e prêmios igNobel (alguns imerecidos, numa e noutra categoria), avanços dramáticos nas ciências, nas artes e na tecnologia 174

(certamente iPod, iPhone e iPad), outros recuos não menos dramáticos na ética pública e na gestão governamental. Ou seja, certos desenvolvimentos naturais, certos processos sociais e alguns eventos contingentes teriam sido inevitáveis, em função da flecha do tempo e da roda impessoal da História. Resta ver, então, o que o mundo NÃO seria, no sentido de poder ter sido melhor do que ele foi, efetivamente, ou, eventualmente, de ter sido mais “ameno” ou simplesmente mais tranquilo, pelo menos potencialmente, na ausência daqueles fatídicos ataques. Bem, os EUA não teriam atacado o Afeganistão – devidamente autorizados pelo Conselho de Segurança, relembre-se – e provavelmente não teriam tido “escusas” para invadir o Iraque e derrubar Saddam Hussein – não autorizados pelo CSNU, relembre-se – e não estariam envolvidos, com alguns aliados da OTAN, em duas guerras intermináveis, que já provocaram mais vítimas inocentes do que vários atentados terroristas reunidos. Claro, George Bush talvez tivesse buscado outras escusas, e outros expedientes, para terminar a missão inconclusa de seu pai na primeira guerra do Golfo. Mas provavelmente não teria ocorrido uma revisão radical nas estratégias de segurança dos EUA, como a “doutrina Bush” e a noção de “guerra preventiva”. Guantánamo não teria sido convertida em prisão para “inimigos combatentes”, à margem das convenções multilaterais relativas à guerra e “prisioneiros” de guerra. A própria noção de “guerra ao terror” provavelmente não teria existido, continuando apenas o trabalho habitual das agências de inteligência na prevenção aos ataques terroristas, seguido de uma ou outra ação tópica, de caráter militar, no desmantelamento de bases e eliminação de agentes em alguns hotspots do planeta. Mais importante, talvez, para os cenários econômicos da globalização capitalista, os EUA não teriam acumulado 5 ou 6 trilhões de dólares adicionais de dívida pública e não estariam em tão má postura, como atualmente, para continuar a servir de “locomotiva econômica planetária”, nos momentos de recuperação da sempre esquizofrênica economia mundial. A ciclotimia habitual do capitalismo continuaria igual, claro, e crises financeiras continuariam a ocorrer com sua regularidade habitual, e nem sequer seríamos poupados dos desastres da bolha imobiliária, da crise financeira de 2008-2009 e da atual crise do endividamento público dos países avançados, que obedecem a uma lógica própria, sem nada dever a qualquer tipo de ataque terrorista de qualquer grupo religioso ou político. O capitalismo financeiro sempre produz seus 175

próprios desastres, com quedas espetaculares dos valores das ações, sem necessidade de derrubada física dos papéis. O único vínculo entre a crise atual e os ataques terroristas talvez seja o excessivo endividamento americano, mas o enorme buraco provavelmente não existiria, se Bush não tivesse lançado o país, irresponsavelmente, em duas custosas guerras de nation building e de construção de democracias em países já por si problemáticos. Os EUA, que obtiveram, espontaneamente, a imediata solidariedade de todo o mundo, no imediato seguimento dos ataques – Nous sommes tous américains!, escreveu em letras garrafais o Le Monde de 12 de setembro de 2001 – e que tiveram o apoio na luta contra o terror mesmo de competidores estratégicos, passaram a ser odiados em vários quadrantes, por causa de ações arrogantes, irrefletidas, unilaterais. Obviamente que não se pode combater grupos terroristas apenas com base no diálogo, na cooperação e na coordenação multilateral – que são instâncias ineficientes, ineficazes ou inexistentes, simplesmente –, mas a escolha de uma estratégia de “enfrentamento imperial” dilapidou rapidamente o crédito de confiança que eles tinham conquistado na conjuntura dos ataques. Não é seguro que uma estratégia de maior coordenação e consulta com aliados habituais e parceiros circunstanciais teria evitado, por exemplo, os ataques terroristas de Madrid e de Londres – para ficar apenas em dois dos mais mortíferos – mas talvez fosse possível obter um ambiente de luta clandestina, nos bastidores e por ações mais de inteligência do que pelo uso da força bruta, que evitasse o antiamericanismo militante que surgiu a partir da invasão do Iraque. Grupos militantes e outros fundamentalistas espalhados ao redor do mundo talvez não tivessem se organizado em torno do rótulo Al Qaeda para perpetrar alguns desses ataques e tentativas de ações terroristas que foram, em parte, estimuladas pela resposta imperial americana. O próprio conceito de “guerra ao terror” e o caráter punitivo a que esse tipo de enfrentamento conduz superestimam a capacidade dos grupos terroristas e realçam um hipotético status de combatentes, no plano do direito internacional, o que eles obviamente não são, no sentido próprio da palavra. O inteiro arcabouço jurídico internacional da luta contra o terrorismo poderia ter avançado mais, na ausência de uma resposta militar dos EUA aos ataques, ou mais exatamente, na ausência da estratégia americana de “guerra preventiva”, materializada especialmente pela invasão do Iraque. Ditadores e ditaduras foram poupados em certos cenários de “cooperação” na “guerra 176

ao terror”, e muitos deles sobreviveram e sobrevivem ainda hoje, em função das tensões acumuladas nesse ambiente unilateralista criado pelos EUA. Em qualquer hipótese, é extremamente difícil dizer se o mundo, sem o Onze de Setembro, teria sido muito diferente do que ele foi, pois forças impessoais continuam se movimentando na mesma direção, provocando, talvez, efeitos semelhantes, ou processos similares, aos que ocorreram a partir dos ataques terroristas e das respostas imperiais. Deve-se, em todo caso, relevar a parte dos fatores contingentes, dos imponderáveis humanos no desenvolvimento que efetivamente tivemos, desde antes do Onze de Setembro. Na ausência de homens como Osama Bin Laden e de George W. Bush – este aqui cercado dos “falcões” do unilateralismo americano, pois o próprio presidente era conceitualmente muito fraco e intelectualmente débil para conceber a sua “guerra ao terror”– provavelmente não teríamos tido nem os ataques do Onze de Setembro, nem as respostas desproporcionais que se seguiram, e que marcaram indelevelmente estes dez anos como uma das mais problemáticas décadas desde o final da Segunda Guerra Mundial. A vida continua, os impérios se sucedem, o capitalismo se renova, os governos continuam acertando e errando na construção de sociedades mais seguras e mais estáveis, a prosperidade se instala lentamente num mundo de mercados cada vez mais unificados e é este último fator, finalmente, que vai conduzir, senão à eliminação do terrorismo, pelo menos à atenuação das vocações, ao arrefecimento dos ardores militantes e à diminuição do número de candidatos a ações terroristas. Quando todos os jovens miseráveis do planeta tiverem sido alçados a uma pobreza aceitável, e passarem a desfrutar dos equivalentes dos iPhones e iPads da atualidade, todos eles devidamente conectados, poderemos ter certeza de que o mundo terá menos ditadores, menos miséria e menos terrorismo. Minha visão é, sim, economicista a este respeito, pois acredito que o espaço das crenças irracionais – e o terrorismo fundamentalista é basicamente uma crença irracional – será diminuído pela educação universal. E não existe melhor antídoto contra esses fenômenos reacionários, e melhor remédio à miséria educacional, do que o processo irrestrito da globalização de mercados. Mais um pouco e eu diria que os antiglobalizadores são os inocentes úteis do terrorismo fundamentalista, mas não vou ofender gratuitamente uma tribo de jovens ingênuos (ainda que animados por velhacos de má-fé e intelectualmente desonestos). Vou apenas torcer para que essas “crenças irracionais” da globalização – aliás animadas 177

pelas próprias ferramentas da globalização – sejam rapidamente revertidas e colocadas a serviço do único processo que vai diminuir, progressivamente, os fervores terroristas.

2310. “O mundo sem o Onze de Setembro: explorando hipóteses”, Brasília, 10 setembro 2011, 6 p. Blog Diplomatizzando (10/09/2011; link: http://diplomatizzando.blogspot.com/2011/09/o-mundo-sem-o-onze-desetembro.html); Via Política (11/09/2011); Blog do Paulo Roberto de Almeida no Observador Político (10/09/2011, às 23:15); Mundorama (boletim n. 48, 12/09/2011; ISSN: 2175-2052; link: http://mundorama.net/2011/09/12/o-mundosem-o-onze-de-setembro-explorando-hipoteses-por-paulo-roberto-de-almeida/); Dom Total (15/09/2011; link: http://domtotal.com.br/colunas/detalhes.php?artId=2209). Relação de Publicados n. 1046.

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22. Wikileaks: verso e reverso

Triunfos e tragédias das revelações Todos os que “vivemos” ou militamos no vasto campo das relações internacionais – seja academicamente, como professores e pesquisadores, seja profissionalmente, como diplomatas e funcionários governamentais das áreas de segurança ou de inteligência, seja ainda por simples curiosidade intelectual – estamos acompanhando com renovado interesse cada nova liberação gradual das dezenas, das centenas de milhares de documentos diplomáticos dos Estados Unidos, que estão sendo divulgados por meio de um seleto número de grandes jornais internacionais a partir de sua “fonte de ocasião”, o empreendimento supostamente jornalístico de um aventureiro do ciberespaço. A “fonte original” dessa verdadeira mina documental já foi, aparentemente, identificada e neutralizada pelas autoridades dos EUA, devendo ser submetida aos procedimentos habituais em matéria de salvaguarda de materiais sigilosos, cabendo apenas esperar por uma punição exemplar pela amplitude das malfeitorias cometidas. Este pequeno ensaio de comentários pessoais em torno das “revelações do ano de 2010” – de 2011 e possivelmente mais além – não tem por objetivo enfocar a substância da matéria, ou seja, o conteúdo das mensagens diplomáticas, nem se preocupa com o fato de elas serem provenientes dos EUA. Acredito que o mesmo poderia ocorrer com outros governos, inclusive o brasileiro, daí que meus comentários se interessem mais pelo empreendimento em si, do que pelo seu objeto próprio. Tampouco pretende ele preconizar qualquer medida adicional de segurança, do ponto de 179

vista brasileiro, em vista da extensão da tragédia enorme que considero terem representado essas revelações para o serviço diplomático dos EUA; estou consciente, entretanto, de que medidas desse tipo serão inevitavelmente tomadas, lá e aqui, pelas autoridades responsáveis. O objetivo primordial deste texto, é o de refletir, na condição profissional de diplomata e enquanto professor, sobre as implicações dos “wikileaks” no planos diplomático e acadêmico, deixando parcialmente de lado sua interface jornalística, alheia a minhas preocupações sobre o tema. Duas observações preliminares se impõem. Não há dúvida de que ocorreram crimes, cometidos por pelo menos um nacional americano, dentro do serviço público, contra a legislação aplicável; haverá um processo – eventualmente cercado das salvaguardas pertinentes; as consequências jurídicas e políticas desse processo afetarão o tratamento futuro das comunicações diplomáticas, sua preservação e sua disponibilização pública (aos historiadores e pesquisadores de maneira geral). Não tenho, por outro lado, comentários quanto à divulgação mesma dessa documentação – sou absolutamente contrário a qualquer controle preventivo da internet por governos ou entidades multilaterais e estou consciente de que apenas ditaduras pretendem fazê-lo, ou já o fazem, efetivamente – mas tampouco junto-me ao coro de apoiadores do aventureiro que se pretende jornalista, por considerar que aqueles que o apoiam, por ingenuidade ou simples ignorância, incorrem em vários equívocos políticos e morais (na verdade, muitos o fazem por antiamericanismo primário e beócio). Se ouso resumir a natureza essencial e antecipar as lições pessoais destes comentários, seriam estas: o “wikileaks” representa um paraíso para os jornalistas, um inferno para os diplomatas (não apenas americanos, cabe esclarecer) e um possível limbo para os futuros historiadores e pesquisadores, que amargarão as consequências das eventuais “delícias” do presente. Grandezas e misérias das revelações, de quaisquer revelações Uma coisa é certa: todos nós, como indivíduos, como famílias e também como funcionários de governos, temos direito à privacidade e à confidencialidade de informações pessoais e institucionais. Obviamente, existem leis que protegem essa condição e estabelecem limites de acesso (sigilo fiscal ou de segurança), independentemente do fato de que governos, todos os governos, se empenham em atos (vários deles ilegais) para penetrar na nossa vida e na confidencialidade de outros governos. Os agentes públicos (mas isso vale entre familiares e para jornalistas também) 180

têm o direito à (e o dever de resguardar a) confidencialidade de comentários internos, assim como o dever moral e profissional de preservar o segredo das fontes, o correto processamento das informações, pois isso é o que está constitucionalmente assegurado nas democracias “normais”. Também sabemos que algum grau de hipocrisia ou de quebra de sigilo é, de certa forma, admitido, informalmente ou no âmbito governamental, quanto ao tratamento dessas informações, tanto no plano jornalístico como no das investigações policiais ou judiciais (aspectos muito pouco regulados nas democracias “anormais” ou totalmente desrespeitados nos regimes autoritários). Não cabe, aliás, nenhuma dúvida de que a preservação da confidencialidade de certas informações é essencial a uma correta tomada de decisões, por governos, por empresas ou por simples indivíduos, que de outra forma seriam prejudicados pela exposição pública de dados sensíveis, de segredos tecnológicos ou de comentários pessoais e familiares que os emissores, processadores e “manipuladores” dessas informações têm o dever de resguardar. Sem isso, as relações humanas e também as inter-estatais seriam muito mais conflituosas. Quando essas regras, as salvaguardas e os contrapesos falham, decisões podem se tornar deficientes e suscetíveis de provocar maior grau de tensão, o que não é objetivo de ninguém, de nenhuma família, nem de qualquer Estado (salvo aqueles personagens e governos que “vivem e sobrevivem” nos conflitos por eles mesmos provocados). O “tesouro” dos jornalistas, com algumas limitações Voyeurs e mesmo simples cidadãos ficam satisfeitos quando leem na imprensa a exposição pública de atos moralmente condenáveis, ilegais ou corruptos de figuras públicas; essas revelações correspondem, presumivelmente, ao interesse público, um “direito dos cidadãos”, enquanto pagadores de impostos. Tabloides ingleses se especializam em fofocas da família real ou de membros do governo; é um nicho explorado em muitos países, em alguns deles com seguimentos judiciais. Nas democracias plenas, a liberdade de imprensa é quase absoluta, com algumas salvaguardas institucionais ou códigos voluntários de ética que limitam a exposição. Assim deve ser: internet e imprensa devem ser absolutamente livres, cabendo aos editores de jornais e outros responsáveis de comunicações se guiar por princípios, valores e normas éticas que os auxiliem a decidir sobre o que publicar e o que resguardar, no terreno privado e no campo dos poderes públicos. Os grandes jornais 181

americanos adotam o seguinte procedimento: primeiro consideram o assim chamado “interesse nacional”, depois o interesse do cidadão, e bem depois, o do governo... Nesse sentido, os “wikileaks” diplomáticos representaram uma mina riquíssima de trouvailles e informações úteis sobre questões que já faziam objeto das investigações dos jornalistas, mas careciam de “fontes autorizadas”: elas agora existem, e em abundância, havendo, em diversos casos, maior ou menor grau de responsabilidade dos editores quanto à exposição de pessoas e dados muito sensíveis ou potencialmente prejudiciais nos planos da segurança nacional ou individual. Os donos de jornais e seus editores parecem ter observado uma atitude bem mais responsável do que a do “divulgador” dos documentos, resguardando dados sensíveis e informações privadas, mesmo se circulando na esfera dos governos, ou mesmo de algumas grandes empresas interagindo com eles (sobre segredos tecnológicos ou de natureza financeira, por exemplo). Não se poderia pedir transparência nesses casos, pois os danos seriam muito maiores do que os benefícios esperados ou supostos. Não se sabe bem como foram negociados os termos do acesso aos documentos “capturados” pelo Wikileaks e sua cessão para publicação pelos grandes jornais internacionais selecionados pelo seu coordenador, mas não cabe nenhuma condenação ou sequer censura moral aos editores desses jornais, pelo simples fato de que eles receberam documentos de “interesse público” e exerceram sua capacidade jornalística em toda a amplidão do conceito. Muitos editores devem ter tomado os cuidados prudenciais que se impunham em face de muitos nomes de “informantes” ou “parceiros” dos diplomatas americanos, ponderando aqui e ali sobre a oportunidade e a conveniência de transcrever os documentos em toda a sua extensão. Alguma contenção deve ter sido exercida em nome da responsabilidade que cada um desses jornais assume em face de sua própria opinião pública. Outra pode ter sido a atitude e o papel dos “transmissores de segunda mão”, que exploram o filão, aprofundando oportunamente indícios interessantes dos documentos originais. Em suma, se o ano de 2010 foi um annus miserabilis para os diplomatas americanos, ele deve ter sido um annus mirabilis para os jornalistas assim “presenteados”. A festa deve continuar em 2011, até onde a vista alcança. Que os jornalistas façam bom proveito e informem de maneira adequada a sua clientela. Uma “tragédia americana” (e para os demais serviços diplomáticos também) As revelações do Wikileaks são certamente desastrosas, e não apenas pelo seu 182

impacto momentâneo, ou seja, pelo desgaste que elas possam causar nas relações bilaterais, nos esquemas regionais de segurança e de estabilidade estratégica, em várias outras áreas da atividade diplomática dos EUA. Elas são potencialmente desastrosas, e isso de uma forma sistêmica ou estrutural, se ouso dizer. A questão principal é esta: dada essa exposição, poucos interlocutores, em qualquer país ou em entidades internacionais, desejarão interagir com os diplomatas americanos (mas o mesmo vale para qualquer diálogo de qualquer outro país, em circunstâncias similares de “intercâmbio informal de opiniões”). O pressuposto – que poderíamos chamar de “síndrome Wikileaks” – é o de que todos, de alguma forma, poderão ser expostos em algum momento de um futuro indeterminado (neste caso foi relativamente breve, o que agrava todo o processo). Em consequência, a diplomacia americana (mas o mesmo vale para qualquer outra), está e estará castrada em sua função essencial, que é a de recolher informações, processá-las, dialogar com reserva com agentes públicos ou pessoas privadas em outros países (amigos ou “inimigos”, não importa muito, mas neste último caso é muito pior, em sua dimensão local); ficará difícil preparar o “pão quotidiano” de todo diplomata, que é o de abastecer seu governo de informações fiáveis, se possível, não disponíveis nos veículos habituais. É óbvio que, nessas circunstâncias, os processos de elaboração de notas e memorandos internos, de todo e qualquer subsídio para a formulação de hipóteses de trabalho e, em última instância, de adotar decisões políticas com base em toda essa massa de informações, públicas e privadas, todos esses processos tornaram-se, repentinamente, expostos e sujeitos, portanto, a revisões de procedimento e de substância que poderão impactar políticas futuras. Pode-se imaginar que as tomadas de decisões pelos órgãos pertinentes dos EUA (assim como, por extensão, de quaisquer outros governos), sobre aspectos importantes de suas políticas internacionais (diplomáticas e militares, em primeiro lugar, mas o mesmo se dá para a política comercial e muitas outras) serão muito mais deficientes daqui para a frente, o que também redunda em perdas para todos, pois muitas vezes se terá de agir por impulso ou com base em informações deficientes. Como resultado involuntário – mas obrigatório – dessas revelações constrangedoras, pode-se esperar a introdução de novas medidas de restrição no processamento e na disseminação interna dessas informações; menos pessoas terão acesso, doravante, a papéis com algum grau de sensibilidade. Se é verdade que, na fase seguinte, menos opiniões serão ouvidas, e menos consultas diversificadas serão feitas, 183

registrando-se menor participação de agentes públicos na tomada de decisões, pode-se prever que ocorrerão deficiências inevitáveis em todo o sistema. Um sistema que é suscetível a falhas decisórias é um sistema menos que perfeito, correndo riscos de julgamentos inadequados e possível surgimento de novos focos de tensão com parceiros e “inimigos” potenciais. Assim como crises econômicas nos EUA afetam todas as demais economias nacionais, uma diplomacia deficiente naquele país pode tornar o mundo mais instável e inseguro. Uma consequência ainda mais terrível é a atitude psicológica de autocontenção, quase uma autocastração, a que se obrigarão, doravante, os diplomatas americanos (e de outros países também), temerosos de serem surpreendidos, mais adiante com a revelação de cândidos julgamentos e apreciações subjetivas ou impressionistas sobre seus personagens obrigatórios – o “ditador” de ocasião, digamos assim, mas também os líderes aliados e quaisquer outros parceiros. Os telegramas confidenciais se tornarão, a partir de agora, muito mais aborrecidos, muito mais burocráticos, bem mais anódinos do que o normalmente esperado nesse tipo de correspondência sigilosa. No limite, a “castração” vai estar tão entranhada, que vai ser difícil distinguir um telegrama analítico de uma mera crônica social. Historiadores: preparai-vos para infinitas banalidades futuras Patético o movimento de historiadores em vários lugares do mundo – entre outros lugares no Brasil – em defesa do coordenador do Wikileaks, como se este fosse um representante da categoria, que estaria sendo cerceado em seu trabalho “legítimo” de pesquisa, investigação intelectual e disseminação de documentos encontrados em arquivos diplomáticos. Invocaram seus defensores “princípios sagrados” como os de transparência, liberdade de expressão, entre muitos outros; denunciaram eles atitudes de governos contrários às revelações como sendo o equivalente de uma nova caça às bruxas, como ação inquisitorial, eivada de predisposições censórias e repressivas, quase equiparando essas iniciativas ao combate ao terrorismo; juntaram-se eles em petições e manifestos de apoio, que revelava apenas a confusão mental reinante nesses meios. Ocorreram inclusive manifestações totalmente esquizofrênicas de dirigentes políticos, cuja falta de lógica se alinhava ao mais vulgar antiamericanismo instintivo, combinando, aliás, com a total inconsistência nos argumentos em favor das revelações, como se estas devessem ser o padrão dos governos “democráticos”, e o sigilo das informações diplomáticas a exceção. Ninguém questionou o fato de que as verdadeiras 184

ditaduras estavam celeremente empenhadas em fazer com que suas próprias populações não tivessem acesso a nenhuma linha dos “wikileaks”, mesmo as que teoricamente impunham mais danos ao “inimigo ideológico”. A fruição momentânea de algumas poucas informações sensíveis – no meio de banalidades já objeto de boatos conhecidos e de centenas de outras “informações” sem qualquer ineditismo, a não pelo lado dos emissores – obscureceu o elemento mais importante a ser considerado pelos historiadores e pesquisadores de relações internacionais como resultado da ação irresponsável do coordenador do Wikileaks: o fato de que os historiadores serão jogados, doravante, numa espécie de limbo informativo que corre o risco de ampliar-se, dependendo do que vem ainda pela frente em matéria de novas revelações. Em troca do “consumo imediato” de documentos confidenciais, eles podem ter uma amputação anunciada de seu acesso a novas e futuras fontes de documentos relevantes para o trabalho de reconstrução histórica. Com efeito, não se trata de uma tragédia apenas para diplomatas (e não apenas americanos, como já referido), mas potencialmente também para os historiadores e pesquisadores. Dependendo de como reagirão os setores de segurança das chancelarias – que não deixarão de se precaver contra novos acidentes desse tipo – os danos podem ser imensos para os mesmos beócios que manifestaram-se entusiasticamente em defesa do coordenador do Wikileaks. Estão saudando, equivocadamente, ao cerceamento substantivo da matéria-prima de seu futuro trabalho. Não que deixe de haver transparência ou agravamento nas condições de pesquisa: mas o “core of the matter” será bem menos interessante... Se a visão pessimista expressa nos parágrafos precedentes tiver alguma possibilidade de se materializar, estejam certos de uma coisa os historiadores que estão saindo agora dos bancos universitários: as próximas safras de documentos diplomáticos podem ser tão magras de informações quanto os comunicados surrealistas de certas ditaduras: um ajuntamento de frases anódinas, no mais puro burocratês, desprovido de qualquer nuance estilística, a síntese perfeita da langue de bois oficialesca com o bullshit hipócrita que frequenta comunicados governamentais. Espero estar errado em meus julgamentos apressados, mas como diplomata, como historiador e como simples cidadão pensante, minha avaliação da sensação de 2010, na interface do jornalismo com a historiografia diplomática, é a mais pessimista possível. Em dez ou quinze anos, espero ler avaliações sensatas sobre este episódio que 185

revelem toda a extensão da tragédia que ele representou para historiadores e diplomatas. Au rendez-vous, donc...

2236. “Wikileaks: verso e reverso”, Porto Alegre, 14 janeiro 2011, 7 p. Comentários sobre as consequências das revelações, para diplomatas e historiadores. Publicado em Mundorama (14.01.2011; link: http://mundorama.net/2011/01/14/wikileaksverso-e-reverso-por-paulo-roberto-de-almeida/); Postado no blog Diplomatizzando (link: http://diplomatizzando.blogspot.com/2011/01/wikileaks-triunfo-etragedia.html). Republicado em Via Política (24.01.2011) e em Dom Total (03.02.2011; link: http://www.domtotal.com/colunas/detalhes.php?artId=1797). Relação de Originais n. 2236. Relação de Publicados n. 1018.

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23. Wikileaks-Brasil: qual o impacto real da revelação dos documentos?

Uma questão inevitavelmente vinculada ao caso Wikileaks, e a liberação dos documentos relativos ao Brasil, seria a de aferir seu impacto efetivo nas relações do Brasil com os Estados Unidos, e vice-versa. Minha impressão pessoal é a de que esse impacto é limitado, tenderá a ser circunscrito a um pequeno círculo de interessados imediatos e deverá se diluir com o passar do tempo. Isso não quer dizer que todo o processo não tenha consequências para as partes envolvidas, para os Estados Unidos de maneira geral, e nas relações bilaterais em particular. Já elaborei e publiquei algumas reflexões a respeito, num momento em que os documentos vinculados ao Brasil – produzidos pela Embaixada americana em Brasília, ou alguns de seus consulados em algumas capitais estaduais – estavam sendo ainda liberados. Remeto os interessados a este texto meu: “Wikileaks: verso e reverso”, Mundorama (14.01.2011; link: http://mundorama.net/2011/01/14/wikileaks-verso-ereverso-por-paulo-roberto-de-almeida/); republicado em Dom Total (03.02.2011; link: http://www.domtotal.com/colunas/detalhes.php?artId=1797). Os comentários e opiniões ali expressos tinham sido feitos num momento em que representantes do meio acadêmico no Brasil expressavam seu regozijo pela divulgação dos documentos e até circulavam listas com assinaturas em apoio ao personagem principal, antes e durante sua captura pelo polícia britânica. Um alto personagem da república (com minúscula neste caso) chegou a oferecer a possibilidade de asilo no Brasil ao “animador” do Wikileaks, Julian Assange, por causa do processo movido na Inglaterra contra ele. 187

Nesta altura, agosto de 2011, todos os documentos relativos ao Brasil já foram, aparentemente, liberados (ver: “Wikileaks: todos os documentos estão no ar”, Publica, Agência de jornalismo investigativo, 15.07.2011; link: http://apublica.org/2011/07/semana-wikileaks-todos-os-documentos-estao-no-ar/). Não tenho a intenção, contudo, de desenvolver neste momento uma análise de conteúdo dos mais importantes, pois seria ainda necessário processá-los tematicamente, separar o joio do trigo – ou seja, o que é de fato relevante em termos de relações bilaterais, dispensando as simples fofocas de ocasião – e recolocar cada um deles no seu contexto próprio, antes de proceder a uma avaliação de sua importância real. Pretendo, tão somente, continuar algumas reflexões sobre seu impacto geral e vinculado ao Brasil, sob a forma de três grandes questões: o que significa o Wikileaks para a diplomacia americana na suas relações com o Brasil, como passaram a proceder as duas partes depois da liberação dos documentos – ou seja, a questão da cautela a ser observada doravante nos contatos e nos diálogos entre as duas diplomacias – e, finalmente, uma avaliação do impacto efetivo da liberação sobre todo o processo diplomático. Como avaliar o impacto do Wikileaks na relação Brasil-EUA? Como para qualquer outro país, a divulgação antecipada – e de forma ilegal e criminosa – de expedientes diplomáticos americanos sobre as relações Brasil-Estados Unidos, que deveriam ter permanecido confidenciais ou secretos durante aproximadamente dez anos além de sua produção, apresenta um impacto nas relações bilaterais, ainda que este aspecto seja o menos importante de todos, no conjunto de “tangos e tragédias” representada pelo fenômeno Wikileaks para a diplomacia americana como um todo, em especial para a condução das relações bilaterais dos EUA e, com impacto acrescido, para o planejamento estratégico – em primeiro lugar de segurança – daquela potência nas suas relações com o mundo todo, inclusive no encaminhamento de temas da agenda americana nos organismos multilaterais, nas suas instituições “imperiais” (tipo OTAN, por exemplo), e sob vários outros aspectos também (impossíveis de serem todos dimensionados e apreciados). Digo “tangos e tragédias”, de modo irônico, mas deliberado, porque o Wikileaks é de fato uma “piada” – no sentido corriqueiro da palavra – e um drama, ao mesmo tempo. Uma “piada” porque a maior parte, senão a quase totalidade do que foi “revelado” não é especialmente novidade, mas elementos de informação que se encontravam disponíveis há muito tempo na mídia de qualidade. A “piada” vem 188

associada a certos comentários jocosos de diplomatas americanos a respeito de seus interlocutores em determinados países, ou suas próprias opiniões a respeito de situações por eles enfrentadas no desempenho funcional normal, e também ao lado “surpreendente” de certos comentários “inocentes” dos interlocutores locais dos diplomatas americanos a respeito de seus governos respectivos. Por exemplo, o fato de que diplomatas americanos considerassem que os negócios familiares de certos ditadores árabes se assemelhavam aos da máfia americana não é propriamente algo surpreendente ou inusitado, para quem conhece o “ambiente de negócios” desses países, e apenas testemunha a favor dos diplomatas americanos em sua capacidade analítica, de não se deixar impressionar pelo luxo e riqueza em que viviam certos “nababos do Oriente”, por saberem bem que esses recursos eram provenientes de roubo organizado, de espoliação de capitalistas nacionais e estrangeiros, de dilapidação do tesouro público, enfim, de comportamentos mafiosos, tout court. Quanto ao lado funcional, não deixa de ser piada ver um cônsul americano reclamar do intenso trabalho de escrutinização dos candidatos a vistos de turismo aos EUA, já que entre as demandas incontáveis se encontrava um pouco de tudo, do bom, do mau e do feio (frase clássica e comentário apropriado para quem se lembra do belíssimo western-spaghetti de Sergio Leone: The Good, the Bad, and the Ugly). Pode ser também uma “piada” – mas também pode ser um “pequeno drama” para as partes envolvidas – saber da opinião de um imponente ministro brasileiro da Defesa – agora justamente dispensado em razão de sua big mouth – a respeito de um colega de ministério, chamando-o de “antiamericano”, o que não chega a ser novidade, para quem conhece o personagem, mas que revela o lado das pequenas hipocrisias que frequentam os meios oficiais. O “antiamericano” calou-se a respeito – talvez deliberadamente, para confirmar, e contentar a esquerda antiamericana, que ele se enquadra feliz e voluntariamente no conceito – e o emissor da opinião apressou-se a desmentir, dizendo ter sido mal interpretado ou não ter dito exatamente aquilo, correção que soa não apenas patética, mas totalmente falsa e mais ainda hipócrita. Ninguém pensava outra coisa do antiamericano em questão, e pode-se pensar que as relações entre ambos não tenha sido afetada minimamente por excesso de sinceridade de uma verdade tão óbvia quanto dispensável de ser confirmada. Mas esse é apenas o lado “piada” de todo este affair. O lado dramático, uma verdadeira tragédia para a diplomacia americana, não pode ser colocado apenas no contexto bilateral, pois ele afeta TODAS as relações 189

bilaterais dos EUA, em todo o mundo, a partir de agora. Os EUA passam a dispor, presumivelmente, de menos interlocutores, em meios oficiais e de oposição, em todas as instâncias das quais participam e em todos os países nos quais trabalham seus diplomatas. Qual é o agente público – ministro ou burocrata de alto coturno – ou o líder político de oposição, e até mesmo da situação, amigo ou “inimigo” dos EUA, que vai querer, a partir do Wikileaks, conversar, reservada e livremente, com o embaixador americano postado localmente, ou com seus diplomatas graduados, presumindo, a partir de agora, que essas conversas em off serão eventualmente reveladas em curto prazo por trânsfugas do Wikileaks (ou qualquer outra forma de apropriação indébita de expedientes oficiais)? Qual é o simples cidadão que vai continuar confiando na segurança das informações detidas pelos EUA, quando um simples soldado raso em um posto obscuro da máquina imperial pode ter acesso a esses expedientes e divulga-los livremente para o mundo inteiro? Esse é o lado da absoluta tragédia para os serviços diplomáticos americanos – de fato para TODO o seu sistema de segurança de informações – que passou a existir depois do Wikileaks e que vai afetar profundamente todas as formas de recolhimento, de processamento de informações, e de tratamento dessas informações para fins de tomada de decisões dessa grande máquina burocrática que é o maior império de todos os tempos. O império está não somente “nu”, como desprovido de meios de acesso a certas informações sensíveis, que são detidas apenas por seus interlocutores em todos os países e organizações internacionais: os EUA estão SEM INTERLOCUTORES, pelo menos dos que detêm, verdadeiramente, informações sensíveis e valiosas. Todos os seus encontros vão se limitar ao “banal costumeiro”, com comentários absolutamente anódinos, e agora terrivelmente aborrecidos, sobre o tempo, o vento, quão bom e correto é o meu governo, como todas as suas decisões são sábias e apropriadas, e coisas do gênero. Em outros termos, os EUA perderam valiosas fonte de informação, no Brasil e em todos os demais países, para o bem e para mal. Esta é uma tragédia que reputo incomensurável. A outra tragédia – mas que também pode ser uma piada, dependendo de como se considere o fato – é que os diplomatas americanos, revelados em suas notas espirituosas, algumas maldosas, outras simplesmente óbvias, sobre seus interlocutores, amigos e “inimigos”, deixarão de fazer esses comentários jocosos, mas verdadeiros e sinceros, outros apenas esclarecedores, sobre seus interlocutores e sobre as informações e “análises” que eles forneceram, em caráter obviamente confidencial, numa conversa 190

reservada e cordial. Qual é o embaixador ou ministro conselheiro que vai agregar, depois de sua transcrição fiel da conversa, sua própria opinião sobre o personagem em questão, sabendo que a mesma pode ser revelada em pouco tempo, o que redundará certamente em sorrisos amarelos, pedidos de desculpa ou “rompimento de relações”? Em outros termos, os telegramas confidenciais dos postos e embaixadas se converterão em aborrecidas transcrições de conversas, sem qualquer elaboração complementar a respeito, ou pelo menos sem o colorido e a verve das opiniões sinceras do “produtor” de telegramas, sem qualquer adição de “verdades verdadeiras” (mas incômodas, a qualquer título), que seu responsável poderia fazer a respeito. Ou seja, a “veia literária” – até histriônica – dos diplomatas americanos se encontra singularmente podada, cortada, eliminada por completa, com o que esses expedientes retornam à sua linguagem burocrática, aborrecida, terrivelmente contida, com todo o “politicamente correto” que é capaz de se expressar no “diplomatês” habitual dessas comunicações (que também contêm algumas doses de “bullshitismo”, é verdade). Enfim, vamos perder grandes vocações dramáticas, até intelectuais, com esse retorno a padrões normais da correspondência diplomática, borings como costumam ser esses expedientes. A tragédia se amplia também para o processo de tomada de decisões nas instâncias apropriadas dos EUA, que agora são obrigadas a tomar novos cuidados quanto ao acesso e disseminação dessas informações. Ou seja, menos pessoas vão estar envolvidas nesses mecanismos e na própria tomada de decisões, o que significa que, com menos informações e menos especialistas participando de todo o processo, o “império” vai errar mais nesse itinerário entre o insumo e sua resposta, e tomará decisões equivocadas ou não apropriadas ao caso. Uma tragédia de dimensões gregas para a máquina de informações e de tomada de decisões que sustenta qualquer império. A última tragédia é a dos historiadores e analistas de arquivos, alguns dos quais ficaram absolutamente – e equivocadamente – maravilhados com essa liberação antecipada de uma massa de documentos “picantes e saborosos” sobre as engrenagens internas do maior império da humanidade – alguns até eufóricos, com a revelação inopinada das “roupas sujas” do império, o que se explica pelo antiamericano habitual em certos meios. Pois é um fato que, dentro de dez anos, os mesmos “garimpeiros de arquivos” vão ficar decepcionados com a ausência súbita de informações relevantes na massa de documentos que serão liberados: todos estarão contidos pela tragédia cômico-dramática do Wikileaks, ou seja, não haverá revelações dignas de notas a serem exploradas (pelo menos durante certo tempo, até que as pessoas esqueçam o que ocorreu e o Wikileaks 191

seja apenas um intervalo incômodo numa história diplomática bem mais ampla e interessante). Em síntese, poucas revelações do Wikileaks podem ou devem ser consideradas apenas no contexto bilateral Brasil-EUA, e mesmo as que se situam no plano estritamente bilateral não são suscetíveis de influir decisivamente no perfil, substância ou direcionamento dessas relações, embora possa haver um curto-circuito temporário nas conversas de bastidores que sustentam, diplomaticamente, essas relações. A nova seletividade dos contatos entre as duas diplomacias Certamente que ministros, altos funcionários do governo, e simples diplomatas passam a ser, depois do Wikileaks, extremamente seletivos e cuidadosos na abordagem de todo e qualquer assunto com seus parceiros ou interlocutores oficiais americanos. Poucos se mostrarão dispostos a falar sinceramente de seus assuntos correntes, e menos ainda serão aqueles dispostos a falar sinceramente sobre os temas de suas agendas respectivas, ou menos fazer comentários jocosos sobre colegas ou conhecidos, sem mencionar que pequenos e grandes segredos, hipócritas ou não, serão deixados convenientemente de lado, pois ninguém está disposto a correr o risco de ver estampadas na imprensa esses comentários picantes ou sinceros sobre os temas da conversa. Somente aflorarão amenidades e banalidades, sobretudo no que se refere às análises e opiniões sobre governos amigos e menos amigos. Como, por exemplo, dizer que tal candidato a caudilho de algum país vizinho é histriônico, patético ou francamente antidemocrático, quando isso pode afetar as relações bilaterais do Brasil – ou mais importantes, negócios de grandes companhias brasileiras – com esse país, oficialmente aliado ou até “parceiro estratégico” do governo em vigor? Todo mundo vai ser amigo, até prova em contrário. É previsível, assim, até esperado, que as relações normalmente “desconfiadas” entre o grande líder hemisférico e global e o grande candidato a líder regional se tornem ainda mais “desconfiadas” a partir de agora, com uma “contenção” acima do normal nos diálogos formais e nas conversas de coquetel entre representantes dos dois lados. Todos vão se olhar desconfiados e o mais previsível que ocorra são variações deste tipo: os brasileiros se recusarão a expressar suas opiniões pessoais, e até certas visões oficiais, sobre os temas na pauta da conversa, temerosos de revelações indevidas, e os americanos redatores de expedientes se conterão em expressar suas opiniões, além e acima da transcrição dessas conversas aborrecidas, deixando de lado, justamente, o lado 192

bom – e talvez até o mau e o feio – desses expedientes, que seria o acréscimos de suas percepções pessoais sobre o tema e os interlocutores em pauta. Desconheço se alguma instrução do gênero “não falem mais nada com esses americanos trapalhões” tenha sido expedida, ou feita em caráter não oficial a todos os interlocutores potenciais dos representantes do império no Brasil, mas suspeito que, sponte sua, os “visados” brasileiros passaram a ser muito mais seletivos nos seus encontros formais e informais, abertos e confidenciais, com esses representantes, e muito mais comedidos na expressão livre de suas opiniões – além e acima da versão oficial, geralmente inútil – sobre os temas das relações bilaterais e assuntos paralelos. Entre os diplomatas a contenção já era de rigor, pois são seres normalmente recatadas, discretos, quase repetitivos – tipo “la voix de son maître”, ou “hora do Brasil” – que se limitam a expressar a versão oficial, mesmo quando não acreditam nela, de qualquer assunto. Os demais interlocutores, da vida “civil”, deixarão de receber com o mesmo encanto os convites do embaixador americano para jantares e recepções, ou, se continuarem a aceitar, vão se tornar aborrecidamente anódinos em seus comentários, lembrando-se, justamente, das desventuras de algum colega flagrado pelo Wikileaks em alguma frase menos politicamente correta, digamos assim. Ou seja, as conversas daqui para a frente vão se tornar aborrecidamente dormitivas, sem as emoções da fase préWikileaks. Wikileaks-Brasil: um impacto negativo, mas limitado O impacto da revelação dos documentos, tanto quanto se possa julgar pelo que já foi liberado, pode ser considerado como diplomaticamente negativo, embora o impacto global, no conjunto do relacionamento, seja limitado, já que algumas comunicações poderiam ter um efeito ainda mais desestabilizador nas relações bilaterais. Isto se deve a que a interface diplomática não abriga nenhum grande assunto muito sensível. O Brasil, com exceção da venda de aviões militares, não possui, a rigor, nenhum grande tema de interesse bilateral que se situe num nível de segurança e de importância estratégica com os EUA que poderia ter sido impactado por alguma revelação mais contundente a partir dessas “fugas Wikileaks”. Todo e qualquer expediente confidencial é concebido para permanecer confidencial durante um tempo adequado, pois o tema representa, supostamente, informações não exatamente sensíveis, mas importantes, ao revelarem percepções e tratamento de determinados assuntos que são melhor 193

conduzidos se o processo que conduz à tomada de decisão não for exposto de modo claro. Esta é uma lógica do tratamento burocrático das informações e decisões em qualquer governo que merece e deve ser respeitada. Todo e qualquer governo é formado por pessoas que possuem diferentes percepções a respeito de um problema qualquer, que é objeto de tratamento oficial e que será formalizado numa decisão qualquer mais adiante, com uma única versão, a oficial, sendo apresentada como homogênea, consensual, etc. Ora, é evidente que o processo que levou a tal decisão é obviamente contraditório, até desgastante, e os interesses da outra parte – no caso, os EUA e sua interface com o Brasil – podem estar sendo contemplados com maior ou menor grau de “aderência”. Ao desvendar os bastidores desse processo, o Wikileaks revela as contradições inerentes a todo e qualquer processo governamental, como opiniões pró e antiamericanas, para simplificar uma questão bem mais complexa. Tomemos, como exemplo, o caso mais importante, justamente, o da venda de aviões militares. Além e acima de aspectos mais nebulosos ou até corriqueiros do assunto – preparação dos relatórios técnicos a respeito dos aviões concorrentes, questões técnicas, de desempenho tático ou operacional, ou, mais importante ainda, transferência de tecnologia e custo total, direto e indireto, de toda a operação –, existem aspectos propriamente políticos – e até “ideológicos” – envolvidos numa operação gigantesca como essa, que podem afetar, decisivamente, todo o curso do negócio. Ora, que o governo brasileiro seja mais ou menos antiamericano, que “ decisores decisivos” sejam mais influenciados pela percepção que eles tenham dos EUA – de sua política “imperial”, de seu papel na região, da “subordinação estratégica” e da “dependência” do Brasil, ou qualquer outro aspecto desse gênero –, tudo isso é relevante, independentemente do mérito próprio das ofertas, de sua qualidade técnica ou de seu custo financeiro estrito senso. O governo americano pode estar se movimentando, além e à margem dos encontros oficiais, para lograr obter vitória na oferta de suas empresas, o que é normal e esperado de qualquer governo que defende o interesse de sua economia – e até de seu planejamento de segurança estratégica – em negócios desse tipo. Os governos francês e sueco – e outros, antes deles – também fazem e devem continuar fazendo exatamente o mesmo, com maior ou menor sucesso, justamente, em função do ativismo de seus diplomatas e representantes oficiais envolvidos no negócio. Nada do que disserem americanos e brasileiros em torno desse assunto pode ser considerado irrelevante ou supérfluo num negócio de tal magnitude; nada do que se 194

puder fazer para “influenciar” os decisores corretos, pró-americanos entenda-se, é indiferente ao sucesso da empreitada e a seu resultado final. Este é apenas um exemplo, entre outros, de temas importantes que podem ser, como talvez já estejam sendo, afetados pelo Wikileaks, com imenso prejuízo para os EUA e seus interlocutores e aliados – e até seus “inimigos” – no Brasil. Outros temas relevantes são os das relações do Brasil com seus vizinhos imediatos, em especial aqueles que possam ser julgados excessivamente “inimigos” dos interesses do império, ou até amigos voluntários do próprio, na medida em que conversas reservadas, interesses ocultos e posicionamentos internos de chancelarias podem afetar, para o bem e para o mal, relações diplomáticas normais ou até a condução de negócios específicos. Enfim, todo e qualquer tema de chancelaria, de governo num sentido amplo, e até negócios privados, da sociedade civil, podem ser beneficiados ou prejudicados por revelações inesperadas, algumas até “bem-vindas”, outras absolutamente prejudiciais para o curso ulterior dos assuntos. Mas estas são observações genéricas, até teóricas, sobre o caso Wikileaks nas relações Brasil-Argentina. Um exame mais detalhado do conteúdo de todas as mensagens reveladas até aqui, sua correta interpretação no contexto das relações bilaterais, e sua inserção no quadro mais amplo dos interesses brasileiros e americanos – cada um de seu lado – em todas as esferas de interesse relevante, até com terceiras partes, poderia trazer um cenário e uma análise mais corretos sobre o papel e a importância real do Wikileaks para essas relações. Como julgamento genérico e superficial do assunto, eu diria que nenhum interesse essencial nesse plano bilateral foi afetado pelas revelações e – desconfortos pessoais não obstante e à parte – as relações não devem ser afetadas significativamente agora e no futuro imediato. Todos os assuntos são corriqueiros e todos os preconceitos e peculiaridades das relações foram revelados, por vezes de modo canhestro e desconfortável, e até confirmados pelo Wikileaks. Não creio que exista qualquer “potencial explosivo” nessas revelações. Concluindo, eu reafirmaria um julgamento anterior já feito sobre todo este assunto: o Wikileaks representa um tesouro para os jornalistas, uma tragédia para a diplomacia americana e algumas “trouvailles” temporariamente interessantes para os historiadores da área, que serão, no entanto, “penalizados” mais adiante, dado que as fontes vão “secar” de modo perceptível. A vida segue adiante, com ou sem Wikileaks... 195

2295. “Wikileaks-Brasil: qual o impacto real da revelação dos documentos?”, Brasília, 11 agosto 2011, 10 p. Novos comentários sobre o sentido das revelações e seu impacto nas relações bilaterais. Publicado em Mundorama (12/08/2011; link: http://mundorama.net/2011/08/12/wikileaks-brasil-qual-o-impacto-real-darevelacao-dos-documentos-por-paulo-roberto-de-almeida/). Relação de Publicados n. 1042bis.

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24. Digressões contrarianistas sobre o desarmamento nuclear

Destaco duas frases, apenas, do discurso da presidente, na reunião de alto nível da ONU sobre Segurança Nuclear, em 22/09/2011: “O desarmamento nuclear é fundamental para a segurança, pilar do Tratado de Não Proliferação cuja observância as potências devem ao mundo”. “É importante ter num horizonte previsível a eliminação completa e irreversível das armas nucleares”. Confirmando minha vocação a ser um contrarianista – posição que assumo voluntariamente, de conformidade com meu espírito desconfiado, feito de ceticismo sadio em relação a quaisquer argumentos que se me apresentem como verdades incontestáveis – formulo aqui algumas dúvidas em relação a estas frases. Por que o desarmamento nuclear seria fundamental para a segurança internacional? Ele é, de fato, o “pilar do Tratado de Não Proliferação”? Respondo de imediato a esta segunda questão por um sonoro NÃO. Não, o desarmamento nuclear não é o, ou sequer um pilar, do TNP, ainda que possa nele aparecer de forma preeminente. Nem de longe, contudo, ele é o que diz que 197

pretende ser, e basta conhecer um pouco da história, das realidades geopolíticas, para chegar à conclusão simplória de que a frase fatídica, sobre o desarmamento dos nuclearmente armados, figura ali apenas como figuração, justamente, para contentar os ingênuos, ou incautos, e impedir que eles protestassem em demasia contra um “tratado iníquo e discriminatório”, como proclamava a diplomacia brasileira nos “bons velhos tempos” (isto é, quando posávamos de “machos”, de contrarianistas, se ouso dizer, contra a hipocrisia dos poderosos, quando a gente acreditava que eles queriam “congelar o poder mundial”, no que aliás continuamos acreditando ainda hoje, nessa interminável repetição de slogans). O pilar do TNP é a não-proliferação, ou seja, barreiras contra o armamentismo nuclear dos ainda não nucleares, ponto. Isso é tudo. Os três grandes – na ausência de dois outros nucleares à época, China e França – arranjaram entre si um instrumento para bloquear o acesso às armas nucleares aos eventualmente desejosos de fazê-lo, prometeram cooperação nuclear para fins pacíficos – o que é feito a conta-gotas, e sob estritas condições – e ofereceram como cenoura o tal de desarmamento nuclear deles próprios. Alguém acredita nisso? Pode ser que sim, talvez o Itamaraty, que vive cobrando essa parte do Tratado desde que a ele aderiu em meados dos anos 1990. Alguém acredita que seria possível colocar o gênio dentro da garrafa outra vez? Que as potências nucleares vão de fato desarmar? Isso é possível? Respondo novamente por um sonoro não. Ninguém consegue “desinventar” uma tecnologia. Ninguém se priva de uma segurança que foi conquistada a duras penas, e que se busca justamente manter exclusiva, única, assimétrica. O TNP é apenas um tratado do desarmamento nuclear dos outros, ponto. Venho agora à pergunta mais importante: Seria verdade que o desarmamento nuclear é fundamental para a segurança internacional?

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Não creio que a presidente tenha formulado ela mesma esse argumento. Ela simplesmente o comprou do Itamaraty, que colocou tal frase no discurso porque isso faz parte da ideologia diplomática, ou das ilusões diplomáticas -- não apenas brasileiras, diga-se de passagem -- nos últimos 50 anos, ou mesmo mais. Alguém já parou para pensar – e nesse processo desmantelou algumas ilusões diplomáticas – de que pode ser exatamente o contrário: que as armas nucleares aumentaram a segurança mundial, e evitaram muitas mortes que de outra forma seriam inevitáveis? Pensem um pouco – enfim, apenas os que desejarem realmente pensar – e perguntem comigo: Se não existissem armas nucleares, o que existiria? Provavelmente as mesmas armas que tínhamos ao final da Segunda Guerra Mundial, um pouco (ou bastante) mais aperfeiçoadas: tanques, canhões, bombardeiros, granadas, minas, mísseis, lança-chamas, fuzis, baionetas, estilingues, etc., etc., etc. Ou seja, nada que pudesse deter um dirigente maluco de deslanchar uma guerra contra um outro país, na medida em que se tratavam de “armas normais”, de tecnologias dominadas e, com exceção de um ou outro componente mais aperfeiçoado (fortalezas voadoras, por exemplo, ou mísseis de longo alcance), tudo poderia ser mobilizado por qualquer país que tivesse uma base industrial medianamente desenvolvida. Afinal de contas, Hitler deslanchou sua guerra em duas frentes com base nesses mesmos meios, ainda que desejasse, rapidamente, dispor de mísseis mais poderosos e que seus cientistas apostassem, furiosamente, no domínio da tecnologia nuclear, já teoricamente disponível em sua época. Sorte nossa que ele não conseguiu, pois imaginem vocês se Hitler tivesse submetido a Grã-Bretanha, neutralizado os EUA, destruído a Rússia de Stálin, e se estabelecido como o grande ditador de todos os tempos, um Gengis Khan moderno, com a colaboração acintosa de tiranetes como Mussolini e os fascistas-militaristas japoneses, no trabalho de escravizar povos inteiros e colocá-los a serviço da Alemanha nazista? Que tal a perspectiva? Alguém iria conseguir um tratado de desarmamento contra Hitler, depois? Se eu disser, por exemplo, que as duas bombas atômicas americanas sobre o Japão, em agosto de 1945, salvaram vidas, em lugar de aumentar o número de mortos, serei provavelmente “massacrado”, literal ou virtualmente, pelas consciências puras do 199

desarmamentismo nuclear. Não me importa: isto é um fato. As bombas nucleares, por mais horríveis que possam ter sido, salvaram milhares de vidas A MAIS do que as que pereceram no “holocausto” de Hiroshima e Nagasaki. Salvaram centenas de milhares de soldados e civis japoneses, nas frentes de combate e nos bombardeios aéreos devastadores sobre Tóquio e outras cidades japoneses, e salvaram dezenas de milhares de soldados americanos, que teriam de lutar na ponta da baioneta contra soldados fanatizados, que tinham jurado dar a vida pelo Imperador. Elas salvaram vidas, ponto! Mas, retornemos à questão principal. Em que sentido o desarmamento nuclear tornaria o mundo mais inseguro, não mais seguro? Ora, isso é evidente pelo próprio fato de que o mundo não deixou de ter guerras depois que as armas nucleares foram inventadas: morreram milhões de pessoas desde 1945, vítimas de minas, de artilharia, de bombardeios aéreos, de napalm, de fuzis, de facões, de fome, ou de quaisquer outros vetores associados às guerras (civis, étnicas, tribais, religiosas, entre Estados, atentados terroristas, etc.). O que o mundo deixou de ter, depois de 1945, foram guerras globais, ao estilo napoleônico, mobilizando exércitos nacionais e populações inteiras contra outros exércitos nacionais e outras populações. Ou se ocorreram, foram limitadas, como na Coreia, no Vietnã, no Oriente Médio, sem a confrontação direta das grandes potências, como tivemos na Europa e no mundo desde o Renascimento até 1945, justamente. Não pretendo elaborar muito a respeito, mas minhas conclusões são tão evidentes, que não creio ser necessário desenvolver meu raciocínio: as armas nucleares trouxeram mais segurança ao mundo, e pouparam vidas, ponto. Algum matemático historiador, ou algum econometrista geopolítico poderia até fazer os cálculos e, com base em estimativas feitas a partir dos grandes conflitos globais desde a era napoleônica até 1945, avaliar quantos teriam sido os mortos – inocentes ou não – que pereceriam, potencialmente, em mais uma ou duas guerras ao estilo da Segunda Guerra Mundial, sem o recursos às armas nucleares, portanto. Não creio, sinceramente, que teríamos ficado a menos de 50 ou 60 milhões de mortos (por baixo, claro). Enfim, nem todo mundo precisa de armas nucleares para exterminar pessoas. Mao Tsé-tung, por exemplo, não utilizou arma nenhuma, apenas uma “economia política esquizofrênica”, para eliminar 25 ou 30 milhões de chineses no “grande salto para a frente”, entre 1959 e 1962. Enfim, ele também foi o responsável por mais 200

algumas dezenas, talvez centenas de milhares, durante a “grande revolução cultural proletária”, entre 1965 e 1975, mas pode-se sempre argumentar que muitos mais morreram nos “gulags” normais de Stalin e do próprio Mao, ao longo de seus experimentos totalitários. Mas imaginemos dirigentes menos responsáveis na posse de armas nucleares em face de confrontos entre grandes Estados? O próprio Mao Tsé-tung, por acaso, dizia não temer as armas nucleares americanas hipoteticamente utilizáveis na guerra da Coreia, demonstrando todo o seu espírito belicoso mais de dez anos antes que a China conquistasse o seu próprio domínio sobre armas nucleares (após o que ela se mostrou mais responsável, mesmo sem ter assinado o TNP, até o início dos anos 1990). Os dirigentes cubanos, igualmente irresponsáveis, estavam dispostos a ir até o fim, no confronto nuclear entre EUA e URSS no caso dos mísseis nucleares soviéticos instalados em Cuba em 1962: Fidel Castro e Ché Guevara estavam dispostos a “testar” armas nucleares contra New York e Washington, mesmo se isso representasse a aniquilação de metade, ou mais, da população cubana (Guevara acreditava que isso representaria o “fim do capitalismo e do imperialismo americano”). Qualquer que seja a perspectiva que se assuma sobre as armas nucleares, portanto, pode-se dizer que elas refrearam, sim, os instintos guerreiros de muitos dirigentes políticos. Pode até ser que alguns militares malucos acreditem que “armas nucleares táticas” sejam armas de terreno, e possam, assim, ser integradas a doutrinas e estratégias militares. Não creio, porém, que estadistas responsáveis acreditem nesse tipo de “doutrina” e estejam dispostos a “testá-la”. Pode-se concluir, então, que as armas nucleares aumentaram, não diminuíram, a segurança no mundo, e parece impossível reverter esse cenário de equilíbrio instável (que aliás, confirma o prognóstico aroniano de 1947: “paz impossível, guerra improvável”). E quanto ao TNP? Não há muito a dizer: continuará a ser aquilo que a diplomacia brasileira diz sobre ele desde 1968: “um tratado iníquo e discriminatório”, ponto. Não há muito que se possa fazer a respeito, no futuro previsível. Resta, finalmente, esta outra afirmação, com estes mesmos conceitos: “É importante ter num horizonte previsível a eliminação completa e irreversível das armas nucleares.” 201

Será? Importante? Talvez. Necessário? Duvidoso. Completa e irreversível? Provavelmente não, nem completa, nem irreversível. Frustrante? Talvez. Realista? Provavelmente. Acho que as coisas ficam mais claras assim.

2320. “Digressões contrarianistas sobre o desarmamento nuclear”, Brasília, 25 setembro 2011, 6 p. Comentários sobre duas frases da presidente Dilma Roussef (na verdade do Itamaraty), sobre desarmamento nuclear, em reunião de alto nível da ONU sobre Segurança Nuclear, em 22/09/2011. Postado no blog Diplomatizzando (http://diplomatizzando.blogspot.com/2011/09/frases-da-semana-1-desarmamentonuclear.html); Mundorama (27/09/2011; ISSN: 2175-2052; link: http://mundorama.net/2011/09/27/digressoes-contrarianistas-sobre-odesarmamento-nuclear-por-paulo-roberto-de-almeida/). Relação de Publicados n. 1053.

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25. Um congresso de Viena para o século 21?

El mundo fue y será una porquería ya lo se. En el quinientos seis y en el dos mil también. (...) Pero que el siglo veinte es un despliegue de maldad insolente, ya no hay quien lo niegue. Tango Cambalache, letra de Enrique Santos Discépolo (1934) Um dos mais famosos tangos da história musical da Argentina foi escrito em plena “década infame”, quando tem início a decadência daquele país, agravada depois pelo peronismo, que aliás liberou a música, antes proibida, por sua letra ser justamente percebida como uma crítica feroz à situação anterior (para a letra completa, de ácido teor, ver o link: http://www.musica.com/letras.asp?letra=974519). Em todo caso, o que Discépolo pensava do século 20, então recém ingressado em sua quarta década, parece aplicar-se igualmente, e talvez até com mais razão, ao século 21, recém entrado em sua segunda década: até aqui, foi um desabrochar de maldades insolentes, ninguém pode negar; em certos países “resulta que es lo mismo, ser derecho que traidor”. Onde foi parar aquela nova ordem mundial, defendida ou prometida por Bush pai, em 1991? 203

Estaríamos, por acaso, necessitados, tanto quanto a Europa do final das guerras napoleônicas, de uma réplica do congresso de Viena, apto a reorganizar, num grande concerto de nações, as bases de uma nova ordem mundial? Seria isso possível? Essa pergunta me veio à mente ao ler o mais recente livro de Henry Kissinger, World Order (New York: Penguin Press, 2014), que não coloca exatamente a questão, mas a engloba numa grande reflexão histórica, que começa, na verdade, pelo reordenamento da paz de Westfália. Esta, como ele indica acertadamente, não foi uma única conferência, mas um complexo processo negociador, com acordos separados em duas diferentes cidades. Todos os estudiosos das relações internacionais e da história diplomática contemporânea sabem que Mister Kissinger estaria em excelente companhia, e ficaria extremamente satisfeito, se pudesse ser tele-transportado numa máquina do tempo para a Viena de 1815, para poder assessorar, ao mesmo tempo, Metternich e Castlereagh. Até mesmo Talleyrand, ministro de Luís XVIII, vindo do Ancien régime aristocrático, convertido em aliado da revolução, ministro do Império, sobrevivente na Restauração e finalmente servidor da monarchie de Juillet, poderia receber seus conselhos de longevo servidor de vários governos, tanto quanto o francês. Talvez seja maldade deste articulista, mas tendo lido a admiração sincera com que Kissinger completou sua tese de doutorado em torno dos dois primeiros estadistas, depois publicada como A World Restored: Metternich, Castlereagh and the Problems of Peace, 1812-22 (1954), dá para imaginar o entusiasmo com o qual ele se movimentaria apressadamente atrás de cada uma das três delegações, para assoprar, aos ouvidos dos seus chefes respectivos, suas sugestões sobre como organizar a melhor balança de poder possível, suscetível de contemplar os interesses das grandes potências daquela época, e apenas os delas. O mesmo sentido profundo da História transparece nesse seu último livro (no sentido cronológico, apenas), intitulado simplesmente World Order, sem qualquer subtítulo. Poucos autores na categoria das ciências humanas ousariam desafiar as normas editoriais americanas e publicar um volume de 400 páginas, com apenas duas palavras no seu título, o que aliás já tinha sido o caso de On China (2011), seu livro sobre o grande contendor do novo jogo geopolítico mundial. Os dois últimos livros, e o primeiro, nos trazem o melhor Kissinger, o pensador, o historiador, mais do que o estrategista do equilíbrio do terror nuclear, o memorialista dos anos de Casa Branca, ou o consultor caríssimo de governos estrangeiros, o homem que ganhou um prêmio Nobel por razões imerecidas, e que provavelmente merece mais distinções acadêmicas por seu trabalho intelectual do que propriamente pelas suas realizações a serviço de governos. 204

Kissinger parece o contrário de um Winston Churchill, que ganhou um prêmio Nobel por seu trabalho como historiador (tarefa que ele desempenhou em seu próprio benefício, obviamente), quando merecia o prêmio por ter salvo a civilização ocidental do assalto horrífico dos bárbaros nazifascistas, e ousado resistir, ao custo de “sangue, suor e lágrimas”, quando muitos recomendavam um pacto com o diabo em pessoa (isto é, Hitler). Kissinger talvez merecesse um prêmio literário por sua obra acadêmica, em especial os três livros citados, e mais Diplomacy (1994), uma vez que ele passou o seu tempo de estrategista tentando justamente fazer pactos com os diabos (Brejnev, Mao), como fazem, por sinal, os estadistas das grandes potências quando a ocasião lhes é dada. Talvez nem o júri do Nobel literário concordasse com esse tipo de galardão, uma vez que mesmo seus livros de caráter histórico estão igualmente contaminados por certa visão do mundo – do tipo “eu sei, eu fiz, eu estava lá” – que tende a impregnar as suas sugestões de uma “boa ordem mundial” como a única possível nas circunstâncias dadas (este é um viés a que nem mesmo Churchill escapou, seja em sua história da Segunda Guerra, ou na sua precedente história dos povos de língua inglesa). O problema com Mister Kissinger é que ele teria gostado de um mundo mais “vienense” do que o que temos atualmente, já que se trata de uma “ordem mundial” que não é propriamente uma ordem, nem é universal, como ele mesmo reconhece no livro homônimo. O mundo parece se estilhaçar, não em novas conflagrações globais, mas em rivalidades hegemônicas, em proxy wars, com vilões proliferadores protegidos por uma ou outra das grandes potências, com desafios vindos de atores não estatais, alguns até se pretendendo califados expansionistas, ou mesmo com bravatas anti-imperialistas de líderes de pacotilha, num estilo parecido ao de certos fascistas do entre-guerras. Tudo isso é real, e já está acontecendo, um pouco em vários cantos do planeta, inclusive numa Europa que já reproduziu, em pleno século 20, uma segunda “guerra de trinta anos”, uma repetição, em larga escala, dos terríveis conflitos que deram a partida, no século 17, à ordem westfaliana que ainda constitui o horizonte insuperável de nossa época, e pela qual tem início, justamente, World Order. Na impossibilidade de se chegar a novos acordos westfalianos – que, de resto, já estão incorporados na Carta da ONU – talvez Kissinger sonhe com novo Congresso de Viena, capaz de estabelecer as bases da nova “ordem mundial” que ele deve intimamente desejar. Talvez ele até se dispusesse a assessorar um ou outro soberano dos novos tempos, com conselhos sempre sensatos sobre como melhor organizar uma balança de poder entre as grandes potências, como fizeram os estadistas de dois séculos atrás. 205

Seria isto possível? Levaria um congresso do mesmo estilo a resultados efetivos e duráveis? Provavelmente não, pois faltaria a tal arranjo fundacional aquilo que existiu em cada reorganização anterior da ordem mundial: uma contestação radical da ordem anterior, com uma alteração fundamental das relações de força entre as grandes potências, e um reordenamento baseado no novo equilíbrio de poder. Westfália veio depois da “guerra de trinta anos”; Viena veio após as guerras napoleônicas; Versalhes e a Liga das Nações sucederam à Grande Guerra; Ialta e Potsdam, em 1945, prepararam São Francisco, que foi quase uma formalidade, depois que certas questões já estavam acertadas em Teerã (1943), em Dumbarton Oaks (1944) e naqueles dois encontros decisivos. Mas não é apenas pela falta de uma grande conflagração global que um novo congresso de Viena – que obviamente não seria em Viena – se revela impossível em nossos dias. O que falta, na verdade, seria uma espécie de entendimento prévio sobre o que discutir e o que se buscar. “Na construção de uma ordem mundial”, diz Kissinger no capítulo final de seu livro, “uma questão chave refere-se inevitavelmente à substância de seus princípios unificadores”, mas, acrescenta ele imediatamente após, “nos quais reside uma distinção fundamental entre as abordagens ocidentais e não ocidentais a essa ordem” (p. 363). A distinção não é obviamente geográfica tão simplesmente, mas fundamentalmente política e de valores. A dificuldade, portanto, não resulta de um simples problema de agenda, ou seja, da falta de uma ordem do dia consensual, uma lista de questões sobre a base das quais discutir um novo arranjo global num formato similar ou equivalente àquele de 1815. Mister Kissinger acredita que a carência de uma ordem mundial para o século 21 pode ser explicada por aspectos, ou dimensões, que diferem da ordem precedente. Primeiro, a natureza do estado, em si – a unidade básica da vida internacional – que tem sido submetida à uma variedade de pressões desagregadoras (seja por falta de uma soberania efetiva, como no caso da UE, seja pela sua contestação por novos “senhores da guerra”), quando não se cai na falta de governança tout court, em estados falidos, ou territórios inteiros sem governo. Depois, uma descoordenação entre as organizações econômicas e políticas internacionais, as primeiras acompanhando o processo de globalização, mas as segundas ainda baseadas no estado-nação. Finalmente, a falta de um mecanismo de consulta e cooperação entre as grandes potências “on the most consequential issues” (p. 370). Aqui já estamos em face de cenas explícitas de kissingerianismo geopolítico: todas as instâncias existentes – CSNU, Otan, Apec, G-7 ou G-8, G-20 – lhe parecem 206

carentes de maior foco, pois os chefes de governo ali presentes estão mais preocupados com o seu público interno, e com o comunicado final, do que com problemas concretos. Pode ser isso, ou também pode ser que o mundo de Viena já não tem mais condições de existir: ele era a expressão de um arranjo westfaliano entre potências europeias, ou seja cristãs, numa época em que a Europa dominava o mundo, o que ela fez durante praticamente cinco séculos, o último junto com os Estados Unidos, mas já contestados pelas novas potências emergentes. A própria Alemanha tinha desafiado as bases da ordem europeia e internacional no arranjo precedente, por ter chegado tarde, bem depois da Prússia, na mesa de negociações e nas conquistas imperiais subsequentes (ainda que ela se tenha talhado alguns pedaços na Ásia e na África). Foi justamente o seu desejo de redistribuir as cartas do jogo que provocou uma nova guerra de trinta anos e a derrocada definitiva da hegemonia europeia sobre os assuntos do mundo. A China provavelmente não tem nenhuma pretensão de ser uma nova Alemanha nas condições do século 21, nem a Rússia tem capacidade para aspirar a tal papel, muito embora ela ainda talvez gostasse de poder determinar o que podem e, sobretudo, o que não podem fazer as antigas satrapias do império soviético. O problema, na verdade, não é só de ordem geopolítica, mas também de valores e de concepções do mundo. Não se pode ser um Metternich – como talvez gostasse Kissinger – se não se tem do outro lado, como interlocutores afinados nesse tipo de jogo, estadistas como Castlereagh ou mesmo Talleyrand. Aparentemente, nem Xi Jin-ping nem Putin se dispõem a amoldar-se em papeis equivalentes aos de Hardenberg ou de Nesselrode, os representantes respectivos da Prússia e da Rússia imperiais em Viena. O que se buscava, na capital do Império dos Habsburgos, era um arranjo europeu, no máximo alcançando a periferia mais próxima, a do Império Otomano e suas dependências balcânicas. Os arranjos que se fizeram com os impérios ibéricos e suas possessões coloniais o foram por causa da herança napoleônica, não porque as grandes potências estivessem tentando traçar um esquema equivalente a Tordesilhas, ou seja, uma primeira divisão do mundo que só seria tentada novamente em Ialta, quase cinco séculos mais tarde. Kissinger talvez gostasse que Estados Unidos e China chegassem a um acordo básico sobre as relações recíprocas, e foi em grande medida em vista desse objetivo que ele escreveu On China, uma obra particularmente compreensiva e leniente para com as lideranças chinesas. Da Guerra Fria política dos tempos de Stalin à nova Guerra Fria econômica dos nossos dias, o mundo mudou perceptivelmente em termos de atores e de interesses nacionais projetados internacionalmente. Viena-1815 nunca foi um encontro 207

filosófico entre potências cristãs interessadas primariamente no bem estar de seus respectivos povos: o que estava em jogo ali era apenas o equilíbrio de poderes para evitar uma nova conflagração global. Westfália se revelou mais durável porque tratou basicamente de procedimentos, não de substância, como ele diz em outra parte do livro. Esse objetivo, hoje em dia, está na prática assegurado pela detenção dos arsenais atômicos, o que restringe a subida aos extremos por parte de qualquer uma das grandes potências nucleares. Mas uma Viena do século 21 não poderia mais eludir os avanços registrados em matéria de direito internacional, de democracia e de direitos humanos. Tais dimensões, aparentemente, só seriam hoje defendidos pelos Estados Unidos, e se dependesse de Mister Kissinger talvez nem isso. Tais critérios certamente não fariam parte da agenda das outras grandes potências. Ah, sim, ainda tem a Europa, se ela é verdadeiramente um membro dessa pequena tribo, na vertente democrática; Kissinger, nos seus velhos tempos de guardião da paz no mundo, se perguntava: “se eu quiser falar com a Europa, eu telefono para quem?” Parece que o problema continua o mesmo. O que dizer, então, das chamadas “potências emergentes”? A julgar pelas tomadas de posição de algumas delas, em suas próprias esferas regionais, talvez não se possa contar tampouco com elas para algum arranjo nouvelle manière, seja no formato Viena 2.0, seja uma reforma do sistema onusiano, esse dinossauro que também ostenta um cérebro totalmente desproporcional em relação ao seu imenso corpo. Em resumo, vamos esquecer essa história de um novo arranjo diplomático para a tal “ordem mundial do século 21”, e nos concentrarmos em tarefas mais prosaicas de administração da governança econômica e da defesa dos direitos humanos e da democracia onde isso for possível. O mundo ainda é bem mais hobbesiano do que grociano, e certos dirigentes atuais estão bem mais para Átila ou Gengis-Khan do que para Locke ou Montesquieu. O progresso pode até ser uma fatalidade, como queria Mário de Andrade, alguns anos antes do milonguero argentino desconfiar de qualquer avanço, mas talvez seja porque a história parece andar a um ritmo similar ao dos carros de bois de antigamente. Quando alguns mais apressadinhos tentaram forçar a passagem em marcha acelerada, não deixaram de ocorrer acidentes de percurso, como descobriu, para sua infelicidade, o último xá da Pérsia. O próprio Kissinger confessa, ao final do seu livro (p. 374), que perdeu sua esperança de juventude de descobrir o “sentido da História”. Provavelmente, ele não existe, pelo menos não no sentido hegeliano-marxista. Quanto ao seu ritmo, talvez caiba se contentar com o de certas partituras: vivace, ma non troppo! Em todo caso, poderíamos repetir com Discépolo: “Todo es igual, nada es mejor…”. 208

Recomendação de leitura: Peter W. Dickson: Kissinger and the Meaning of History (Cambridge University Press, 1978). [Nota: o autor é um acadêmico formado em filosofia que trabalhou para a CIA, o que revela quão eclética é essa agência de inteligência.]

2779. “Um congresso de Viena para o século 21?: Kissinger e o ‘sentido da História’”, Hartford, 23 fevereiro 2015, 5 p. Digressões sobre a ordem mundial do século 21, com referências aos livros de Henry Kissinger, em especial World Order. Revisto em 6/03/2015, 6 p. Publicado sem o subtítulo em Mundorama (8/03/2015; link: http://mundorama.net/2015/03/08/um-congresso-de-viena-para-o-seculo-21-porpaulo-roberto-de-almeida/), republicado em Dom Total (12/03/2015; link: http://domtotal.com/colunas/detalhes.php?artId=4903); divulgado no blog Diplomatizzando (link: http://diplomatizzando.blogspot.com/2015/03/umcongresso-de-viena-para-o-seculo-21.html). e novamente a partir do arquivo de Dom Total (18/03/2015; link: http://diplomatizzando.blogspot.com/2015/03/umcongresso-de-viena-para-o-seculo-21_18.html). Relação de Publicados n. 1166.

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26. As ilusões perdidas do século 21

Les lllusions Perdues é um romance em três partes, de Honoré de Balzac, que inaugura o seu grande painel da comédia humana, desde a França da Restauração até o Segundo Império, passando pelas revoluções de 1830 e de 1848, com os experimentos republicanos pelo meio. Toda a série é feita de dramas humanos e familiares, peripécias e frustrações dos personagens, excessivamente otimistas a princípio, cujos projetos de vida se esboroam ante os choques da realidade. O título talvez sirva também à comédia mundial da atualidade, feita de “estados de alma” talvez tão complicados quanto aqueles que abatiam o ânimo dos personagens balzaquianos. Repassemos o painel. No momento da derrocada do socialismo real, ao iniciar-se a última década do século passado, o então presidente George Bush (pai) chegou a saudar a abertura de uma “nova ordem mundial”, sinalizando a chegada de uma nova era, que se esperava livre dos contratempos da Guerra Fria, talvez mais aberta à cooperação entre os grandes atores da política mundial. A China vinha aprofundando suas reformas de mercado desde os anos 1980, quando Deng Xiao-ping tomou decididamente as rédeas do gigante desmantelado economicamente depois de décadas de maoísmo delirante. Faltava só a conversão do império soviético às regras das economias de mercado e das instituições 210

multilaterais da área: as de Bretton Woods e o Gatt, então solitário na negociação de normas para o comércio em bases não discriminatórias. Salvo acidentes de percurso – como o massacre de Tian An-mein, em 1989, ou a queda de Gorbachev, pouco mais de um ano depois –, o processo parecia realmente se desenvolver conforme as predições do teórico do “fim da História”, não tanto para confirmar o acabamento da própria, quanto para anunciar o esgotamento das alternativas às democracias de mercado, modelo que passou a ser o first best no campo das estruturas econômicas e dos regimes políticos. Os anos Ieltsin à frente da Rússia, logo em seguida ao desaparecimento do império soviético e do desmembramento de suas antigas satrapias da Ásia central e das repúblicas da Europa oriental, prometiam perspectivas otimistas na coordenação de objetivos políticos e econômicos. Tanto assim que a Rússia foi logo admitida no G-7, que passou a se reunir como G-8 – embora o antigo formato continuasse a valer para os temas econômico-financeiros das economias capitalistas avançadas – e em 2001 foi reconhecida pelo mesmo grupo como sendo uma “economia de mercado”, a despeito de não ter conduzido até então nenhuma reforma realmente compatível com os requisitos do Gatt ou as normas da Ocde. Coincidentemente, naquele momento, a China conseguia encerrar quase 15 anos de negociações difíceis com os membros do Gatt, justo a tempo de ser admitida na OMC antes do início da Rodada Doha de negociações comerciais multilaterais; mas ela não conseguiu, quase 15 anos depois, ser reconhecida como uma economia de mercado, embora tenho ido bem mais longe do que a Rússia no processo de reformas econômicas internas. A Rússia só foi admitida na OMC em 2012, mas nunca cumpriu os requerimentos típicos de uma economia de mercado de fato, nem parece preocupada em atender aos padrões normalmente seguidos na Ocde. O que temos, então, um quarto de século depois do final oficial do socialismo real e da integração das duas grandes economias socialistas à divisão internacional do trabalho da terceira onda de globalização capitalista? Grandes frustações tanto no campo econômico, quanto no domínio político, para dizer o mínimo, com alertas constantes no terreno da segurança internacional – na Europa oriental e no Pacífico asiático – e outras tantas decepções na contenção de alguns “estados vilões” – uns proliferadores, outros patrocinadores de terroristas – como também na de novos atores não-estatais que fragilizam ainda mais Estados já literalmente falidos. Os problemas de segurança estão certamente entre as preocupações primordiais dos líderes ocidentais do G-7 (que voltou à sua conformação original, depois da invasão da Crimeia pela Rússia), começando pelo caso da Georgia e culminando pelo da Ucrânia. A nova Guerra Fria 211

comandada por Vladimir Putin se parece muito com os movimentos de Stalin nos territórios de fronteira da Europa central e meridional e segue, grosso modo, as mesmas táticas empregadas pelo ditador: surpresa, decepção, disfarce, desinformação, uso de agentes no terreno dedicados ao controle dos sistemas operacionais do território visado, tudo isso combinado à denegação constante das ações efetivamente conduzidas. No que se refere à China, a grande parceira econômica de meio mundo, o que se tem é uma integração oportunista aos circuitos da globalização capitalista, impulsionada tanto pelas suas milhares de empresas voltadas para o comércio exterior, quanto guiada pelos mandarins da autocracia comunista, que realizam a sua “acumulação primitiva” de novas fontes de poder estratégico para cumprir os eternos objetivos do Império do Meio: nunca mais voltar a ser humilhada por potências estrangeiras, como ocorreu durante dois séculos de decadência imperial e várias décadas de guerra civil republicana e de decadência econômica maoísta. Tanto nos terrenos comercial e cambial, ou de propriedade intelectual e de licenciamento e controle de investimentos estrangeiros, a China conduz uma estratégia de conflitos limitados, ou de atritos administrados, buscando obter vantagens num processo que poderia ser descrito como de uma Guerra Fria econômica. Outros parceiros emergentes das grandes democracias de mercado, ainda que formalmente democráticos, como Índia ou Brasil, tampouco parecem coadunar-se com os objetivos ocidentais de coordenação econômica no sentido de uma maior abertura de mercados e liberalização de investimentos, ou de assunção de novas responsabilidades no controle de focos de instabilidade ou catástrofes humanitárias em diversas regiões do planeta, entre elas a participação mais ativa na luta antiterrorista no plano internacional, em níveis compatíveis com as pretensões a um maior papel no Conselho de Segurança. No terreno estratégico, porém, a Índia parece ter alcançado elevado grau de confiança e coordenação com os EUA, ao adotarem, ambos, uma “visão estratégica conjunta” para a região da Ásia-Pacífico e do Oceano Índico, algo que parece fora de cogitação no caso do Brasil, sob a administração partidária que comanda o poder político desde 2003. O panorama em outras esferas não parece muito gratificante: há um retorno a populismos de direita ou de esquerda em países periféricos ou até formalmente do centro, persistência de crises fiscais ou do baixo crescimento no próprio coração das economias avançadas e desarticulação de fato nas diversas instâncias de coordenação política e econômica. Em alguns países da América Latina, é visível a deterioração do ambiente econômico e político, como é o caso da Venezuela e da Argentina. 212

Em síntese, mesmo muito distantes dos états d’âme das femmes de trente ans dos romances balzaquianos, mas a quase trinta anos desde o pontapé inicial do “fim da história” e do começo da terceira onda da globalização capitalista, todas as nações mais envolvidas nos circuitos econômicos, políticos e de segurança no plano internacional têm, cada uma, seus motivos de frustações com o comportamento dos parceiros e com os resultados de suas próprias ações. São as ilusões perdidas de um século que parecia ter começado tão bem, e que começa a desandar numa série de conflitos menores e outros atritos de baixa intensidade. Como há um século, tudo parecia ir bem, até que...

2762. “As ilusões perdidas do século 21”, Hartford, 2 fevereiro 2015, 3 p. Artigo de comentários sobre a atualidade, destinado aos diversos periódicos aos quais ofereço colaboração voluntária. Publicado no Boletim Mundorama (8/02/2015; link: http://wp.me/p79nz-40a); republicado no Instituto Millenium (12/02/2015; link: http://www.institutomillenium.org.br/artigos/iluses-perdidas-sculo-21/) e em Dom Total (12/02/2015; link: https://domtotal.com/colunas/detalhes.php?artId=4839). Relação de Publicados n. 1161.

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Quinta Parte

Ideias, cultura, livros

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27. A ideia do interesse nacional: onde estamos?

The Idea of National Interest é o título de um livro que o historiador americano Charles Beard publicou em 1934, em plena crise econômica dos Estados Unidos e no início do New Deal, programa de recuperação impulsionado pelo presidente Roosevelt. O livro, porém, não é conjuntural; ele não trata exclusivamente da realidade imediata do país, e sim faz uma reflexão histórica de longo prazo sobre a construção do projeto nacional pela vertente das relações exteriores. O subtítulo do livro é An Analytical Study in American Foreign Policy, e o primeiro capítulo trata dos “pivôs da diplomacia”, analisando, nos demais capítulos, a expansão territorial da nação, o seu crescimento econômico e comercial, ademais do impacto externo dos assuntos internos; o apêndice traz um balanço dos interesses americanos no exterior (capitais e investimentos diretos), embora a edição que consultei, publicada em 1966 por seu filho e por um assistente de pesquisa, procedeu a alguns cortes nas estatísticas da edição original e fez atualizações sobre os dados que Beard havia consolidado até o final dos anos 1920.

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Beard foi o único acadêmico americano a ter exercido a presidência de duas associações profissionais diferentes: a American Historical Association e a American Political Science Association. Ele abre o seu livro citando um discurso do Secretário de Estado Charles Hughes, que trabalhou sob os presidentes Harding e Coolidge na primeira metade dos anos 1920, e que se pronunciou sobre o interesse nacional na política externa nestes termos: “As políticas externas não são elaboradas sobre a base de abstrações. Elas são o resultado de concepções práticas do interesse nacional que emergem a partir de alguns requerimentos imediatos ou de fundamentos essenciais, em perspectiva histórica. Quando mantidas por bastante tempo, essas concepções expressam as esperanças e os temores, os objetivos de segurança e de engrandecimento, que se tornaram dominantes na consciência nacional, transcendendo, assim, divisões partidárias e fazendo com que se atenuem as oposições que poderiam advir de certos grupos” (discurso na Filadélfia, em 30/11/1923). Beard analisa então todas as facetas do interesse nacional americano em sua expressão diplomática e nas relações com o ambiente doméstico, sobretudo em sua dimensão econômica. É bem possível que seus argumentos, e o seu próprio livro, tenham inspirado o célebre cientista político germano-americano Hans Morgenthau – autor do clássico Politics Among Nations, publicado em 1948, o mesmo ano da morte de Charles Beard – a elaborar um outro livro, chamado justamente In Defense of the National Interest (1951), seguido, no ano seguinte, de um artigo sobre o mesmo tema: “What Is the National Interest of the United States?” (The Annals of the American Academy of Political and Social Science, vol. 282, jul. 1952, p. 1-7). Morgenthau também serviu como consultor do Departamento de Estado no começo da Guerra Fria, quando um diplomata, também célebre, George Kennan, dirigia ali a divisão de planejamento político, o Policy Planning Staff, que trabalhou no Plano Marshall e na formulação das principais medidas da então nascente doutrina da contenção. O próprio Kennan, aliás, não cessava de alertar seus chefes quanto às fragilidades que poderiam emergir do ponto de vista do interesse nacional americano a partir da erosão da posição competitiva dos Estados Unidos no mundo e do aprofundamento dos déficits no balanço de pagamentos; ele expressou suas preocupações, entre outros escritos, no livro Realities of American Foreign Policy, publicado em 1954. O livro de Morgenthau sobre o interesse nacional americano foi republicado em 1982, e talvez tenha animado o já então famoso jornalista Irving Kristol a dar início, em 1985, à revista The National Interest (http://nationalinterest.org/), apoiada nos mesmos 218

princípios da escola realista, que está identificada com a expressão política, econômica e militar do poder americano em escala global, mas cujos fundamentos devem sempre ser construídos internamente. Pode ser também que a mesma revista e sua ideia central tenham inspirado o embaixador Rubens Barbosa a lançar, em 2008, a revista Interesse Nacional (http://interessenacional.uol.com.br/), fundada em concepções similares sobre as bases internas da expressão internacional do Brasil. Qual seria, então, o interesse nacional brasileiro, e que tipo de políticas e orientações econômicas melhor serviriam à sua defesa e consolidação? Difícil dizer, já que existem concepções muito diversas do que seja o interesse nacional, como já dizia o próprio Beard em 1934. O editor da revista brasileira se encarrega, aliás, de expressar tal dificuldade em nota de apresentação: “Sendo necessariamente genérica, a noção de interesse nacional não tem uma definição precisa. De um lado, porque, sobre o que seja concreta e especificamente o interesse nacional, haverá sempre visões não coincidentes, apoiadas em valores e/ou interesses diferentes. De outro, porque a definição do interesse nacional requer um juízo informado, mas sempre político e não estritamente técnico, sobre riscos e oportunidades que se apresentam à realização dos valores e interesses de um país em cenários estratégicos de longo prazo. E estes serão, sempre, objeto de incerteza e controvérsia” (ver: http://interessenacional.uol.com.br/index.php/sobre-a-revista/). Mas o editorial acrescenta logo em seguida: “O interesse nacional é, pois, uma construção política”, o que pode ser uma constatação óbvia, mas que não nos ajuda muito na busca por uma definição mais precisa sobre qual seria o interesse nacional brasileiro. Conceda-se, pois, que diferentes grupos políticos, e diferentes agregações de poder, representados pelas forças políticas temporariamente predominantes no sistema de governança, manifestem concepções diversas do chamado interesse nacional, e que eles defendam, portanto, suas orientações particulares, ou setoriais, com base numa legitimidade supostamente construída nas urnas, a cada escrutínio eleitoral. Esta é uma suposição arriscada, e provavelmente falsa, pois os eleitores não possuem, geralmente, no momento do voto, um grau suficiente de informação sobre os programas, ou sobre as consequências de determinadas políticas do ponto de vista de seus interesses imediatos e os de mais longo prazo, e menos ainda do ponto de vista dos interesses da nação. Na impossibilidade de se chegar a uma definição consensual de quais seriam as expressões efetivas do interesse nacional, talvez seja o caso de investigar numa outra direção, ou seja, identificar aquelas políticas e orientações que se opõem, ou que podem contrariar, o interesse nacional. Nesse caso, é melhor trabalhar com exemplos concretos 219

do que com definições abstratas, como afirmava em 1923 o secretário de Estado Charles Hughes, em pronunciamento recuperado pelo historiador Charles Beard uma década depois. E quais seriam, no nosso caso, os exemplos contrários ao interesse nacional que podem ser identificados numa perspectiva mais imediata ou de mais longo prazo, que podem ser prejudiciais ao nosso desenvolvimento e ao “engrandecimento” do país? Mas mesmo para identificar essas ações contrárias, seja no plano interno, seja no âmbito internacional, é preciso ter balizas mínimas sobre o que o país pretende ser como nação e como sociedade. É preciso saber o que se quer, para rejeitar o que não serve a tal fim. O editorial da revista Interesse Nacional nos fornece, mais uma vez, alguns dos parâmetros que podem ser aplicados ao caso: “A democracia e a inserção internacional são parte do interesse nacional brasileiro, aquela como valor, esta como objetivo. Se a democracia é um valor que queremos preservar, e se a inserção internacional é hoje, mais do que nunca, uma condição do desenvolvimento, resta perguntar como se inserir no mundo para fortalecer a democracia e promover o desenvolvimento” (nota editorial de Interesse Nacional, loc. cit.). A pergunta traz, portanto, um começo de resposta. Se concordarmos com essa “plataforma”, democracia e inserção internacional passam a ser as palavras chave do interesse nacional brasileiro. Então, qualquer ação nacional que vise a diminuir as bases da democracia representativa, que constitui a forma atual da governança política no Brasil, seria contrária e prejudicial ao interesse nacional brasileiro; como, por exemplo, um famoso decreto “bolivariano” que pretende instituir a intermediação de “conselhos populares” na definição e aprovação de políticas públicas, quando sabemos que eles constituem uma emanação de tipo bolchevique – e por isso mesmo foram chamados de “sovietes” – do partido gramsciano que tem a clara intenção de se eternizar no poder. No plano externo, o apoio acintoso a regimes pouco democráticos, ou ditatoriais de fato (e de direito), diminui a credibilidade de nossa política externa, ao nos identificar com sistemas políticos já devidamente denunciados em protocolos instituindo “cláusulas democráticas” a que aderimos voluntariamente, e por força de nossa adesão (inclusive constitucional) aos valores da democracia. Da mesma forma, qualquer política ou medida que obstaculize a integração da economia nacional aos circuitos internacionais da interdependência econômica pode ser considerada como contrária ao interesse nacional, na medida em que diminui nossa capacidade de absorção de know-how e de tecnologias de ponta que são essenciais ao processo de desenvolvimento do país. O protecionismo comercial não é apenas estúpido no plano estritamente econômico; ele é também profundamente reacionário, no sentido 220

marxista da expressão, já que pretende “fazer rodar para trás a roda da História”, como dito no Manifesto de 1848. Com efeito, ele representaria uma volta a um regime de autarquia econômica que estava na base da economia hitlerista – bastante admirada por militares brasileiros, naquela época e depois – e seria uma espécie de “stalinismo para os ricos”, um projeto de “capitalismo num só país” que talvez ainda encante alguns arautos da burguesia industrial tupiniquim e seus representantes acadêmicos. Mais ainda, e com especial impacto na imagem e na confiabilidade do país no plano internacional, ao aderir a essas medidas de duvidosa eficácia competitiva – ao contrário, elas diminuem nossa capacidade de competir internacionalmente – o país não apenas deixa de cumprir obrigações contraídas ao abrigo do sistema multilateral de comércio, como também se mostra conivente com sócios do mesmo esquema regional de integração, o Mercosul, que reincidem nas mesmas transgressões, e aqui não só contra os próprios interesses comerciais do Brasil e contra regras do bloco comercial, mas igualmente contrárias às normas do Gatt, de seus protocolos setoriais e de acordos emanados da Rodada Uruguai de negociações comerciais. É, sob todos os aspectos, uma péssima demonstração de inadimplência no tocante ao respeito a princípios do direito internacional e, mais uma vez, de ação contrária ao interesse nacional. Democracia e inserção internacional vêm sendo, assim, afastados de nosso horizonte de realizações históricas, em nome de uma concepção de política interna e de política externa que rompem com consensos nacionais laboriosamente mantidos ao longo de um itinerário diplomático de quase dois séculos de existência efetiva. Esses desvios de conduta – que representam, na verdade, concepções que não transcendem, ao contrário, alimentam as “divisões partidárias”, como a elas se referia o secretário de Estado Charles Hughes – se revelam não apenas em relação à substância mesma das políticas seguidas, mas igualmente no tocante ao próprio instrumento diplomático, ou seja, a ferramenta da política externa, que é o seu serviço exterior. Charles Beard, no capítulo de seu livro dedicado à “interpretation, advancement, and enforcement of national interest”, dizia que “By far the most important means used to advance and enforce national interest is the ‘system’, or institution, of diplomacy” (p. 341). Ele se referia, exatamente, à administração e ao funcionamento das atividades diplomáticas, bem como à “multitude of services performed by diplomatic agents in behalf of the citizens” (p. 347), ou seja, a cobertura que um país é capaz de dar aos seus cidadãos e às empresas nacionais presentes nos mais diversos cantos do mundo. Nesse particular, a ferramenta da política externa brasileira tem custado muito pouco à nação 221

durante a maior parte de sua história: menos de 1% do orçamento da União (que parece ter passado a menos de 0,5% atualmente). Ver essa dotação ainda mais diminuída, em detrimento da boa qualidade, do funcionamento e, sobretudo, da respeitabilidade desse instrumento, é a pior forma de promover o dito interesse nacional. Os bolcheviques costumavam repetir, em seus tempos de hegemonia absoluta, e para justificar os incontáveis crimes cometidos contra os direitos humanos, a conhecida frase que pretende que “não se faz omelete sem quebrar os ovos”, querendo significar que sacrifícios são necessários para obter resultados em algum objetivo qualquer. Pode ser que seja verdade, mas no caso que nos é próximo, nem ovos, nem omelete parecem ter resultado dos sacrifícios impostos ao instrumento diplomático nacional. Não se pode, com efeito, fazer diplomacia, sem um mínimo de gastos com representação: o interesse nacional, nesse caso, vem sendo atingido em sua dignidade pelos seguidos exemplos de inadimplência no cumprimento de suas obrigações, da mesma forma como, no passado, se decretava “moratórias soberanas” sobre os compromissos financeiros externos. A insolvência pode até ter deixado de ser financeira, mas ela passou a ser de ordem moral.

2766. “A ideia do interesse nacional”, Hartford, 8 fevereiro 2015, 5 p. Artigo baseado em livro de Charles Beard, The Idea of National Interest (1934) com comentários a respeito das políticas contrárias ao interesse nacional sendo tomadas no Brasil da atualidade. Publicado no site do Instituto Millenium, com um subtítulo agregado: “onde estamos?” (25/02/2015; link: http://www.institutomillenium.org.br/artigos/ideia-interesse-nacional/), em Mundorama (26/02/2015; link: http://mundorama.net/2015/02/26/a-ideia-dointeresse-nacional-onde-estamos-por-paulo-roberto-de-almeida/) e em Dom Total (26/02/2015; link: http://www.domtotal.com/colunas/detalhes.php?artId=4871). Relação de Publicados n. 1164.

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28. Imperfeições dos mercados ou “perfeições” dos governos

O economista e professor da Universidade de Yale Robert Shiller – prêmio Nobel de Economia (2013) e autor do famoso Irrational Exuberance, já em sua terceira edição – publicou, nas páginas do New York Times (8/02/2015), um artigo sobre “Ansiedade e taxas de juros”, no qual ele argumenta, em determinada passagem, que os mercados não são de fato eficientes, uma vez que tendem a amplificar as reações emocionais das pessoas (ver o original do artigo, “Anxiety and Interest Rates: How Uncertainty Is Weighing on Us”, neste link: http://www.nytimes.com/2015/02/08/upshot/anxiety-and-interest-rates-howuncertainty-is-weighing-onus.html?emc=edit_tnt_20150207&nlid=13125452&tntemail0=y&_r=0&abt=0002&abg =1). A intenção de Shiller não era exatamente a de lançar invectivas contra uma tal de “lógica do mercado”, como fazem certos neófitos, ou de sequer fornecer argumentos aos que se revoltam contra a “ditadura dos mercados”, como também fazem muito frequentemente todos aqueles que não entendem nada de mercados. Ele estava apenas chamando a atenção para a reação exagerada das pessoas em face de determinadas inversões de tendência dos mercados, o que parece absolutamente normal

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Nem os agentes tradicionais de mercado nem os simples cidadãos – que entram e saem dos mercados para conduzir uma operação qualquer – dispõem de todas as informações em volume e na qualidade necessários para tomar suas decisões da melhor forma possível, com total domínio sobre os fatos e amplo conhecimento de causa. Sempre persistem zonas de sombra, quando não áreas inteiras cinzentas, e até territórios obscuros, que induzem esses agentes e os particulares a tomarem decisões erradas, a enveredar por caminhos perigosos, abrindo assim a janela para a formação de bolhas especulativas, ou à simples depreciação de seus ativos, apostando nas ações ou nas moedas “erradas”. Tais fatos, ou movimentos, acontecem, e seria incongruente colocar a culpa nos mercados, que apenas se movimentam sob o impulso de nossas próprias decisões, individuais ou coletivas. Desde quando comecei a aprender um pouco de economia – bem mais nos cadernos especializados dos grandes jornais do que na leitura dos manuais acadêmicos, justamente – sempre desconfiei das alegações sobre as “falhas de mercado”, que figuram em praticamente todos os livros de micro e macro, com alguns exemplos das principais, para, a partir daí, legitimar as medidas corretivas que os governos tomam para tornar os mercados mais “funcionais”. Os próprios dirigentes políticos, quando não seus assessores econômicos, recorrem a essas figuras de estilo – falhas ou imperfeições de mercado –, para implementar medidas que parecem “racionais”, numa primeira abordagem, mas que depois podem causar mais problemas do que soluções. Sinto discordar desse tipo de visão, e provavelmente de 90% dos acadêmicos envolvidos nesse tipo de debate, mas me contraponho frontalmente a esse tipo de alegação. Não é que eu não acredite nas “imperfeições” do mercado, pois minha discordância vai bem mais além: eu não acredito é que existam “imperfeições” de mercado, uma vez que esse é o estado natural de existência e de funcionamento dos mercados. Ora, sendo isso natural, não há porque falar em “imperfeições”, como se estas fosse anomalias passíveis de correção pela ação de algum grupo de sábios, ou videntes, como se o mercado, ou os mercados mais precisamente, pudessem funcionar de outra forma como o fazem, com todos os seus movimentos erráticos, esses altos e baixos, essas ondas de otimismo e os vagalhões de pessimismo que os caracterizam sempre e em qualquer circunstância. Volto a repetir: não existem imperfeições de mercado, existem mercados, simplesmente. Tal tipo de afirmação me parece tão evidente que dispensaria qualquer explicação, mas vamos tornar explícito o que acabo de argumentar implicitamente. 224

O que é o mercado, ou o que são os mercados? Não existe um único mercado, obviamente, mas dezenas, centenas, milhares deles, sempre à disposição de qualquer agente ou um simples trabalhador, sem esquecer os famosos rentistas, que vivem, ao que parece, de especulações nos mercados; todos eles são prontamente atendidos em suas intenções de satisfazer seus desejos ou necessidades, de maneira perfeitamente legal, ou até ilegal e clandestina (para drogas, por exemplo). Os mercados são simples espaços de encontro para trocas bilaterais ou “multilaterais”, e eles existem tanto virtualmente quanto fisicamente, desde que duas ou mais pessoas se disponham a trocar seus ativos por outros, detidos pela outra parte interveniente nesse tipo de “escambo”. Pode ser uma maçã contra uma banana no pátio da escola, ou milhões de dólares numa bolsa qualquer, num agente de câmbio de divisas, ou na compra de bônus governamental de alguma economia emergente. Quaisquer bens ou serviços que sejam objeto de alguma preferência subjetiva quanto ao seu valor são facilmente integrados e integráveis a um mercado qualquer, formal ou informal, de qualquer tipo, dimensão ou “perfeição”. Mercados são perfeitamente ubíquos, mesmo quando invisíveis. O professor Shiller afirma isto em seu artigo: “porque os mercados não são realmente muito eficientes, o efeito desses variados fatores [níveis extremos de juros e preços devido à confluência de múltiplos fatores precipitantes, entre eles a ansiedade] tende a ser amplificado pela realimentação emocional. Por exemplo, quando as pessoas começam a ver taxas e preços mudando, algumas delas decidem agir: elas são atraídas ao mercado quando os preços estão subindo, e frequentemente o deixam quando os preços caem. Nós então [suponho que ele esteja falando dos economistas] ficamos surpresos pela extensão da aparente sobre-reação do mercado aos fatores precipitantes que não pensávamos que estivessem realmente na mente de todo mundo.” Ora, não é preciso ser prêmio Nobel de economia para descobrir que existem fatores precipitantes, ou que as pessoas reagem de tal e tal modo ao ver os preços subindo ou descendo nos mercados de valores. Sinto muito dizer isso, mas a afirmação do professor Shiller não faz nenhum sentido, ou então ela expressa exatamente o comportamento das pessoas nos mercados. Por que estes seriam pouco eficientes, então, quando eles estão atuando exatamente como as pessoas os fizeram se movimentar? Para a alta nos momentos otimistas, quando os preços estão subindo, e para a baixa quando há percepção, ou movimento real, de queda. Não é preciso nenhuma exuberância racional para explicar isso, embora as pessoas se comportem exatamente assim, com toda a irracionalidade que permeia qualquer ação humana em face de incertezas, zonas 225

de sombra ou simples desconhecimento das dinâmicas da vida (sejam elas as forças da natureza, ou as forças igualmente imponderáveis da economia). Tenho para mim que os mercados são perfeitamente eficientes e altamente perfeitos, uma vez que eles reagem exatamente em função de como as pessoas atuam neles, ou seja, investindo ou se retirando, trocando ativos ou permanecendo paradas, e tudo isso é feito de maneira perfeitamente descoordenada, anárquica mesma, como devem ser mercados altamente funcionais. Agora, se você pretende que o mercado funcione de uma determinada maneira, e não possa refletir os movimentos das pessoas, então coloque alguns burocratas de governo para vigiá-lo, para corrigi-lo, para discipliná-lo de algumas “imperfeições” detectadas por esses mesmos burocratas. O mais provável é que eles estejam atuando a mando de “gestores” mais poderosos, que por sua vez decidiram empreender alguma ação corretiva porque alguns agentes de mercado decidiram que ele só poderia se movimentar numa direção, e não em outra: geralmente mantendo o câmbio em determinado patamar, determinadas ações imunes aos resultados efetivos da empresa, mercadorias em certo nível de preços do que a sua oferta mais abundante, ou escassa, o determinaria, pelo livre movimento de produtores e de compradores nesses mercados específicos, etc.; escolha qualquer um dos casos. A legitimação é sempre a mesma: como os mercados não são “eficientes”, os sábios do governo (com seus conselheiros econômicos por trás) resolvem “ajudá-los” impondo certas regras, ou limitando o ingresso de outros participantes. Barreiras ao ingresso de novos competidores é sempre uma maneira “eficiente” de preservar os ganhos dos poucos participantes de algum cartel qualquer, e isso é feito não apenas nos mercados “livres”, mas também em regime de concessões públicas (transportes, por exemplo) ou no comércio exterior (pelas tarifas ou mediante normas técnicas, que se tornam regulações compulsórias, como as nossas famosas tomadas “jabuticabas”). O resultado de tudo isso é que sempre haverá ganhos para alguns – até que o dinheiro do regulador acabe, pelo menos – e perdas para os demais, pelo menos enquanto durar a festa, ou seja, enquanto a dinâmica do mercado não se vingar de seus “corretores” (o que ele sempre acaba fazendo, mais cedo ou mais tarde). O exemplo mais patente dessa realidade é o câmbio: a Venezuela e a Argentina que o digam. O fato singelo é o seguinte: mercados livres, perfeitamente funcionais – ainda que causando perdas para uns e outros –, sempre serão infinitamente mais eficientes do que qualquer comitê de salvação pública econômica, e isto por uma razão muito simples. Os mercados reagem imediatamente à entrada e saída de pessoas – ou de bens 226

e serviços – em seus espaços de intercâmbios, permitindo assim que alguns realizem ganhos, que outros contabilizem suas perdas, e todos procuram se ajustar rapidamente, o que torna o sistema sempre muito eficiente e quase “perfeito”, ao sinalizar pelos preços quais são as expectativas de ganhos (oxalá) ou induzindo à redução das perdas. Quando o comitê de sábios intervêm, ele não pode fazê-lo de maneira dirigida, ou pessoal, mas estabelecendo regras genéricas, digamos assim, contemplando toda uma categoria de transações, e não a movimentação individual dos agentes. Eles ainda precisam fazê-lo por via legislativa ou mediante resoluções administrativas, que sempre são muito lentas a serem implementadas, e mais lentas ainda a serem modificadas. Resulta de tudo isso que medidas governamentais de “correção” dos mercados sempre serão imperfeitas, limitadas, parciais, insuficientes e, no limite, estúpidas, para tratar da diversidade de situações que emerge das interações dinâmicas, racionais ou irracionais, entre pessoas e corporações transacionando nos mercados. Quanto mais livres forem estes últimos, todos buscarão o seu benefício individual – como aliás dizia Adam Smith por meio de sua famosa alegoria da “mão invisível”, que não é uma teoria e sim uma simples constatação de bom senso – e ninguém supostamente será punido pela ineficiência ou imperfeição de qualquer mercado, uma vez que todos permanecem perfeitamente livres para entrar e sair de algum deles quando assim o desejarem. De resto, quaisquer que sejam as eventuais “imperfeições” ou a ineficiência dos mercados, elas sempre serão infinitamente mais benignas, e menos prejudiciais, do que as ações dos governos, que tendem a criar camisas de força nos mercados o que só acaba ou sufocando-os ou produzindo o conhecido fenômeno dos “contraventores de regras”. Pense bem: qual das situações você prefere? Portanto, quando alguém vier lhe falar numa tal de “lógica de mercado”, ou de que é preciso corrigir alguma imperfeição detectada, responda logo: “Tudo bem: o mercado não possui nenhuma lógica, mas ela sempre será superior à de qualquer governo; no mais, não mexa com o meu mercado, está bem assim?”. O mundo seria bem simples sem os arquitetos da vontade alheia e sem todos esses engenheiros sociais tentando tornar a nossa vida mais “simples”...

2767. “Imperfeições dos mercados ou ‘perfeições’ dos governos?: estabeleça quais são as suas preferências”, Hartford, 9 fevereiro 2015, 5 p. Artigo de comentários sobre a atualidade, destinado aos diversos periódicos aos quais ofereço colaboração voluntária. Publicado em Mundorama (10/02/2015; links: 227

http://mundorama.net/2015/02/10/imperfeicoes-dos-mercados-ou-perfeicoes-dosgovernos-estabeleca-quais-sao-as-suas-preferencias-por-paulo-roberto-de-almeida/ e http://wp.me/p79nz-40s). Reproduzido no blog Diplomatizzando (http://diplomatizzando.blogspot.com/2015/02/imperfeicoes-dos-mercados-ouperfeicoes.html); Dom Total (20/03/2015; link: http://www.domtotal.com/colunas/detalhes.php?artId=4930); Instituto Millenium (21/03/2015; link: http://www.institutomillenium.org.br/artigos/imperfeies-dosmercados-ou-perfeies-dos-governos/).Relação de Publicado n. 1163.

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29. Miséria do Capital no século 21 A propósito do livro de Thomas Piketty: Capital in the Twenty-First Century (Cambridge, MA: Belknap Press, 2014, 696 p.)

Economistas são seres simplistas, por definição. Eles costumam basear suas equações sobre a criação de renda e riqueza a partir de três fatores produtivos básicos: trabalho, capital e recursos naturais. Muitos outros economistas já tentaram introduzir nessas equações um outro fator: o capital humano, ou conhecimento. Mas, por diversos motivos, este acréscimo ainda não se tornou de uso comum na ciência econômica. Em todo caso, a riqueza das pessoas costuma ser medida sob diferentes formas: em fluxos de renda, que é aquela derivada do trabalho, e em estoques da riqueza acumulada, que costuma ser chamada de patrimônio, e que por sua vez pode ser imobilizado (imóveis, iates, carros, etc.) ou utilizado para a criação de novas riquezas, sob a forma de ativos líquidos, os quais produzem o que comumente se chama de rendas do capital. A dinâmica populacional – composição, distribuição etária e qualidade da mãode-obra – varia muito de um país a outro, e influencia bastante a criação de renda e de 229

riqueza, cujos fluxos e estoques acompanham as variações e natureza daquela. Ainda que o capital (bastante) e as pessoas (menos) possam viajar pelo mundo, não existe uma autoridade global e uma única fonte de regulação dos fluxos e estoques em posse das pessoas. Os Estados nacionais mantêm jurisdições próprias, com regras diferentes para o tratamento impositivo desses fluxos e estoques, o que dificulta a concepção de um instrumento uniforme e universalmente aplicável de taxação de renda e riqueza. Sobre isso, se sobrepõem diferentes concepções sobre como devem ser tratadas (ou seja, taxadas) as diferentes formas de renda e riqueza. As filosofias em vigor na história do mundo moderno podem ser divididas, grosso modo, entre o liberalismo, que acha que a criação de renda e riqueza deve ficar sob a competência dos indivíduos, com um mínimo de interferência dos Estados nacionais, e o “marxismo” (ou variantes do socialismo), que acha que esses Estados devem regular as rendas do trabalho e as do patrimônio em benefício de todos, transferindo fluxos de renda e seus estoques entre as pessoas, segundo critérios determinados por políticos e burocratas desses Estados. Existem neste mundo êmulos de Marx, em todas as partes, para todos os gostos e para todas as finalidades, alguns deles – pode ser o caso do francês Piketty – até mais espertos do que a maioria dos crentes, aproveitando-se da adesão de muitos na teoria do valor-trabalho para aumentar o seu próprio capital às custas desses muito crentes, que acham que o capital só pode aumentar às custas do trabalho. Essa concepção sobre o valor-trabalho – a única coisa errada aceita por Adam Smith – não leva em conta o chamado capital humano, que os próprios economistas penam a integrar em suas equações. Os êmulos de Marx acham que os Estados devem taxar mais as rendas do capital para distribuir entre os que possuem apenas rendas do trabalho, o que supostamente tornaria o mundo mais igualitário, ou menos desigual. O problema todo é que essa recomendação marxista não deriva de nenhuma análise econômica sobre a criação de renda e riqueza, sendo apenas e tão somente uma recomendação política, baseada numa filosofia do igualitarismo. Essa filosofia orienta os Estados a avançarem sobre o capital, ou seja, sobre o estoque de riqueza das poucas pessoas muito ricas (que por definição são sempre em menor número), para distribuí-la entre os que só dispõem apenas dos fluxos de pagamentos derivados do seu trabalho. Ela tem tido algum sucesso ao redor do mundo, uma vez que as pessoas dependendo do seu trabalho são sempre em maior número, formando a vasta maioria dos votantes nas modernas democracias de mercado. 230

Esse tipo de recomendação aproxima a política econômica do modelo de sociedade recomendada pelos marxistas, que é aquela na qual não existiria renda do capital, e nenhuma riqueza acumulada, na qual todas as rendas do trabalho seriam igualitária e equitativamente divididas pelo Estado. Não é preciso aqui grandes digressões, com base em equações econômicas ou em séries estatísticas históricas de renda e de riqueza, para constatar que esse tipo de sociedade não funcionou, e que os únicos exemplos reais na história – o socialismo de tipo soviético e seus êmulos ao redor do mundo – foram notórios fracassos econômicos na criação de renda e riqueza, só conseguindo se manter à custa de enorme repressão política, que produziu grande infelicidade humana (total falta de liberdade, e até mesmo alguns milhões de mortos). Um modelo mais ameno desse tipo de igualitarismo radical – mas falso, uma vez que os que controlam o Estado se apropriam de uma parte importante das rendas do “valor-trabalho” – é o socialismo moderado dos regimes de tipo socialdemocrata, em vigor em diversas democracias modernas de mercado, basicamente na Europa, com contrafações disso no resto do mundo. Uma consulta às estatísticas correntes mais frequentes relativas à criação de renda e riqueza nas últimas décadas (dados da OCDE, por exemplo) demonstra que o crescimento de todas as formas de renda e riqueza foi maior naqueles países onde foi menor a apropriação de fluxos e estoques de renda e riqueza pelos próprios Estados. Não se trata aqui de opinião ou filosofia política, mas de uma constatação simples, e direta, a partir de uma correlação entre níveis de carga fiscal dos países e suas taxas de crescimento do PIB per capita, independentemente da distribuição social dessas formas de riqueza. Maior taxação, menor crescimento, ponto. Isso nos traz de volta ao “capital do século 21”, proposto por Piketty, que acaba de provar que a desigualdade vem aumentando no mundo, baseada no aumento dos fluxos e estoques de rendimentos obtidos pelo capital, sobre os simples rendimentos do trabalho. Ele também acha que governos devem taxar mais o patrimônio e as rendas dos muito ricos, pois o problema seria a existência de poucas pessoas muito ricas – e que tendem a enriquecer cada vez mais –, não a existência de um imenso contingente de pobres, ou de pessoas moderadamente ricas (classe média). Independentemente dos problemas de agregação de dados e de processamento da informação estatística, o que parece inevitável, dado o amplo espectro de valores e a grande dispersão cronológica com os quais Piketty trabalhou, o que mais parece contestável em sua tese é justamente o argumento de que a riqueza tende a caminhar mais rapidamente do que o crescimento econômico geral das economias de mercado. 231

Tal tese – que, em sua formulação sintética, r > g, tende a assumir ares de grande síntese genial, um pouco ao estilo da famosa equação einsteiniana, E=mc2 – parece contradizer a lógica formal dos processos econômicos e a própria evolução civilizatória das sociedades humanas, cada vez mais educadas e mais sofisticadas intelectualmente, com amplo acesso à educação superior por amplas camadas de indivíduos e grupos. Pode ser que patrimônio e a riqueza de forma geral, passem por processos temporários e parciais de acumulação preferencial e de concentração em certos grupos e indivíduos, em geral vinculados a atividades financeiras e comerciais; mas daí a transformar essa constatação numa nova “lei geral da acumulação capitalista no século 21”, como parece pretender Piketty, vai uma grande distância. Assim como ocorreu com as teses de Marx, ela também vai ser provavelmente desmentida pela evolução das sociedades capitalistas. Piketty prefere empobrecer os ricos a enriquecer os pobres. Pela experiência visual que já tivemos no século 20, esse tipo de empreendimento pode ser mais um desastre econômico e social à espreita, do que propriamente uma forma de criar o verdadeiro capital do século 21, baseado no conhecimento. Distribuir o dinheiro dos ricos entre os pobres vai tornar as sociedades mais ricas? Duvidoso que ocorra, a menos de dirigir todos os recursos para aumentar e melhorar o capital social: conhecimento.

2726. “Miséria do Capital no Século 21”, Hartford, 5 dezembro 2014, 3 p. Revisão reduzida dos comentários sobre o capital no século 21. Enviado a Mauricio David para circulação em formato restrito. Submetido a Mundorama, em 30/01/2015, como início de uma colaboração regular, mensal, com o boletim. Enviado igualmente para Dom Total e Instituto Millenium, em 31/101/2015. Publicado em Mundorama (n. 19, janeiro de 2015; ISSN: 2175-2052; link: http://mundorama.net/2015/01/31/miseriado-capital-no-seculo-21-a-proposito-do-livro-de-thomas-piketty-por-paulo-robertode-almeida/), no site do Instituto Millenium (3/02/2015; link: http://www.institutomillenium.org.br/artigos/misria-capital-sculo-21/) e em Dom Total (5/02/2015, link: https://domtotal.com/colunas/detalhes.php?artId=4823); Preparada versão mais curta para publicação no jornal O Estado de S. Paulo (10/02/2015; link: http://opiniao.estadao.com.br/noticias/geral,miseria-do-capital-noseculo-21-imp-,1632135). Relação de Publicados n. 1160.

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30. Reformando o sistema monetário internacional

Book review: Carol M. Connell: Reforming the World Monetary System: Fritz Machlup and the Bellagio Group (London: Pickering & Chatto, 2013. xii + 272 pp.; ISBN 978-1-84893-360-6; Financial History series n. 21, $99.00; hardcover) This book appears in a Financial History series of the Pickering & Chatto, which has already published as diverse studies in this area as one on Argentina’s parallel currency, another on the federal banking in Brazil, with most of titles being about banking and finance in the North Atlantic world, from the colonial times to the 20th century. Carol Connell is Professor of Finance and Business Management at the School of Business, Brooklyn College, City University of New York, where she is very well rated by her students; and she is now directing a new monograph series on Modern Heterodox Economics, also being published by Pickering & Chatto. Connell prepared this very well researched work benefitting from a fellowship research grant from the Earhart Foundation, a private charitable institution that funds scholarly research; one of its early beneficiaries was Friedrich von Hayek, who wrote The Road to Serfdom (1944). Some scenarios and arguments presented in this book were first made public in academic publications, such as the Journal of Management History and the Journal of the History of Economic Thought, and Connell’s interest in Fritz Machlup career and work arose when she was researching about one of his students, the growth theorist Edith Penrose. Besides the preeminent presence of Machlup, the book also deals with 233

the contributions for the discussion and reform of the international financial and monetary system by luminaries such as Robert Triffin, William Fellner, and Milton Friedman. In the introduction the author states very clearly that her objective was the study of the complex reform process that, from the Sixties up to the Seventies, led to the adoption of a flexible exchange rate – instead of the fixed parity established at the Bretton Woods conference (1944) – and the introduction of the special drawing rights as the main “currency” of the International Monetary Fund (p. 1). Based on archival and published sources, the book follows, in thirteen extensively annotated chapters, the itinerary of the Bellagio Group, established under the leadership of Fritz Machlup, and integrated by 32 non-government academic economists, working in intimate contact with policy makers and IMF officials, between 1963 and 1977. Bellagio Group’s primary documents are everywhere referenced, but there are also 299 secondary sources in the bibliography, among them (besides the four big economists), Charles Kindleberger, Edith Penrose, Fred Bergsten, and John Williamson. Trying perhaps to emphasize the current appeal of her study to contemporary policymakers and researchers, Connell states in her Introduction that there could be in Machlup’s approach something similar to the Group of Twenty Finance Ministers and Central Bank Governors (G20), which is clearly a non performing analogy, essentially because of the independence of views of the former vis-à-vis the narrow interests of today’s governments. Notwithstanding, Bellagio Group worked in close contact and cooperation with the Group of Ten, launched simultaneously within the IMF. The intention of the Treasury Secretary Douglas Dillon was to devise a monetary reform in an already stressed arrangement, in a context when the ten most important countries tried to control and minimize the imbalances of the world economy, the growing liquidity crises, and the volatility in the price of gold (partially circumvented by the introduction of swap facilities and the creation of the General Arrangements to Borrow). After explaining her research questions and original hypothesis, and informing where Machlup’s and Triffin’s papers are located (Hoover and Yale), Connell opens Chapter 1 by describing the crisis of confidence that arouse in early Sixties, leading to the various exercises of academic debates and institutional brain-storming that mobilized the most important economist of that decade. Late in the Fifties, Robert Triffin was already predicting a forthcoming crisis, and calling for a radical reform of the monetary system in his Gold and the Dollar Crisis (1960). Feeling challenged by 234

the convening by Dillon of an IMF Studies Group, within the Group of Ten, and excluding academic economists, Machlup, Triffin and Fellner decided to “embark on their own study, involving economists of widely divergent views and with no problem or proposal considered ‘out of bounds’. Hence the idea for a series of alternative conference was born” (p. 18), and that was the Bellagio Group, which first met at this Italian resort of the Lake of Como. A brief chronology of the monetary system events from 1944 and 1977 and a synthetic table on the various exchange rate policies and regimes (from gold standard to flexible) close this chapter. Chapter 2 introduces the life and thought of Fritz Machlup, who had been working and publishing in the area of monetary reform for many years before the convening of his “child”, the Bellagio Group. Born (1902) in a pre-1914 Europe (Austria) with “ten currencies, all with fixed gold parities and fixed exchange rates”, Machlup soon afterwards (1920) was presented to a continent with “twenty-seven paper currencies, none with a gold parity, none with fixed exchange rates and several of them in various stages of inflation or hyperinflation” (p. 23). From 1923 to 1962 Machlup studied and published extensively on monetary problems, particularly the gold standard, but also dealt with patents, industrial organization, production of knowledge and theory of the firm. His 1923 dissertation on the gold-exchange standard at the University of Vienna was supervised by Ludwig von Mises; a decade later he was already residing in the U.S. and teaching at the University of Buffalo; at that time, “he was already the first economist to frame the discussion of balance of payments problems in terms of payments adjustment, liquidity and confidence” (p. 27). John Williamson, a former student, “attributed Machlup’s belief in the importance of the confidence to the role it had played in the collapse of the gold-exchange standard during the Great Depression” (p. 29). The same would occur thirty years later, with the U.S. involvement with and expenditures for the Vietnam’s War, and European countries distrust of America’s capacity to honor its commitments under Bretton Woods. Machlup anticipated the scenario with his lengthy essay “Plans for Reform of International Monetary System”, first published in 1962 and reissued in 1964, significantly updated (p. 32). Chapter 3 is dedicated to Robert Triffin – a Belgian who worked for the Federal Reserve and the IMF, and professor at Yale from 1951 to 1977 – and to the 1959 Triffin Plan, proposing the replacement of gold and foreign-exchange reserves by goldguaranteed deposit accounts at the IMF, within a more flexible system. But, at that time, as argued by Charles Kindleberger, even if many economists proposed the idea, “few 235

central bankers recommended flexible exchange rates as a means of eliminating … all the problems of adjustment, liquidity and confidence” (p. 42). Even if Triffin’s solution could be first-best economically, it was politically out of question. The head of the Group of Ten at IMF, Otmar Emminger, “found the Triffin Plan unacceptable because nations were not prepared to hand over so much responsibility and financial power to an international body” (p. 42). At that juncture, confidence, not liquidity, was the problem that made Triffin and Machlup to come together intellectually (p. 47). Chapter 4 deals with Budapest born (1905) William Fellner, a fugitive from the Nazis, like the two others; professor at Berkeley in 1939, he worked mainly at the intersection of macro and microeconomics, researching and writing about inflation, regulation, growth and balance of payments problems, including in cooperation with the other two in monetary and exchange questions, both in theory and policy. In 1963, he was dealing with budgetary deficits and their consequences, which led to adjustments efforts, and also to the confidence question. Differently from the planned equilibrium advocated by Triffin, Fellner “recommended instead letting free-market processes perform more of the equilibrating function”(p. 57). In many papers, he proposed a limited exchange-rate flexibility system. In fact, both Machlup and Fellner were committed to freely floating exchange-rates, but were aware of the responsibility of national governments, which led them to explore a myriad of possible solutions. The title of Chapter 5, Why Economists Disagree, takes its name from Machlup’s speech before the American Philosophical Society, in November 1964, five months after the fourth Bellagio Group conference. He explained then his decision to invite 32 economists from eleven countries, most of them from divergent schools of thought, to explore solutions for the problems of the international monetary system of the 1960s. They had to consider hybrid or compromise solutions for the identified problems. This chapter presents each one of the participants, their background and works. The sources of disagreement are very well abridged in a table dealing with the four major policy proposals for reform: semi-automatic gold standard, centralized international reserves, multiple currencies and/or flexible exchange rates (p. 76-78). All proposals were carefully examined at a series of scenario-planning exercises through various Bellagio conferences, allowing the economists to evaluate the “relative impact on payments, liquidity and confidence of the four basic exchange regimes, given any one or combination of them might have been adopted” (p. 80). Chapters 6 and 7 deal, respectively, with the hypothesis of multiple reserve 236

currencies and Milton Friedman’s arguments for fixed versus flexible exchange rates, in a paper he presented in 1953, making the case for a floating regime. This regime, for him, “has the advantage of monetary independence, insulation from real shocks, and a less disruptive adjustment mechanism in the face of nominal rigidities than it is the case with pegged exchange rates” (p. 99). These two chapter are of a more theoretical and historical nature, despite the fact that all questions discussed in them had a very practical impact on each devised solution for the problems plaguing the international monetary system. Chapter 8, Collaboration With the Group of Ten, makes the bridge between the two groups, the IMF technocrats and government officials, for one side, the independent academic economists, for the other. Machlup pressed hard on his team, achieving a detailed report, International Monetary Arrangements: The Problem of Choice, two months before (in June 1964) the Group of Ten and the IMF staff could prepare theirs. He also frankly explained, at the first joint meeting, later that year, the differences between the two approaches. This led to the assignment of Group of Ten chairman, Otmar Emminger, to the Bellagio Group, inaugurating a thirteen-year collaboration. The tasks for the groups were the same, but working methods, and freedom of opinion, made them very different, as well as purposes: Bellagio emphasized disagreements among the proposals, and the nature of their differing impact on the problems dealt with. Friedman, in 1965, criticized the report for not offering one unified solution for the crisis, but Machlup pointed out that a consensus was achieved on the consequences of each solution proposed by his group: governments and the IMF had food for thought. Chapter 9, Adjustment Policies and Special Drawing Rights: Joint Meetings of Officials and Academics, is a continuation of this kind of collaboration, now assuming other forms of joint exercises, as the deputies of the Group of Ten start to met regularly with the Bellagio Group, and did so from 1964 to 1977, resulting in the creation of special reserve assets, later called the Special Drawings Rights (due to the French Finance minister, Valery Giscard D’Estaing, insistence on considering them a credit, not an owned reserve). The three Bellagio main economists were the organizers of those meetings, which assumed a kind of a NGO feature. “From 1970 to 1977, discussions would focus on the increasing liberalization of the international capital market and the wisdom of special drawing rights for developing countries” (p. 128). This period also corresponds to the U.S. going off the gold and to the floating of the Deutsche mark: main questions became managed floating and international liquidity. A Basle meeting in 237

1977 was the last meeting of a Joint Academic and Officials meeting, and the first allocation of SDRs was held in 1970. A new time, no less challenging, had arrived for and within the international monetary system. Chapter 10, From the Bellagio Group to the Bürgenstock Conferences, explores the continuation of the semi-academic discussions under a new format, this time dealing with floating exchange regimes in various guises, but always under the influence, and the intellectual guidance, of Fritz Machlup, who intended to prepare a well conceived book out of the exercise: this came at light in 1970, as a Princeton University Press publication, Approaches to Greater Exchange Rate Flexibility: The Bürgenstock papers. The analysis takes ground on the Austrian background of Machlup’s thought, which also gave light to planning methods based on Delphi scenarios. A first meeting, with a large number of officials, academic people but also representatives from banks and corporations, was held in Long Island, in January 1969, followed by a second meeting in June, in Bürgenstock, Switzerland, where five more meetings were organized. Chapter 11, follows the lead, dealing with de facto successor of the Joint Meeting of Officials and Academics, which was an extended Bellagio Group, the Group of Thirty, which included members from all the current G20 financial group. The Group of Thirty meet twice a year at the beginning of the 1980s, and was broader than the Bellagio Group, including industrialists and private bankers, and preferred not to commission papers from academics, establishing instead an agenda for discussion comprising issues of capital movements and less developing countries assets, international banking supervision, and energy (the issue of the moment). But Fritz Machlup was still on the party, with a minor group of academics. A so-called Bellagio Group met again in 1996, under the leadership of the general manager of the Bank for International Settlements, and has been meeting once a year at the Italian resort, under the intellectual guidance of professor Barry Eichengreen, from Berkeley, and always financed by the BIS. Chapter 12 is dedicated to Reassessing the Bellagio Group’s Impact on International Monetary Reform; Carol Connell affirms that there are “significant parallels between the calls for monetary system reform in the 1960s and those for reform following the financial crisis of 2008-9” (p. 185). This comparison seems off the mark, as the current financial G20 has achieved nothing comparable, besides pressures for the negotiation and implementation of a more stringent set of Basel prudential rules for the banking sector. The outcry about the dollar crisis has been responded by nothing 238

else than the confirmation of its centrality for the current financial and monetary “nonsystem”. Initial rumors – at its monnaie unique début – about the strength of the euro were replaced by recent fears of its demise. Notwithstanding this, Connell presents a clear historical synthesis about the importance of the Bellagio Group for the understanding of the most crucial problems of the international monetary system as devised at Bretton Woods: all of the group members came from G-10 countries, the same as the suppliers of the General Arrangements to Borrow (now expanded, and with the New GAB). At least, the academics convinced the central bankers that floating exchange regimes could work, and that flexible currencies could cushion external shocks; that is not a minor intellectual achievement. And, the same problems they tackled, adjustment, liquidity, and confidence, continue to be at the center of the nightmares of the central bankers and finance officials alike (together with new preoccupations, on the fiscal side, as demography imposes its burdens over all). It seems that liquidity is no more an issue today, as governments create real tsunamis of new financial assets, pushing national debts to new higher peaks. In the bright side, this Chapter 12 finishes with an impressive list of publications of the Princeton Finance Section under Fritz Machlup’s leadership, from 1960 up to 1971, no less than 98 titles authored by many of the most well-known names of the economics trade, and certainly some of Nobel-worth distinction in this profession. Chapter 13, finally, is a beautiful piece of scholarly work: The Impact of the Bellagio Group on International Trade and Finance Scholarship from the 1960s to the Present, which could also be called something like “the sons and daughters of Machlup, Triffin and Fellner” (and now their grandsons and grand-daughters, like Connell herself). She lists some disciples of the mentors: Edith Penrose, Stephen Hymer, Charles Kindleberger, James Tobin, Andrew Crockett, Edwin Truman, and many others. Conclusions, at last, summarizes the lessons drawn from each chapter, before returning to the initial hypothesis. Great Depression and World War II influenced how economists thought about policy, inflation, interest rates, deficits and government intervention. Machlup, Triffin and Fellner were the intellectual masters behind much of the conceptual thinking about the great challenges emerging from a world order devised with some improvisation, and no practical guidance, at the end of the II World War. With some Austrian ingenuity and innovative and creative thinking of their own, they 239

are at the core of the adjustments and arrangements that were made, in the Sixties and the Seventies, for the current, certainly limited and incomplete, international monetary system (or non-system, at discretion). One of her hypothesis, that of the centrality of the Bellagio Group for the reform of the international monetary system, is largely confirmed and deserves proper acknowledgment: they have had a real impact on practical policies, and in the reconfiguration of the multilateral financial organizations. And their influence on scholarship and empirical research over a so large community of academic and applied economists is beyond recognition of traditional prizes and honors.

2705. “Reforming the World Monetary System: book review”, Hartford, 27 outubro 2014, 7 p. Book Review of Carol M. Connell: Reforming the World Monetary System: Fritz Machlup and the Bellagio Group (London: Pickering & Chatto, 2013. xii + 272 pp.; ISBN 978-1-84893-360-6; Financial History series n. 21, $99.00; hardcover). Prepared for Gary Mongiovi ([email protected]), of St. John’s University. Divulgado no Academia.edu (link: https://www.academia.edu/10006775/2705_Reforming_the_World_Monetary_Syst em_book_review_2014_). Publicado em Mundorama (n. 91, 22/03/2015; ISSN: 2175-2052; link: http://mundorama.net/2015/03/22/review-of-reforming-the-worldmonetary-system-of-carol-m-connell-by-paulo-roberto-de-almeida/). Relação de Publicados n. 1164.

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31. As quatro liberdades e um projeto para o Brasil

Como sempre fazemos quando temos tempo e estamos pela região, para compras ou a lazer, Carmen Lícia e eu costumamos frequentar a biblioteca pública de West Hartford, pequena, para os padrões das bibliotecas universitárias, mas enorme, para os padrões das pequenas cidades americanas de interior. Na verdade, ela não é bem de interior, uma vez que está adjacente à capital de Connecticut, Hartford, e é onde mora boa parte da comunidade afluente que trabalha nesta região: belas casas, excelentes restaurantes, supermercados e lojas superiores à média, e esta boa biblioteca, que leva o nome do primeiro dicionarista da língua americana (sim, ele dicionarizou vários coloquialismos do inglês da América) e provavelmente o segundo da língua inglesa: Noah Webster, que é, aliás, o nome de um famoso dicionário, tradicional, mas ainda hoje vibrante e atualizado, nos mais diversos formatos. Não se trata de uma biblioteca de pesquisa ou de estudo, mas daquilo que se pode tranquilamente chamar de biblioteca comunitária, embora muito bem guarnecida dos grandes títulos da literatura americana e universal, e podendo servir também para pesquisas escolares. Eu costumo frequentá-la sobretudo para emprestar os novos livros que acabam de ser lançados, e que ainda custam mais de 30 dólares no formato hard cover, antes que a edição brochura os torne mais acessíveis a orçamentos controlados. Pois foi com essa intenção que lá fomos no último domingo. Saí de lá com dois livros novos (que só podem ser emprestados por 15 dias) e com um antigo, de meio século atrás, mas que me interessava consultar: uma edição da Modern Library contendo as duas grandes obras políticas de Maquiavel, O Príncipe e Os Discursos (assim, não mais, ou seja, Tito Lívio reinterpretado pelo grande pensador florentino). 241

Nada de original neste último livro, a não ser a bela introdução a Maquiavel pelo professor Max Lerner (datada de março de 1940 e de maio de 1950), com alguma bibliografia clássica sobre o grande patriota italiano, inclusive a recomendação, que vou buscar, de ler a introdução ao Príncipe por Lord Acton, feita originalmente para uma edição italiana de 1891, depois incluída no volume editado por John N. Figgis e Reginald V Laurence, The History of Freedom and Other Essays (London: 1907). Para este eu tenho de recorrer à biblioteca da Universidade de Yale, onde aliás tenho de ir para devolver vários outros livros que retirei sobre Bretton Woods. Provavelmente na próxima terça-feira, quando vou para uma palestra sobre a Rússia e Ocidente, por um diplomata do Department of State encarregado do setor. Mas volto aos dois livros novos que retirei, ambos conectados ao meu período atual de pesquisas, a primeira metade do século XX e as relações internacionais do Brasil na primeira república e na era Vargas. Eles são, respectivamente, os seguintes: Harvey J. Kaye: The Fight for the Four Freedoms: What Made FDR and the Greatest Generation Truly Great (New York: Simon & Schuster, 2014, 292 p.). Neill Lochery: Brazil: The Fortunes of War, World War II and the Making of Modern Brazil (New York: Basic Books, 2014, 314 p.) O primeiro livro é um exemplo evidente do chamado pensamento liberal americano, ou seja, um autor socialdemocrata, praticamente de esquerda, em todo caso, um rooseveltiano convencido e um new dealer engajado, se o New Deal ainda estivesse em vigor (mas ele acredita que Obama está nessa linha, embora não tenha feito tanto quanto deveria, contra as corporações e a oposição reacionária). Quando eu li, logo na Introdução, que os Estados Unidos estiveram submetidos, nos trinta anos anteriores, às corporate priorities e ao private greed, eu pensei que o autor estivesse brincando, mas é isso mesmo: ele acha que a grande geração de Roosevelt teve de enfrentar uma powerful conservative, reactionaire opposition, para salvar o país da economic ruin and political oblivion. Deve ter sido isso mesmo, mas eu não estava acostumado com uma história em preto e branco desde algum tempo. Em todo caso, se trata de uma boa história, feita a partir dos papeis deixados por FDR em seus arquivos de Hyde Park, sobre a construção dos Estados Unidos como hoje eles se apresentam ao mundo: não mais isolacionistas, não mais voltados para si mesmos, mas engajados no mundo, e mais igualitários (ou pelo menos deveria ser assim) e mais democráticos. O eixo central é dado obviamente pelas quatro liberdades 242

que Roosevelt moldou logo ao início da guerra europeia, e que ele proclamou em sua mensagem ao Congresso de janeiro de 1941, logo após conquistar o seu terceiro mandato e antes, portanto, que os Estados Unidos fossem atacados e entrassem, finalmente, na guerra (da qual eles já vinham participando pelo apoio irresoluto concedido ao Reino Unido, praticamente sozinho no enfrentamento da máquina de guerra de Hitler). Os quatro grandes conceitos foram expostos com invulgar clareza no seu State of the Union, na tarde do dia 6 de janeiro de 1941, em face de todo o Congresso reunido para ouvi-lo. Roosevelt, que já vinha procurando superar as resistências isolacionistas do Congresso, para converter os EUA no “Arsenal da Democracia”, insistiu na tecla de que seria ilusório tentar esconder-se atrás de grandes muralhas defensivas, daí a necessidade de preparar adequadamente a nação para qualquer eventualidade. Ele então proclamou a sua visão do mundo, os grandes princípios em torno dos quais todos os americanos estariam unidos, não apenas para si mesmos, mas para todo o mundo: “In the future days, which we seek to make secure, we look forward to a world founded upon four essential freedoms. The first is freedom of speech and expression … The second is freedom of every person to worship God in his own way … The third is freedom from want … The fourth is freedom from fear…” E ele acrescentou logo em seguida: “That is no vision of a distant millennium. It is a definite basis for a kind of world attainable in our own time and generation.” (p. 75) Esses princípios seriam inscritos na Carta do Atlântico, que Roosevelt assinou com Winston Churchill, em agosto seguinte, nas costas do Canadá, e foram consagrados depois na carta das nações unidas, no ano seguinte; eles constituíram uma espécie de “New Deal for the world”, como afirmou a historiadora Elizabeth Borgwardt p. 88). O livro dela (citado em nota da p. 239), é este aqui: A New Deal for the World: America’s Vision for Human Rights (Cambridge, MA: Harvard University Press, 2005). O Brasil viria a assinar a carta das nações unidas logo em seguida ao seu engajamento ao lado dos Estados Unidos no esforço de guerra, no seguimento do ataque japonês a Pearl Harbor e da declaração de guerra pela Alemanha, o que determinou o rompimento de relações diplomáticas do Brasil com as potências do Eixo, uma decisão que leva sobretudo a marca de Oswaldo Aranha. Vargas e o seu chanceler de 1938 até 1944 estão justamente no centro do segundo livro aqui registrado, pelo historiador britânico Neill Lochery, professor de Mediterranean and Middle Eastern Studies do College University of London, já autor de um livro sobre a neutralidade de Portugal na 243

Segunda Guerra Mundial, mais especificamente sobre o papel de Lisboa, enquanto centro de intrigas, espionagem e negociações durante todo o decorrer da guerra. A Introdução do livro já começa destacando o famoso documento-guia que Oswaldo Aranha preparou para as conversas de Vargas com Roosevelt, no encontro que ambos tiveram no Rio Grande do Norte, em janeiro de 1943, uma lista de objetivos de guerra que o Brasil declarava aos EUA, mas que também podem ser vistos como uma espécie de planejamento estratégico feito pelo grande chanceler para assegurar uma posição de realce para o Brasil na ordem internacional que estaria sendo desenhada pouco mais à frente para assegurar a paz e reconstruir o mundo. Seu caráter de lista de demandas não esconde a visão grandiosa que Oswaldo Aranha mantinha quanto ao papel do Brasil naquele mundo em efervescência. Vale a pena citá-las, uma por uma, e verificar, hoje, onde estamos, ou como ficamos, em relação a cada um dos pontos. O autor cita a partir do artigo de Frank D. McCann, um conhecido historiador brasilianista do exército brasileiro e da aliança militar dos anos de guerra: “Brazil and World War II: The Forgotten Ally. What Did You Do in the War, Zé Carioca?”, Estudios Interdisciplinarios de América Latina y el Caribe 6, n. 2 (Tel Aviv University, JulyDecember 1995, 35-70; mas o link citado à p. 309 deve ser substituído por este aqui: http://www1.tau.ac.il/eial/index.php?option=com_content&task=view&id=741&Itemid =283). Antes de reproduzir a lista, vale retomar os argumentos iniciais de Aranha. Oswaldo Aranha acreditava, pragmaticamente, que a política tradicional do Brasil, de apoiar os Estados Unidos no mundo, em troca do seu apoio na América do Sul, deveria ser mantida “até a vitória das armas americanas na guerra e até a vitória e a consolidação dos ideais americanos na paz.” Os Estados Unidos iriam liderar o mundo quando a paz fosse restaurada e seria um grave erro se o Brasil não estivesse do seu lado. Ambas nações eram “cósmicas e universais”, com características continentais e globais. Ele tinha plena consciência de que o Brasil era uma “nação economicamente e militarmente fraca”, mas o seu crescimento natural, ou as migrações do pós-guerra, lhe dariam o capital e a população que o fariam tornar-se, “inevitavelmente um dos grandes poderes políticos do mundo”. A sua lista combinava objetivos imediatos e de mais longo prazo, como reproduzida no artigo de McCann e no livro de Lochery (p. xv): 1) 2) 3) 4) 244

a better position in world politics; consolidation of its superiority in South America; a more secure and intimate cooperation with the United States; greater influence over Portugal and its possessions;

5) 6) 7) 8) 9)

development of maritime power; development of air power; development of heavy industries; creation of war industries; creation of industries -agricultural, extractive, and light mineral- complementary to those of the United States and essential for world reconstruction; 10) expansion of Brazil's railways and highways for economic and strategic purposes; 11) exploration for essential combustible fuels. Observando-se a lista de Oswaldo Aranha, com os olhos de 2014, o que poderia ser dito dos seus objetivos de guerra, do ponto de vista do atingimento de cada um deles em tempos de paz e nos setenta anos decorridos desde a sua redação? Registro aqui que os argumentos dos próximos parágrafos são meus, e não constam do livro de Lochery. Uma melhor posição na política mundial? Um objetivo certamente avançado depois da democratização e da estabilização macroeconômica, esta última iniciada sob Fernando Henrique Cardoso no governo Itamar Franco, e consolidada nos dois governos FHC, o que foi plenamente aproveitado pelo governo Lula para desenvolver uma diplomacia ativa, beneficiado ainda pelo enorme impulso dado pela demanda chinesa por produtos brasileiros de exportação para acumular alguma riqueza e projetar influência na região e no mundo. Não é seguro que essa posição tenha sido consolidada com a visível retração registrada no período recente, mas também por iniciativas pouco avisadas ou altamente controversas, ainda sob Lula e mantidas por sua sucessora, com alianças dúbias com regimes pouco recomendáveis, e uma retração formidável na defesa da democracia e dos direitos humanos nos planos regional e mundial. Talvez se consiga, novamente, num futuro indefinido, uma “melhor posição na política mundial”, mas isso vai depender, seriamente, de uma melhoria na qualidade da política externa, hoje dominada por companheiros viciados numa visão do mundo anacrônica e distorcida quanto aos reais interesses do Brasil. Uma consolidação da “superioridade” brasileira na América do Sul? Tratase bem mais de uma ilusão do que de um objetivo, mas ele deve ser visto numa outra perspectiva, que era a de Oswaldo Aranha, em face de uma Argentina superior nos planos econômico e militar, e que tinha, sim, uma vocação de afirmar sua influência no entorno imediato e nas relações com as grandes potências, a Grã-Bretanha e os próprios Estados Unidos. A Argentina era o “inimigo principal” em qualquer cálculo que os militares brasileiros pudessem fazem no plano estratégico e no contexto tático, e os maiores recursos de segurança e defesa, não necessariamente ofensivos, estavam dispostos ao longo das fronteiras meridionais. Apenas por isso Aranha colocou esse 245

objetivo em segundo lugar, e não necessariamente para impor uma liderança imperial do Brasil na região; a superioridade deveria ser vista aqui apenas como uma agregação suficiente de forças para tornar o país “inatacável” por qualquer vizinho, a começar pelo mais “íntimo inimigo”. Essa situação está agora completamente superada, mas só os ingênuos e os amadores em diplomacia – entre eles vários companheiros, mas também alguns homens de negócios – falam em liderança brasileira na região; para o Itamaraty, esse tema é tabu, embora haja a percepção de que a consolidação de um espaço econômico integrado, baseado em abertura de mercados e intensa cooperação em projetos de integração física, seriam suficientes, junto com a afirmação plena dos valores da democracia e dos direitos humanos, para assegurar essa liderança, que seria natural, e não imposta. Mas, parece que estamos recuando em todas essas frentes, para maior tristeza dos diplomatas profissionais e dos liberais econômicos (que são poucos, mas ainda existem em nosso país). Uma cooperação mais íntima e mais segura com os Estados Unidos? Difícil dizer em quais termos, pois impérios universais não mantém relações de igual para igual nem mesmo com seus mais “íntimos” aliados. O Brasil sempre manteve desconfiança em relação ao gigante do norte, mesmo nos anos de aliança não escrita dos tempos do Barão, e naqueles de aliança militar no imediato pós-guerra, o que só fez crescer nos anos seguintes, com os desejos dos militares – e de vários diplomatas – de uma rápida nuclearização do Brasil, em face dos esforços americanos de contenção da proliferação nessa área (e não apenas como cálculo estratégico, e sim também em função de uma visão do mundo menos belicoso, digamos assim). Essa cooperação sempre foi difícil e não parece que tenha se tornado mais plausível no período recente, muito pelo contrário (já que o antiamericanismo dos companheiros salta aos olhos de qualquer neófito). Este não pode ser um objetivo em si, mas é uma possibilidade, dentro de certas condições e circunstâncias, que provavelmente vão exigir maior grau de capacitação brasileira para ser colocado novamente na agenda bilateral; mas, paradoxalmente, parece que o Brasil só vai se capacitar mais rapidamente por meio de uma “cooperação mais íntima e mais segura com os Estados Unidos”, o que pode parecer bizarro a mais de um título. O quarto objetivo, com respeito a Portugal e suas “possessões”, mudou de caráter, mas essa influência é certamente maior hoje do que foi no passado colonial, e tende a se tornar ainda mais relevante, inclusive em direção de Portugal, embora o lento crescimento e a perda de competitividade dos últimos anos tenham diminuído o ímpeto brasileiro na “reconquista” da antiga metrópole. 246

Os objetivos 5 a 11, são todos eles instrumentais, alinhados numa época em que o Brasil era um país economicamente atrasado, em todas as áreas, e se esperava que os Estados Unidos financiassem, e fornecessem a tecnologia, para nossa capacitação em todas elas. Aos trancos e barrancos fomos avançando nas décadas seguintes, tanto com os fluxos de investimentos estrangeiros e de financiamento externo, quanto com a cooperação bilateral nas áreas científicas e tecnológicas, um processo que continua sem cessar, tanto na vertente pública, quanto nas diversas interfaces privadas. Em alguns ramos industriais, e certamente em quase todo o setor agrícola, o Brasil se tornou um país avançado, até mesmo um “killer”, em matéria de competitividade agrícola, e isso tem tanto a ver com a cooperação externa (basicamente americana), quanto com a construção de uma base própria de capital humano e científico. Não se pode dizer que tenhamos nos tornado uma formidável potência militar, mas o que existe garante um mínimo de dissuasão, quando não de projeção externa em dimensões limitadas. Para se ter mais nessa área, seria preciso convencer a sociedade a aceitar mais gastos militares, ou com segurança, de modo geral, o que não parece compatível com necessidades bem mais prementes em várias áreas sociais. Aliás, o Brasil não é mais forte militarmente não porque invista pouco nessa área, mas porque seus recursos humanos são deficientes de maneira geral, na inovação tecnológica em especial. Trata-se de um resultado de políticas erradas na área educacional, que não têm nada a ver com debilidades próprias do establishment militar. Bem, mas o livro de Neill Lochery, Brazil: The Fortunes of War, não trata dessas questões senão em sua introdução e conclusões, pois o essencial do livro está dedicado ao envolvimento do Brasil na guerra, o que é feito de maneira minuciosa e competente. No conjunto, os dois livros constituem leitura muito agradável e, nos dois casos, altamente instrutiva quanto aos dois temas foco de cada um Kaye é bem mais ideológico, no seu rooseveltismo radical, do que Lochery, um inglês equilibrado e bastante objetivo em suas considerações analíticas sobre o Brasil. Seu livro me confirmou a impressão, que já tenho desde longos anos, de que o Brasil perdeu uma enorme oportunidade ao não ter tido uma personalidade como Oswaldo Aranha na liderança efetiva do país, em algumas das chances em que a história poderia ter aberto uma janela para ele: em 1934, em 1937, em 1945, em 1950, ou mesmo em 1955; em todas elas ele poderia, hipoteticamente, estar à frente de uma coalizão liberal para fazer do Brasil um país muito diferente do que foi, sob a condução de políticos populistas, de líderes militares muito próximos do corporatismo de corte fascista, ou de incompetentes 247

manifestos, como podem ter sido Dutra, Goulart ou mesmo alguns outros em fases subsequentes. Oswaldo Aranha foi muito obsequioso com seu chefe e amigo, mas poderia ter continuado a ser a “estrela da revolução”, que foi na coalizão liberal de 1930, e que depois se perdeu no labirinto do varguismo maquiavélico. Foi uma pena para o país, uma pena para todos nós.

2713. “Dois livros: as Quatro Liberdades e um Projeto para o Brasil”, Hartford, 7 novembro 2014, 7 p. Notas sobre os livros de Harvey J. Kaye: The Fight for the Four Freedoms, e de Neill Lochery: Brazil: The Fortunes of War, retirados da biblioteca pública de West Hartford. Publicado em Mundorama (Boletim n. 87, 9/11/2014; ISSN: 2175-2052; link: http://mundorama.net/2014/11/09/as-quatroliberdades-e-um-projeto-para-o-brasil-leitura-de-dois-livros-recentes-por-pauloroberto-de-almeida/). Postado no blog Diplomatizzando (link: http://diplomatizzando.blogspot.com/2014/11/dois-livros-as-quatro-liberdadesde.html), no Academia.edu (link: https://www.academia.edu/10006757/2713_Dois_livros_as_Quatro_Liberdades_e_ um_Projeto_para_o_Brasil_2014_) e disseminado no Facebook. Relação de Publicados n. 1151.

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32. Algumas recomendações de leituras

Sergio Florencio: Os Mexicanos (São Paulo: Contexto, 2014, 240 p.) Você sabia que os mexicanos têm uma lista dos mais amados (Benito Juarez e Pancho Villa, entre eles), mas também dos mais odiados (Cortez, obviamente, e também Porfírio Díaz) personagens da sua história? Sabia que somos parecidos com eles? Este livro, por quem foi embaixador no México, apresenta uma história diferente do país que é apresentado como competidor do Brasil; de fato é, mas não como esperado: buscam os dois a prosperidade, a partir de bases sociais e comportamentos econômicos similares. Uma análise exemplar, feita do ponto de vista de um brasileiro que é fino observador das qualidades e idiossincrasias de um povo dotado de uma rica história de realizações, mas também de frustrações. Os desafios parecem semelhantes; serão também as soluções? Descubra um México diferente num livro em que o Brasil está presente.

Paulo Estivallet de Mesquita: A Organização Mundial do Comércio (Brasília: Funag, 2013, 105 p.) Parece difícil resumir em menos de 100 pequenas páginas a teoria do comércio internacional, a evolução prática do próprio, o estabelecimento do sistema multilateral de comércio, desde o Gatt e seus caminhos tortuosos, até chegar na OMC e todos os seus acordos e funcionamento. Uma proeza realizada por este engenheiro agrônomo que 249

se fez diplomata, e que aplica o rigor da sua ciência de origem à análise dos problemas das relações econômicas internacionais, com ênfase no comércio e nos seus conflitos. O sistema parece uma bicicleta: é preciso avançar, pois qualquer parada pode significar retrocesso, não estabilidade. A interrupção da Rodada Doha, o recuo no protecionismo em alguns grandes países (alguns até próximos) são desafios graves, mas os acordos de livre comércio não são a resposta ideal. Só faltou a bibliografia para uma obra perfeita.

Lauro Escorel: Introdução ao Pensamento Político de Maquiavel (3a. ed.; Rio de Janeiro: Ouro Sobre Azul, FGV, 2014, 344 p.) Escrito em 1956, publicado pela primeira vez em 1958, novamente em 1979, este clássico da maquiavelística brasileira é agora apresentado por um acadêmico e complementado por uma conferência de 1980 do autor, que se tornou “maquiavélico” ao servir na capital italiana em meados dos anos 1950. Para Escorel, “as observações de Maquiavel sobre a política externa dos Estados continuam a apresentar... uma extraordinária atualidade”. O florentino foi o primeiro grande teórico da política do poder. Mas no plano interno também, Escorel segue Maquiavel em que a política é um “regime de precário equilíbrio entre as forças do bem e as forças do mal, em que estas muitas vezes superam aquelas...”. Os dois colocam o “problema cruciante das relações da política com a moral”, que está no centro da obra do italiano.

Paulo Roberto de Almeida: Nunca Antes na Diplomacia...: a política externa brasileira em tempos não convencionais (Curitiba: Appris, 2014, 289 p.) Tudo o que você sempre quis saber sobre a diplomacia companheira e nunca teve a quem perguntar? Agora talvez já tenha, sobre quase tudo. Em todo caso, figura aqui uma avaliação do que representaram, para a política externa, os anos do lulopetismo, com a independência de um acadêmico que também integra a diplomacia. Existem episódios que ainda vão requerer pesquisa em arquivos para saber como foram exatamente decididos, e provavelmente lacunas subsistirão, tendo em vista justamente as características especiais de uma diplomacia que não partiu essencialmente de sua casa de origem, mas andou combinada a outros estímulos, não arquivados. Parece que ela foi ativa, altiva e soberana, como nunca antes tinha acontecido. Outros traços emergirão num futuro balanço, ainda sem data. A História a absolverá? A ver...

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Rogério de Souza Farias: A palavra do Brasil no sistema multilateral de comércio (1946-1994) (Brasília: Funag, 2013, 885 p.) Uma coletânea, de alta qualidade, dos mais importantes pronunciamentos feitos por representantes brasileiros desde as negociações que precederam a constituição do Gatt (1946-47), passando pela Unctad (1964), até a criação da OMC (1994). O livro representa um repositório de grande relevância para todos os pesquisadores da história econômica brasileira, uma vez que compila documentos originais e outros materiais de referência (fotos, resumos biográficos dos negociadores brasileiros, etc.), mas constitui, igualmente, um instrumento de trabalho para os negociadores diplomáticos de nossos tempos. O livro vem acompanhado por informações e fotos dos representantes e de notas de rodapé explicativas de cada contexto negociador. O denso prefácio e a longa introdução merecem leitura atenta; os temas abordados em cada capítulo constituem matéria prima indispensável para conhecer a história econômica e diplomática brasileira no plano do comércio internacional. Parece que pouco mudou...

Eugênio Vargas Garcia: Conselho de Segurança das Nações Unidas (Brasília: FUNAG, 2013, 133 p.) Tudo o que você sempre quis saber a respeito do CSNU e nunca teve a quem perguntar, ou onde ler. Agora já tem: neste pequeno grande livro de um historiador diplomata que já escreveu sobre o itinerário frustrado do Brasil na Liga das Nações e sobre as tentativas novamente frustradas para ser admitido no inner sanctum da sua sucessora. Mais que isso: a obra refaz não apenas a trajetória histórica desse órgão central da ONU, como percorre a geopolítica de sua atuação e funcionamento político (com algumas tinturas jurídicas), sempre focado nas reais alavancas de poder, isto é, o monopólio dos cinco membros permanentes (mas a China só ingressou em 1971). Uma síntese bem sucedida, uma bibliografia atualizada e uma reflexão sobre as realidades do poder atual, que reflete a posição brasileira em importantes questões da agenda da ONU e do seu desejado CS.

Carlos Márcio B. Cozendey: Instituições de Bretton Woods (Brasília: FUNAG, 2013, 181 p.) Cada linha da obra está impregnada de um triplo conhecimento: histórico, teórico e prático, sobre as origens, o desenvolvimento, nas décadas seguintes, e sobre o funcionamento atual dos dois irmãos de Bretton Woods, o Banco e o Fundo, que foram 251

criados em 1944 na pequena cidade do New Hampshire para presidir à ordem econômica do pós-guerra. O autor é o secretário de Assuntos Internacionais da Fazenda, e como tal segue, no G20 e em outras instâncias, as negociações para a reforma do sistema monetário, que já passou por fases melhores do que a atual. Depois das paridades cambiais estáveis, o regime de flutuação não ajuda a manter a estabilidade mundial, mas o maior perigo advém dos desequilíbrios fiscais nacionais, um tema que todavia foge do escopo deste livro.

Harvey J. Kaye: The Fight for the Four Freedoms: What Made FDR and the Greatest Generation Truly Great (New York: Simon & Schuster, 2014, 292 p.). O livro foi feito a partir dos papeis deixados por Franklin Delano Roosevelt em seus arquivos de Hyde Park: o eixo central é dado pelas quatro liberdades que Roosevelt proclamou no State of the Union de janeiro de 1941, logo após conquistar o seu terceiro mandato, antes, portanto, que os Estados Unidos fossem atacados e entrassem na guerra. Roosevelt, que já vinha procurando superar as resistências isolacionistas do Congresso, para converter os EUA no “Arsenal da Democracia”, insistiu na tecla de que seria ilusório tentar esconder-se atrás de muralhas defensivas. Os quatro grandes conceitos, em torno dos quais os americanos deveria estar unidos, não apenas para si mesmos, mas para todo o mundo, foram os seguintes: liberdade de expressão, de religião, da penúria e do medo. Esses princípios seriam inscritos na Carta do Atlântico, que Roosevelt assinou com Winston Churchill, em agosto de 1941, nas costas do Canadá, e foram consagrados no ano seguinte na Carta das Nações Unidas, uma espécie de “New Deal for the world”, que seria a base da Carta da ONU, assinada em San Francisco, em 1944.

Neill Lochery: Brazil: The Fortunes of War, World War II and the Making of Modern Brazil (New York: Basic Books, 2014, 314 p.) O autor é um historiador britânico, professor de Mediterranean and Middle Eastern Studies do College University of London, e seu livro está dedicado ao envolvimento do Brasil na guerra, o que é feito de maneira minuciosa e competente. A introdução da obra já começa destacando o famoso documento-guia que Oswaldo Aranha preparou para as conversas de Vargas com Roosevelt, no encontro que ambos tiveram no Rio Grande do Norte, em janeiro de 1943, uma lista de objetivos de guerra que o Brasil declarava aos EUA, mas que também podem ser vistos como uma espécie de planejamento estratégico feito pelo grande chanceler para assegurar uma posição de realce para o Brasil na ordem 252

internacional que estaria sendo desenhada pouco mais à frente para assegurar a paz e reconstruir o mundo. Oswaldo Aranha acreditava, pragmaticamente, que a política tradicional do Brasil, de apoiar os Estados Unidos no mundo, em troca do seu apoio na América do Sul, deveria ser mantida “até a vitória das armas americanas na guerra e até a vitória e a consolidação dos ideais americanos na paz.” Os Estados Unidos iriam liderar o mundo quando a paz fosse restaurada e seria um grave erro se o Brasil não estivesse do seu lado. Ambas nações eram “cósmicas e universais”, com características continentais e globais. Ele tinha plena consciência de que o Brasil era uma “nação economicamente e militarmente fraca”, mas o seu crescimento natural, ou as migrações do pós-guerra, lhe dariam o capital e a população que o fariam tornar-se, “inevitavelmente um dos grandes poderes políticos do mundo”. Pena que Oswaldo Aranha não se tornou presidente do Brasil.

Henry Kissinger: World Order (New York: Penguin Press, 2014, 433 p.) Trata-se, provavelmente, do último livro, de tipo conceitual, de um dos mais destacados intelectuais americanos (de origem germânica), acadêmico de longa carreira, que também se destacou em atividades executivas, primeiro como conselheiro de segurança nacional, depois como Secretário de Estado, ator de primeiro plano das relações exteriores dos Estados Unidos e das próprias relações internacionais, consultor de quase todos os presidentes americanos desde os anos 1950 e de alguns governos estrangeiros também. Frustrante para os leitores de nossa região, o livro não devota nem mesmo um capítulo, sequer uma mísera seção, à América Latina ou ao Brasil, nas dez grandes unidades da obra, todas elas dedicadas aos grandes atores ou aos problemas percebidos como relevantes para o estabelecimento ou a preservação de uma ordem que de fato não existe. Após uma introdução de tratamento conceitual da questão título, ele dedica dois capítulos à ordem europeia surgida com a paz de Westfália e o sistema de balanço de poder daí resultante, um ao mundo islâmico e às desordens do Oriente Próximo, outro voltado exclusivamente para as relações entre os Estados Unidos e o Irã, dois outros sobre a Ásia (sua multiplicidade e a emergência de uma ordem “asiática”), dois capítulos inteiros sobre a diplomacia dos Estados Unidos (a ideia de uma ordem internacional na tradição wilsoniana e o seu papel atual como “superpotência ambivalente”) e, finalmente, dois capítulos finais voltados para questões tecnológicas e de informação e de proliferação, e sobre a evolução provável de uma ordem mundial 253

ainda largamente indefinida. Para ser mais preciso, a América Latina não aparece sequer no índice remissivo do livro, embora nele exista a entrada western hemisphere. O Brasil só é mencionado duas vezes, ambas en passant e de maneira irrelevante: a primeira para falar sobre o impacto mundial das revoluções europeias de 1848, a segunda na companhia da Índia (que recebe tratamento mais amplo nos capítulos asiáticos da obra) como exemplo de nações emergentes. Fora isso, um grande livro.

Francis Fukuyama: The Origins of Political Order: From Prehuman Times to the French Revolution (New York: Farrar, Straus and Giroux, 2011, 620 p.) e Political Order and Political Decay: From the Industrial Revolution to the Globalization of Democracy (New York: Farrar, Straus and Giroux, 2014, 660 p.) Dois volumes que resumem o pensamento de um dos mais influentes cientistas políticos dos EUA, que retoma o trabalho seminal que tinha sido conduzido por um de seus mestres, o finado autor do “conflito de civilizações” (não um de seus melhores livros), Samuel Huntington, em seu clássico Political Order in Changing Societies (New Haven: Yale University Press, 1968), que tinha sido traduzido no Brasil por Heitor Ferreira Lima, um dos assessores do “guru” do regime militar no Brasil, Golbery do Couto e Silva em seus esforços de distensão e de transição política para uma ordem pós-autoritária durante a presidência Geisel. Os dois livros valem por um tratado de política, mas que praticamente confirmam um tese pré-concebida: o “fim da história”, se existir, se parece muito com o modelo político americano, que é a culminação das possibilidades democráticas nas sociedades liberais e avançadas de mercado. Mas o próprio Fukuyama reconhece que a democracia americana está sendo gradualmente conduzida a impasses institucionais pela rigidez do sistema bipartidário polarizado atualmente existente. 2732. “Algumas recomendações de leituras: lista seletiva”, Hartford, 16 dezembro 2014, 6 p. Fichas rápidas de alguns livros, para publicação no site do Instituto Millenium; publicado em Mundorama (n. 88, dezembro de 2014; ISSN: 21752052; link para o boletim: http://mundorama.net/2014/12/31/boletim-mundoramano-88-dezembro2014/; link para o artigo: link para o artigo: http://mundorama.net/2014/12/18/algumas-recomendacoes-de-leituras-listaseletiva-por-paulo-roberto-de-almeida/). Reproduzido no blog Diplomatizzando (link: http://diplomatizzando.blogspot.com/2014/12/recomendacoes-de-leituraspara-curiosos.html) e divulgado no Facebook. Relação de Publicados n. 1154.

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33. Estratégia diplomática: relendo Sun Tzu para fins menos belicosos

Os argumentos constantes do presente ensaio analítico se inserem num conjunto de trabalhos – já feitos ou em preparação – que podem ser enfeixados na categoria dos “clássicos revisitados”, entre os quais um Manifesto Comunista adaptado a estes tempos de globalização,13 e um Moderno Príncipe,14 que pretende aproveitar os conceitos do florentino para a política atual. Da mesma forma, pode-se reler Sun Tzu e aproveitar os ensinamentos contido na Arte da Guerra15 para uma reflexão de caráter conceitual sobre a estratégia diplomática – referida simplesmente como ED – no contexto das relações internacionais contemporâneas. A esse título, não se trata de refazer, obviamente, uma “arte da guerra para diplomatas”, e sim tão somente de tecer considerações sobre uma (e não a) estratégia diplomática, com base nos argumentos basicamente filosóficos – e,

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Ver Paulo Roberto de Almeida, Velhos e novos manifestos: o socialismo na era da globalização (São Paulo: Juarez Oliveira, 1999). 14 Cf. Paulo Roberto de Almeida, O Moderno Príncipe: Maquiavel revisitado (Brasília: Senado Federal, 2010). 15 O clássico de Sun Tzu pode ser encontrado facilmente na internet, numa infinidade de edições eletrônicas, em várias línguas e nas mais diferentes traduções e adaptações para o Português, voltadas tanto para o contexto militar quanto para o mundo dos negócios.

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claro, muitas regras práticas – presumivelmente redigidos pelo conhecido mestre chinês, legitimamente considerado o “pai da estratégia” (no seu caso, militar). Da diplomacia como um instrumento do Estado A diplomacia é de vital importância para o Estado. Talvez não tão crucial quanto a defesa do Estado por suas forças armadas, pois destas depende a própria sobrevivência física do Estado. Este pode, teoricamente sobreviver sem manter intensas relações internacionais, ou sem exercer uma diplomacia ativa. Mas ele dificilmente teria vida longa, ou conseguiria preservar seus interesses vitais, sem uma capacitação adequada em matéria de instrumentos defensivos (que são, igualmente, mecanismos ofensivos, credíveis, tanto para a dissuasão quanto para o ataque). A diplomacia é, todavia, crescentemente relevante não apenas para a defesa dos interesses fundamentais de um Estado, mas sobretudo para se alcançar os objetivos nacionais relevantes de uma nação no contexto contemporâneo, partindo do pressuposto que a sociedade humana e a comunidade das nações se afastam, cada vez mais, do direito da força para aderir à força do direito. O mundo contemporâneo abandonou, progressivamente, os esquemas restritos dos arranjos interimperiais – embora a última instância da política internacional permaneça com as grandes potências – para adentrar no multilateralismo dos esquemas de segurança coletiva consolidados nos instrumentos onusianos. Da diplomacia depende – paralelamente ao exercício potencial do poder militar – a preservação de um ambiente de paz e de estabilidade, tanto quanto de cooperação nos planos bilateral, regional ou multilateral a que aspira todo Estado que privilegia a solução de controvérsias pela via das negociações. Esta é uma condição essencial, hoje indispensável, para o crescimento econômico sustentado, os avanços tecnológicos, o progresso social, a preservação do meio ambiente, enfim, para a prosperidade comum. Adaptando nossa releitura de Sun Tzu ao contexto diplomático, poderíamos dizer que a arte da diplomacia implica cinco fatores principais, que devem ser objeto de nossa contínua reflexão, com vistas a aperfeiçoá-los e incorporá-los cada vez mais às nossas práticas de servidores do Estado no campo da política externa. Estes cinco fatores são: a doutrina, a interação entre a conjuntura e a estrutura, os condicionantes econômicos e geopolíticos da ação diplomática, o comando e a disciplina. A partir desses cinco fatores é possível elaborar uma “estratégia diplomática”, que será objeto da segunda seção deste ensaio introdutório. 256

A doutrina tem a ver com a concepção mesma da diplomacia, a sua razão de ser. Ela diz respeito aos princípios inspiradores da diplomacia, aos valores que fundamentam a sua ação, às diretrizes que guiam essa ação na prática. Ela também se refere a uma noção clara dos interesses nacionais e aos instrumentos indispensáveis à implementação dos objetivos fundamentais do Estado, cujo pressuposto básico é, obviamente, o ato de dispor de uma doutrina básica para sua atuação diplomática – sem esquecer uma estratégia militar -- no cenário internacional. A interação entre a conjuntura e a estrutura pode ser vista como o equivalente funcional daquilo que Sun Tzu chamava de tempo. Essa interação supõe a combinação da sincronia e da diacronia – ou seja, o momento presente e a flecha do tempo –, que constituem os dois vetores de atuação diplomática ao longo de um determinado período. Toda diplomacia lida com o aqui e o agora, mas ela o faz tendo em vista as consequências futuras das ações adotadas na presente conjuntura e levando em consideração a herança recebida do passado recente, que imprime sua marca sobre a mente dos diplomatas e determina, em grande medida, a forma como eles vão agir no presente. Os condicionantes econômicos e geopolíticos representam o fator que Sun Tzu chamava de espaço, isto é, o ambiente concreto no qual devem se movimentar os “exércitos” diplomáticos, em busca da materialização dos objetivos nacionais. O comando atende aos mesmos critérios estabelecidos pelo mestre chinês da arte da guerra para esse conceito. Ele tem a ver com a capacidade exibida pelas lideranças diplomáticas – o estadista, o chanceler, os altos responsáveis pela formulação da doutrina e pela definição das principais diretrizes diplomáticas – de indicar claramente aos membros da comunidade diplomática nacional quais são os objetivos pelos quais eles devem se bater. Sun Tzu considerava que o comando deveria ter as seguintes qualidades: sabedoria, sinceridade, benevolência, coragem e disciplina. Dessas cinco qualidades, a primeira é certamente necessária ao comandante, assim como a quarta, embora esta deva pertencer mais ao comandante militar do que propriamente ao chefe da diplomacia. Maquiavel certamente descartaria a segunda e a terceira, ou seja, a sinceridade e a benevolência, embora considerasse esta última como um recurso a que o condotier poderia apelar quando estivesse em situação de força, justamente. Quanto à ultima, deve ser considerada mais como uma variante do rigor consigo mesmo do que o 257

exercício da disciplina “contra” seus próprios subordinados, que é o objeto do último fator da arte da diplomacia. A disciplina, no plano da diplomacia, tem a ver com organização e métodos, ou seja, a construção de uma ferramenta burocrática que seja, ao mesmo tempo, eficiente e inovadora, prudente e ousada, preparada no plano da informação e do conhecimento e apta a seguir instruções de forma ordenada e coerente, atuando como uma agência homogênea e uniforme. Isto é possível quando o estamento burocrático-diplomático possui processos de socialização e de construção de um pensamento relativamente unificado e convergente. Com base nesses cinco fatores, as autoridades diplomáticas de um Estado podem planejar seus objetivos externos – a que chamaremos de “estratégia diplomática – a partir de um conjunto adicional de fatores instrumentais que têm a ver, essencialmente, com a implementação prática desses objetivos, quaisquer que sejam eles. Entre esses fatores figuram os seguintes: a capacidade dos dirigentes diplomáticos em formular metas realistas e adequadas para a mobilização efetiva do estamento profissional diplomático; a avaliação correta dos limites e possibilidades oferecidas pelo sistema internacional para que aqueles objetivos possam ser alcançados; o uso eficiente de todos os mecanismos e instrumentos do sistema internacional – instituições formais, grupos informais, coalizões temporárias de interesse, combinação de iniciativas bilaterais, coordenação regional e exploração dos canais multilaterais – segundo a natureza de algum objetivo específico; coordenação interna das agencias públicas que detêm alguma interface internacional e instruções claras aos agentes diplomáticos nas diversas frentes negociadoras para se alcançar eficácia máxima nas iniciativas diplomáticas desse Estado. Mesmo sob condições democráticas, e portanto transparentes, a eficiência e a eficácia na ação diplomática de um Estado depende, em parte, do tratamento discreto que possa atribuir a determinados temas de seu interesse crucial na frente externa. Toda negociação diplomática é, por definição, uma barganha entre interesses por vezes convergentes, mas em certa medida contraditórios, quando não divergentes ou opostos (na medida que todo e qualquer acordo sempre implica em custos políticos e econômicos, a começar pela perda relativa de soberania, o que se deve limitar o máximo possível). Daí a necessidade de se encaminhar um determinado tema com base em argumentos de utilidade geral e de benefício recíproco que podem oferecer a base para um entendimento mais próximo dos interesses nacionais. 258

Esta questão implica também que o trabalho de avaliação deve envolver não apenas os interesses próprios do Estado em questão, mas igualmente os interesses do Estado, ou dos Estados com os quais se negocia, de maneira a permitir as acomodações necessárias. Dito isto, caberia, portanto, passar aos argumentos principais, que têm a ver com a elaboração e a implementação de uma estratégia diplomática (ED). Da estratégia diplomática como uma das artes especializadas do Estado Analogamente a seu equivalente militar, mas nisso talvez destoando um pouco de Sun Tzu, poderíamos dizer que a ED consiste na mobilização de instrumentos políticos, econômicos e militares – ponderados com base numa avaliação comparada e em análises conceituais e factuais sobre as intenções dos demais participantes do jogo diplomático – com vistas à consecução de objetivos nacionais bem definidos, mas sem o recurso à, ou a ameaça do uso da, força militar ou à guerra. Nesse sentido, a ED se opõe à, ou se distingue da, estratégia militar, que pressupõe, de sua parte, o uso ou a ameaça de uso da força bruta, segundo linhas que já foram suficientemente discutidas ao longo da história, desde Sun Tzu até os modernos estrategistas militares, passando por Clausewitz, Henry Kissinger ou Raymond Aron. No plano puramente conceitual, a formulação de uma ED implica a análise dos fatores contingentes, de obstáculos conjunturais e de barreiras de caráter estrutural que dificultam – em alguns casos até obstaculizam – o atingimento dos objetivos nacionais, tais como definidos pelos estrategistas de um determinado Estado, uma comunidade variada que pode envolver desde estadistas até burocratas do planejamento governamental, passando por representantes da cidadania e consultores independentes (membros da academia, especialistas setoriais, etc.). No plano operacional, a ED pressupõe a mobilização de todos os instrumentos à disposição desse Estado para o atingimento daqueles objetivos, o que implica o uso dos meios propriamente diplomáticos, mas também o apoio das forças armadas e da comunidade econômica do país. Todo Estado moderno, atuante, inserido na comunidade internacional, normalmente dotado de órgãos executivos e de planejamento, possui, ou deveria possuir, uma ED. Não se deve, evidentemente, superestimar uma ED: não se trata de algo fixo ou rígido, estruturalmente determinado, mas de uma concepção determinada por fatores conjunturais e até contingentes, concomitante às iniciativas dos Estados e às ações humanas. 259

Uma ED realista e flexível deve submeter-se, desde logo, a constantes revisões, tantos são os fatores de mudança conjuntural e as alterações no cenário político internacional que influenciam ou impactam os objetivos nacionais de um Estado. Ela deve estar, portanto, sujeita a avaliações regulares por parte de um staff especialmente preparado para essa finalidade e dedicado funcionalmente a esse tipo de tarefa. Não conviria, aliás, que o órgão encarregado da elaboração de uma ED fosse exclusivo e excludente, ou seja, trabalhando unicamente em torno da ED, e sim que ele seja aberto a insumos externos e à colaboração de especialistas e consultores alheios ao próprio órgão, de forma a manter uma atmosfera aberta inovadora, permitindo até revisões radicais da “velha” ED (ou seja, indo temporariamente num sentido contrário à “razão de Estado”). Uma ED, ainda que elaborada por um governo determinado, não é, ou não deveria ser, uma concepção e uma ação de um governo, e sim uma iniciativa e uma postura de Estado, ou seja, interessando antes à Nação do que aos partidos e personalidades ocupando temporariamente o poder. Como atividade típica de Estado, a ED deve estar sujeita ao escrutínio de todas as forças, movimentos e grupos de opinião representativos da Nação, ser objeto de discussão e de avaliação quanto a seus fundamentos concretos, seus instrumentos operacionais, seus objetivos explícitos e suas metas implícitas. Normalmente é isso que ocorre em sistemas democráticos, tanto mais intensamente quanto mais abertos e transparentes são os elementos centrais que definem e ajudam a implementar uma ED. Os processos de concepção, elaboração e de revisão da ED se dão no corpo do Estado, envolvendo as agências voltadas para as relações exteriores, os órgãos de defesa e o governo central, ademais das instâncias voltadas precipuamente para planejamento de políticas e de análises aplicadas; eles passam pelo parlamento e alcançam a sociedade, por meio da opinião pública, devidamente informada pelos órgãos de informação.

O planejamento de uma ED implica, antes de qualquer outra ação, tratar dos meios próprios a uma organização diplomática: de nada serve ter uma ED sem a ferramenta que a implementará. Estamos falando aqui de funcionários, equipamentos, recursos, organização, enfim, todos os meios com os quais todo e qualquer Estado leva 260

sua ED da fase de concepção à de aplicação no terreno. Na diplomacia, como na guerra, nada existe estaticamente, ou de forma puramente passiva, mas, sim, compõe-se de interações dinâmicas; os meios precisam ser sempre mantidos, aperfeiçoados, substituídos, instruídos e monitorados. Diferentemente da guerra, porém, não é preciso ter um planejamento logístico destinado a concentrar forças e operações ofensivas num espaço de tempo delimitado e num terreno previamente estudado. Em outros termos, as ações diplomáticas não necessitam de uma “concentração de fogo” para se lograr alguma vantagem decisiva no calor da batalha. A dinâmica diplomática é mais cumulativa, do que “destrutiva”, e as operações podem ser delongadas em função de uma avaliação contínua e mutável das condições do “terreno”, em função da interação com o “adversário”, que, no ambiente diplomático, não significa uma atitude de confrontação como na guerra e nas demais operações militares. A ED é bem mais intangível do que a EM, baseada no planejamento, certamente, mas em última instância na força bruta. Diferente da guerra, também, a conduta diplomática se baseia menos em meios materiais, ou equipamentos “pesados”, e mais em negociações diretas, quase pessoais, entre os atores. Não se trata de “aniquilar” o inimigo, mas sim de convencer e compor com um parceiro, mais que um adversário. A guerra desgasta, se mantida durante muito tempo, ao passo que a diplomacia avança, com a composição de interesses. A “logística” da diplomacia possui uma lógica própria, baseada – aliás, como no caso das operações militares – na presença sobre o “terreno” e na interação constante com o “adversário”; diferentemente, porém, não se trata de vencê-lo, mas de compor com ele um novo terreno de interações e de cooperação. Essa presença tem um “preço”, que é o custo da manutenção de representantes diretos – os “agentes avançados” dos serviços de inteligência militar – e do envio de missões temporárias e permanentes, assim como o engajamento pleno em negociações em nível bilateral, regional ou multilateral. Esse preço pode ser o equivalente funcional da manutenção, bastante custosa no âmbito militar, de equipamentos pesados que se destinam, na verdade, a não serem usados, mas que servem basicamente para dissuasão. No caso da diplomacia, a “dissuasão” é na verdade o diálogo e o entendimento, se possível no mais alto nível (mas de ordinário mantida pelo representante permanente, normalmente chamado de embaixador). A condução da diplomacia será, evidentemente, diferente, segundo o Estado ostenta um regime político centralizado ou unitário, próximo do autoritarismo, ou se 261

esse Estado exibe características claras de descentralização, com dispersão relativa dos centros de poder e participação de vários atores políticos e sociais. O Estado do mestre chinês da arte da guerra, não obstante a descontinuidade ocasional trazida por uma sucessão extraordinária de dinastias, invasões e de reconstruções sucessivas do sistema político, exibiu notável continuidade na centralização imperial, no limite do despotismo “hidráulico”. Nesse tipo de regime, a condução da diplomacia obedece, simplesmente, à vontade do soberano, com alguma participação dos cortesãos e membros do aparato estatal restrito (antigos mandarins, modernos aparatchiks). A condução da diplomacia nas modernas condições democráticas se faz sob forte pressão de forças sociais suscetíveis de expressar posições distintas e de influenciar o processo de tomada de decisão no plano externo. A despeito da legitimidade que possam exibir essas demandas, seria conveniente que o Estado, em especial seu aparelho diplomático, preservasse sua latitude de ação e ampla margem de opções, de maneira a escolher as melhores vias – que envolvem alianças ocasionais, coordenações formais e até iniciativas individuais – para alcançar os objetivos nacionais desse Estado. Pode-se inclusive conceber certa autonomia de iniciativa e de ações atribuída ao negociador principal, da mesma forma como se concede pleno poder de comando ao general em seu campo de batalha. Em momentos decisivos, essa autonomia deve ser plena, posto que a autoridade responsável pelo sucesso (ou fracasso) de uma negociação ou iniciativa diplomática é o próprio agente no terreno, não o soberano em sua capital distante. Em todas essas questões, Sun Tzu tem muito a ensinar aos diplomatas profissionais (e até aos iniciantes).

2251. “Formação de uma estratégia diplomática: relendo Sun Tzu para fins menos belicosos”, Brasília, 5 março 2011, 8 p. Sun Tzu revisitado com o objetivo de traçar uma estratégia diplomática. Publicado na Espaço Acadêmico (ano 10, n. 118, março 2011, p. 155-161; ISSN: 1519-6186; link: http://www.periodicos.uem.br/ojs/index.php/EspacoAcademico/article/view/12696/ 6714). Republicado em Mundorama (7/03/2011; link: http://mundorama.net/2011/03/07/formacao-de-uma-estrategia-diplomaticarelendo-sun-tzu-para-fins-menos-belicosos-por-paulo-roberto-de-almeida/). Relação de Publicados n. 1023.

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34. Memória e diplomacia: o verso e o reverso

Memórias, pelo menos memórias publicadas, não são para qualquer um: elas geralmente constituem o apanágio e a distinção daqueles que tiveram um itinerário de vida semeado de grandes e importantes cruzamentos com a vida política nacional (ou até internacional) e que desempenharam algum papel de relevo em alguns dos episódios. Pode ocorrer, também, com indivíduos que foram simplesmente testemunhas desses fatos, mesmo com alguma participação mínima nesses eventos, aquilo que Raymond Aron chamou, para si mesmo, de “espectador engajado” (ver suas Memórias, publicadas em 1983, e o livro de depoimento, que leva justamente esse título). Todos esses deveriam se sentir compelidos a colocar no papel, ou em qualquer outro suporte memorialístico, aqueles registros pessoais que apresentem relevância para a compreensão desses episódios, fatos e eventos de que tenha, ou não, participado, mas sobre os quais podem oferecer um depoimento inteligente. Líderes da área econômica, mesmo não tendo participado de fatos relevantes, mas que foram importantes em processos mais estruturais de transformação produtiva na vida de um país também podem oferecer suas “memórias do desenvolvimento”, pois de certa forma ajudaram a construí-lo e a enriquecer a sociedade. Os diplomatas, pela sua importância “locacional” em determinados episódios da interface externa do país, também poderiam oferecer bons testemunhos sobre os grandes 263

eventos internacionais a que assistiram ou dos quais foram partícipes, ainda que em posição de baixa responsabilidade decisória. Muitos deles conviveram e assessoram estadistas, chefes de Estado e ministros, e se ocuparam justamente de processar a informação, colocá-la no contexto, oferecer resumos sintéticos e propostas de decisão para aqueles mesmos encarregados de tomá-las e se situam, assim, numa posição privilegiada para relatar o que viram, ouviram e até o que fizeram. São muitos os relatos diplomáticos e também numerosas as memórias de diplomatas, um gênero infelizmente muito pouco cultivado no Brasil, pelo menos entre os burocratas “normais” da carreira. Podem ser contadas nos dedos das duas mãos – e não precisamos dos dedos dos pés – as memórias de diplomatas, o que é de certa forma lamentável, não apenas no plano individual, mas também como evidência de uma lacuna institucional. O volume reduzido de depoimentos pessoais significa que a Casa, o ministério (que possui uma excelente memória coletiva) não se ocupa de resguardar as memórias individuais de seus membros, por meio de um programa sistemático de preservação de papéis individuais e de depoimentos organizados, que ultrapassem o aborrecido dos burocráticos maços individuais, para alcançar o que se poderia chamar de reflexão sobre a carreira e sobre os episódios mais relevantes que a rechearam. Elas existem, por certo, mas bem mais como resultado de uma decisão pessoal do que por estímulo do serviço diplomático, e de forma mais organizada numa entidade externa – o Cpdoc, por exemplo – do que por iniciativa da própria instituição. Algumas dessas memórias cobrem mais o trivial da carreira, como exemplo o livro de Luis Gurgel do Amaral: O Meu Velho Itamarati (De Amanuense a Secretário de Legação) 1905-1913 (2a. ed.: Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, 2008; 1ra. ed.: Imprensa Nacional,1947), um despretensioso relato sobre os tempos do Barão e a chamada belle époque (certamente não no Brasil, pois o Rio de Janeiro ainda estava infestado de mosquitos da febre amarela, e o próprio Barão se refugiava em Petrópolis). Outras são bem mais consistentes, como o excelente depoimento escrito do próprio punho pelo ex-chanceler Mario Gibson Barboza: Na Diplomacia, o traço todo da vida (Rio de Janeiro: Record, 1992). Na mesma época, foi publicado um livro de pretensões mais modestas, do ex-chanceler Ramiro Saraiva Guerreiro: Lembranças de um Empregado do Itamaraty (São Paulo: Siciliano, 1992). Pertencentes a um período histórico ainda anterior a esses depoimentos que cobrem, em grande medida, o período militar, figuram as memórias de Manoel Pio Correa Jr, O mundo em que vivi (Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 1996, 2 volumes), 264

e as de Vasco Leitão da Cunha, Diplomacia em alto-mar: depoimento ao CPDOC (Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getúlio Vargas, 1994). Roberto Campos, o diplomataeconomista, também deixou suas memórias; mas elas interessam menos, talvez, ao estudioso da história diplomática do Brasil do que ao pesquisador de sua história econômica: A Lanterna na Popa: memórias (Rio de Janeiro: Topbooks, 1994; 4a. ed. rev. e aum.; Rio de Janeiro: Topbooks, 2001-2004, 2 volumes). Ele era, certamente, uma ave rara no Itamaraty, que provavelmente não soube apreciá-lo à altura de sua capacidade, em virtude de sua posição bastante crítica à postura excessivamente “terceiro-mundista” do Itamaraty. O mais recente exemplo no gênero memorialístico pode ser atribuído a Ovídio de Andrade Melo, que em seu algo desconjuntado depoimento encomendado por colegas ideologicamente afins, Recordações de um Removedor de mofo no Itamaraty: relatos de política externa de 1948 à atualidade (Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, 2009), trata da política nuclear do Brasil e da recusa ao TNP, do reconhecimento de Angola e dos seus périplos afro-asiáticos. Flavio Mendes de Oliveira Castro também ofereceu um depoimento mais para o anedótico, em Caleidoscópio: cenas da vida de um diplomata (Rio de Janeiro: Contraponto, 2007); mas ele já tinha reunido uma importante documentação sobre a própria casa e seus chefes nesta obra de 1981, recentemente atualizada e reeditada: Dois séculos de história da organização do Itamaraty; 1: 1808-1979; 2: 1979-2008 (Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, 2009, 2 volumes). Mais específica a uma determinada fase da vida de um diplomata, e juntando memória pessoal e depoimento sobre uma época, é este livro de Carlos Alberto Leite Barbosa: Desafio Inacabado: a política externa de Jânio Quadros (São Paulo: Atheneu, 2007). Outros cobrem praticamente toda a vida diplomática, pelo menos acima do conselheirato: foi o caso de Vasco Mariz em: Temas da política internacional: ensaios, palestras e recordações diplomáticas (Rio de Janeiro: Topbooks, 2008). Também existem aqueles que juntam discursos, conferências, palestras e artigos publicados – muitos deles escritos por assessores – para realizar uma compilação em formato de livro, acrescido de algumas reflexões introdutórias ou comentários esparsos, o que parece ter sido o caso de Paulo Tarso Flecha de Lima, em seu Caminhos Diplomáticos: 10 anos de agenda internacional (Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1997) ou, mais recente, de Luiz Felipe Lampreia: O Brasil e os Ventos do Mundo (Rio de Janeiro: Objetiva, 2010). Os que não têm tempo de sequer fazer isso, apenas pedem que se lhe juntem os discursos (raramente escritos da própria mão) e os publicam às 265

expensas do contribuinte, como já ocorreu com vários chefes da Casa. Outros colecionam papéis, importantes, que depois eventualmente serão disponibilizados pela família ou pessoalmente; foi o caso de Paulo Nogueira Batista, por meio desta coletânea: Suely Braga da Silva: Paulo Nogueira Batista: o diplomata através de seu arquivo (Rio de Janeiro: Cpdoc; Brasília: Funag, 2006); e também de um dos pioneiros da diplomacia econômica no Itamaraty: Teresa Dias Carneiro: Otávio Augusto Dias Carneiro, um pioneiro da diplomacia econômica (Brasília: Funag, 2005). Relevantes, também, são os depoimentos prestados ao Cpdoc, uma vez que eles vêm com um aparato crítico-metodológico que os próprios diplomatas não estão habituados a preparar. Podem ser citados, nessa categoria, João Clemente Baena Soares: Sem medo da diplomacia: depoimento ao Cpdoc (organizadores Maria Celina D’Araujo et alii; Rio de Janeiro: FGV, 2006); Marcílio Marques Moreira: Diplomacia, Política e Finanças (Rio de Janeiro: Objetiva, 2001); e o próprio Vasco Leitão da Cunha, já citado. Aguarda-se agora o depoimento de Rubens Antonio Barbosa, em curso de preparação pelo mesmo Cpdoc. Um traço comum à maior parte dos depoimentos, memórias e entrevistas coletadas é a adesão de quase todos eles à chamada “cultura da Casa”, feita de certo conformismo pouco crítico com a política externa – que muitas vezes eles ajudaram a forjar ou a defender –, uma “fidalguia” de caráter que os impede de apontar lacunas sérias no modo de funcionamento do ministério e muita benevolência em relação às supostas excelências do serviço diplomático brasileiro. Poucos são críticos, como Roberto Campos, e os que são, como Ovídio Mello, o fazem por clara adesão política a correntes que nunca pertenceram ao chamado mainstream diplomático brasileiro, embora tenham permeado seu pensamento desenvolvimentista e terceiro-mundista. Esse é, digamos assim, o reverso da medalha das “memórias diplomáticas”: elas expõem ou justificam algumas políticas, mais do que discutem seus fundamentos ou oferecem reflexões livres sobre suas implicações para o país e a sociedade. Todos esses depoimentos, memórias e coletâneas de documentos e reflexões são relevantes na construção de uma memória “viva” – se é o caso de se dizer – da história diplomática brasileira; mas muito ainda falta a ser feito para se alcançar certo rigor na tomada de depoimentos – que deveria ser um empreendimento oficial e coletivo, por exemplo – e na sua depuração crítica, com todo o aparato da técnica historiográfica. Mais importante, o Itamaraty não dispõe sequer de um historiador oficial, que possa juntar os documentos mais relevantes, agrupá-los tematicamente e colocá-los à 266

disposição dos pesquisadores e do público at large, como ocorre com a U.S. Foreign Relations series. Tempo virá, certamente, em que esse tipo de trabalho se fará em bases permanentes e regulares, com a ajuda dos muitos historiadores que já ingressaram na carreira diplomática.

2187. “Memória e diplomacia: o verso e o reverso”, Shanghai, 23 Setembro 2010, 4 p. Notas sobre memórias e memorialistas da carreira. Postado no blog Diplomatizzando (link: http://diplomatizzando.blogspot.com/2010/09/memoriasdiplomaticas-paulo-r-de.html). Publicado em Boletim Mundorama (n. 37, setembro 2010, 23.09.2010; link: http://mundorama.net/2010/09/23/memoria-e-diplomaciao-verso-e-o-reverso-por-paulo-roberto-de-almeida/#more-6474). Relação de Publicados n. 992.

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35. Da democracia à ditadura: uma gradação cheia de rupturas

Democracias, ma non troppo O mundo, obviamente, ainda não se ajustou ao “fim da História”, no sentido da convergência da maioria dos países para regimes políticos e para sistemas econômicos próximos das democracias de mercado (capitalistas), como sugeria, tentativamente, Francis Fukuyama. Ele o fará, gradualmente, já que o núcleo central da tese de Fukuyama é basicamente correto – retirando-se a metáfora hegeliana do “fim da História”, resta que o desenvolvimento socioeconômico e a consolidação da prosperidade social, permitidos justamente por uma economia de mercado dinâmica, trazem naturalmente um regime político mais conforme à atomização dos poderes e dos mercados capitalistas (baseados, institucionalmente, em mecanismos de representação, de negociação e de conciliação). Já tratei dessas questões em outro trabalho e não vou voltar a elas neste momento (ver: Paulo Roberto de Almeida, “O Fim da História, de Fukuyama, vinte anos depois: o que ficou?”, Meridiano 47, n. 114, janeiro 2010, p. 8-17; link: 268

http://periodicos.unb.br/index.php/MED/issue/view/77). Essa transição quase natural para a democracia política é, no entanto, um mundo ideal, para o qual caminharemos muito gradualmente. Ele está baseado em uma adequada educação política dos cidadãos, o que, sabemos, é uma mercadoria ainda relativamente rara nas comunidades existentes neste planeta persistentemente pobre; de fato, as possibilidades de desenvolvimento econômico inclusivo não encontram grandes obstáculos técnicos à sua consecução, mas os políticos e sociais são formidáveis. No mundo real, ainda convivemos com um número lamentavelmente grande de regimes autoritários ou de ditaduras abertas. Uma evolução positiva Cabe, entretanto, reconhecer uma evolução positiva, que não deixa de ser um fato histórico: numa linha contínua, que levaria, de um lado, do despotismo mais exacerbado, da tirania mais execrável, até, na outra ponta, a uma democracia perfeita, podemos constatar que o mundo avançou de modo razoável no último meio século. O número, ínfimo, de democracias estáveis no período anterior à Segunda Guerra Mundial, cresceu regularmente desde então, especialmente depois da implosão e virtual desaparecimento do último sistema “escravocrata” da era contemporânea: o socialismo real. Este existiu em diversas modalidades, sendo seu modo mais tirânico o representado pelos totalitarismos stalinista e maoísta, mas também teve Estados policiais perfeitamente “weberianos” – como a ex-Alemanha oriental – e socialismos burocráticos que evoluíram ao longo do tempo (como o modelo “gulash” na Hungria e o nacionalismo estatizante da ex-Iugoslávia). A evolução nesses países outrora dominados por um partido único – comunista, obviamente – não deixa de ser um fato auspicioso na história da humanidade, embora dois pequenos bastiões do totalitarismo comunista resistam ainda na sua irrelevância anacrônica, ao lado de várias outras tentativas de implantar, senão ditaduras abertas, pelo menos regimes politicamente fechados, caracterizados pelo cerceamento de liberdades elementares em regimes plenamente democráticos. Estes se caracterizam pela liberdade de organização, de expressão e de manifestação, pela representação livre de todos os interesses sociais presentes na sociedade, inclusive a defesa dos direitos das minorias (sociais, étnicas, religiosas, políticas), que é o que distingue verdadeiramente uma democracia plena. 269

Tentações totalitárias Regimes e situações não democráticos não desapareceram, como é óbvio para quem observa o mundo como ele é. Alguns países, que tinham conhecido uma saudável evolução democrática – na América Latina, na África e na Ásia, sobretudo – voltaram experimentar desenvolvimentos autoritários. Países de democracia frágil, não consolidada, ou submetidos a conjunturas mais ou menos traumáticas de instabilidade, no seguimento de crises econômicas e sociais, ou de rupturas políticas fora da normalidade – sim, porque existem rupturas políticas dentro da normalidade, como aquela conhecida no Brasil em 2002 – podem reverter o relógio da história e recair em tentações totalitárias (não pela vontade de seus cidadãos, por certo, mas pela manipulação que fazem de massas não educadas líderes tendencialmente autoritários). O que são esses regimes? São ditaduras “eleitas” – sim existe, como vimos ainda bem perto do Brasil –, populismos personalistas baseados na manipulação propagandística e na “compra” (literalmente) dos mais humildes e despolitizados, cesarismos plebiscitários, enfim, uma variedade sempre criativa de regimes que, no fundo, representam um decréscimo de qualidade da democracia formal – em vários casos apresentando inúmeras deficiências substantivas –, mesmo coexistindo com a manutenção do voto universal (que pode ser, como frequentemente é, manipulado). De resto, apenas o voto não caracteriza um regime democrático, como os exemplos da Albânia nos tempos de Enver Hodja, da URSS nos tempos de Stalin, ou ainda hoje na Cuba dos irmãos Castro, podem amplamente confirmar... Um exercício de classificação dos regimes Com base nas considerações anteriores, posso tentar agora oferecer um quadro declinante – sim, reconheço meu viés valorativo – dos regimes políticos, indo dos mais democráticos aos mais autoritários. Não vou tentar explicitar todas as razões de porque coloquei alguns países em uma “janela” e não em outra, inclusive porque este exercício não é exatamente “científico”, correspondendo mais bem às minhas percepções pessoais de como vejo o mundo e a qualidade de seus regimes políticos. (A) Democracias plenas Não tem adjetivos, e não tem ameaças aparentes ao seu funcionamento e à sua estabilidade. Países nórdicos, Reino Unido, Canadá, Holanda, Suíça, boa parte dos países europeus, mas não todos. 270

(B) Democracias com disfuncionalidades leves São países grandes ou com deformações no modo de funcionamento de seus sistemas políticos, ou imigrações “selvagem” e certo grau de corrupção e de atos delinquentes, ou ação agressiva de lobbies e grupos de interesse manipuladores. Eu colocaria nessa situação os Estados Unidos, possivelmente o país mais livre do mundo, e um dos mais democráticos, pelo fato de que se trata de um pais enorme, com muitas desigualdades internas e algumas disfunções derivadas de um excessivo conservadorismo político (ou anacronismo religioso, por exemplo, o que pode levar a absurdos na educação científica e histórica, com fortes pressões criacionistas, para citar apenas um caso). A Itália, uma democracia de baixa qualidade, pela mediocridade de seus políticos e a corrupção disseminada, também entra nessa categoria, assim como diversos outros países europeus, geralmente da franja meridional ou oriental. O Japão é possivelmente um candidato pleno na categoria. (C) Democracias de baixa qualidade Corrupção extensiva, manipulações políticas, concentração de poder, baixo grau de representatividade, mau funcionamento das instituições de controle, e uma miríade de outros problemas derivados do baixo grau de educação política da maior parte da população. Estão nesse caso Índia e Brasil, amiúde citados como “duas grandes democracias em países em desenvolvimento”, o que deve ser tomado com certa caução. A Argentina e o México também entram nessa categoria, assim como grande parte dos países latino-americanos e vários asiáticos e a África do Sul. (D) Regimes autoritários abertos Uma gama imensa de situações, respondendo aos mais diversos fatores de concentração de poder, em alguns casos por falta de tradição democrática – seria o caso da Rússia, por exemplo –, em outros por regressão populista momentânea (como vem ocorrendo em alguns países da América Latina). Esses países podem tanto evoluir para uma democracia de baixa qualidade, quanto descambar para situações ditatoriais mais ou menos fechadas. É o caso, por exemplo, do Irã, país dotado de uma sociedade civil muito ativa, mas atualmente dominado por uma teocracia regressista que pode colocálo, conjunturalmente, na categoria seguinte, uma quase ditadura. 271

(E) Ditaduras disfarçadas Conservam certa aparência de democracia, mas consolidaram grupos ou personalidades no poder que manipulam os processos políticos, perseguem os opositores, concentram todo o poder e literalmente desmantelam as instituições em seu benefício exclusivo. O exemplo mais notório é, obviamente, a Venezuela, que muitos confundem com um regime progressista de esquerda, mas que nada mais é senão um triste exemplo do velho fascismo por demais conhecido nos anos 1930. O caudilho destrói todas as instituições, ou as coloca a seu serviço exclusivo. (F) Regimes autoritários fechados Sistemas infensos ao voto popular ou com monopólio político de um grupo ou partido no poder: Birmânia (ou Miamar), Síria, Egito, China, grande parte dos países africanos e alguns poucos asiáticos, como alguns saídos do casulo soviético (mas mantidos com os mesmos aparatchiks do velho sistema comunista). Alguns já foram totalitários, mas se tornaram menos “carnívoros”; outros eram democracias de fachada que não resistiram ao líder providencial e candidato a insubstituível. (G) Países totalitários Nem é preciso explicar por que: Cuba, Coréia do Norte se enquadram perfeitamente no modelo mais lamentável que o socialismo bolchevique deixou como herança do início do século 20. Devem desaparecer, mas o sofrimento em que incorrem ou incorreram (como a China nos tempos de Mao) seus povos é indizível. Nessas diferentes categorias, não parece haver problemas classificatórios nos escalões A, B e G, mas os estratos intermediários sempre colocam problemas, já que as dinâmicas políticas, em países não totalmente estruturados politicamente, podem tanto aproximá-los formalmente de modelos passavelmente democráticos (ainda que de baixíssima qualidade), ou, no outro sentido, fazê-los cair nas malhas das ditaduras mais ou menos abertas ou disfarçadas. Outra ainda é a situação de Estados falidos – vários africanos, ou o Haiti, no hemisfério ocidental – que sequer possuem instituições normais de um Estado em funcionamento mínimo, para atender serviços básicos de sua população, retrocedendo para a guerra civil ou vivendo de assistência pública internacional, numa espécie de tutela dos organismos internacionais (com esmolas adicionais introduzidas pelas ONGs). 272

Por fim, ainda que isto ofenda os “brios democráticos” de muitos brasileiros – sobretudo aqueles que vivem circulando em torno do parlamento ou que vivem de empregos ou favores do governo –, não tenho nenhuma hesitação em classificar o Brasil como uma democracia de baixa qualidade, ainda que seja uma categoria relativamente esdrúxula nos anais da ciência política: o Brasil tem todas as características dessa categoria, e atende todos os requisitos de uma democracia de baixa qualidade, inclusive porque tem muita gente ativíssima na arte de construir um regime fechado ou autoritário à solta por aí; então não há porque promovê-lo, por enquanto, para o grupo das democracias com algumas disfuncionalidades, categoria a que pertencem países que são em geral considerados perfeitamente democráticos. Sorry, folks, mas minhas exigências democráticas são muito altas, e eu não me contento com pouco... P.S.: Quem quiser criticar minha abordagem, é obviamente livre de fazê-lo, mas eu apreciaria receber argumentos mais consistentes do que gritos indignados. Ou seja, aceitam-se reclamações justificadas, inclusive dos pequenos déspotas que circulam por aí, fazendo a infelicidade de seus povos...

2145. “Da democracia à ditadura: uma gradação cheia de rupturas”, Shanghai, 22 maio 2010, 5 p. Considerações sobre os tipos de regime políticos existentes no planeta, com uma classificação baseada em sete categorias de países, das democracias plenas a Estados totalitários (felizmente em número reduzido). Postado no blog Diplomatizzando (link: http://diplomatizzando.blogspot.com/2010/05/gradacoesda-democracia-um-exercicio-de.html). Publicado no boletim Mundorama (31.05.2010; link: http://mundorama.net/2010/05/30/da-democracia-a-ditadurauma-gradacao-cheia-de-rupturas-por-paulo-roberto-de-almeida/). Relação de Publicados n. 969.

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Sexta Parte

O Brasil e o mundo, de um século a outro

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36. Da diplomacia dos antigos comparada à dos modernos

Sob a inspiração e com o devido copyright moral corretamente atribuído a um antecessor bem mais antigo e famoso: Benjamin Constant (De la liberté des anciens comparée à celle des modernes, discurso em 1819; disponível: http://www.panarchy.org/constant/liberte.1819.html; acesso em 21/04/2015).

Messieurs, Eu me proponho submeter-vos algumas distinções – ainda bastante novas chez nous – entre dois gêneros de diplomacia, cujas diferenças recíprocas podem ter, hélas, permanecido despercebidas até aqui, ou que, pelo menos, foram pouco ressaltadas pelos ensaístas. Uma é a diplomacia tradicional, tal como praticada pelos antigos, bastante apreciada por eles, tanto pelos profissionais do ramo, quanto pela sociedade em geral. A outra, é esta que estamos vendo implementada pelos modernos, e que lhes parece, a eles, perfeitamente adequada às necessidades do país, quando, na verdade, ela só contempla os interesses do pequeno grupo que a formulou e que a conduz. Tal exercício de comparação, se não me engano, me parece interessante por duas razões principais.

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Primeiramente, a confusão entre as duas espécies de diplomacia constitui entre nós, sobretudo numa época revolucionária como esta, a causa de muitos males. O país parece ter cansado de tantos experimentos inúteis, cujos autores, irritados pelo pouco sucesso que tiveram nessas experiências amadoras, ainda tentam constrangê-lo a aceitar tudo aquilo que a sociedade manifestamente não quer. Em segundo lugar, porque o governo atual veicula uma noção de democracia e de participação popular que está nas antípodas do que se descobriu serem os desejos – talvez confusos – dos estratos mais esclarecidos da sociedade, que se redescobre um poder que, até aqui, ela acreditava não possuir. Abrem-se, portanto, perspectivas diferentes daquelas que tivemos até há pouco, desde a ruptura entre os tempos dos antigos e esta época dos modernos, chances talvez nunca antes percebidas pela opinião pública mais engajada na participação cidadã. Eu sei que se tenta confundir a exata apreensão e a correta compreensão dessa realidade, apelando para falsos sinais de adequação entre a diplomacia moderna e a antiga, supostamente equivalentes, ou ainda, tomando a primeira como funcionalmente superior à segunda, o que é obviamente falso. A própria opinião pública hesita quanto aos caminhos e ações que devem ser tomados para realmente conciliar o que era forte e valioso, nos tempos antigos, e o que de novo lhe pretendem vender como sendo a sua vontade, mas que, aparentemente, nada mais é senão o chamado ouro dos tolos, a eterna mercadoria do populismo, envelopado na fantasia da mistificação. Vamos, portanto, neste exercício, efetuar as distinções que se impõem entre os dois tipos de diplomacia. Da diplomacia dos antigos (sem qualquer demérito pela antiguidade) Os tempos antigos, do Ancien Régime, não eram perfeitos, como todos sabem. Depois de convulsões políticas e sobressaltos econômicos, a nação parecia finalmente ter encontrado o caminho da estabilização, da previsibilidade, de um futuro um pouco menos confuso e incerto, do que aqueles que prevaleciam nos tempos da tirania, ou mesmo durante a fase de reconstrução do regime de liberdades, época assaz agitada pela demagogia política, pela exacerbação das vontades, muito perturbada pelo rebaixamento excepcional das moedas em circulação (foram várias). Ainda se teve de fazer ajustes de meio de percurso, mas, ao fim e ao cabo dos tempos antigos, tudo parecia ter entrado nos eixos para a retomada de um processo sustentado de crescimento e de prosperidade. As dores da transição foram rapidamente sanadas, tanto porque os modernos prometiam

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respeitar velhos acordos e convenções já formalizadas pelos antigos, e se propunham elevar ainda mais o novo respeito alcançado pelo país nos cenáculos externos. No que se refere especificamente à diplomacia, a dos antigos sabia preservar o legado de tradições profissionais ainda mais antigas, e estava, senão codificada, pelo menos sistematizada num conjunto de práticas e de posturas que contemplavam os grandes interesses da nação na frente externa, sem constituir necessariamente uma alavanca poderosa para o seu desenvolvimento. Mas isto se devia a que ela era efetivamente tradicional, e se apegava ainda a velhas doutrinas que, se tinham tido sucesso em determinadas épocas, talvez não se prestassem mais aos novos tempos de abertura econômica e de liberalização comercial. Os diplomatas do Ancien Régime tinham sido treinados em escolas que valorizavam antigas noções de independência nacional e de autonomia tecnológica, de tempos nos quais se justificava o mercantilismo e se promovia, até com orgulho, a autarquia. No geral, contudo, eles sabiam distinguir, de modo bastante claro, entre os interesses do Estado (e da nação) e os dos grupos políticos que a dividiam em correntes contraditórias, passavelmente opostas entre si. Mais importante, talvez, não tanto quanto aos temas e posturas, mas quanto aos procedimentos e formas de trabalho, a diplomacia dos antigos se desenvolvia mediante processos e métodos formalizados e rotineiros, que constituíam uma cadeia previsível de decisões, transparente, eficiente. Seu formato era o de uma perfeita pirâmide: na sua base estavam os trabalhadores manuais, aparentemente assimilados aos antigos ilotas, mas perfeitamente treinados nas técnicas e inseridos numa organização que sabia valorizar a competência primária e a responsabilidade individual sobre dossiês adrede distribuídos pelas áreas de competência específica. Cada uma destas era chamada a se manifestar sobre um determinado assunto, congregando opiniões e argumentos – todos eles rigorosamente apoiados em dados empíricos e simulações de efeitos – que depois eram assemblados e levados à consideração do nível superior para sua ultimação sob a forma de instrução, prontamente transmitida a um dos muitos agentes da instituição no exterior. Os tribunos eleitos reconheciam o valor da organização e vários chefes do Ancien Régime se valiam dessas competências, trazendo para trabalhar junto de si um determinado número desses profissionais, que podiam assim se exercer diretamente no centro de comando de decisões políticas. Aparentemente funcionou a contento de todos. Este era o universo dos antigos, no campo da diplomacia; suas tarefas não eram unicamente compostas de missões informativas ou representativas, mas também de um 279

papel formulador e executor da própria substância da política exterior que o soberano pretendia implementar, sempre sob estreito aconselhamento e consultas constantes entre os técnico e os responsáveis últimos pelas decisões. Plebeus e aristocratas conviviam nessa atmosfera ainda um pouco patrimonialista, pois as regras eram conhecidas de todos, e mesmo servos de gleba podiam aspirar, um dia, alcançar pelos seus próprios méritos uma posição de maior realce na hierarquia disciplinada que constituía o edifício diplomático dos antigos. Alguns membros da casta compareciam à ágora, em algumas ocasiões, para explicar aos cidadãos as razões de tais e tais escolhas; no mais das vezes, contudo, se tratava de um clã bastante discreto e reservado, mesmo se alguns ousavam, por vezes, assinar escritos explicativos ou mesmo panfletos interpretativos. Os meios não eram especialmente abundantes, mas eram suficientes para o correto desempenho das missões que lhes eram atribuídas, de modo claro, direto, devidamente registradas nos anais e expedientes cuidadosamente preservados e regularmente arquivados. Messieurs, estou sendo, par hasard, condescendente com a diplomacia dos antigos? Não creio, tanto porque frequentei muito esses meios e sei do que vos falo, tanto pela minha experiência pessoal de terreno, quanto por delongados estudos e as muitas missões empreendidas a serviço dos barões daqueles tempos. Não pretendo que ela fosse perfeita, longe disso, mas parece ter sido bastante respeitada, na região e fora dela, chegando mesmo alguns vizinhos a inventar esse provável exagero ao dizer que essa diplomacia nunca improvisava. Não estou muito seguro disso, e creio mesmo que ela devia improvisar de tempos em tempos, uma vez que algumas decisões tinham de ser tomadas mesmo com escassa informação disponível, inclusive porque o pessoal era limitado em número – a despeito de ser de qualidade notoriamente superior à de outros serviços – e também porque a agenda de negociações não esperava que estivéssemos totalmente prontos para nos impor toda a sua urgência e sua grande complexidade. Muitas vezes suávamos frios em conferências multilaterais, quando decisões relevantes para a economia nacional tinham de ser tomadas, mesmo na ausência de instruções precisas da capital, ou em face de orientações lacunares e insuficientes para adotar uma das opções sobre a mesa; nessas horas valia a experiência do negociador, seu conhecimento dos dossiês, e algum tirocínio do que fosse o interesse nacional, em toda a sua complexidade, livre de qualquer amarra da política vulgar. À falta de instruções seguras da capital, podíamos ser conservadores, mas sempre animados de 280

propósitos legítimos: preservar os ganhos já alcançados pelo país na economia mundial, avaliar eventuais ganhos oferecidos pelas novas regras que se cogitava implementar, e decidir, apoiados no melhor conhecimento de que se dispunha, as opções apresentando as melhores vantagens comparativas, ainda que relativas, como ensinou mestre David Ricardo. Havendo cláusulas de exceção, ou reservas quanto a dispositivos intrusivos, se podia fazer recurso a esse tipo de expediente de escape, ou de socorro. Opções abertas sempre são de melhor alvitre do que obrigações muito rígidas ou regras inderrogáveis. Em resumo, a antiga diplomacia, ou a diplomacia dos antigos, era um mélange de conservação e de renovação, de cautela e de ousadia, de passos bem medidos, com poucas rupturas de continuidade, tudo meticulosamente registrado, documentado, para iluminar a memória dos contemporâneos com os registros do passado, e para instruir os futuros cronistas sobre os motivos de terem sido conduzidos os assuntos em tal ou tal sentido, num serviço tão tradicional quanto circunspecto em sua maneira de ser. Mais importante: éramos respeitados em função do nosso saber (feito, na verdade, bem mais de experiência adquirida) e da dedicação ao estudo dos dossiês. Até se dizia, vejam só, que representávamos o consenso possível em matérias sempre tão complexas quanto são os assuntos exteriores, envolvendo soberania e, mais que tudo, a credibilidade nacional. Voilà Messieurs, creio ter traçado um retrato peut-être trop flatteur, mas assaz realista da diplomacia do Ancien Régime, sem sequer precisar abordar algum tema de substância, apenas me limitando ao seu espírito, ao seu modo de ser, vale dizer, à sua natureza profunda. Não é preciso, aliás, penetrar nas querelas políticas, ou nas disputas dos políticos – sempre mutáveis e inconstantes –, para refletir sobre as características dessa diplomacia que criou escola e deixou saudades em espíritos mais sentimentais. Ela constituía, acima de várias outras qualidades, um modo de ser, o resultado natural de uma longa evolução, um estilo muito peculiar entre todos os demais serviços do Estado. E, se me permitem uma referência literária, retirada do nosso caro Buffon, em seu discours de réception na Academia, ousaria dizer que, nessa diplomacia dos antigos, le style c’est l’homme même, ou seja, ela era fundamentalmente uma maneira de ser, ou então, de navegar, entre um porto e outro de todas as representações abertas ao engenho e arte dos nossos nômades profissionais. Messieurs, essa era a diplomacia dos antigos, como penosamente me vem agora à mente umas poucas lembranças, fugidias, de uma época não parece muito perto de 281

voltar, uma vez que estamos reduzidos à diplomacia dos modernos, nestes tempos não convencionais, nunca antes vistos num país tão contraditório e tão cheio de surpresas. Da diplomacia dos modernos (e das surpresas que ela trouxe) O que traz a diplomacia dos modernos a esse ambiente já vetusto, mas jamais empoeirado, que constituía a diplomacia dos antigos num país em transformação? O que poderia ela representar de novo para um serviço talvez enclausurado na sua suficiência, infenso às reviravoltas do poder, mas jamais distante das preocupações fundamentais da nação? Do que seria feita a modernidade numa área tão sensível da ação estatal? Aos olhos de alguns, parecia que, finalmente, se instalava o republicanismo por entre as colunas um tantinho aristocráticas, quase monárquicas, do Ancien Régime. A chegada dos modernos foi cantada em prosa e verso como sendo o reencontro da nação com suas raízes profundas, certamente mais rústicas do que os trejeitos das elites nos ambientes acarpetados dos palácios de função. A nação parecia prestes a resgatar certas dívidas antigas, tão antigas quanto as oligarquias carcomidas que rapidamente foram se aliando aos novos representantes da modernidade ensaiada, estes ainda incertos sobre como controlar aquela máquina imensa, quase uma imensa caverna regurgitando de tesouros insuspeitos. Lampedusa, provavelmente, saberia encontrar as palavras certas para fazer a descrição fiel da nova situação, e saberia encontrar as boas imagens para apresentar os cristãos-novos da modernidade anunciada em tons algo triunfalistas. Não se tinha percebido ainda qual era o espírito dessa república de fachada, à la Potemkin, com muita figuração e pouco conteúdo, muito discurso e pouca substância, com excesso de publicidade e grau extremamente baixo de realizações. Na verdade, se manteve, no começo pelo menos, muitas das orientações gerais que tinham sido legadas pelo Ancien Régime, mesmo se este era denunciado desonestamente por alguma herança que se pretendia malfadada. Eram arroubos de aprendizes, em meio à preservação das anteriores linhas de conduta no tocante ao que importava: o emprego, a moeda, o valor das pequenas coisas, a credibilidade das regras estáveis. As coisas só começaram a se complicar, realmente, do meio para o fim, mas na diplomacia a coisa se precipitou. A diplomacia dos antigos foi mudada desde o início, em nome de uma suposta modernidade que hoje se considera ser uma mera volta atrás na roda da História, um retorno a velhas concepções que acreditávamos terem sido superadas por experiências já testadas e desacreditadas pelos fracassos acumulados em anos e décadas de ensaios e 282

erros, inclusive em tentativas frustradas dos antigos. As concepções que comandaram as mudanças já estavam sedimentadas desde longas décadas nas mentes dos soi-disant modernos; alguns deles, aliás, conseguiam ser ainda mais coerentemente anacrônicos: eles mantinham as mesmas ideias desde os tempos em que o Império distribuía as cartas um pouco em todas as partes do universo, sobretudo no hemisfério, e pretendiam aplicálas aos novos tempos, como se o mundo tivesse se mantido tal qual, como se o Império fosse o mesmo, depois de quatro ou cinco décadas de mudanças não controladas. Os modernos pretendiam rejeitar qualquer aliança com os representantes do Império e estabelecer uma parceria dita estratégica com os representantes do Império do Meio, que eles acreditavam ser os novos aliados preferenciais. Sequer se lembravam de uma velha frase do mais famoso imperador do Oriente, segundo quem o imperialismo era apenas um “tigre de papel”, e como tal deveria ser tratado. Esses companheiros orientais, por falar nisso, abandonaram antigas diatribes anti-imperialistas e trataram de usar a seu proveito, na máxima extensão possível, as benesses do velho Império – que continuava novo, na verdade – para negócios dos mais diversos tipos: troca de saberes, comércio ampliado, investimentos, pirataria, contrafação, possibilidades no campo das capacitações humanas em ciência e tecnologia, enfim, tudo aquilo em que o Império imperialista (se nos perdoam a redundância) continua primando pela excelência. Totalmente ignaros quanto a essas mudanças certamente dialéticas, os modernos inventaram uma tal de “mudança no eixo das relações de força no mundo”, para a qual pretendiam contar com o apoio e a ação conjunta dos companheiros orientais, mas nisso se viram frustrados pelo pouco companheirismo e reduzida coordenação da parte dos novos companheiros. Eles até queriam inaugurar essa trouvaille bizarre que seria uma “nova geografia do comércio internacional”, feita essencialmente de relações Sul-Sul, como se esses intercâmbios tivessem de ser feitos à exclusão de todos os demais, com os velhos parceiros do Norte, aliás bem mais providos de mercados e de créditos do que os novos, os do Sul, recorrendo, por vezes, a insolvências e outras práticas heterodoxas, digamos assim. Os modernos nem se deram conta que os companheiros orientais já tinham inaugurado, bem antes, a tal de “nova geografia do comércio internacional”, que era feita, justamente, de suas exportações de todos os tipos de produtos para todos os parceiros possíveis, com ênfase especial nos mercados dos velhos imperialistas, os mais atrativos a que podem aspirar os emergentes dinâmicos da economia mundial.

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Em outra iniciativa infeliz, os modernos se empenharam em implodir propostas dos velhos imperialistas de liberalizar o comércio no âmbito regional, alegando que o que eles pretendiam não era bem integração, e sim um projeto de anexação, perverso portanto, e como tal devendo ser devidamente sabotado pelos novos anti-imperialistas no poder. Tal foi feito, com sucesso surpreendentemente rápido, tendo os modernos encontrado aliados complacentes (ainda mais anti-imperialistas) no próprio continente, o que permitiu uma implosão rápida, definitiva, sem apelo, desse projeto imperialista. Menos feliz foi constatar que os demais possíveis parceiros na luta anti-imperialista logo apelaram ao império para que este negociasse tratados bilaterais de adesão, que lhes permitisse acesso privilegiado ao mercado dos velhacos imperialistas. Ah, ces lâches, ces traîtres! Eles não percebem que estão se metendo na jaula do leão. Inabalados por essas surpresas desagradáveis, os modernos buscaram expulsar o império de todas as instâncias de coordenação e consulta da região, e assim também foi feito, com a constituição de novas entidades, exclusivamente regionais, numa mostra de orgulho e de afirmação identitários que certamente contaria com a plena aprovação dos próceres da independência, esses antigos heróis da pátria continental, enfim liberta da tutela imperial e de influências nefastas vindas de parceiros não desejados. Mais um sucesso, igualmente, nessa nova empreitada, e assim passamos a dispor, graças aos modernos, de entidades dedicadas exclusivamente aos interesses regionais, mesmo se esses interesses estavam difusamente representados nas novas estruturas para poder cumprir adequadamente o que supostamente eram os seus objetivos: integrar todos num impulso vital em direção de um novo tipo de desenvolvimento, autônomo, integral, justo, igualitário, inclusivo, progressista, soberano, ativo e altivo, bref, moderno. Não importa muito se essa modernidade se fez em torno de velhas ideias, as tais defendidas pelos modernos, retiradas por eles de velhos alfarrábios de outras eras, feitas de muita intervenção estatal, de dirigismo, de protecionismo, de espaços para a implementação de políticas setoriais de desenvolvimento nacional. Tudo isso, ao fim e ao cabo, vai contra os objetivos da integração que se pretende impulsionar mediante projetos grandiosos traçados nas conferências de cúpula e nos encontros políticos. Enfim, não se pode pretender que tudo se faça ao mesmo tempo, e que tudo aconteça como num passe de mágica, inclusive, naquilo que funcionava antes. Existia, por exemplo, um pequeno espaço de livre comércio, que deveria evoluir para uma união aduaneira, e depois, de maneira otimista, para um mercado comum, como o daqueles 284

velhos europeus imperialistas. O fato é que essas coisas meramente comerciais foram julgadas pouco condizentes com o novo espírito inclusivo, progressista, dos modernos. Não houve hesitação: o ânimo mesquinhamente comercialista que tinha presidido à assinatura dos velhos acordos foi substituído pela nova abertura de espírito, social, inclusivo, avançado e progressista, dos novos acordos rapidamente concluídos, todos eles destinados a melhor defender os direitos sociais dos trabalhadores, mesmo se o comércio – esse outro grande traidor das melhores esperanças – insistia em diminuir perigosamente de volume e enfrentar alguns sobressaltos imprevistos. No terreno dos procedimentos, finalmente, as mudanças foram sensíveis, lato senso, e muito pouco sensíveis, estrito senso. A começar pela famosa pirâmide dos processos decisórios, rapidamente invertida pelo esprit partisan, dito de centralismo democrático (na verdade autoritário) dos modernos. Os ilotas responsáveis pelo trabalho duro em cada uma das áreas e células em que se tinha organizado a casa antiga, numa divisão social do trabalho dada pelas competências técnicas de cada um, passaram a ser mais orientados pela linha do comitê central, do que preferencialmente pela análise técnica de cada assunto do dossiê; assim, todo o processo começou a funcionar de modo estranhamente alterado, de cima para baixo, e não segundo o curso natural das coisas, como ocorria no Ancien Régime. De resto, como explicar decisões bizarras e tomadas de posição inéditas, que dificilmente teriam emergido a partir do fluxo normal de estudo dos temas, baseado na memória dos antigos e nos maços da memória coletiva? Aliás, pergunta-se até onde, e se, algumas delas estão devidamente registradas nos cartapácios onde antigamente se guardava todo o itinerário anotado das instruções adotadas? Que reste-t-il de tout cela? Une photo, vieille photo, d’une ancienne demeure? Messieurs, o quadro que estou traçando pode parecer exageradamente sombrio, e pouco condizente com as novas disposições dos modernos, mas o fato é que nenhum dos objetivos que eles mesmos se tinham fixado para sua diplomacia ativa e altiva – e soberana, cela va sans dire – foram alcançados, e não foi por falta de empenho: não só o representante le plus en vue dos modernos saiu pelo mundo em desabalada carreira de viagens, visitas, convescotes e outras conferências grandiosas, como também o assessor principal para essas coisas de soberania passou o tempo todo indo de um aeroporto a outro, de uma capital a outra. Era preciso proclamar os novos tempos e as intenções de

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mudança nas relações de força teimosamente presentes no mundo arrogante dos velhos senhores, e de reforma do comércio internacional, em prol da tal nova geografia. Vous savez, Messieurs, ce qui en est résulté de tous ces projets. Enfin, c’est le droit, pour chacun, d’influer sur l’administration du Gouvernement, soit par la nomination de tous ou de certains fonctionnaires, soit par des représentations, des pétitions, des demandes, que l’autorité est plus ou moins obligée de prendre en considération. Os modernos abusaram de todas essas prerrogativas até a exaustão, multiplicando cargos e novas agências estatais à outrance. C’est probablement par un coup de malchance que as aspirações não se materializaram; e não foi certamente por falta de presença no mundo: nenhum petit village ficou à margem da nova cartografia universal tão sabiamente desenhada pelo guia genial dos povos. Mas, o que restou, finalmente, da diplomacia dos modernos, comparada à dos antigos? Vejamos antes, brevemente, em que consistia a diplomacia dos antigos, como nos recomendaria nosso velho amigo Benjamin Constant. Ela consistia em exercer coletivamente, mas diretamente, antigos princípios de soberania – sem precisar ficar proclamando a sua defesa a cada instância, a cada momento, en tout et pour tout – e a deliberar, no pleno respeito dos processos decisórios bem experimentados, sobre todos os acordos e os tratados de aliança e de cooperação, dos quais pleno e integral conhecimento era dado em seguida ao corpo parlamentar da nação, para seu debate e eventual aprovação; ela também se preocupava em dar a devida publicidade a esses atos internacionais pelos meios disponíveis, para que os citoyens deles tivessem consciência, sem que qualquer secret d’office fosse subtraído aos representantes da nação. Messieurs, s’il y a un souvenir qui me poursuit sans cesse, c’est celui-ci : ele pode até parecer une vieille chanson d’automne, mas ele se baseia nas boas qualidades da diplomacia dos antigos em comparação com essa, supostamente “moderna”, dos modernos. Em todos os pontos de substância, e mesmo nos de organização e métodos, em torno dos quais as duas foram exercidas, em suas respectivas plenitudes, não encontro modernidades efetivas na diplomacia dos modernos, só velharias, e muitos fracassos acumulados. Alors, que reste-t-il des beaux jours das parcerias estratégicas, escolhidas entre os anti-hegemônicos, que prometiam nos conduzir aux sommets des inner circles do poder mundial, a tal de democratização das relações internacionais? 286

Que reste-t-il da fabulosa organização sem a tutela do império, que pretendia manter a democracia e inaugurar uma nova era de desenvolvimento inclusivo, com comércio ampliado entre os parceiros progressistas e novos direitos assegurados a todo o povo trabalhador? Que reste-t-il de tout cela? Une photo, vieille photo? O fato é, Messieurs, que a diplomacia dos modernos falhou, miseravelmente, nas suas expectativas mais otimistas, e até nas mais prosaicas, aquelas que dependiam da concordância dos novos aliados e parceiros estratégicos para mudar irreversivelmente o velho mundo dos velhacos imperialistas. Existem, claro, novos e ambiciosos órgãos, como esses bancos de financiamento estatal, que proliferaram como champignons après la pluie, e que deveriam trazer novos negócios para nossos mais valentes capitalistas. Mas a realidade é que não falta dinheiro no mundo; o que falta, na verdade, são bons projetos para serem financiados com o dinheiro privado dos capitalistas, sempre ávidos para colocar seus recursos em coisas que lhes permitam retornos razoáveis. Esta é, de fato, uma pergunta que je me fais, Messieurs: se existe tanto dinheiro privado pelo mundo, por que fazer arranjos financeiros oficiais em todos esses bancos estatais, por que dispersar o dinheiro público, quando ele deveria se dirigir às nossas necessidades realmente sociais e mais urgentes? E se uma análise de custo-benefício indicar que não caberia realizar investimentos que tiveram uma decisão puramente política em seu desenho e avaliação? O que fazer com tantos capitalistas promíscuos que se aproximam dos modernos apenas para arrancar os parcos recursos? E o que dizer dos impostos de todos os citoyens que são canalizados para projetos duvidosos no exterior, et qui plus est, tenus dans le plus grand secret ? C’est cela une marque de diplomatie, par hasard ? La diplomatie du secret, du cache-cache ? J’avoue, Messieurs, que je n’ai pas de réponses à toutes ces questions. Começo a desconfiar – mas esta já era uma suposição de départ – que a diplomacia dos ditos modernos é feita, na verdade, de velharias, de ideias muito antigas, que se aposentaram em outras paragens e que acabaram aportando por aqui e aqui ficando, pois encontraram terreno fértil na cabeça de certos amadores da diplomacia, uma tribo de exóticos e de sonhadores que ainda não atinou, hélas, que o mundo mudou, e que eles, sem perceber, acabaram ficando anacrônicos. E se por acaso estivéssemos todos enganados, no sentido

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em que os antigos são os verdadeiros modernos, e que os tais modernos se revelaram surpreendentemente en arrière des faits et des choses ? Voyez bien, honnêtes gens! Pode até ser que este meu relatório de minoria, Messieurs, não sirva para muita coisa, em nossos tempos não convencionais. Mas não hesito em apresentá-lo aos senhores, na esperança (peut-être illusoire) de que seu esprit de contradiction possa convencer de ce formidable bouleversement du monde alguns céticos dispersos dans cette ancienne demeure, riche de traditions, par trop respectable, mais devenue – comment le dire Messieurs? – dispensable, superflue, négligeable? Como diriam em certas terras exóticas, talvez bizarras: não há bem que sempre dure, não há mal que nunca se acabe. Os anos de bonança, quando tudo parecia fácil e alcançável, parecem aujourd’hui révolus. É tempo de pensar em revisar certas ideias fora de lugar e fora de época; é hora de repensar os fundamentos dessa tal de diplomacia dos modernos. Mal parafraseando os epígonos, ela se parece com aquelas estruturas sociais desajustadas, perdidas na transição entre dois modos de produção, e que não conseguiram combinar muito bem as forças produtivas da nação, uma infraestrutura pujante ainda que contida por um Estado feudal, e a superestrutura das relações de produção, que carecem de que lhes quebrem os grilhões que as prendem a noções antiquadas, contaminadas pela poeira dos tempos, mesmo que pouco convencionais. L’édifice bien décoré proposé en tant que modèle et hautement chanté par les modernes ce serait-il, finalement, écroulé ? Il est temps, Messieurs, de repartir, alors, pour de bon. J’ai confiance que les bonnes idées prévaudront, car ce sont elles qui sont les bonnes, même anciennes. En fait, Messieurs, les modernes, sommes nous. Ils sont les arriérés, les âmes candides, les décervelés. Défions-nous donc, Messieurs, de cette admiration béate, déplacée, qu’ils entretiennent pour certaines idées qui semblaient modernes, mais qui, en fait, ce sont des réminiscences antiques, d’une époque complètement révolue. Libérons-nous de tout cela, car nous ne sommes pas esclaves de concepts liés a des anciens despotismes. La diplomatie antique, Messieurs, voilà la véritable modernité! En plus, elle défend les libertés, contre les amis des dictatures et des tyrannies. Réjouissons-nous donc de sages conseils de la diplomatie des anciens, car c’est elle qui nous a amené les progrès que les civilisations réussies ont consenti à 288

l’Humanité toute entière. C’est elle qui nous a mené à tout ce que l’ancienne maison de notre diplomatie a construit de bien et de durable. C’est elle qui va nous faire revenir sur le chemin de l’avenir, car c’est elle qui correspond le mieux à l’éducation morale des citoyens…

Paulo Roberto de Almeida (com agradecimentos adicionais a Charles Trenet); Nota final: o presente texto é alegórico, no sentido mais abstrato possível, e não pretende reproduzir nenhuma situação concreta; honni soit qui mal y pense... 2822. “Da diplomacia dos antigos comparada à dos modernos”, Hartford, 4-7 maio 2015, 12 p. Artigo, da série clássicos revisitados, comparando a diplomacia dos antigos, ou seja, pré-2003, com a dos modernos, ou seja, dos companheiros, tomando como modelo o texto de Benjamin Constant, “De la liberté des anciens comparée à celle des modernes”. Mundorama (20/05/2015; link: http://mundorama.net/2015/05/20/da-diplomacia-dos-antigos-comparada-a-dosmodernos-por-paulo-roberto-de-almeida/). Relação de Publicados n. 1178.

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37. A ordem econômica mundial, do século 19 à Segunda Guerra

Respostas a questões colocadas pela RBPI, a propósito da publicação do artigo: “Transformações da ordem econômica mundial, do final do século 19 à Segunda Guerra Mundial”, Revista Brasileira de Política Internacional (vol. 58 (1) 127-141; link da revista: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_issuetoc&pid=0034732920150001&lng=en&nrm=iso; DOI: http://dx.doi.org/10.1590/00347329201500107; link do artigo: http://www.scielo.br/pdf/rbpi/v58n1/0034-7329-rbpi58-01-00127.pdf). Site da RBPI (30/09/2015; link: http://ibri-rbpi.org/2015/09/30/transformacoes-daordem-economica-mundial-do-final-do-seculo-19-a-segunda-guerra-mundial-entrevistacom-paulo-roberto-de-almeida/).

Perguntas da editoria da RBPI: 1) Como apontado no artigo, o liberalismo clássico não existe mais desde a década de 1930. O Estado ganhou papel mais ativo na sociedade, e as relações sociais passaram a ser amplamente regulamentadas. Apesar disso, movimentos políticos, como os libertários nos Estados Unidos, defendem a volta daquele modelo. O que você acha disso? PRA: Sendo breve, eu diria que não existe a menor chance disso acontecer, ou seja, um volta ao “modelo” liberal, que não era modelo, e que de fato não existia. Mas cabe elaborar um pouco mais a esse respeito, recolocando esse suposto “modelo” em seu contexto histórico. Existem aqui duas questões de natureza diferente: o mundo real e o mundo das ideias. O primeiro tem a ver com processos e eventos concretos, fatos 290

objetivos, ocorrendo no mundo das relações sociais efetivamente existentes: a produção, a comercialização, fluxos e estoques de poupança, de investimentos, moedas, etc. O segundo se refere a um conjunto de concepções sobre esse mundo, que podem ser aplicadas ex-ante “por engenheiros sociais”, ou seja, para planejar e mudar a forma como as comunidades humanas gostariam ou poderiam organizar aquelas relações, ou implementadas a posteriori, ou seja, o que e como fazer em face de eventos ou fatos objetivos que fogem ao processo normal de desenvolvimento das mesmas relações, e que exigem respostas da comunidade, tomadas com base em certas ideias, pequenas, modestas, ou grandiosas, verdadeiramente transformadoras. Quanto mais pretensiosas essas ideias, maiores os desastres que podem esperar seus propositores e suas vítimas. O capitalismo, tal como conhecido historicamente, pertence, obviamente, bem mais ao mundo real do que ao mundo das ideias, mesmo quando ideólogos e filósofos sociais buscaram teorizar ou explicar o “sistema”, desde o Iluminismo até a atualidade. O fato é que nenhum cérebro genial “planejou” o capitalismo: ele foi sendo implantado aos poucos, como resultados de processos “naturais” de desenvolvimento econômico e social, sem qualquer central coordenadora de suas “boas” ou “más” variantes. Diferente é o status do socialismo e das concepções coletivistas e de dirigismo econômico, aplicadas tanto nos casos dos fascismos europeus do entre-guerras – como o fascismo mussoliniano ou o nazismo hitlerista – quanto na experiência mais longeva do socialismo de tipo soviético. O dirigismo também existiram na forma mais amena do planejamento indicativo de diversos países europeus na segunda metade do século 20. Aqui estamos falando de ideias que tentaram guiar o mundo real, sempre com falhas e limitações intrínsecas, ou mesmo produzindo alguns desastres incomensuráveis. O liberalismo clássico, que na verdade nunca existiu, de fato, correspondeu, no campo do mundo real, ao chamado período do capitalismo laissez-faire, a belle Époque, grosso modo do último terço do século 19 até a Primeira Guerra, e no campo das ideias, ao pensamento liberal de corte essencialmente britânico (escocês ou inglês), com umas poucas derivações continentais (Benjamin Constant ou Alexis de Tocqueville, na França, por exemplo, ou Wilhelm von Humboldt, na Prússia). Se ele de fato existiu, no terreno do mundo real e no das ideias, ele veio a termo bem antes de 1930, e pode ter sido “enterrado”, pelo menos temporariamente, pelos eventos momentosos da Grande Guerra e, depois, pelas crises do entre-guerras, sobretudo pela Grande Depressão. Termina aí um suposto liberalismo, muito pouco liberal, e muito menos clássico; foram 291

apenas experimentos locais de liberalização política e de relativa liberdade econômica que correspondem ao triunfo temporário das concepções burguesas do mundo. O neoliberalismo, que se ensaiou no terreno das ideias a partir das primeiras reuniões da Sociedade do Mont Pelérin (com Friedrich Hayek), no final dos anos 1940, só conseguiu ter um tênue ressurgimento muitos anos depois, quando da ascensão de líderes políticos conservadores, como Margaret Thatcher, no Reino Unido, em 1979, e Ronald Reagan, nos EUA, em 1980. Na periferia do sistema, nunca chegou a existir qualquer neoliberalismo consistente, embora tenham ocorrido, no México, no Chile, e alguns outros (poucos) países, tímidos processos de reformas econômicas tendentes a limitar os excessos do nacionalismo doentio e do estatismo esquizofrênico em uso e abuso nos anos da grande euforia keynesiana, do final dos anos 1940 ao final dos 70. Mais recentemente, tomaram pequeno impulso grupos liberais ou libertários, e alguns “anarco-capitalistas”, que representam uma tentativa de “revival” de antigas ideias liberais, ou libertárias, mas que provavelmente não vão prevalecer, no momento presente, ou, provavelmente, em qualquer tempo do futuro previsível. Os fenômenos são quase inteiramente políticos, ou seja, de círculos intelectuais, e dispõem de pouco apoio dos verdadeiros capitalistas, estes sempre ocupados em obter algum tipo de entendimento com as burocracias governamentais, com a máquina estatal. Ou seja, os ideais liberais, ou libertários, se desenvolvem um pouco à margem dos processos reais de organização econômica e social. Depois desta contextualização histórica sobre o itinerário das ideias e processos econômicos no último século, cabe responder à pergunta especificamente formulada sobre as chances que teria, historicamente ou praticamente, uma volta a um modelo liberal de capitalismo que teria existindo mais de um século atrás. Meu argumento, como já referido, é que esse liberalismo, na verdade, nunca existiu, de fato, ou seja, como expressão de tendências “naturais” do sistema capitalista nessa etapa de seu desenvolvimento histórico. Respondendo rapidamente à primeira pergunta, portanto, pode-se confirmar que o liberalismo “clássico”, se já não existia antes, não tem a mais mínima chance de retornar agora, e não tem qualquer perspectiva futura em termos de governança econômica ou de organização do Estado. Ele permanece uma ideia. Não é que ele não tenha nenhuma chance teórica de voltar a conquistar corações e mentes de acadêmicos, ou mesmo de algumas (pequenas) frações da opinião pública, pois sempre existirão ideólogos liberais que conseguirão fazer passar a sua mensagem 292

de liberdades econômicas a espectros mais amplos de algumas sociedades. É que a complexidade do mundo moderno, o agigantamento da burocracia, a dimensão já alcançada por um sem número de programas estatais, ou públicos, nos mais variados setores da vida social (e individual) tornam irrisórias essas chances de revival liberal no futuro previsível. Será muito difícil, senão impossível fazer o Estado recuar para as dimensões e a importância econômica que ele tinha um século atrás. Seria como se tivéssemos de colocar o gênio para dentro da garrafa outra vez, ou, como já afirmou uma mente privilegiada, de “enfiar a pasta para dentro do dentifrício novamente”. O fato de que grupos liberais, libertários, façam campanha ou agitem bandeiras proclamando a necessidade de se reduzir o papel e o peso do Estado na vida não só econômica, mas simplesmente cotidiana, não significa que essa reversão seja factível ou sequer imaginável. Já nem se está falando dos anarco-capitalistas, dos libertários, que desejam uma ausência completa do Estado, pois eles são como os anarquistas do século 19: um punhado de sonhadores, um número muito reduzido de militantes utópicos. Os liberais verdadeiros, aqueles que desejam apenas medidas racionais para uma maior amplitude das liberdades econômicas na organização social contemporânea, não devem esperar qualquer avanço notável em favor ou no sentido de sua pregação bastante sensata e altamente razoável. O liberalismo não desapareceu, e não desaparecerá, mas suas chances de se tornar hegemônico – o que ele nunca foi – continuam e continuarão bastante reduzidas. As razões podem ser resumidas assim: as sociedades contemporâneas dispondo de economias avançadas, com um grau razoável de prosperidade e de bem-estar para a maioria da população, ainda não enfrentaram crises fiscais verdadeiras para reverter a natureza ainda essencialmente keynesiana de suas políticas econômicas; tampouco elas conheceram rupturas severas de seus modelos previdenciários e assistencialistas, que as obrigassem a desenhar e implementar sistemas alternativos de seguridade social, que represente uma diminuição do tamanho e do custo do Estado benefactor. Os países e economias socialistas desapareceram praticamente por completo – e o que restou são apenas aberrações aguardando os taxidermistas – mas eles nunca foram modelo de nada, a não ser para mentes alucinadas das academias. Quanto aos países emergentes e nações em desenvolvimento, eles ainda estão construindo seus sistemas de assistência social e de seguridade inclusiva para desistir no meio do caminho. Nos dois casos, países desenvolvidos e em desenvolvimento, políticos demagogos, mandarins privilegiados, 293

burocracias poderosas, excessivamente poderosas, impediriam qualquer reversão no processo de construção de um Estado babá, que aliás está em expansão contínua. Voltando a ser breve, eu apenas apelo ao realismo ou ao bom senso: não se pode esperar a volta do liberalismo, nos Estados Unidos ou em qualquer outro lugar. Não há nenhum risco dessa coisa acontecer novamente, inclusive porque já não acontecia antes. O Estado sempre foi poderoso, desde os tempos do absolutismo; ele só tinha um papel econômico relativamente reduzido por razões próprias ao processo de construção das modernas sociedades urbanas e à organização do modo de produção capitalista. O gênio já tinha saído da garrafa, talvez antes mesmo da Primeira Guerra Mundial; depois, então, ele nunca mais deixou de se espalhar por cada poro da sociedade. Esse é o mundo real, mas também está nos corações e mentes, ou seja, o culto desmedido do Estado. Se olharmos o povo brasileiro, por exemplo, existe uma evidente comprovação dessa tese: por mais que ele sofra nas mãos do Estado – de um Estado semifascista como o que aqui existe – o povo brasileiro ama o Estado, quer mais Estado, suplica por políticas estatais, tanto quanto os capitalistas estão sempre pedindo “políticas setoriais” aos ministros e burocratas de Brasília. Portanto, não esperem nenhum recuo por enquanto. 2) Você menciona, no artigo, que o pós-Primeira Guerra foi caracterizado pelo forte intervencionismo estatal na economia. Após a Segunda Guerra Mundial, no entanto, o resultado foi completamente diverso, com a adoção do multilateralismo econômico. Como explicar resultados tão distintos, em tão curto espaço de tempo, em face de praticamente os mesmos países? O forte intervencionismo estatal na economia começou no próprio bojo e em razão da Primeira Guerra, e não apenas na organização da produção industrial voltada para a guerra, mas também em função de todos os mecanismos financeiros e monetários que conduziram à uma quase completa subordinação da economia às razões da política até então conhecida na história da humanidade, processos que foram exacerbados nos casos dos fascismos europeus, e levados a um delírio extremo no caso do bolchevismo. Vozes liberais como as de Ludwig von Mises ou de Friedrich Hayek caíram num vazio “ensurdecedor”, ao mesmo tempo em que ascendiam as doutrinas econômicas de corte intervencionista, mesmo na versão mais moderada do keynesianismo aplicado. O fato de que no segundo pós-guerra se tenha caminhado, no plano das relações econômicas internacionais, para a ordem multilateral simbolizada pelas instituições de Bretton Woods e pelo Gatt não quer dizer que se tenha abandonado o intervencionismo estatal na economia, que aliás não se opõe ao primeiro fenômeno, e que pode até ter 294

sido o contrário do pretendido. Quase todos os países avançados aderiram, por certo, ao multilateralismo econômico e continuaram, ou aprofundaram, formas diversas de intervencionismo estatal, seja na forma mais light do contratualismo de inspiração rooseveltiana, seja na versão bem mais dirigista do socialismo europeu (com diversos países conduzindo processos extensivos de nacionalizações e de estatização, com experimentos de planejamento indicativo que traduziam a mesma intenção). Os resultados, portanto, não são distintos, e não são contraditórios, pois o fato de se trabalhar num ambiente internacional mais aberto aos intercâmbios os mais diversos – comércio, investimentos, abertura econômica, de modo geral – não impediu governos de estenderem a regulação estatal a setores cada vez mais “privados” da vida social, em saúde, educação, planejamento familiar, sempre num sentido “redistributivo” – ou seja, para corrigir “desigualdades sociais” – e geralmente intrusivo na vida pessoal. Mesmo nos países que souberam proteger as liberdades individuais – afastando o temor do Big Brother orwelliano, que no entanto existia plenamente na União Soviética e na China comunista, por exemplo –, a atuação do Estado se fez mais visível e praticamente avassaladora, ainda que estando presente de uma forma não opressiva, como ocorria nos casos “clássicos” de ditaduras comunistas. Mas até mesmo esses regimes opressivos terminaram por aderir ao multilateralismo, embora nunca extirpassem os aspectos mais intrusivos do controle estatal sobre seus cidadãos. No caso ainda mais exemplar dos países em desenvolvimento, em princípio capitalistas e aderentes formais à ordem econômica de Bretton Woods, o papel do Estado foi igualmente determinante, quando não dominante, em quase todas as áreas relevantes de organização econômica. Continua a ser, de certo modo, inclusive porque vários deles, depois de breves e/ou tempestuosos ensaios com experimentos “neoliberais”, voltaram, pela via eleitoral, ao populismo estatizante e demagógico dos velhos tempos de keynesianismo improvisado. A pequena reversão do estatismo exacerbado registrado nesses países no período recente e até os processos mais consistentes de desestatização e de maior abertura econômica – como aliás ocorre atualmente na China – não foram capazes de diminuir o peso do Estado na vida econômica, como aliás evidenciado nas estatísticas fiscais de todos os países no último meio século: basta observar a carga fiscal nos países da OCDE, para constatar o progresso constante do ogro estatal em praticamente todos os países, independentemente dos progressos do multilateralismo e da globalização desde os anos 1990. Em síntese, não cabe equacionar o multilateralismo da ordem de Bretton 295

Woods com o fim do intervencionismo econômico – embora ele tenha eliminado os aspectos mais discriminatórios dos regimes comerciais precedentes, assim como dos sistemas de pagamentos – pois este continuou sob novas roupagens e em novas formas. O dirigismo rústico dos sistemas coletivistas do entre-guerras cedeu lugar ao Estado de bem-estar social, que logo estabeleceu outros requerimentos em termos de “extração fiscal” e de “redistribuição” pelo alto, não pela via dos mercados. 3) Antes da Grande Recessão, de 2008, muitos analistas apontavam que o fim da Guerra Fria levou à emergência de uma nova era liberal. Nesse sentido, a virada entre os séculos XX/XXI era comparada à virada entre os séculos XIX/XX. Você acredita que o paralelo é válido? Analistas superficiais – como jornalistas econômicos, historiadores apressados e sociólogos mal preparados – adoram ver paralelos históricos ou analogias formais entre processos separados por décadas, ou por séculos inteiros. Daí imagens frequentemente invocadas de um “novo equilíbrio de poderes” – ao final da Guerra Fria, como se estivéssemos na belle Époque – ou as demandas por um “novo Bretton Woods”, em face da enorme desordem financeira trazida pelas crises da economia internacional, nos anos 1990 e a partir de 2008. A ideia de que houve uma “nova era liberal” no final da Guerra Fria não corresponde absolutamente aos processos históricos efetivamente havidos. A Guerra Fria não tem tanto a ver com a terceira onda de globalização – iniciada, por sinal, antes de seu término “oficial”, ainda nos anos 1980, quando a China se abre aos capitalistas estrangeiros – quanto a abertura econômica ocorrida no último quinto do século 20 tem a ver, fundamentalmente, com o esgotamento e a subsequente implosão prática do modo socialista de produção enquanto alternativa credível ao modo capitalista de organização econômica e social. Esse “modo capitalista” – que certamente não é uno, unificado ou uniforme, e que sequer é capitalista em toda a sua extensão, sendo mais exatamente um sistema de mercado baseado em certas regras comuns – não é necessariamente liberal (como prova o caso da China), ou tampouco menos intervencionista do que os modelos keynesianos exacerbados em vigora na maior parte da Europa continental, na América Latina e em vários outros cantos do planeta. O capitalismo é um processo “irracional”, incontrolado e incontrolável, assumindo formas diversas ao longo dos séculos, e que não depende da democracia liberal para frutificar e se consolidar; ele pode ocorrer sob os regimes políticos os mais diversos, inclusive ditaduras abertas. É certo, porém, como dizia Milton Friedman em Capitalism and Freedom (1962), que a liberdade de mercados é 296

uma condição necessária – embora não suficiente – das democracias. O capitalismo facilita a vida das democracias, e certamente a aproxima do polo liberal de organização social e política, mas ele não pode, por suas próprias forças moldar todo um sistema, o que ultrapassa em muito a sua “missão histórica”: ele veio ao mundo para produzir mercadorias, não para distribuir bondades políticas, e menos ainda para corresponder a construções teóricas generosas e libertárias como podem ser os regimes liberais. Não acredito em paralelos históricos ou em analogias superficiais, ainda que alguns processos possam ter similaridades formais, uma vez que os atores fundamentais – que são os Estados nacionais, que estão conosco há quatro séculos, e que prometem perdurar por vários séculos mais – permanecem os mesmos, e os mecanismos de ação – dissuasão, cooperação, intimidação, persuasão, dominação – também permanecem substancialmente os mesmos desde Westfália. O fato de existir essa grande coisa que se chama ONU – que De Gaulle chamava de “grand machin” – não muda muito nas equações de base do sistema internacional, que continua a ser interestatal e soberanista. O que poderia haver de paralelo entre o final do século 19 e o início do 21? Pouca coisa, se alguma. Os Estados, num e noutro caso, continuam a ser decisivos na vida política e econômica do mundo, agora ainda mais do que antes, inclusive porque eles ganharam um poder absoluto de emissão irresponsável de moeda, provocando os mesmos males que já tinham provocado na Primeira Guerra Mundial e mais além, ou agravando outros: inflação, déficits orçamentários, desequilíbrios fiscais, regulação intrusiva, endividamento excessivo, movimentos cambiais erráticos e outros males que ainda estão por vir. Seria ilusão, contudo, acreditar que vamos retornar a um padrão ouro, a uma intervenção mínima dos Estados na vida econômica, ou às liberdades econômicas – livre fluxo de capitais e de pessoas, comércio relativamente desimpedido ou protecionismo moderado – que existiam antes da Primeira Guerra. Sequer no plano político o cenário pode ser colocado em paralelo: a despeito de continuarem a existir, grosso modo, as mesmas grandes potências, a globalização atual se vê fragmentada em quase duas centenas de soberanias distintas e independentes. As guerras deixaram de ser globais, por certo, mas a mortandade continua numa escala ainda respeitável, ainda que espalhada por centenas de conflitos civis, étnicos, religiosos e no aumento da criminalidade transnacional e do terrorismo fundamentalista. O mundo é provavelmente melhor, no cômputo global, do que um século atrás – longevidade, níveis de bem estar, acesso a bens e serviços culturais, epidemias de fome que podem 297

não ser tão mortíferas quanto no passado, etc. – mas ele continua tão excitante, ou tão perigoso, quanto antes... 4) Entre o final do século XIX e meados do século XX, houve um intenso processo de tentativa e erro. Nesses processos, várias alternativas políticas e econômicas foram testadas. Para você, quais são as principais lições desse período de grandes ensaios? Excelente pergunta, mas que não pode ser respondida de modo simplista, ou de forma ideológica. Aqui também é preciso estabelecer as distinções necessárias entre, de um lado, processos reais no bojo de um itinerário “natural” da história econômica do sistema capitalista, e, de outro, as ideias e as concepções que justamente estiveram por trás dos grandes experimentos de “engenharia social”, que foram todos de natureza política. Por exemplo, a noção de uma sucessão de “grandes ensaios”, de processos de “tentativa e erro”, não pertence ao reino das possibilidades históricas previsíveis, pois ela pressupõe a conformação de uma formação social submetida à ação voluntária de atores sociais determinados a implementar esses experimentos, o que geralmente não é o caso, pelo menos não no ambiente natural das democracias de mercado, que são as experiências mais permanentes na história humana dos últimos cinco séculos. É certo que grandes revoluções sociais – a francesa do século 18, a bolchevique e a maoísta do século 20, não esquecendo as convulsões sociais que levaram aos fascismos do entreguerras – não foram planejadas, mas as mudanças impostas à economia e à vida social e econômica na sequência de cada uma delas foram planejadas e implementadas sem que os “erros” fossem esperados: estes resultaram da “lei” das consequências involuntárias. Regimes absolutistas, ditaduras abertas, tiranias comunistas e fascistas surgiram e desapareceram enquanto experimentos de “ensaio e erro”, uma vez que violavam certas “leis econômicas” da organização social, ou contrariavam a aspiração natural dos seres humanos a maior autonomia, à liberdade individual, à iniciativa privada e à defesa da propriedade. O fato de a democracia inglesa ter se mostrado durável desde 1688, ou de a grande nação americana ter preservado até a atualidade os traços fundamentais estabelecidos um século depois pelos “pais fundadores” deve-se provavelmente ao fato de não terem essas duas formações políticas embarcado em processos tentativos de “ensaio e erro”, e sim respeitado algumas regras simples do jogo democrático e da ordem econômica. Todas as “grandes” experiências contemporâneas nessa vertente – os fascismos europeus do entre-guerras e suas derivações periféricas, a escravidão bolchevique e o 298

monstruoso delírio maoísta, com seus milhões de mortos – foram todas legítimos empreendimentos de “engenharia social”, o que não ocorreu com as democracias de mercado, independentemente de suas crises econômicas e de seus problemas sociais. No pós-guerra, as inflações latino-americanas, as sucessivas trocas de moedas, no bojo de catastróficos programas de “engenharia econômica” tentativamente de estabilização, as crises intermitentes derrubando presidentes e trocando ditadores também pertencem ao mesmo universo dos ensaios de “tentativas e erros”, sobretudo no campo econômico. O itinerário da União Soviética é exemplar nesse sentido: socialismo de guerra e seu cortejo de fome e miséria; Nova Política Econômica, e sua pequena janela de liberdade para pequenos mercados capitalistas; estatização extensiva e lançamento dos planos quinquenais; coletivização da agricultura, seguido de nova onda de fome e de uma enorme mortandade provocada; socialismo num só país e industrialização à base de trabalho “escravo”; estatização completa da economia e consolidação de uma divisão entre a produção civil e a militar; esgotamento do planejamento centralizado e ensaios parciais de mecanismos de mercado; esgotamento completo do “modo socialista de produção” e implosão final do sistema. O itinerário maoísta é ainda mais pavoroso, com milhões de mortos sacrificados nos diversos experimentos de engenharia social no espaço de uma única geração: repressão contra capitalistas e grandes agricultores, seguida de uma coletivização antinatural para os padrões sociais chineses; grande salto para a frente, com fome e canibalismo e milhões de mortos; revolução cultural, com outros milhares de mortos e a destruição completa do sistema educacional; no total, dezenas de milhões de sacrificados aos grandes ensaios maoístas, com o rebaixamento completo da economia chinesa ao longo desse processo. Especificamente no período limitado à primeira metade do século 20, é verdade que ocorreram outros tantos “ensaios”, ou “alternativas de políticas econômicas”, mas as que corresponderam mais exatamente a “tentativas e erros” foram quase todas, se não todas elas, experimentos de engenharia social conduzidas por regimes autoritários. As democracias de mercado que atravessaram diferentes políticas econômicas ao longo do período, geralmente não o fizeram como tentativa e erro, a não ser involuntariamente. O que elas fizeram, na maior parte dos casos, foi tentar adaptar-se às novas circunstâncias criadas pelos processos econômicos, pelas dinâmicas dos ciclos de negócios, quando não pelos cataclismos políticos representados pelos enfrentamentos com as potências militarizadas e agressivas. 299

A maior parte dos mecanismos de intervenção estatal na vida econômica foi introduzida quando da Grande Guerra, e apenas parcialmente revertida na sequência, o que certamente criou uma primeira “cultura intervencionista” que ressurgiria em outras circunstâncias. As medidas econômicas, corretas ou equivocadas, adotadas por sua vez no entre-guerras, em especial no seguimento da crise de 1929 e da Grande Depressão iniciada em 1931 – protecionismo, manipulações cambiais, desvalorizações maciças, controles de capitais, bilateralismo comercial, intercâmbios recíprocos de compensação –, também corresponderam mais a respostas (ainda que improvisadas) do que a supostos “grandes ensaios” de economia política alternativa. Estes ficaram inteiramente no terreno das ideias, geralmente com consequências catastróficas. O grande experimento “capitalista” que entra na categoria da história das ideias foi certamente o conjunto de prescrições de políticas econômica mais tarde enfeixadas sob o rótulo de keynesianismo, mas muitas dessas medidas estavam sendo seguidas ou implementadas de modo instintivo, antes mesmo que elas se convertessem numa espécie de corpo teórico de “receitas” de política econômica a partir da publicação da Teoria Geral (1936). Não é seguro que o mundo capitalista tenha sido “salvo” pelo keynesianismo aplicado, assim como não é seguro que ele tenha construído as bases das três décadas de prosperidade e de grande crescimento econômico do segundo pósguerra, embora certa historiografia econômica aprecie preservar esse mito. É certo, no entanto, que as faculdades de economia aderiram rapidamente às novas tábuas da lei, e passaram a cultivar o receituário keynesiano (inclusive de forma passavelmente acrítica), mas isso se deu, provavelmente, mais por preguiça conceitual do que por suas supostas virtudes no terreno da prática econômica efetiva. Governos, como se sabe, costumam se guiar mais pela fria realidade das contas nacionais e dos orçamentos, do emprego e das reservas monetárias, do que por doutrinas econômicas produzidas nos gabinetes universitários. Eles também são geralmente infensos (ainda bem) aos ideólogos da academia, mesmo se os líderes políticos sempre tenham presente, em suas mentes e na formulação dos discursos, as ideias de algum economista morto, como dizia o próprio Keynes. Em todo caso, o keynesianismo foi acumulando o seu pequeno (ou grande) lote de contradições teóricas e de impasses práticos, até literalmente implodir na famosa estagflação dos anos 1970, quando suas bases foram sendo minadas tanto pelos fracassos registrados quanto pelos avanços teóricos e práticos do neoliberalismo de 300

corte austríaco. Este, no entanto, nunca foi dominante, ou ideologicamente hegemônico, pois, a despeito de ter conquistado alguns (poucos) corações e mentes no cenário político e em algumas (poucas) academias, ele jamais conseguiu estabelecer sólidas bases no campo teórico ou conquistar grandes espaços para si nas políticas públicas, permanecendo sempre marginal e relativamente incompleto na panóplia de políticas públicas efetivamente aplicadas (que sempre estiveram inevitavelmente congeladas no universo teórico e prático do keynesianismo). Quais as lições, finalmente, que podem ser extraídas das grandes turbulências econômicas da primeira metade do século 20, com seu cortejo de desastres políticos e militares, seu desfilar de milhões de mortos e suas enormes transformações nas políticas econômicas de quase todos os países? Elas são muitas, mas foi preciso aguardar a “saída da servidão”, que foi a implosão final da grande alternativa ao capitalismo, representada pelos experimentos coletivistas, para realmente confirmar o maior ensinamento prático que se pode extrair do espetáculo de “aprendizes de feiticeiro” que constituíram esses experimentos no espaço de três gerações. Esse ensinamento diz que mercados, em geral, costumam ser mais “inteligentes” do que burocratas governamentais para criar renda e riquezas sociais, sendo também mais efetivos na distribuição racional dessas mesmas riquezas do que governos bem intencionados. O grande erro do socialismo, como já ensinava Mises desde 1919, não foi, finalmente, ter construído um regime de opressão, de escravidão econômica, de fraudes políticas e de degenerescência moral; foi o fato de ter ignorado os mecanismos de mercado, e a sinalização da raridade relativa pela ação livre dos preços, como requerimentos básicos de um sistema sustentável, e racional, de produção e de distribuição de bens e serviços. Esta é, sem dúvida, a maior lição do período, que aliás tinha sido consolidada no magnum opus de Friedrich Hayek, O Caminho da Servidão (1944). O ensinamento, contudo, não parece ter sido absorvido pelas duas gerações seguintes, sequer pela atual, pois a maior parte dos líderes políticos e dos responsáveis econômicos continua a seguir a trilha do dirigismo econômico, do intervencionismo estatal na vida econômica, da manipulação de moedas e orçamentos, provocando o espocar constante e regular de desequilíbrios fiscais e de crises financeiras. Aqui não estamos mais no itinerário “natural” do capitalismo, mas no desenvolvimento pouco natural das doutrinas políticas e das concepções econômicas, com certa atração distributivista dos políticos e a adesão inconsciente das massas às aparentes facilidades do Estado-babá. 301

De modo geral, todas as experiências coletivistas – fascistas ou socialistas – foram um fracasso completo, algumas com um custo humano inacreditável, ademais do custo mais permanente que se manifestou de modo indireto nas orientações dirigistas das políticas econômicas, estas parcialmente compatíveis com a dominação ideológica keynesianismo aplicado. O socialismo pode ter sido derrotado, mais na prática do que na teoria – que continuou seu pequeno caminho de irracionalidades nas academias, indiferentes ao mundo real – mas o capitalismo de Estado segue seu itinerário de realizações – na China, por exemplo – e de contradições – na maior parte da periferia capitalista, dentro da qual os países da América Latina. Ele não parece perto de ser aposentado, ou de ser compulsoriamente enviado ao museu dos dinossauros econômicos, e pode ainda dispor de um belo futuro pela frente. Volto, portanto, ao meu argumento inicial: a despeito de terem sido superados os experimentos mais nefastos de dirigismo econômico e de “engenharia social”, em vigor na primeira metade do século 20, não parece haver nenhum risco de volta triunfal do liberalismo, ou sequer de um retorno parcial de suas prescrições de maior liberdade econômica e de completa liberdade individual. Por outro lado, e como constatação final, uma outra grande lição não parece ter sido aprendida ou absorvida de modo completo: a de que qualquer medida de distribuição social dos benefícios do crescimento econômico necessita começar pelo reforço dos processos de produção e de inovação tecnológica, sem os quais o distributivismo passa a incidir bem mais sobre os estoques de riqueza já criada ou acumulada do que sobre os novos fluxos de criação de renda e riqueza por meio do estímulo à atividade produtiva. Em conclusão, o liberalismo ainda tem uma longa batalha a travar contra o socialismo, mesmo nas formas amenas deste último. Como diriam alguns, a luta continua...

2846. “Transformações da ordem econômica mundial: liberalismo, intervencionismo, protecionismo, neoliberalismo, crises financeiras; Respostas a questões colocadas pela RBPI, a propósito da publicação do artigo: “Transformações da ordem econômica mundial, do final do século 19 à Segunda Guerra Mundial” (RBPI: 1/2015), Hartford, 24 julho 2015, 13 p. Relação de Publicados n. 1195.

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38. The world economy, from belle Époque to Bretton Woods

The world economy, from belle époque to Bretton Woods. This historical essay follows previous researches by the author related to Brazil’s international economic relations in historical perspective, of which a first volume was already published, dealing with Brazilian economic diplomacy during the 19th century, from 1808 up to 1889: Formação da Diplomacia Econômica no Brasil: as relações econômicas internacionais no Império; or The Making of Economic Diplomacy in Brazil: international economic relations during the Empire (2001, 2005). This time the time span goes from the beginning of the Old Republic (1889) up to the conference of Bretton Woods, in 1944, from which an entirely new world economic order emerged, radically different from the previous one, which was not exactly an order, and was not geographically global, since the disruption of the former laissez-faire economy, based on gold standard, disappeared at the start of the Great War only to be tentatively redrafted during the inter-war period, and again disrupted by the 1929 crisis and the economic depression of the 1930s, and totally transformed both by the Second World War and the Bretton Woods arrangements. The new economic order, starting in 1945, will be the subject of a third volume, from Bretton Woods up to our days. This essay deals with the relevant changes in the world economy, from the belle époque to Bretton Woods, emphasizing elements of continuity and its ruptures and 303

discontinuities, or structural changes, during the inter-war period and as a result of the two global wars, in international trade, in world finance as well as in institutional aspects. Among the continuities, appears the resilience of a core group of advanced economies, which is able to draft and define the international policy agenda, and the importance of the industrial and technological capabilities to support any exercise of strategic and military projection by those big powers. Among the discontinuities is the failure of some emerging powers, namely Germany and Japan, in their challenging of this world order by means of an imperial-like power projection outside of the core group of market economies aiming to create a global interdependence based on democratic and liberal principles. Another emerging power during that period, the Soviet Union, was economically irrelevant and was not able to project its own power before the end of the World War II; but Czarist Russia was, before 1914, a promising force in international politics and a huge experiment in economic transformation, in terms of industrialization, foreign direct investments and international borrowing. The essay draws from the already huge literature in economic history dealing with that period, including some contemporary analysts and observers, such as the economist Ludwig von Mises and the novelist Stefan Zweig, but rely on interpretive modern works by some well known economic historians like Rondo Cameron, Herman Van Der Wee, and others. It constitutes a synthesis of this kind of research and offers a broad framework for the more detailed analysis which is being conducted by the author in connection with each one of the main economic leverages of the world economy during that period: international trade, global finance, immigration, early regionalism and first essays at economic multilateralism (within the League of Nations, for instance). World economy, during the half century going from the last decade of the 19th century to mid 20th century, is a confuse patchwork of national economies, and their respective colonial territories and semi-colonial dependent exporting economies, linked diffusedly through voluntary or compulsory strings, made of trade in commodities (from the periphery) and manufactured goods (from the industrial core), services, capital, work-force (before the immigration restraining of the 1920s and 1930s) and technology. A main feature of this world economy was its asymmetries and the growing 304

disparities in income and industrial capabilities between the advanced industrial countries and the dependent periphery. Economic divergence is the main analytical phenomenon at that period, but at the geopolitical level elements of continuity are also relevant. After the demise of the liberal order of the late 19th century and the beginning of the 20th, world economy enters in the turbulent period of high inflation, external debts insolvencies, currency devaluations and capital controls, and a high tide of intervention and protectionism of the 1920s and 30s, just to converge – with the exception of the soviet socialist economy – at Bretton Woods to a new order, characterized by economic multilateralism and market principles, which are a formidable progress compared to the era of the unequal treaties of the 19th century.

2809. “How many world economic orders existed, from the late 19th century up to the Second World War?; Changes and continuities”, Hartford, 11 Abril 2015, 5 p. Textos suplementares, em inglês, ao trabalho n. 2758, para fins de divulgação no sistema da RBPI (enviado para: [email protected]). Publicado, sob o título de “The world economy, from belle Époque to Bretton Woods”, em Mundorama (21/10/2015, link: http://mundorama.net/2015/10/21/the-world-economy-frombelle-epoque-to-bretton-woods-by-paulo-roberto-de-almeida/).

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39. Relações Brasil-EUA no início do século 21: desencontros

Visão geral das relações Brasil-EUA em perspectiva histórica Os Estados Unidos foram, durante praticamente todo o século 20, o principal parceiro econômico do Brasil, quando não, também, o principal aliado político e diplomático, pelo menos desde a grande crise do entre-guerras e especialmente desde a Segunda Guerra Mundial. Essa situação – que muitos historiadores e economistas descreveriam como de dependência financeira e tecnológica – só não era tão intensa nas primeiras décadas do século 20, quando a Grã-Bretanha ainda era responsável por uma parte substancial do comércio exterior e pela fração preponderante dos empréstimos em divisas e dos investimentos diretos, mas se tornou extremamente acentuada nos anos da chamada “americanização do Brasil”, a década e meia que se seguiu imediatamente ao final do segundo conflito mundial, e que se aprofundou esporadicamente nos momentos de crises financeiras – de balanço de pagamentos e de inadimplência virtual ou real em relação às obrigações financeiras externas. No final da primeira década do presente milênio, os EUA deixam de ser o principal parceiro, mas apenas comercial, do Brasil, tendo o primeiro lugar sido ocupado pela China, mas num formato certamente menos diversificado e ainda mais assimétrico do que tinha sido a relação com o gigante do hemisfério americano nos cem anos anteriores. O presente trabalho pretende traçar um panorama dessas relações, em suas grandes etapas, e concentrar-se no período recente, que seguramente assistiu a 306

mudanças significativas no caráter e no conteúdo dessa histórica relação que, como já evidenciado no subtítulo, conheceu diferentes situações, de maior ou menor afastamento ou aproximação, segundo as conjunturas econômicas e o quadro geopolítico mundial, mas também em função das lideranças políticas em cada um dos países. Com efeito, essa relação estruturalmente assimétrica, e que pode ser definida ao mesmo tempo como central, para o Brasil, e como de segunda, ou de terceira, prioridade, para os EUA, passou, ao longo da história, por diferentes situações: da aproximação à indiferença, da aliança militar à desconfiança, da cooperação política à competição comercial, nas várias fases de um relacionamento que remonta ao período anterior à independência do Brasil. A partir de um intercâmbio basicamente comercial desde a segunda metade do século 19, quando os EUA já eram o primeiro comprador do principal produto brasileiro de exportação, a relação evoluiu para muitos outros campos, menos de interdependência recíproca do que de dependência brasileira, sobretudo nos campos industrial e tecnológico. Uma de suas características, desde meados do século 20, se situa no terreno da dependência financeira do Brasil em relação aos fluxos de capitais oriundos dos EUA, tanto privados (capitais negociados em Nova York) como públicos (financiamentos multilaterais ou bilaterais tratados em Washington). Os Estados Unidos – enquanto primeira potência hemisférica em todo o período, e principal potência planetária desde o final da Segunda Guerra Mundial – estiveram presentes em quase todos os lances importantes da diplomacia brasileira no século 20, assim como ocuparam parte significativa da interface externa do Brasil nos campos econômico, científico, tecnológico e cultural no último meio século, até a ascensão da China no campo comercial (e possivelmente financeiro e de investimentos a partir do período recente). Obviamente que tanto num quanto noutro caso, as relações foram e ainda são marcadas por uma evidente assimetria nos planos econômico, tecnológico e militar, assim como por um certo descompasso nas prioridades respectivas, dado que nelas o Brasil busca basicamente recursos para o seu processo de desenvolvimento e os EUA mantêm preocupações nos campos da segurança e da estabilidade. A China, por sua vez, tem basicamente uma preocupação centrada no seu abastecimento em matérias primas e outros insumos para o seu povo e para a sua gigantesca máquina industrial, e todos os seus investimentos e parcerias serão feitos exclusivamente nessa perspectiva. Os anos 1990 foram marcados por características transicionais – pós-Guerra Fria, desaparecimento da União Soviética e fim de alternativas ao sistema capitalista – e pela intensificação do processo de globalização – com grandes turbulências financeiras que atingiram também o Brasil –, coincidindo com um grande crescimento da economia americana e seu distanciamento, absoluto e relativo, de várias outras potências médias, situação evidente no terreno militar. O Brasil conheceu um processo de ajuste macroeconômico bem sucedido ao longo do período, mas teve de socorrer-se financeiramente em Washington, tanto no contexto bilateral, como no quadro do FMI.

Mais recentemente, a postura unilateralista americana em política externa ampliou um fosso de tipo hegemônico em relação aos demais países que talvez não tenha existido em qualquer outra época histórica anterior com outros impérios universalistas. Os ataques terroristas contra os EUA, em setembro de 2001, vieram 307

introduzir novos elementos na agenda internacional, que passou a ser dominada pela luta contra o terrorismo, o que refletiu-se igualmente na região (narcoterrorismo e lavagem de dinheiro). Ademais da cooperação financeira, a agenda bilateral continuou a ser dominada por fricções comerciais persistentes e por concepções diferentes do processo de liberalização, marcado a partir de 1994 pelas negociações da Área de Livre Comércio das Américas (Alca), mas desde 2005 sem qualquer agenda factível. O regime inaugurado em 2003 no Brasil introduziu mudanças significativas no padrão de relacionamento, ainda que a retórica diplomática tenha procurado manter a aparência de continuidade. Na verdade, muitas das iniciativas tomadas pelos governos lulo-petistas foram no sentido de consolidar uma orientação dita “anti-hegemônica” na política externa e de constituir organismos de consulta e de coordenação regionais afastados da esfera de influência dos EUA, a começar pelo implosão do projeto americano da Alca. Nesse sentido, o relacionamento passou pelo mesmo ciclo anterior de altos e baixos, com fases de reaproximação seguidas de afastamentos por falta de entendimentos políticos – como no caso da espionagem sobre as comunicações brasileiras feita pela National Security Agency – e por promessas de reativação das relações econômicas e comerciais que nem sempre se traduziram em ações concretas. A substituição de hegemonias na era do café Os desníveis de desenvolvimento entre o Brasil e os Estados Unidos já se tinham tornado evidentes desde o final do século 19, quando o Brasil participou, na transição da monarquia para a república, de uma primeira tentativa de integração comercial hemisférica patrocinada pelos EUA, na conferência americana de 1889-90. A partir de 1902, o Barão do Rio Branco, armado de uma concepção diplomática baseada no equilíbrio de poderes (representada basicamente pela competição com a Argentina pela hegemonia regional), opera uma primeira política de aproximação com os EUA. Brasil e Argentina buscarão em vários momentos capturar a atenção dos EUA na busca de uma “relação especial” que sempre revelou-se ilusória. O gigante do Norte tinha proclamado o corolário Roosevelt à doutrina Monroe, justificando suas intervenções no entorno imediato como o exercício de um papel de polícia segundo “padrões de civilização” estabelecidos mediante acordo tácito com as potências europeias. Rio Branco, aliás, acreditava numa espécie de “divisão do trabalho” com a potência setentrional, imaginando poder o Brasil desempenhar papel similar, ou equivalente, no 308

Cone Sul. Desde a segunda metade do século 19, os EUA despontam como o principal comprador do principal produto brasileiro de exportação, ainda que a Grã-Bretanha se mantivesse como o principal fornecedor dos produtos de importação, de serviços e de capitais financeiros e de investimento direto. A República brasileira introduziu princípios alternativos de política externa, como o pan-americanismo, área na qual o Império manteve relativo isolamento das repúblicas do hemisfério. O relacionamento bilateral foi intensificado nos episódios de afirmação da República, quando, por ocasião das intervenções estrangeiras durante a revolta da Armada, os EUA vêm em auxílio do novo regime, contra as inclinações monarquistas de algumas potências europeias. Pelo resto da primeira República, as relações bilaterais serão distantes, operando-se, contudo, a gradual substituição de hegemonias na esfera financeira e dos investimentos, a partir do momento em os EUA se convertem em exportadores de capitais, inclusive para o Brasil, que passa, a partir do final dos anos 1930, do domínio da libra ao do dólar. Credores americanos já participaram do esquema financeiro do primeiro plano de apoio ao café (1906), para resolver uma crise de superprodução. Essa política de retenção de estoques para sustentação dos preços externos do café despertou a ira de importadores e de grupos de consumidores dos EUA, cujos representantes políticos passam a exigir de seu Governo ações concretas contra as práticas anti-concorrenciais das medidas brasileiras. Tanto por parte das grandes potências europeias, como no caso dos EUA, o Brasil se vê confrontado a posturas externas que vão do desprezo ao que mais tarde se chamaria de benign neglect. No terreno econômico, em todo caso, a fase corresponde a uma intensificação dos investimentos privados dos EUA na região e no Brasil em particular, com a instalação de diversas empresas explorando serviços públicos – em comunicações por exemplo –, na indústria de processamento alimentar ou de bens duráveis e crescentemente em serviços financeiros, situação parcialmente revertida nas fases posteriores de afirmação do nacionalismo brasileiro, seja durante a era Vargas, seja durante o regime militar. O período da administração de Roosevelt – que coincide grosso modo com a primeira era Vargas – modificará em parte a postura isolacionista de seus predecessores, buscando uma nova relação menos intervencionistas com os vizinhos da América Latina, mas ele também coincide com as crises econômicas e financeiras dos anos 1930, com o fechamento dos mercados e a ruptura dos equilíbrios internacionais, na Europa e 309

depois em escala mundial. O Brasil passa definitivamente da esfera britânica e da utilização da libra como meio de pagamento e reserva para o âmbito do dólar e dos financiamentos americanos, não sem alguma disputa de mercados e jogo de influências envolvendo as potências nazifascistas europeias e mediante acordos de renegociação da dívida externa com os dois grandes investidores ocidentais. Tem lugar nesse período uma das mais importantes negociações bilaterais da história das relações entre o Brasil e os EUA, relativa ao financiamento da implantação de uma indústria siderúrgica no Brasil, processo iniciado ainda antes da guerra e concluído já durante a fase de aliança estratégica entre os dois países. Os EUA emergem como a potência militar incontrastável do pós-Segunda Guerra e o Brasil fará as apostas corretas ao se aliar aos esforços de guerra (inclusive mediante a cessão de bases militares no Nordeste) e consolidar seu alinhamento ideológico desde o início da Guerra Fria. A cooperação nos campos de batalha da Europa tornaria o establishment militar brasileiro bem mais permeável às concepções e doutrinas defendidas pela primeira potência ocidental. Tio Sam e a americanização do Brasil na era da Guerra Fria O Brasil participa da construção de uma nova ordem econômica mundial dominada pelos princípios do liberalismo econômico de tipo americano. São marcos importantes desse período a conferência de Bretton Woods (1944), que criou o FMI e o BIRD, a conferência de Havana (1947-48), que criou uma primeira Organização Internacional do Comércio, ainda que não implementada para incorporar o Acordo Geral de Tarifas Aduaneiras e Comércio (GATT), a conferência de Petrópolis (1947), da qual resultou o Tratado Interamericano de Assistência Recíproca, antecessor da OTAN, e a conferência de Bogotá (1948) que transformou a velha União Pan-Americana em OEA, perfazendo um arcabouço de acordos e instituições que regulou o relacionamento interestatal no campo ocidental durante a maior parte da Guerra Fria. O imediato pós-guerra também corresponde ao crescimento da influência americana no Brasil, não apenas nos campos político, militar e diplomático, mas igualmente econômico e cultural.

A “opção americana” da era da bipolaridade não impede a emergência de uma diplomacia do desenvolvimento no Brasil. Não obstante a doutrina da segurança nacional, a ideologia pan-americanista sustenta os esforços da diplomacia para a exploração da carta da cooperação com a principal potência hemisférica e ocidental. É nesse quadro de barganhas políticas e de interesse econômico bem direcionado que o Brasil empreenderá sua primeira iniciativa multilateral regional, a Operação PanAmericana, proposta pelo Governo Kubitschek em 1958 e da qual resultará, numa primeira etapa, o Banco Interamericano de Desenvolvimento e, mais adiante, a Aliança para o Progresso.

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A prática da política externa independente, nos conturbados anos Jânio QuadrosJoão Goulart, representa uma espécie de parênteses inovador num continuum diplomático dominado pelo conflito Leste-Oeste. O impacto da revolução cubana e o processo de descolonização tinham trazido o neutralismo e o não-alinhamento ao primeiro plano do cenário internacional, ao lado da competição cada vez mais acirrada entre as duas superpotências pela preeminência tecnológica e pela influência política junto às jovens nações independentes. A aliança preferencial com os Estados Unidos passar a ser pensada mais em termos de vantagens econômicas a serem negociadas do que em função do tradicional xadrez geopolítico da Guerra Fria. Essa situação de ambiguidade dura pouco, uma vez que já em 1964 se opera uma volta ao alinhamento. Entretanto, o reenquadramento do Brasil no conflito ideológico global representou mais uma espécie de “pedágio” a pagar pelo apoio dado pelos Estados Unidos no momento do golpe militar contra o regime populista do que propriamente uma operação de reconversão ideológica da diplomacia brasileira. Em todo caso, observa-se um curto período de alinhamento político, durante o qual o Brasil adere estritamente aos cânones oficiais do pan-americanismo, tal como definidos em Washington: ocorre, numa sequência de poucos meses, a ruptura de relações diplomáticas com Cuba e com a maior parte dos países socialistas, assim como a participação na força de intervenção por ocasião da crise da República Dominicana. A política multilateral, de modo geral, passa por uma “reversão de expectativas”, para frustração da nova geração de diplomatas que tinha sido educada nos anos da política externa independente. Basicamente, essas atitudes se manifestaram nos primeiros anos do pós-guerra e no seguimento imediato do movimento militar de 1964, para serem logo em seguida substituídas por atitudes mais pragmáticas. Tem início, a partir de 1967, uma fase de revisão ideológica e de busca de autonomia tecnológica. A atitude contemplativa em relação aos EUA cede lugar a uma diplomacia profissionalizada, preocupada com a adaptação dos instrumentos de ação a um mundo em mutação, e instrumentalizada para o atingimento dos objetivos nacionais de crescimento econômico. Praticou-se uma diplomacia do desenvolvimento, consubstanciada na conquista de novos mercados (abrindo fricções comerciais com os EUA em calçados e café solúvel) e na busca da autonomia tecnológica, inclusive nuclear. Tem lugar, em 1975, a assinatura de um acordo de cooperação com a Alemanha, motivando imediata e intensa oposição dos EUA, basicamente devido a 311

preocupações com a proliferação (o Brasil tinha recusado, em 1968, o tratado de nãoproliferação nuclear, por considerá-lo discriminatório e desigual). A afirmação marcada da ação do Estado no plano interno e externo se fez em grande medida à custa de conflitos com os EUA, como por exemplo na denúncia, em 1977, do acordo bilateral de cooperação militar (de 1952), por motivo de interferência nos “assuntos internos” do País, de fato por causa do contencioso nuclear e da questão dos direitos humanos). Observa-se no período a confirmação da fragilidade econômica do País, ao não terem sido eliminados os constrangimentos de balança de pagamentos que marcaram historicamente o processo de desenvolvimento: as crises do petróleo, em 1973 e 1979, seguida pela da dívida externa, em 1982, marcam, a despeito da cooperação financeira, o começo do declínio do regime militar. Redemocratização e acirramento de conflitos comerciais Os elementos mais significativos da postura internacional do Brasil na fase da redemocratização são caracterizados pelos processos de autonomia internacional e afirmação da vocação regional, com o início da integração sub-regional no Mercosul e de construção de um espaço econômico na América do Sul. Faz-se também, nos anos 1990, a opção por uma maior inserção internacional e a aceitação consciente da interdependência — em contraste com a experiência anterior de busca da autonomia nacional —, com a continuidade da abertura econômica e da liberalização comercial, no quadro de processos de reconversão produtiva e de adaptação aos desafios da globalização. A “carta americana” ainda é importante, mas já não é essencial nesse período e a diplomacia passa a apresentar múltiplas facetas, que não exclusivamente a de tipo bilateral tradicional: são elas a regional, a multilateral e a presidencial. A manutenção de boas relações com os EUA não impede a existência de conflitos tópicos entre os dois países, geralmente a respeito de questões comerciais (protecionismo no acesso de determinados produtos brasileiros ao mercado americano, como aço ou suco de laranja, diferenças de opinião no que se refere a patentes industriais, acusações de pirataria ou de reservas de mercado, como no caso da informática) ou então em função de problemas mais gerais da agenda multilateral (desarmamento, não proliferação, reforma da ONU etc.). A política externa do governo José Sarney (1985-1990) foi marcada por transformações importantes, a começar pelo processo de integração com a Argentina, 312

mas também por um irritante conflito comercial com os Estados Unidos. Os EUA se queixavam de uma lei sobre informática que proibia a importação de computadores pessoais assim como associações com o capital estrangeiro neste setor. O código brasileiro de propriedade industrial, ainda que em conformidade com a legislação internacional, constituía outro ponto de controvérsia, já que não reconhecia patentes farmacêuticas. O governo dos EUA adotou, unilateralmente e de maneira ilegal em relação ao direito internacional, medidas de represália comercial ao Brasil, que levou o assunto ao GATT. Outros pontos de tensão nesse período se referiam a posições divergentes nas negociações comerciais multilaterais da Rodada Uruguai, notadamente nos temas de serviços e de propriedade intelectual. O restabelecimento, em junho de 1986, de relações diplomáticas com Cuba, rompidas pelos militares em 1964, não parece ter introduzido maiores divergências de ordem política entre os dois países, assim como a busca, pelo Brasil, de uma aproximação com os dois gigantes do mundo (então) socialista: pela primeira vez na história do Brasil, um presidente visitou a China e a URSS. Com o gigante asiático, o Brasil estabeleceu um programa de cooperação no domínio científico e tecnológico que previa, entre outros, o lançamento de satélites sino-brasileiros a partir de foguetes chineses. Ao mesmo tempo, tentativas de fazer avançar o programa espacial brasileiro na área de lançamento de vetores eram dificultadas pela obstrução feita pelos EUA à transferência de tecnologia de parceiros potenciais (França). A cooperação financeira, entretanto, ingressa em uma fase de stress a partir da decisão brasileira de decretar a moratória do serviço da dívida comercial, coroamento de um longo processo de deterioração do equilíbrio financeiro externo do Brasil, que tinha sido iniciado com a crise da dívida externa latino-americana em 1982, a partir da moratória mexicana de agosto desse ano, seguida da inadimplência técnica do Brasil. Diversos programas de sustentação financeira foram concluídos a partir de então com o FMI, com a participação mais ou menos voluntária da banca privada, mas a erosão da capacidade de pagamento foi se agravando ao longo de toda a década. O episódio da moratória de 1987 revelou que o crédito político e financeiro do Brasil, junto aos EUA e aos demais credores, era, nessa época, extremamente reduzido. A gestão Fernando Collor de Mello (1990-92) foi basicamente infeliz no domínio da economia, mas introduziu em contrapartida mudanças significativas na política externa, a começar pelo processo de integração no Cone Sul (com a criação do 313

Mercosul, agregando o Paraguai e o Uruguai ao projeto de mercado comum já concertado com a Argentina), que foi continuado na área nuclear, onde não apenas se observa uma real distensão bilateral, mas também o início da revisão da doutrina de capacitação nuclear adotada algumas décadas antes por militares e diplomatas. A reação do governo brasileiro à proposta do presidente George Bush (pai) de estabelecimento progressivo de uma zona de livre-comércio no hemisfério foi bastante cautelosa, refletindo mais a postura do Itamaraty do que a disposição do presidente: com efeito, Collor tinha dado início, logo no começo de seu governo, a um processo acelerado de abertura econômica e de liberalização comercial, que seria confirmado por um programa de redução tarifária (entre outubro de 1990 e julho de 1993), coincidente com o estabelecimento da Tarifa Externa Comum prevista no Mercosul. As relações políticas e econômicas com os EUA conheceram uma melhoria parcial nesse período, como resultado da disposição de Collor em “liquidar” algumas hipotecas herdadas do passado, que serviam como focos dos contenciosos bilaterais. Assim, foram desmantelados os mecanismos protecionistas da Lei de Informática de 1984, ao mesmo tempo em que se revia a lei do software e se dava início à elaboração de um novo Código de Propriedade Industrial, capaz de acolher o patenteamento farmacêutico, centro dos conflitos e das retaliações dos EUA nos anos 1980. A distensão se estendeu ao terreno financeiro, com a ação mais ortodoxa dos responsáveis econômicos. Impedido o presidente Collor pelo Congresso, no final de 1992, seu vice Itamar Franco assume o poder com uma plataforma bem menos reformista, mas ainda assim dá continuidade ao processo de privatizações e de reforma tarifária. A partir da presença do Senador Fernando Henrique Cardoso na condução dos negócios da Fazenda, a partir de maio de 1993, e uma brilhante equipe de assessores econômicos em postos estratégicos do governo Itamar Franco, foi possível conduzir um processo realista e consistente de ajuste estrutural que, via desindexação planejada da economia, acabaria levando ao plano Real, passando pela solução parcial do problema da dívida externa em abril de 1994 e a suspensão da moratória. As duas presidências FHC: a boa relação como norma O relacionamento do Brasil com os EUA durante os oitos anos que vão de 1995 a 2002 alcançou, como em nenhuma outra época anterior, uma visível melhoria de qualidade, que pode ser imputada tanto aos dados objetivos das novas realidades 314

econômicas e políticas no Brasil como às personalidades e à vontade política dos respectivos mandatários, FHC, de um lado, William J. Clinton, de outro. De modo geral, pode-se caracterizar essa fase como de ausência de desentendimentos políticos, de um diálogo substantivo em temas de alcance regional e mesmo de âmbito econômico multilateral, mas também de permanência residual de velhas e novas fontes de contenciosos comerciais, alguns de ordem sistêmica ou estrutural (como o uso abusivo de antidumping ou os subsídios agrícolas), outros de âmbito setorial (salvaguardas em aço, protecionismo localizado em áreas agrícolas, como suco de laranja e tabaco). FHC sempre ostentou uma visão pragmática das relações econômicas internacionais, desmentindo os temores quanto à ideologia da “dependência” e de um modelo de desenvolvimento baseado no modelo “cepalino”. Importante espaço, em sua ação diplomática, foi ocupado pelo Mercosul e pelo projeto de conformação de um espaço econômico sul-americano: FHC sempre recordou que foi em sua passagem à frente do Itamarati, em 1992-1993, que foi lançada a iniciativa brasileira de uma “zona de livre-comércio sul-americana”, sem tentativas excludentes, entretanto, já que as relações com os EUA, reconhecidos enquanto parceiro econômico mais importante, eram consideradas como prioritárias. Participante, como presidente eleito, da conferência de Miami em dezembro de 1994, FHC revelou que foi “surpreendido pelo prazo prematuro” com que foi lançado o projeto da Alca, tendo, ao final de seu governo, estabelecido na cúpula hemisférica de Québec (abril 2001), as condições pelas quais o Brasil poderia aceitar uma Alca. Toda a segunda gestão FHC (1999-2002) foi marcada pela administração das crises financeiras internacionais, com a negociação de dois pacotes de sustentação financeira pelo FMI, com o apoio decisivo dos EUA em todas as operações. À diferença dos brutais choques ocorridos na Ásia e na Rússia, elas foram implementadas sempre de maneira preventiva a qualquer crise ou ameaça de default, não na sequência de cessação de pagamentos ou de quebras bancárias ou empresariais; o Brasil teve porém de mudar o regime cambial, abandonando o sistema de bandas pela flutuação em janeiro de 1999. Ainda que o Brasil não tenha conseguido, nesse período, realçar sua posição no plano internacional, como talvez pretendesse FHC, em virtude do impacto das crises financeiras, o País conquistou, mesmo assim, um alto nível de interlocução nos planos multilateral e bilateral, dada a qualidade de seus dirigentes – em especial da equipe econômica – e o profissionalismo de sua diplomacia. Os EUA também emergiram, no final do período, como o principal parceiro comercial do Brasil (em torno de 25%), superando os países da União (ex-Comunidade) Europeia, que em anos anteriores chegaram a concentrar quase um terço do comércio exterior do Brasil.

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Os desenvolvimentos financeiros dos dois últimos anos do governo FHC ocorreram sob a nova administração George Bush, presumivelmente menos propensa a pacotes de socorro financeiro ou a tratamento leniente para países emergentes por parte das instituições financeiras multilaterais. Não obstante, o Brasil continuou a dispor de canais abertos junto aos responsáveis financeiros de Washington, em grande medida dada a seriedade dos compromissos do País com a estabilização macroeconômica e também a credibilidade confirmada das autoridades brasileiras nessa área. Um dos elementos relevantes da política externa brasileira na segunda metade dos anos 1990 foi, de maneira geral, a prática extensiva da diplomacia presidencial e, de modo particular no plano bilateral, a intensa relação pessoal cultivada pelos presidentes dos dois países, o que trouxe a interação entre o Brasil e os EUA ao melhor ponto de entendimentos políticos alcançado em toda a história passada. Esse novo patamar do relacionamento resultou da coincidência de visões políticas nos dois países (valorização da democracia, dos direitos humanos, do desenvolvimento social, uma filosofia econômica em geral adepta da globalização), mas também do alto grau de envolvimento pessoal logrado ao longo desses anos, com diversos encontros realizados bilateralmente ou à margem de reuniões multilaterais. Merece destaque, nesse particular, a visita bem sucedida de FHC a Camp David, confirmando os laços pessoais travados pelos dois dirigentes e que se prolongaram além e à margem das obrigações estritamente bilaterais, com consultas telefônicas sobre outros temas da agenda internacional.

Na visita oficial de Clinton ao Brasil, em outubro de 1997, assim como na de FHC à casa de campo do presidente americano, menos de um ano depois (junho de 1998), os dois mandatários aproximaram pontos de vista e trocaram impressões dotadas de uma franqueza raramente igualada nas relações presidenciais, com uma abordagem desprovida de restrições mentais sobre os problemas mais importantes da agenda internacional. Independentemente dos interesses nacionais dos dois países, criou-se entre os dois homens uma mútua simpatia que pode ter repercutido positivamente em mais de um item da agenda oficial (como o pacote de ajuda do FMI e o acordo de salvaguardas para Alcântara). Segundo o parceiro brasileiro, o presidente americano desejava que o Brasil desempenhasse um papel mais importante nos cenários regional e mundial, postura muito bem acolhida por FHC, que todavia tinha plena consciência das limitações estruturais e estratégicas conhecidas, não apenas em função da carência relativa de recursos por parte do Brasil, como também tendo presente nossas prioridades na frente externo: preservação do Mercosul como base importante de negociações para o projeto da Alca, importância prioritária dada ao relacionamento com a Argentina, antes que a uma pretensão a um assento permanente no Conselho de Segurança. A estabilidade trazida pelo Plano Real e as reformas constitucionais de 1995 e 1996, que abriram setores da economia ao investimento estrangeiro, permitiram adensar as áreas de relacionamento com os EUA. No plano empresarial, por exemplo, os investimentos diretos dos EUA no Brasil aumentaram significativamente. O Brasil 316

passou a ocupar a quinta posição entre os países receptores de investimentos diretos dos EUA, atrás da Alemanha e à frente do Japão. Parte desses investimentos dirigiu-se aos leilões de privatização em áreas de infraestrutura abertos à participação estrangeira (como telefonia e energia), mas um volume crescente também foi aplicado em setores industriais e crescentemente nos serviços. A despeito da intensificação de laços empresariais não foi possível negociar com os EUA um acordo para evitar a bitributação (neste caso por dificuldades meramente técnicas, vinculadas à determinação de algumas fontes de receita) nem um de promoção e garantia dos investimentos (aqui em virtude da oposição de setores políticos no Brasil à cláusula de arbitragem investidor-Estado e da cobertura da proteção a ser concedida). A evolução foi favorável a ponto de os EUA terem admitido assinar com o Brasil, depois de muita relutância dos responsáveis pela área de segurança, um acordo de salvaguardas tecnológicas para a utilização da base de Alcântara para o lançamento de satélites e equipamentos contendo tecnologia americana. O Brasil era o demandeur, neste caso, e as resistências de alguns setores da administração americana – ainda basicamente motivadas por preocupações de segurança e de não-proliferação, mesmo se considerações comerciais não possam ser excluídas – foram vencidas mediante contato direto de FHC com o presidente Clinton. Assinado em abril de 2000, o acordo sobre Alcântara foi submetido a duras críticas no Congresso brasileiro, em razão de seus efeitos eventualmente negativos em termos de acesso brasileiro à tecnologia de ponta no setor espacial, adicionalmente a outras considerações de caráter político ou econômico (quando seu objetivo precípuo não era a transferência de tecnologia, mas sim, mais precisamente, o seu controle). O novo governo Lula, em maio de 2003, determinou a retirada desse instrumento do Congresso, assim como desistiu de vez de ratificar qualquer um dos muitos acordos de promoção e proteção de investimentos estrangeiros que tinham sido assinados com parceiros tradicionais, muitos dos quais pelo mesmo chanceler que depois serviria durante os oito anos do seu governo. O acordo de salvaguardas de Alcântara foi substituído por um inócuo acordo bilateral com a Ucrânia, que revelou-se inteiramente ineficaz para os fins pretendidos, e todo o exercício pode ser considerado como uma imensa perda de oportunidades pelo Brasil, por razões basicamente ideológicas. A era Lula e a mudança no caráter do relacionamento 317

A campanha presidencial de 2002, ao antecipar fortes tendências mudancistas, alimentou certo recrudescimento das preocupações dos mercados financeiros com a manutenção das linhas da política macroeconômica seguida na administração FHC, o que se manifestou nos indicadores de risco, com a sensível deterioração do câmbio, dos preços dos títulos negociados e a diminuição geral das linhas de crédito comercial e dos fluxos de investimentos (diretos e de portfólio). O comportamento moderado do candidato da oposição – que sinalizou seu apoio ao acordo com o FMI em agosto de 2002 e confirmou a aceitação dos princípios da intangibilidade dos contratos da dívida externa e da responsabilidade fiscal – permitiu desanuviar possíveis tensões com o governo conservador americano, que revelou então boa disposição para o diálogo tão logo confirmada a vitória do candidato Lula. O presidente Bush não apenas telefonou imediata e pessoalmente para cumprimentar o vitorioso desde o anúncio dos resultados, como formulou convite para uma primeira visita de contato e de discussão informal. Numa estratégia diplomática muito bem medida, o candidato eleito definiu poucas viagens externas antes da posse, com destaque para uma visita aos mais importantes líderes do Cone Sul e a aceitação do convite feito pelo presidente americano. Nessa primeira visita de trabalho a Washington, realizada em 10 de dezembro de 2002 registrou-se visível empatia entre o líder da principal potência mundial e o futuro presidente do maior país da América do Sul, ocorrendo a entrevista em ambiente descontraído e com boa disposição para dar início a uma agenda cooperativa entre os dois países. Partiu do mandatário americano a sugestão de uma reunião de alto nível (envolvendo membros do gabinete) ainda no decorrer do primeiro semestre de 2003 (o que por um momento pareceu ameaçado pelos desenvolvimentos do conflito dos EUA com o Iraque). Em sua primeira viagem a Washington, o presidente eleito do Brasil confirmou o interesse de seu governo em dar início a quatro anos de relações francas, construtivas e mutuamente benéficas para os dois países, desarmando assim os críticos conservadores dos EUA e surpreendendo grupos radicais no próprio Brasil. De sua parte, os interlocutores americanos, que tomaram conhecimento nesse mesmo dia do nome do ministro da Fazenda designado, na pessoa de Antonio Palocci, um dos acompanhantes da delegação, ficaram positivamente impressionados pela confirmação da manutenção das grandes linhas da política macroeconômica anterior, o que sem dúvida desarmou o grave cenário de deterioração dos indicadores que vinha manifestando-se até então. 318

De fato, a inauguração e o início do governo Lula foram auspiciosos e mesmo surpreendentes em termos de ativismo diplomático. Confirmando a atenção especial a ser dada pelo seu governo aos países da região, a começar pelo fortalecimento do Mercosul, assim como a alguns grandes países em desenvolvimento, o presidente Lula afirmou, em seu discurso de posse, que procuraria ter com os EUA “uma parceria madura, com base no interesse recíproco e no respeito mútuo.” O novo chanceler, escolhido na pessoa do experiente diplomata profissional Celso Amorim (já ministro das relações exteriores de Itamar Franco), soube colocar as relações entre os dois países no patamar correto, ao buscar a coordenação e o diálogo em todos os terrenos de interesse comum, sem eludir, porém, as diferenças de posição em torno de pontos concretos (como as negociações comerciais multilaterais e hemisféricas, por exemplo). Os pontos de divergência pareciam superar os de convergência, manifestando-se em especial em relação aos problemas da Venezuela, dos direitos humanos em Cuba e do problema do Iraque no Conselho de Segurança. A “agenda positiva” prometida por ambos presidentes pareceu algumas vezes comprometida em função do conflito no Iraque, cujo impacto negativo foi temido no Brasil não apenas como resultado de possíveis efeitos recessivos na economia mundial mas também por seus efeitos corrosivos no sistema político multilateral. A eventual incorporação do Brasil como membro permanente do CSNU realizaria um sonho acalentado pelas lideranças políticas e diplomáticas desde a era da Liga das Nações ou, pelo menos, desde a conferência de São Francisco que criou a ONU, mas ele vem sendo postergado desde muitos anos não tanto em função das conhecidas limitações objetivas do Brasil, mas em decorrência das próprias dificuldades em se lograr aceitação de uma reforma da Carta da ONU. Os EUA sinalizaram seu apoio ao ingresso seletivo de novos membros, como sendo a Índia e o Japão e alguns países em desenvolvimento capazes de assumir responsabilidades na frente da segurança internacional, mas preferiram insistir, nos últimos anos, na tese da reforma da ONU enquanto organismo burocrático superdimensionado, deixando o espinhoso tema da reforma da Carta a ocasião mais oportuna. Mas a relação também foi dificultada pela falta de entendimento em torno de algumas questões importantes, como a da Alca, por exemplo, o que colocou as duas administrações em posições díspares, uma vez que Lula e Amorim já tinha decidido implodir esse projeto americano, o que finalmente conseguiram, dois anos depois – na conferência de cúpula de Mar del Plata, em novembro de 2005 – com a ajuda dos 319

aliados Kirchner, da Argentina, e Chávez, da Venezuela. O restante da primeira administração Lula e todo o seu segundo mandato foi ocupado, quase inteiramente, por iniciativas e projetos brasileiros de “afastamento” da América do Sul da influência dos EUA, consubstanciados na proposta da Comunidade Sul-Americana de Nações, que representaria, segundo seus promotores, um mecanismo de coordenação próprio à região e sem a “tutela do império”. De fato, a implosão da Alca significou que muitos países do hemisfério, interessados no acesso de seus produtos ao grande mercado americano e na atração de investimentos dos EUA em suas economias, passaram a negociar diretamente com o gigante americano acordos de livre comércio e de facilitação de investimentos, num esquema não mais hemisférico, mas “minilateralista”, com os EUA determinando o padrão e o conteúdo dessas relações econômicas. Acabaram ficando de fora os países do Mercosul, e os chamados “bolivarianos” que, sob o comando de Hugo Chávez, se decidiram por uma bizarra Aliança Bolivariana dos Povos da América, feira mais de comércio administrado e de intercâmbios estatais do que de integração econômica. O Brasil e o Mercosul passaram a promover mais ativamente a chamada diplomacia Sul-Sul, pretendendo criar uma “nova geografia do comércio mundial”, que se revelou, no entanto, extremamente modesta em seu escopo e alcance geográfico: apenas três modestos acordos de liberalização limitada do comércio, com parceiros não tradicionais – Israel e Palestina – e com a Índia, que sempre manteve a mesma postura protecionista e dirigista dos dois principais parceiros do Mercosul, o Brasil e a Argentina. Essa postura foi também agravada por desentendimentos persistentes com os EUA no âmbito das negociações comerciais multilaterais da Rodada Doha, que não apenas não foram concluídas durante o mandato originalmente acordado em 2001, como se prolongaram em diversas tentativas frustradas no decorrer dessa década, e se encontra praticamente estagnada desde o início da presente década. O caráter morno – para não dizer moroso – das relações bilaterais Brasil-EUA durante grande parte da era Lula, a despeito de uma retórica aparentemente amistosa e sempre declarada positiva, pode estar ligada à partidarização evidente da diplomacia brasileira sob a hegemonia do PT e do antiamericanismo indisfarçável de vários dos dirigentes lulo-petistas. Não deixa de ser um fato que o PT se apresenta como um típico partido esquerdista latino-americano, com maiores simpatias por certos aliados ditos “progressistas” – quando não declaradamente comunistas ou socialistas, como os 320

regimes cubano e chavista – do que pelas democracias liberais de mercado, postura que dificulta o estabelecimento ou o reforço de diversas iniciativas diplomáticas que, de outra forma, poderiam estar sendo conduzidas pelo staff profissional do Itamaraty. Esse elemento, sempre negado oficialmente, se mostrou evidente em vários episódios das relações bilaterais ou no tratamento de diversos temas da agenda multilateral. Ainda que Lula procurasse destacar suas boas relações com George Bush, não foi registrada qualquer grande iniciativa econômica ou política que pudesse colocar essas relações em outro patamar. Período recente: continuidade da inércia e pontos de conflito A continuidade da gestão lulo-petista na presidência do Brasil, a partir de 2011, não veio trazer, a despeito das mesmas manifestações retóricas em favor das “boas relações”, nenhuma grande novidade nesse quadro de morosidade diplomática e de ausência de qualquer iniciativa de relevo, ainda que acordos de cooperação setorial tenham sido assinados episodicamente. Desde os ataques terroristas de 2001, os pontos preferenciais da agenda americana para a região se situam mais no terreno da segurança e do combate ao crime organizado – inclusive o narcoterrorismo – do que na promoção do desenvolvimento mediante políticas de sustentação ativa de investimentos, ao passo que o Brasil e outros países da região provavelmente prefeririam, por sua parte, insistir no apoio a políticas de desenvolvimento, transferência de tecnologia e, sobretudo, acesso a mercados, como condição de superação das amarras do subdesenvolvimento. Esse tipo de desencontro tem sido uma constante desde o imediato pós-Segunda Guerra, quando os países latino-americanos insistiam por uma réplica do Plano Marshall aplicado à região e os EUA retrucavam com recomendações de abertura econômica, acolhimento do investimento estrangeiro, liberalização comercial e luta contra a corrupção e as desigualdades sociais. Nessa época, no imediato pós-Segunda Guerra, assim como tinha ocorrido nos tempos do Barão do Rio Branco, no início do século 20, falou-se muito de um relacionamento especial, uma espécie de “aliança nãoescrita, entre o Brasil e os Estados Unidos, muito embora fossem evidentes os diferenciais de poder e as orientações diversas das agendas diplomáticas respectivas. Um século depois, esse relacionamento parecia ter se esvaído completamente, quando do episódio da espionagem americana sobre as comunicações oficiais do Brasil, inclusive de empresas relevantes, como a Petrobras, justamente quando a presidente 321

Dilma Rousseff se encontrava preparando uma visita de Estado a Washington, em meados de 2013. A viagem foi obviamente suspensa, mas a amplitude e a acrimônia da reação brasileira – bem mais intensas do que as registradas em países e por líderes políticos aliados, igualmente espionados, como a chanceler alemã Angela Merkel, por exemplo – provavelmente tem mais a ver com considerações de natureza política doméstica do que propriamente com questões diretamente diplomáticas ou como resultado de um desentendimento fundamental em relação a temas diversos da agenda diplomática internacional. Afinal de contas, não é segredo para ninguém que os EUA, como grande potência mundial, arrogante e unilateralista como podem ser os hegemons, se dedicam a esses exercícios de espionagem – da mesma forma como todas as demais potências relevantes – e vão continuar recorrendo a esse tipo de expediente, à margem e independentemente da natureza de suas relações – de amizade, de cooperação ou de desconfiança ou mesmo de animosidade momentânea – com parceiros, aliados e, a mais forte razão, com países com os quais mantenham relações marcadas pela ambiguidade. Ora, não é tampouco segredo para ninguém que o regime lulo-petista tem entre seus aliados preferenciais alguns dos piores inimigos dos EUA – como cubanos, bolivarianos e adeptos de regimes “anti-hegemônicos” como China e Rússia, por exemplo – e com eles colabora abertamente em temas e agendas que têm como objetivo declarado “mudar a relação de forças” no mundo, num sentido “pós-imperial”. Não se pode esperar, nessas circunstâncias, que o “império” mantenha o projeto de uma relação especial, estratégica ou cooperativa, com um governo que trabalha para minimizar as fontes e o exercício desse poder hegemônico em diferentes âmbitos do cenário mundial. De certo modo, foi o Brasil quem alimentou, historicamente, vãs esperanças e ilusões ingênuas de uma relação especial com os EUA. Recorde-se, por exemplo, a questão nem sempre bem colocada, e de certo modo totalmente artificial, da “opção” (ou da oposição) entre uma “política externa tradicional” – por definição “alinhada” – e uma “política externa independente”, problema dramatizado por anos de enfrentamento bipolar no cenário geopolítico global. Superado, contudo, o invólucro ideológico da postura externa do Brasil nesse período ultrapassado (mas que parece estar voltando a partir das novas posturas da Rússia e da China), e mesmo os diversos “rótulos” com os quais se procurou classificar a diplomacia da era militar, assume importância primordial, atualmente, a questão do desenvolvimento econômico, verdadeiro leit motiv da diplomacia brasileira 322

contemporânea. É por esse prisma que o Brasil identifica seus interesses prioritários e é nessa postura que ele espera confortar seus temores mais manifestos, entre eles o de uma dominação econômica americana, mais imaginada do que realmente realizada, sequer em estado potencial. Parece incrível, nesse particular, que os mesmos críticos da postura “arrogante” e “unilateralista” do império do passado (e do presente) não reconheçam na China os mesmos elementos de dominação econômica que sempre caracterizaram a presença das principais potências capitalistas ocidentais em direção do Terceiro Mundo em geral, e de alguns países periféricos em particular (em especial aqueles especialmente suscetíveis de serem inseridos de maneira produtiva na grande divisão internacional do trabalho). Um século atrás, os colonialismos europeus, e os imperialismos ocidentais de maneira ampla, mantinham as mesmas práticas comerciais e faziam os mesmos tipos de investimentos utilitários em transportes e comunicações, em infraestrutura no seu sentido amplo, em direção da periferia colonizada ou semicolonial que hoje motivam a China e seus ávidos novos capitalistas nos grandes programas de penetração dos mesmos territórios e regiões suscetíveis de serem absorvidos pela grande máquina de produção de massa localizada no gigante da Ásia do Pacífico. O que haveria de fundamentalmente diferente com a atual postura chinesa, a não ser a ausência de uma motivação colonialista explícita? De resto, no que se refere aos objetivos propriamente econômicos dos dois tipos de empreendimento, a ofensiva chinesa não parece ser muito diferente, no início do século 21, em relação ao que se praticava um século atrás, embora as condições geopolíticas tenham sido fundamentalmente alteradas depois do encerramento dos dois grandes conflitos globais do início do século 20. No que se refere, por sua vez, a projetos de desenvolvimento em escala nacional, alguns países latino-americanos continuam a mostrar-se mais propensos a um modelo de desenvolvimento menos dominado pelos mercados e pelos empresários privados, e bem mais orientado pelos governos e burocracia nacionais e, de certa forma, parcialmente afastados das redes de integração produtiva que se desenham em outras regiões, em especial na Ásia Pacífico, justamente. Nem todos, porém, seguem as mesmas reticências protecionistas e temores de “desnacionalização”, que parecem motivar atualmente líderes da Argentina e do Brasil, entre outros; vários outros, aos quais se poderia aplicar o qualificativo de

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“globalizadores”, parecem bem mais propensos a se integrarem nessas redes, como são os membros da Aliança do Pacífico: Chile, Peru, Colômbia e México. No caso da atual diplomacia brasileira, ao início do século 21, e em grande medida graças ao exercício da diplomacia presidencial tanto por parte de FHC, como por Lula, o relacionamento do Brasil com os EUA parece ter se tornado mais maduro e isento de preconceitos ideológicos e de ilusões quanto a qualquer tipo de “relação especial”, como ocorreu em diversas ocasiões de um passado não tão remoto. A expectativa, registre-se, é bem mais, ou exclusivamente, brasileira, do que americana, uma vez que a grande potência do Norte não tem, ao Sul, nenhuma ameaça à sua segurança e portanto não atribui, às suas fronteiras meridionais o mesmo grau de atenção estratégica do que a outras regiões, a começar pela Ásia Pacífico, pelo Oriente Médio ou mesmo pela Europa central e oriental. O Mercosul e a formação de um espaço econômico integrado na América do Sul há muito deixaram de vistos, na agenda diplomática “imperial”, como um desafio à sua hegemonia hemisférica, passando a serem vistos, naturalmente, como alavancas de um processo de desenvolvimento que pode beneficiar a todos. Eliminada a hipótese de uma grande área de livre comércio hemisférica, a Alca, patrocinada pelos Estados Unidos em moldes similares aos da primeira tentativa efetuada na conferência americana de 188990, o que ficou foi uma colcha de retalhos feita de diversos acordos minilateralistas com parceiros mais propensos a aceitarem essa relação pragmática proposta pelo império. Os temores, alimentados de forma recorrente durante anos, ou quiçá décadas, por parte de líderes políticos, de uma “dominação econômica” do Brasil pelo gigante hemisférico, há muito se esvaneceram, e começam a ser imaginados, doravante, os incômodos de uma grande dependência econômica e financeira da China, menos imperial, talvez, mas igualmente ambiciosa em suas pretensões econômicas unilaterais. O relacionamento bilateral Brasil-EUA padeceu, durante muito tempo, de uma “crosta” feita de declarações contínuas de interesse recíproco de parte e outra, mas de um afastamento também contínuo ao longo do tempo, bem mais alimentado pelo Brasil do que pelos EUA (que de fato teriam uma “não-percepção do Brasil”). Existiria, talvez, um receio do Brasil de que uma aproximação com os EUA se faria em detrimento dos interesses do País, daí as tendências a querer ganhar tempo, achando que mais tarde estaríamos mais fortes e mais preparados. Isso obviamente nunca ocorreu, como tampouco ocorrerá em relação à China. Enquanto o Brasil não se lançar decisivamente 324

nos circuitos sempre revoltos da globalização produtiva e da interdependência capitalista, ele nunca estará preparado, psicologicamente, para inserir-se de maneira autônoma nos grandes circuitos competitivos da economia global. Os conflitos comerciais bilaterais ou multilaterais com os EUA e mesmo, dentro de certos limites, certa oposição de interesses estratégicos são, nessa visão, compatíveis com um bom nível geral de relacionamento político-diplomático, quando não com um entendimento no plano estratégico, ainda que essa vertente seja por muitos considerada prematura (pelas mesmas razões, percebidas e reais, de “assimetria estrutural”). Em todo caso, os dois países parecem ter dado início a um estilo de relações desprovido de a-prioris ou de condicionalidades estranhas ao próprio contexto bilateral e regional. O terreno foi semeado nesse sentido ao longo das últimas décadas de reformas econômicas no Brasil e pode estar sendo preparado, na atual fase de importantes ajustes econômicos por parte do Brasil, para uma nova etapa de colheitas políticas e diplomáticas que contribuirão provavelmente de maneira decisiva para a definição de uma nova relação dos EUA com o Brasil e com a América Latina. O desafio da China nos planos global, regional e bilateral, não deixa de colocar novos elementos na agenda bilateral Brasil-EUA, e pode estar criando uma realidade inédita no hemisfério, ainda a ser confirmada pelos fatos e processos nos próximos anos: a de que os dois maiores países do continente precisam manter um nível adequado de entendimento em torno de questões relevantes nas áreas da segurança estratégica, da estabilidade democrática e do desenvolvimento econômico e social, inclusive para superar décadas, senão séculos, de divisão entre as duas partes do hemisfério. Se bem sucedido esse cenário, ele talvez nos leve de volta ao tipo de relação imaginado no começo do século 20 por um chanceler tão distinguido quanto Rio Branco, que via na relação dos dois países uma das chaves para uma projeção estratégica favorável do Brasil na América do Sul. Do ponto de vista da administração americana, por sua vez, a seleção de um “parceiro privilegiado” no continente não é matéria fácil, nos planos diplomático ou militar, e provavelmente ela não se fará de modo explícito, nem acarretará instrumentos exclusivos de coordenação político-militar. Mas, o fato de o governo brasileiro estar sendo ocupado por lideranças extraídas dos mesmos grupos que, no passado, relutavam na adesão a certas teses econômicas ou políticas de extração “liberal” – para não dizer que se opunham claramente ao “projeto americano” para a região – e o fato de que essas 325

mesmas lideranças demonstrem, agora, maior dose de pragmatismo na condução dos negócios econômicos e da agenda diplomática, podem eventualmente significar que o Brasil passa a simbolizar, aos olhos dos EUA, a superação de velhos comportamentos atávicos na região, tendentes a equiparar anti-imperialismo e antiamericanismo ou a adesão a regras responsáveis de gestão governamental a uma suposta submissão a ditames econômicos emanados de um fantasmagórico “Consenso de Washington”. Pode ser que essas ingenuidades esquerdistas e essas bobagens econômicas estejam sendo, finalmente, superadas em favor de uma agenda bilateral mais realista do que aquela imaginada pelos ideólogos anacrônicos do velho partido neobolchevique que pretendia “revolucionar” a região contra o império, e que ela passe a estar totalmente focada em resultados concretos. Pode ser: como no famoso teste britânico do pudim, a resposta só pode vir da prática que resulte na sua efetivação. Vamos esperar para ver...

2834. “Relações Brasil-EUA: um recorrente reinício?”, Hartford, 17 junho 2015, 21 p. Texto encomendado pela Revista Sapientia, por ocasião da visita da presidente aos EUA, no final do mês. Seleção das duas últimas partes, sob o título de “Relações Brasil-EUA no início do século 21: desencontros”, publicado em Mundorama (boletim n. 94, junho 2015, publicado em 28/06/2015; link: http://mundorama.net/2015/06/28/relacoes-brasil-eua-no-inicio-do-seculo-21desencontros-por-paulo-roberto-de-almeida/). Texto completo publicado na Revista Sapientia (ano 4, n. 24, julho-agosto 2015, p. 18-29; link para a revista: http://cursosapientia.com.br/images/revista/RevistaSapientia-Edicao24.pdf; link para o artigo: https://www.academia.edu/14879515/2834_Rela%C3%A7%C3%B5es_BrasilEUA_um_recorrente_reinicio_2015_). Relação de Publicados n. 1180 e n. 1187.

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40. A falácia dos modelos de desenvolvimento

Modelos, quando referidos a experimentos ou processos de desenvolvimento bem sucedidos, são construções ex-post, elaboradas por sociólogos dotados de pouca imaginação, para explicar algum caso exitoso de crescimento econômico sustentado, com distribuição dos benefícios sociais desse crescimento. Na verdade, essas construções não constituem modelos de espécie alguma, não explicam muita coisa sobre as razões do sucesso, não são receitas de desenvolvimento rápido para nenhum outro país e, sobretudo, não podem servir de exemplo para o itinerário de outros países. No entanto, é muito comum falar-se de modelos de desenvolvimento, embora eles sejam mais usados na linguagem jornalística do que nas análises econômicas, o que justifica sua inserção na categoria das construções sociológicas, e não no terreno mais circunspecto da análise econômica, ou da história do desenvolvimento econômico. Na opinião deste articulista, modelos são falácias acadêmicas, construídas e disseminadas nos departamentos de sociologia das universidades, e alimentadas justamente pela ausência de senso crítico na avaliação desses processos sustentados de crescimento econômico. Mas eles também são típicos do jornalismo econômico superficial, ambiente no qual uma experiência única e historicamente original acaba sendo indevidamente ampliada para cobrir um espectro mais amplo de países e passa então a 327

representar uma suposta nova receita de desenvolvimento, geralmente de vida efêmera (isto é, enquanto duram as taxas robustas de crescimento de um país que serve alegadamente de modelo). Se quisermos ser abusados, diríamos que o modelo artificialmente construído só dura enquanto se mantiverem as condições favoráveis do caso selecionado, um pouco como o socialismo, que só dura enquanto durar o dinheiro dos outros. Modelos verdadeiros deveriam ser experiências de fracasso, pois é mais fácil saber o que não dá certo do que identificar claramente as condicionantes de um processo bem sucedido de desenvolvimento. Como também se diz habitualmente, o sucesso pode ter muitos pais, mas o fracasso raramente encontra uma miserável de uma mãe. No entanto, seria mais útil saber o que pode dar errado, segundo a conhecida lei de Murphy, do que se por a buscar todos os elementos que compõem uma receita de sucesso. E não precisamos ir muito longe para recolher uma série inteira de fracassos históricos. A América Latina é um imenso laboratório de experiências fracassadas de desenvolvimento econômico. Não fosse por isso, não estaríamos exportando matérias primas há quinhentos anos, e não teríamos sido ultrapassados por outros países e regiões que já estiveram muito mais baixos e já andaram muito mais atrasados do que nós nos níveis de desenvolvimento econômico e social. Digo isto com certo cuidado, uma vez que na escala do desenvolvimento, a América Latina sempre foi uma espécie de classe média do desenvolvimento, abaixo da periferia europeia, mas acima de muitos países asiáticos e certamente bem acima da acumulação de misérias do continente africano, este sim um modelo de não desenvolvimento, cujo fracasso histórico deve ser estudado com cuidado, justamente como receita do que não fazer. Em todo caso, uma história econômica diferente da América Latina seria uma que se dedicasse a fazer o relato de seus fracassos apenas para desmentir essa falácia dos modelos de desenvolvimento, uma vez que já tivemos, no passado, países inseridos nessa categoria falaciosa, a começar pelo próprio Brasil. De modo geral, como já referido, nenhum país é modelo para qualquer outro país, a não ser como modelo negativo, sobre o que não fazer, e nessa categoria a América Latina tem dado sobejas demonstrações de equívocos repetidamente repetidos, se ouso ser redundante. Não querendo tripudiar sobre alguém, em especial, mas o fazendo, cabe reconhecer que a Argentina, em particular, vem cometendo bobagens há mais de 80 anos, e isso contínua e repetidamente, para ser ainda mais redundante. 328

Mas, não cabe aí nenhum orgulho patrioteiro sobre nosso progresso relativo em relação ao mais importante vizinho: o Brasil segue os passos da Argentina, ainda que moderadamente. Não tivemos a desgraça de cair no fascismo caudilhista e de construir um sistema que perdura, como o peronismo, e que assombra todo o país, capturando até algumas de suas inteligências mais refinadas, e que mantém a nação refém de um cadáver insepulto, aliás mais de um. Nós tivemos o nosso fascismo moderado, apoiado no positivismo castilhista, e mais recentemente um peronismo de botequim que, para nossa sorte, não tinha nenhuma doutrina, só esperteza e demagogia (além de algumas outras qualidades pouco recomendáveis). De uns tempos para cá, o Chile foi apontado como modelo de desenvolvimento, apenas porque cresceu vigorosamente nos anos 1990 e se tornou uma espécie de tigre latino-americano, tendo inclusive conquistado a honra de ser admitido nesse clube de ricos que se chama OCDE. Mas o Chile não é modelo de nada, ou para nada, apenas uma resposta adequada que suas elites souberam oferecer, num determinado momento, a desafios surgidos a partir de uma séria crise econômica e política. Ao que parece, essas elites, consideradas de direita, neoliberais ou o que seja, julgaram conveniente abrir o país economicamente, liberalizar amplamente seu comércio exterior e enfatizar as velhas vantagens ricardianas que derivam de certas especializações produtivas. No Brasil sempre se desprezou o “modelo chileno”, se modelo existiu – o que eu não acredito – a pretexto de que se tratava de uma economia pequena, de um abandono completo de uma suposta vocação industrial – que todo grande país deveria ter – e de uma dependência em alguns poucos produtos primários de exportação, e que portanto, segundo esses críticos superficiais, estaria fadado ao fracasso inevitável. Confesso que nunca me impressionou essa história de crítica às especializações limitadas, à falta de um projeto industrial, ou essa outra alegação ainda mais estúpida que se prendia à pequena magnitude econômica do país. Em termos de sucesso ou fracasso, não existem países grandes ou pequenos, aliás sob qualquer outro critério; existem apenas políticas econômicas que funcionam e outras que não funcionam, medidas macro e setoriais que são de boa qualidade, e outras que são de péssima qualidade. Sob esse ponto de vista, o Chile foi de fato um sucesso relativo, pelo menos durante certo tempo (ou até que os socialistas resolvessem mudar algumas regras do “modelo” anterior). Em todo caso, qualquer país que ofereça uma perspectiva de crescimento sustentado e de prosperidade a seu povo, que mantenha a qualidade das políticas 329

econômicas, macro e setoriais, pode ser considerado um exemplo de sucesso, mas isso em seus próprios termos, dentro de suas circunstâncias, não como receita para os demais, pois essas experiências são sempre “irrepetíveis”, se ouso dizer. O Chile, justamente, parece que se cansou de ser neoliberal e agora vem tentado ser um pouco mais socialista. Será que vai dar certo? Cabe acompanhar de perto, para alguma hipótese do experimento desandar. Alguns acham, otimistas, que o Chile é o caminho para o Brasil, que está cansado de ser dirigista e protecionista, e talvez se aproxime um pouco mais de um modelo mais aberto. Liberal? Esqueçam. Não há nenhum risco dessa coisa acontecer por aqui nos próximos 30 ou 40 anos. Vamos continuar trilhando nosso pequeno e medíocre itinerário de voo de galinha, como gostam de repetir os economistas, ou seja, crescimento satisfatório, durante algum tempo – por autoindução, ou por empurrão da China – e depois desabamos novamente para alguma crise fiscal ou de transações correntes. Parece ser a nossa sina, ou pelo menos vejo isto, ao ouvir, até enjoar, a conversa de políticos entendidos no assunto, que prometem continuar lutando para garantir crescimento com emprego e distribuição de renda, desde que as políticas corretas sejam aplicadas pelo governo, isto é, por eles mesmos. Acho que não vai ser ainda desta vez... Mas, se o Chile não é o modelo, para nós, ou para qualquer outro país, qual seria o “bom modelo” a ser seguido? A Coreia (do Sul, of course), a China? Não me falem da Grécia, por favor, esse país latino-americano (malgré lui) perdido na UE. Sobra quem, afinal? Não tenho a menor ideia, e só me resta repetir: não existem modelos disso ou daquilo, seja de crescimento rápido, seja de desenvolvimento “inclusivo”, seja de qualquer outra coisa. Existem apenas modelos de fracasso, países que abusaram da irresponsabilidade emissionista, que manipularam juros e câmbio, que cercearam a iniciativa privada, que gastaram mais do que podiam, que se endividaram em excesso, que praticaram um protecionismo rastaquera e um nacionalismo doentio, que descuraram da boa governança e de uma educação de qualidade, enfim, todas essas mazelas que todos vocês conhecem muito bem. Estou falando do Brasil? Nem por sonho, imaginem se eu seria capaz disso?! Estudo o Brasil há quase meio século e ainda não consegui perceber qual é a nossa, um passo para a frente, dois para trás, tentativas de ensaio e erro, com mais erros do que acertos, enfim, um país que decididamente não é normal, como já declarei em tantas 330

ocasiões (para uma experiência recente, meio desanimadora com a nossa “normalidade anormal”, vejam este link: http://diplomatizzando.blogspot.com.br/2015/07/uma-estadabreve-mas-suficiente-na.html). Então qual é a nossa? Qual é a saída? Sou obrigado a me repetir mais uma vez, e me desculpo por mais esta redundância. O caminho para o Brasil, para o Chile, para a Argentina, para a China, para qualquer país candidato a um processo de crescimento sustentado, com distribuição dos benefícios desse crescimento, que são a base do desenvolvimento econômico e social, é muito simples (mas também é complicado, ao que parece). Eu resumiria as minhas cinco regrinhas, que já desenvolvi em vários dos meus trabalhos sobre o assunto (prometo pescar os links e postar depois em addendum a esta nota), nestes pontos: 1) estabilidade macroeconômica; 2) competitividade microeconômica; 3) boa governança; 4) alta qualidade dos recursos humanos; 5) abertura ao comércio internacional e aos investimentos estrangeiros. Pronto, fico por aqui e não preciso acrescentar mais nada, pois acredito que os cinco requerimentos são self-explaining. Não vou ficar dando consultoria de graça neste momento, mas também não sou candidato a conselheiro do príncipe nem a “aspone” de qualquer governante, pelo menos não dos que estão aí (eles não precisam, sabem errar sozinhos). Só acrescento mais isto: as cinco regrinhas são suficientemente vagas para servir a todos os casos de doentes renitentes nessas coisas de políticas macroeconômicas e setoriais, mas elas devem ser, a cada vez, adaptadas às circunstâncias nacionais, o que é o “óbvio ululante”, como já dizia Nelson Rodrigues. O mesmo finado escritor, de tão grata memória em várias outras coisas (mas não necessariamente em economia), também lembrava que subdesenvolvimento não se improvisa, é obra de séculos, como ele mesmo improvisava. Eu discordo dele. Acho que o subdesenvolvimento é, antes de mais nada, um estado mental, pelo menos no caso do Brasil varonil. Sorry patrioteiros... PS.: Esqueçam os modelos: estudem, comparem, e sigam o bom senso...

2844. “A falácia dos modelos de desenvolvimento: enterrando um mito sociológico”, Anápolis, 12 julho 2015, 2 p.; Brasília-Atlanta (em voo), 16-17 julho 2015, 5 p. 331

Digressões sobre o mito dos modelos de desenvolvimento. Mundorama (17/07/2015; link: http://mundorama.net/2015/07/17/a-falacia-dos-modelos-dedesenvolvimento-enterrando-um-mito-sociologico-por-paulo-roberto-de-almeida/); reproduzido no blog Diplomatizzando (18/07/2015; link: http://diplomatizzando.blogspot.com/2015/07/falacias-academicas-o-mito-dosmodelos.html). Relação de Publicados n. 1182.

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41. O TransPacific Partnership e seu impacto sobre o Mercosul

Doze países da orla do Pacífico – membros da APEC (Cooperação Econômica da Ásia Pacífico), alguns da ASEAN (Associação de Nações do Sudeste Asiático), os três do NAFTA (Canadá, Estados Unidos e México) e três dos quatro membros latinoamericanos da Aliança do Pacífico (Chile, Peru e México, mas a Colômbia também cogita aderir) – assinaram em 5 de outubro de 2015 um grande acordo de liberalização do comércio nessa vasta região. As siglas já indicam que não se trata de algo surgido do nada, mas sim a evolução de um processo que ocorre paralelamente aos progressos da globalização nas últimas duas ou três décadas. Existem boas perspectivas de que a Coreia do Sul e outros países da região possam aderir em negociações ulteriores, embora vários observadores se apressaram em sublinhar o fato de a China ter sido mantida (por enquanto, pelo menos) à margem desse gigantesco acordo de liberalização comercial. Esse fato, do qual muitos extraem conclusões geopolíticas apressadas, pode não significar muito no plano prático: o gigante asiático, tanto quanto o Japão, um dos grandes signatários, estará de fato presente nos intercâmbios a serem realizados ao abrigo do acordo, pelos seus muitos vínculos de investimentos e de integração produtiva já consolidados ao longo da (e em toda a) imensa bacia do Pacífico. A decisão de coroar um difícil processo negociador – que tinha sido iniciado em 2008 – por um acordo ambicioso de liberalização comercial e de facilitação de diversos outros tipos de negócios se insere na tendência acelerada nas duas últimas décadas que é conhecida como “regionalização”. Mas ela também poderia ser identificada ao chamado “minilateralismo”, por oposição ao formato básico do sistema multilateral de comércio, regido pelas normas do GATT – o Acordo Geral de Tarifas e Comércio, de 1947, revisto em 1994 – e administrado pela Organização Mundial de Comércio (OMC), ela mesma criada nesse último ano, mas que representa a última das três organizações da ordem econômica mundial, cujo desenho tinha sido feito pela primeira vez em Bretton Woods, em 1944. A regionalização constitui, justamente, uma das exceções ao regime geral do GATT, no sentido em que ela permite, contra os princípios gerais de naçãomais-favorecida, tratamento nacional e reciprocidade desse instrumento, que as nações partícipes de esquemas mais restritos de liberalização comercial não tenham de aplicar o mesmo tratamento a todos os membros do acordo, mas que possam manter, 333

contrariamente ao artigo primeiro do GATT, certo grau de discriminação contra parceiros comerciais não membros desse acordo mais restrito. No caso desse acordo do Pacífico, como também de outros blocos comerciais em vigor – em geral sob a forma de áreas preferenciais de comércio ou de zonas de livre comércio, com alguns poucos casos de uniões aduaneiras, como a UE e, tentativamente, o Mercosul –, a redução das tarifas aduaneiras aplicadas ao comércio recíproco nem constitui o aspecto mais importante do esquema: as tarifas comerciais já são, para todos os efeitos, muito baixas (com possíveis exceções na área agrícola, terreno, aliás, de muitas das exclusões pontuais à liberalização), ou inexistentes, inclusive por força de acordos já concluídos, como é o caso do famoso ITA, o acordo que zera as tarifas para uma imensa gama de bens tecnológicos (geralmente de informática, ou eletrônicos em geral). Com exceção do Mercosul, e de alguns outros blocos comerciais incipientes entre países em desenvolvimento, as tarifas industriais entre parceiros avançados e em vigor nos grandes acordos de comércio – como os de “associação” patrocinados pela UE – as barreiras tarifárias não costumam ter a função protecionista que elas assumem no âmbito do chamado “Sul Global”, embora as exceções pontuais e o tratamento especial dado a alguns setores (agricultura, em grande medida) possam ser relevantes. Mas, se as tarifas não são tão importantes nesse acordo do Pacífico, por que, então, as dificuldades negociadoras, e as relutâncias já expressas por legisladores (sobretudo nos Estados Unidos) aos seus termos? Isto se deve a que o TransPacific Partnership não é um simples acordo de acesso a mercados, ou seja, tratando apenas de tarifas de bens, e sim um acordo abrangente que se estende às muitas áreas que, na linguagem da OMC, são introduzidas pela expressão “aspectos comerciais de...”, ou seja, temas regulatórios e normas. Aqui figuram, entre outros, investimentos, barreiras técnicas, propriedade intelectual, normas fitossanitárias, meio ambiente, regulações laborais, compras governamentais, aperfeiçoamento dos mecanismos de solução de controvérsias, sem mencionar o importante campo dos serviços (sobretudo os financeiros, onde atualmente se destacam gigantes como os próprios EUA, mas também cidades-Estados como Cingapura, ou “enclaves” como Hong Kong). O Vietnã, por exemplo, terá de atender a alguns dos critérios expressos no acordo que regulam normas laborais, permitindo a criação de sindicatos independentes, que possam lutar pelos interesses reais dos trabalhadores, sem a interferência do partido comunista, que mantêm a postura contrária a sindicatos livres dos marxistas no poder. 334

São esses os terrenos que passarão a ocupar um espaço significativamente maior do que o próprio comércio de bens nos intercâmbios entre essas economias, que a julgar por estimativas apresentadas recentemente já representariam 40% do PIB mundial (mas menos de 30% pelo critério da paridade de poder de compra). Na verdade, os membros do TPP são ainda mais relevantes do que a simples agregação dos PIBs nacionais, e os seus números desafiam qualquer comparação com o Mercosul, e ultrapassam até mesmo os indicadores mastodônticos vinculados à UE com seus 27 membros. O Mercosul, mesmo incorporando Venezuela e Bolívia (que não poderiam, a rigor, ser considerados membros plenos do bloco, sendo antes países associados a ele), empalidece em face dos dois grandes blocos comerciais da atualidade, como também da China, o novo gigante da economia mundial; o coeficiente de comércio exterior do Mercosul, por exemplo, representa apenas 19% do PIB, contra 24% da China, 25% da UE e mais de 31% para o TPP. A tabela abaixo, com estatísticas de PIB segundo o critério da paridade de poder de compra, apresenta os mais importantes indicadores vinculados a comércio.

Indicadores econômicos por países e blocos (TPP, Mercosul, UE, China, Mundo) País/Bloco População PIB ppp Export Import Xs - Ms Austrália 23.490 1.100.000 250.800 245.900 4.900 Brunei 422 32.110 11.380 4.308 7.072 Canadá 34.834 1.579.000 465.100 482.100 - 17.000 Chile 17.363 410.300 76.980 70.670 6.310 Cingapura 5.567 445.200 445.200 375.500 69.700 EUA 318.892 17.460.000 1.610.000 2.334.000 - 724.000 Japão 127.103 4.807.000 710.500 811.900 - 101.400 México 120.286 2.143.000 406.400 407.600 - 1.200 N. Zelândia 4.401 158.700 40.210 40.710 - 500 Peru 31.400 376.700 36.430 40.250 - 3.820 Vietnã 93.421 509.500 147.000 138.600 8.400 TPP 777.179 29.020.810 4.203.900 4.951.628 - 751.538 Argentina 43.024 540.200 76.470 65.900 10.570 Bolívia 10.631 70.380 12.340 9.513 2.827 Brasil 202.770 3.073.000 242.700 241.900 800 Paraguai 6.703 57.870 14.610 12.370 2.240 Uruguai 3.332 69.380 11.000 12.050 - 1.050 Venezuela 28.868 545.700 83.200 50.340 32.860 Mercosul 295.810 4.356.530 440.320 392.073 48.247 China 1.355.692 17.630.000 2.252.000 1.949.000 303.000 UE 511.434 17.610.000 2.173.000 2.312.000 139.000 Mundo 7.256.490 107.005.000 19.080.000 18.860.000 220.000 Fonte: CIA Fact Book (https://www.cia.gov/library/publications/resources/the-world-factbook/; acesso: 09/10/2015); valores: milhões de dólares correntes (PIB= ppp).

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Uma comparação entre esses blocos em seus respectivos indicadores permite verificar seu potencial impacto mundial em termos econômicos e comerciais. O TPP, por exemplo, com apenas um décimo da população mundial realiza mais de 22% das exportações globais, contra valores respectivos de 7% da população total para a UE, com apenas 11% das exportações mundiais. A China, um gigante populacional, com mais de 18% dos habitantes do planeta, ultrapassa a UE em matéria de exportações, perfazendo sozinha 11,8% das vendas mundiais. O Mercosul a seis países, ainda que detendo mais de 4% da população do mundo, representa apenas 2,3% das exportações totais, mas apenas 1,8% do total quando reduzido aos seus quatro membros originais. Em termos do PIB global, os contrastes são igualmente significativos: o TPP representa 27,12% do valor agregado mundial (ppp), contra números relativamente similares entre a China (16,47%) e a UE (16,45); o Mercosul a seis, em contraste, representa apenas 4,07% do PIB mundial, mas tão somente 3,5% no formato a quatro países. A importância do comércio exterior na economia de cada um dos blocos é bastante diferenciada, mostrando o dinamismo relativo de cada economia tal como refletido nas exportações respectivas: os países do TPP exportam, na média, US$ 6,41 per capita, ao passo que esse valor cai para US$ 4,27 no caso da UE e para apenas US$ 1,66 por cada chinês; em contraste, os valores das exportações por habitante no Mercosul a seis são de apenas US$ 1,44 e ainda inferior no caso do bloco reduzido a quatro países: US$ 1,16. Aqui se trata de valores brutos das exportações, sem considerar sua composição, o que certamente redundaria numa participação ainda mais irrelevante no caso do Mercosul em termos de bens de maior valor agregado, ou seja, de mais elevada elasticidade-preço (o Mercosul, na verdade, não vende muito ao mundo, apenas é requisitado em termos de oferta de commodities e matérias-primas energéticas). Pois bem, independentemente de quais possam ser os desdobramentos regionais e internacionais do acordo TPP e de sua incidência nos grandes fluxos mundiais de comércio de bens e serviços, caberia registrar, ainda que brevemente, seus impactos para o Mercosul e do ponto de vista dos interesses brasileiros. Em primeiro lugar, é evidente que, no plano estrito das competitividades setoriais, as preferências intercambiadas entre os membros do TPP reduzem a – já bastante diminuída – penetração de produtos brasileiros e dos demais países do Mercosul na região coberta pelo novo acordo, com a possível exceção, ainda que parcial, das commodities (que 336

possuem seus próprios canais e mecanismos de fixação de preços) e dos parceiros sulamericanos. Um outro aspecto de alta relevância é o de que, mesmo sendo um acordo “regional”, é evidente que o TPP vai influenciar o formato, o escopo e a abrangência de outros acordos do gênero, além dos próprios acordos multilaterais, seja um Doha redivivo, ou qualquer outro esquema substituto ou sucessor, não esquecendo as negociações em curso para um acordo bi-regional UE-Mercosul. Possivelmente, ou quase certamente, novas rodadas de negociações, no plano multilateral ou em escala mais limitada geograficamente, passarão a incorporar demandas por sua ampliação das tradicionais barganhas por acesso a mercados a aspectos regulatórios já mencionados. Em terceiro, e talvez mais importante lugar, esse acordo, assim como os demais já existentes ou em negociação – como o “transatlântico”, entre EUA e UE – tendem a conformar o padrão das trocas internacionais no futuro previsível e já definem, desde muito, o processo em curso de integração mundial das cadeias produtivas, das quais o Brasil e seus “sócios” do Mercosul estão em grande medida excluídos. Depois das decisões tomadas na era Collor de abertura econômica e de liberalização comercial unilateral – ou seja, uma reforma tarifária feita essencialmente no interesse do próprio Brasil – e que influenciaram positivamente os ganhos de produtividade e o aumento da competitividade dos produtos brasileiros, o país nunca mais experimentou uma redução significativa de barreiras aduaneiras, tendo, ao contrário, aumentado o seu grau ainda elevado de protecionismo comercial (sem mencionar a Argentina, que se excedeu nesse tipo de restrição). Não estranha, assim, que todas as avaliações feitas a propósito do TPP no Brasil foram num tom de lamento conformado com o nosso isolamento mundial (em grande medida atribuído à “bola de ferro” do Mercosul). Todos os observadores se perguntam se o Brasil vai continuar na mesma letargia registrada nos últimos anos, apostando todas as suas fichas num longínquo acordo multilateral ou no sucesso de um pouco plausível arranjo Mercosul-UE. O país paga o preço, atualmente, pelos muitos anos de retração comercial e introversão econômica, e quiçá por décadas de políticas setoriais excessivamente calcadas no mercado interno, sobre as quais vieram agregar-se a miopia inacreditável que consistiu na preferencia ideológica por uma tal de diplomacia Sul-Sul, além da tolerância para com os desmandos argentinos em relação ao livre comércio no Mercosul. Tudo tem um custo, e o Brasil conhece hoje os danos provocados pelas políticas equivocadas dos últimos doze ou treze anos. 337

2887. “O megabloco do Pacífico e o Brasil”, Hartford 6 outubro 2015, 3 p. Considerações sobre seus efeitos para o país, reconhecendo o protecionismo das políticas econômicas adotadas na era recente. Versão mais ampla, de 5 p., sob o título de “O TransPacific Partnership e seu impacto sobre o Mercosul”, para Mundorama. Publicado (n. 98, 15/10/2015; link: http://mundorama.net/2015/10/15/o-transpacific-partnership-e-seu-impacto-sobreo-mercosul-por-paulo-roberto-dealmeida/?utm_source=feedburner&utm_medium=email&utm_campaign=Feed%3 A+Mundorama+%28Mundorama%29); divulgado no blog Diplomatizzando (10/10/2015; link: http://diplomatizzando.blogspot.com/2015/10/o-transpacificpartnership-e-seu.html). Relação de Publicados n. 1197.

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42. Quais são as grandes ameaças ao Brasil?

Nos tempos da Guerra Fria, e do regime militar brasileiro – um “breve” período de 21 anos em nossa história, desde o auge da própria, no início dos anos 60, até o fim patético do socialismo e consequente descongelamento mundial –, a resposta à questão seria clara e inequívoca: as ameaças eram representadas pelo “movimento comunista internacional” e os partidos nacionais afiliados, o que justamente justificava o ambiente repressivo, como a interdição do Partido Comunista e a supressão dos movimentos de oposição armada. A paranoia também contaminava as medidas afetando a política externa, entre elas a vigilância aos regimes esquerdistas da vizinhança e uma cautela extrema com tudo o que estivesse vinculado ao mundo comunista, fossem visitas do Balé Bolshoi ou viagens de “intelectuais suspeitos” aos países da “cortina de ferro”. Até aí nada de mais. Afinal de contas, durante quase meio século, depois da aliança circunstancial da Segunda Guerra Mundial, a União Soviética era definida, pela principal potência do mundo ocidental, os Estados Unidos – que era, em princípio, o mais importante aliado estratégico do Brasil –, como uma ameaça vital aos países do capitalismo avançado. Isso se refletia na política externa dos EUA e dos demais sócios na OTAN: contenção do comunismo nesses países, mas também em todas as demais 339

dependências políticas e nos fornecedores de matérias primas essenciais do chamado Terceiro Mundo, daí derivando os pontos de fricção e as “proxy wars”, as guerras por procuração nas fronteiras distantes do capitalismo, no extremo asiático, na África ou na América Latina. Nossos militares e a comunidade de informações também mantinham programas de estudos sobre essas ameaças externas representadas pelo “movimento comunista internacional” e seus poderosos representantes internos, muitos dos quais eliminados, até brutalmente, pelos donos do poder. Mas, é claro que o pobre e periférico Brasil não podia levar esses inimigos muito a sério: ninguém então esperava, nem mesmo o mais anticomunista dos militares, que a União Soviética fosse invadir o Brasil, ou que o Partidão estivesse próximo de subverter a ordem desconstituída pelos milicos. O que não impediu, acidentalmente, que cubanos e soviéticos penetrassem nossos códigos de criptografia, como já foi documentado em registros e relatos de ex-servidores do finado regime comunista. O que ocorreu, então, foi que, dentre as ameaças à soberania e à integridade territorial do Brasil, passaram a figurar ações do próprio império, em princípio o grande aliado estratégico na luta contra o comunismo. Não obstante a identidade geral de propósitos no plano geopolítico, ele passou a ser considerado suspeito de buscar inviabilizar o desenvolvimento integral do Brasil, não só nossa capacitação plena em tecnologias sensíveis –na área espacial, por exemplo, sobretudo mísseis, mas também no domínio nuclear – mas também, e pior que tudo, estaria supostamente comprometido com a internacionalização da Amazônia, ou seja, o pecado maior de tentar subtrair aquele imenso território à soberania nacional. A paranoia nessa área chegou a níveis ridículos, mas o fato é que os militares, nacionalistas por definição, passaram a desconfiar dos EUA, o que reforçou o mesmo sentimento cultivado pelos diplomatas, e pela opinião pública de modo geral. O Brasil é um país que adora o capital estrangeiro, mas detesta o capitalista estrangeiro. Sempre se considerou entre nós que a principal potência econômica e militar do planeta atua única e exclusivamente em prol de seus próprios interesses egoístas, sacrificando em qualquer circunstância projetos nacionais de desenvolvimento que possam representar alguma ameaça – inclusive de natureza comercial – aos objetivos das grandes multinacionais americanas. A França também padece do mesmo mal, e em ambos países têm sucesso garantido publicações que agitam a ameaça do imperialismo americano. Como a Guerra Fria já terminou – embora substituída, ao que parece, pelo que eu chamo de “guerra fria econômica” –, trata-se agora de determinar quais seriam as 340

grandes ameaças ao Brasil. Ainda que a Rússia de Putin se comporte, em certa medida como a ex-URSS, já não existe mais o movimento comunista internacional; os próprios comunistas brasileiros preferem ficar amigos dos capitalistas para melhor extorqui-los (mas tudo numa boa, claro, sempre em prol dos “negócios”). Será que vão mesmo internacionalizar a Amazônia, ou cercar a Amazônia azul com uma nova frota? Será que as empresas americanas continuam tão gananciosas como antigamente? Que tal desafiar os estrategistas de academia, ou mesmo um militar com pretensões teóricas, a listar as ameaças credíveis, de origem externa, à soberania e à segurança do Brasil? Penso, penso, mas não consigo ver alguma ameaça verdadeiramente desafiadora ao nosso país, embora os paranoicos de carteirinha sempre agitarão as rotas marítimas, o cerceamento tecnológico, o narcotráfico ou a imigração selvagem como possíveis fontes de preocupações relevantes para a manutenção da boa ordem na casa. Não imagino que essas supostas ameaças sejam realmente problemas que necessitem a mobilização de forças reais, além das pranchetas e apresentações dos pesquisadores e planejadores estratégicos, que são pagos para isso mesmo: agitar corações e mentes. Algum inimigo externo ameaça nossa soberania sobre o território e os recursos nacionais? A situação regional seria assim tão preocupante a ponto de justificar simulações e ações tendentes a dissuadir potenciais invasores ou aliados de grandes potências extracontinentais? Tudo leva a crer que as alegadas evidências a esse respeito são, até o momento, inconclusivas. O alegado “déficit de soberania” na Amazônia, onde se processa o narcotráfico, e a vulnerabilidade das fronteiras sulinas ao tráfico de armas e de pessoas constituem, de fato, problemas policiais, derivados de deficiências da presença do Estado em tais regiões, que podem ser resolvidos na prática com o adensamento de forças já existentes. Quais seriam, então, as principais ameaças ao Brasil, enquanto país, enquanto nação, enquanto corpo político e enquanto economia organizada? Elas são muitas, e aponto várias em seguida. Mas, primeiro, vamos ver as falsas ameaças, aquelas que encantam certos acadêmicos e militantes de causas surrealistas, sem qualquer consistência porém. Será que o Brasil está ameaçado de perder soberania e de ter o seu processo de desenvolvimento prejudicado pela suposta “concentração de poder” no plano mundial por um punhado de grandes potências, algumas capitalistas, outras nem tanto? Esta é uma falsa ameaça agitada de forma recorrente por um dos ideólogos mais conhecidos de certas causas alternativas, e que vive alertando para o grande perigo que representaria a “concentração extraordinária” de poder econômico, político, tecnológico, militar e até 341

ideológico, propriamente, que caracterizaria o cenário internacional atualmente. Não parece haver nenhuma novidade nessa “ameaça”; o mundo sempre esteve marcado pela dominação de grandes impérios sobre regiões e países “dependentes” ou periféricos, o que não impediu alguns dos grandes de decaírem – Espanha, China, Grã-Bretanha – e de alguns “emergentes” de ascenderem na escala do poder mundial – Estados Unidos, Japão, a mesma China. Grandes impérios tendem a favorecer um ambiente de paz e de estabilidade para justamente poder aproveitar das benesses permitidas por tal condição: sua preeminência econômica, tecnológica e militar lhes permite extrair renda de seus dependentes ou do resto do mundo, o que não impede alguns destes de também lucrarem fornecendo matérias primas, mão-de-obra ou manufaturas padronizadas aos ricos do centro do sistema. Aquele ideólogo já leu Emmanuel Todd? Pode-se, portanto, descartar essa falsa ameaça, contra a qual lutam certos “soberanistas econômicos” que pretendem subtrair o Brasil da ameaça de dominação econômica das grandes potências, o que só redunda em atraso relativo e perda de oportunidades no comércio internacional e nos mais diversos intercâmbios de intangíveis, inclusive ideias inovadoras para a modernização do sistema nacional. A outra falsa ameaça seria aquela representada pela “deterioração dos termos de intercâmbio”, que estaria supostamente associada à concentração da economia na exportação de matérias primas e à dependência da importação de produtos mais sofisticados. O mais curioso é que os que proclamam tal tese – por sinal falsa, mas aceita como verdadeira, pois era proveniente de um dos gurus da economia do desenvolvimento, ninguém menos do que Raúl Prebisch, aliás secundado por outro, o sueco Gunnar Myrdal – são os mesmos que proclamavam (alguns ainda proclamam) a necessidade de o Estado controlar, por companhias estatais, a produção e exportação de matérias primas estratégicas, como minério de ferro e petróleo. Será que ainda é preciso apontar a falácia desse tipo de argumento determinista? Será que o sucesso da Vale privatizada – que contribui muito mais pagando impostos ao governo do que antes com seus magros dividendos de exploração – e a miséria de vários países exportadores de petróleo, monopolistas estatais no setor, não é suficiente para demonstrar a falsidade de certas “teses” relativas à ameaça de “perder o controle” de seus produtos “estratégicos”? A falsa ameaça da “dependência tecnológica” para, a partir daí, construir custosos elefantes brancos de capacitação tecnológica por indução estatal, pertence ao mesmo universo das falácias econômicas sustentadas justamente 342

pelo temor de um “atraso tecnológico irremediável”, caso o Estado não “viabilize pesquisa de ponta”, em setores escolhidos por burocratas, não por empresários competindo num mercado livre e aberto a todos os inovadores estrangeiros. Em defesa da ação estatal para remediar tal tipo de “ameaça”, os ideólogos costumam insistir no suposto papel preeminente do Pentágono na introdução de tecnologias “revolucionárias”, que começam no setor militar e depois são disseminadas na economia civil, trazendo uma prosperidade inédita aos EUA, que por acaso também são uma potência econômica e militar justamente “devido aos gastos do Pentágono”. Não ocorre aos que assim pensam que os EUA são poderosos a despeito do Pentágono, não por causa dele, e que aquele exemplo perfeito de stalinismo militar nada poderia fazer se a sociedade americana – engenheiros, cientistas, empresas inovadoras, simples inventores isolados no fundo de alguma garagem doméstica – não fornecesse a base essencial, sem a qual o Pentágono nada poderia oferecer, por mais dinheiro que gastasse (aliás, geralmente muito mal). Não ocorre a essas mentes iluminadas que o segredo do “sucesso” do Pentágono está, não nos generais estrelados e cheios de medalhinhas e brasões, mas na professorinha de aldeia e na cadeia educativa que tem total liberdade de inovar (e de fracassar), o que é típico do sistema americano. Essas mentes não se dão conta que os EUA conceberam, involuntária e naturalmente, um “modo inventivo de produção” que passa longe dos modelos marxianos de sucessão de modos de produção, um sistema intangível jamais imaginado pelos adeptos do materialismo dialético. Poderíamos continuar desfilando muitos outros exemplos, econômicos ou não, de “ameaças” falaciosas à soberania e ao progresso do Brasil, mas cabe agora identificar as verdadeiras ameaças ao desenvolvimento e à prosperidade da nação, com base numa simples constatação visual de quais são os males que nos atingem, quais são as pragas que nos afligem, quais são os verdadeiros obstáculos ao avanço do país a patamares mais elevados de bem-estar e de prosperidade. Um exercício desse tipo não requer nenhuma pesquisa sofisticada, nenhum relatório de organismo internacional, nenhum comitê de sábios a se debruçarem sobre as fontes dos nossos males, as nossas mazelas mais evidentes. Quais seriam elas, então? Eu colocaria, em primeiro lugar, a inépcia em políticas macroeconômicas e setoriais (embora estas últimas sejam dispensáveis, em minha modesta opinião). A mais importante é, obviamente, a mania de gastar além da conta, o que acaba redundando ou em emissionismo irresponsável – e portanto em mais inflação – ou em crescimento 343

exagerado da dívida pública, gravando proporcionalmente as atuais e futuras gerações, que terão de suportar impostos acrescidos para o serviço da dívida, ou mais inflação. A ameaça associada a essa mania é a deriva fiscal, ou seja, o desequilíbrio orçamentário e a busca de expedientes de fôlego curto para resolver um problema estrutural, que é a incapacidade de tornar compatíveis receitas e despesas, resultando numa carga fiscal que simplesmente retira capacidade de poupança dos particulares e competitividade das empresas, interna e externamente. Uma outra ameaça que sempre paira sobre os ineptos econômicos é a ilusão de pretender controlar juros e câmbio em patamares julgados ideais, ou de “equilíbrio”, o que é sempre desmentido pela dinâmica dos mercados e pela esperteza superior dos agentes privados sobre a “sabedoria” dos burocratas. Juros e taxa de câmbio flutuando ao sabor da oferta e da demanda respectivas são bem mais adequados a uma economia moderna e competitiva do que o dirigismo caolho de keynesianos de botequim que pretendem “corrigir” as “falhas de mercado”, dirigindo esses dois preços fundamentais em toda economia a patamares que eles julgam serem os melhores para o país (geralmente é em favor de uma tribo bem articulada de lobistas). Tão devastadora quando a inépcia macroeconômica – poderíamos citar abundantes exemplos aqui mesmo nessa nossa terrinha tão sofrida, a única no mundo a ter conhecido oito moedas sucessivas no espaço de três gerações, sendo seis no tempo de meia geração – é a cartelização da economia, e a completa ausência de competição microeconômica em setores inteiros da oferta doméstica, o que redunda obviamente em preços altos e proteção indevida aos espertos amigos do rei. Não é preciso referir as imensas agruras enfrentadas pelos usuários dos serviços de telefonia, não porque o setor tenha sido inteiramente privatizado – pois a continuar estatal os brasileiros não teriam a oferta variada de celulares de que dispõem atualmente, ainda que a preços abusivos –, mas porque se trata de um serviço inteiramente cartelizado, o que permite justamente tripudiar sobre os consumidores. A cartelização é uma decisão totalmente estatal, como é, igualmente, a super-taxação (à altura de 40%) do setor, uma das melhores “vacas extrativas” tanto por parte do Estado, quanto envolvidas em negociatas fraudulentas. A terceira maior ameaça ao Brasil, ainda de origem interna, é a má governança, representada por um sistema político disfuncional, um judiciário ineficiente – já que demorando oito anos, em média, para resolver uma pendência – e um “contrato social” derivado de um arranjo constitucional peculiarmente esquizofrênico para os fins de crescimento sustentado (oferecendo, ao contrário, todas as condições para a expansão 344

continuada dos gastos públicos, ou seja, para a sucção crescente dos recursos privados). Todo e qualquer economista é capaz de reconhecer que a arquitetura institucional criada no Brasil, a despeito do Estado “hiperdesenvolvido”, é a responsável pelos altos custos de transação que caracterizam as relações econômicas no Brasil: não é novidade para ninguém que Estado cartorial e burocratismo exacerbado das relações contratuais fazem parte desse cenário dantesco no ambiente de negócios, o que uma simples consulta ao relatório do Banco Mundial “Fazendo Negócios” pode amplamente confirmar. Reflexos da má governança aparecem na corrupção política, na infraestrutura precária, e no próprio fato de que os cidadãos contribuintes se submetem aos ukases despóticos de um Estado fascista, que pretende regular aspectos íntimos da vida de cada um deles, de nós. A quarta ameaça ao Brasil, provavelmente a maior de todas elas, é a persistência de um sistema educacional incapaz de fornecer uma educação de qualidade à imensa maioria da população brasileira, o que se reflete nos níveis baixíssimos de produtividade e de inovação, que são os principais responsáveis pelo fato de nossa indústria continuar sendo pouco competitiva no plano internacional, sempre buscando proteção tarifária e de subsídios diretos ou indiretos à exportação, como aliás a tradicional pressão pela desvalorização da moeda. Uma simples consulta aos resultados do PISA da OCDE – o programa internacional de avaliação do desempenho de jovens no domínio da língua pátria e em conhecimentos elementares em ciências e em matemática – pode confirmar o cenário pavoroso que nos espera nos anos à frente. De fato, quando o atual bônus demográfico – a melhor relação possível entre ativos e dependentes na força laboral – terminar, em pouco mais de uma década, o Brasil não terá acumulado riqueza suficiente para cobrir gastos previdenciários e custos de saúde para sua crescente população idosa, sem mencionar o fato de que nossos gastos de seguridade social já alcançam uma fração do PIB desproporcional em relação ao peso relativo da população de idade avançada. Finalmente, a quinta, mas não a última, grande ameaça ao presente e ao futuro do país se situa no ridiculamente pequeno coeficiente de abertura externa, ou seja, a participação do comércio exterior na formação do PIB; sobre isso se agrega uma histórica desconfiança da presença do capital estrangeiro em setores considerados “estratégicos” da vida nacional, o que incluía, até pouco tempo atrás, além da infraestrutura e das mesmas commodities “estratégicas” – minério de ferro, petróleo – as comunicações e imprensa, e até mesmo, por incrível que pareça, o corpo docente das

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instituições de ensino superior (proibição constitucional levantada na revisão de 1993, mas ainda refletida na fraquíssima internacionalização das universidades brasileiras). Repassando cada um desses cinco conjuntos de ameaças ao Brasil, ao seu futuro e ao bem-estar de seus filhos, impossível não concluir que os grandes inimigos do Brasil somos nós mesmos, ou melhor, nossas elites ineptas, nossa classe política despreparada e nossos capitalistas corporatistas e mercantilistas. Não é preciso lembrar aqui uma série inteira de outros males de raiz, alguns herdados do cartorialismo lusitano, outros continuamente criados por legisladores ignaros do que se chama custo-oportunidade e ainda reforçados por juízes malucos firmemente imbuídos da missão sagrada de fazer justiça social a golpes de liminares politicamente corretas e de sentenças corretoras da nossa histórica desigualdade. E o que dizer da nossa academia mentalmente atrasada, repleta de gramscianos que nunca ouviram falar de Plekhanov e que acham que o Brasil foi, alguma vez, “neoliberal”? Mais alguns anos, vão talvez chegar a Edward Bernstein. Tais ameaças “made in Brazil” superam qualquer intento de dominação imperial e quaisquer conspirações estrangeiras contra um utópico, mas sempre requerido “projeto nacional de desenvolvimento”, mais um desses fantasmas cuja suposta ausência serve de bode expiatório para nossos fracassos auto-infligidos. Ainda temos necessidade, ou espaço, para inimigos externos? Que tal deixar a geopolítica de lado e passar a cuidar principalmente da economia doméstica?

2855. “Quais são as grandes ameaças ao Brasil?”, Hartford, 15 agosto 2015, 7 p. Sobre as supostas ameaças externas e nossos males “made in Brazil”. Boletim Mundorama (16/08/2015, link: http://mundorama.net/2015/08/16/quais-sao-asgrandes-ameacas-ao-brasil-por-paulo-roberto-de-almeida/). Postado no blog Diplomatizzando (link: http://diplomatizzando.blogspot.com/2015/08/quais-sao-asgrandes-ameacas-ao-brasil.html). Relação de Publicados n. 1188.

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43. Desafios externos ao Brasil no futuro próximo

Os grandes desafios para o Brasil, como nação e como sociedade, no futuro de médio e longo prazo são os seguintes: adequação de seus (des)equilíbrios fiscais e orçamentários em vista do final do bônus demográfico e do crescimento das despesas previdenciárias e dos cuidados à saúde; incremento da qualidade da educação, em todos os níveis, como condição crucial, entre outros fatores, para a melhoria dos ganhos de produtividade e de competitividade; elevação substantiva da capacidade de inovação tecnológica, que passa pela atratividade de investimentos estrangeiros, pelo comércio internacional e a inserção produtiva no mundo; equacionamento dos problemas urbanos e de segurança pública. Esses desafios implicam, pela ordem: estabilidade macroeconômica capaz de promover um processo de crescimento sustentado com transformação produtiva contínua; aumento da competição microeconômica, dado o grau muito elevado de concentração empresarial na economia; melhoria dos padrões de governança em todos os poderes, para diminuir os custos de transação e os níveis extremamente elevados de corrupção; alta qualidade do capital humano, com uma revolução integral nos sistemas educacionais; abertura ao comércio internacional e aos investimentos estrangeiros de maneira ampla; melhoria dos padrões de governança pública e dos serviços prestados pelo Estado à cidadania. Nenhuma dessas metas e objetivos passa por alguma negociação externa, ou depende do sistema internacional, que é extremamente favorável ao crescimento e à mudanças de patamar tecnológico, como já provou a experiência de crescimento inclusivo de muitos outros países. Todos eles dependem de ações unilaterais brasileiras, de mudanças e de reformas que devem ser empreendidas internamente: são tarefas inadiáveis ao Brasil atual, como condição de uma melhor inserção internacional. O mundo não está esperando o Brasil se transformar, ele segue adiante, quer o acompanhemos, quer não, como hoje; em outros termos, é o Brasil que está em descompasso com o mundo, não este que estaria sendo implacável com as hesitações brasileiras em seu processo (inevitável) de reformas. Uma trajetória errática de crescimento e de desenvolvimento O Brasil foi um dos países de maior crescimento econômico, junto com o Japão, no decorrer do século XX, até que a crise da dívida externa, no início dos anos 1980, e a 347

sucessão de problemas macroeconômicos subsequentes – aceleração inflacionária, descontrole das contas públicas, etc. – se conjugaram para reduzir de modo dramático suas taxas de crescimento, que passaram a se situar num patamar bastante inferior aos ciclos de expansão das décadas anteriores, praticamente num ritmo que representava a metade do crescimento médio mundial e três vezes inferior às taxas das economias emergentes mais dinâmicas. O Japão, por outros motivos, mas com efeitos comparáveis, também conheceu uma redução dramática de suas taxas de crescimento, mas apenas a partir dos anos 1990 e já tendo alcançado um patamar de riqueza material superior inclusive à média das economias avançadas, e com tecnologia e poupança suficientes para garantir uma acomodação mais ou menos tranquila no baixo crescimento. Não é o caso do Brasil, que praticamente estagnou durante uma década e meia, e, que depois de uma fase de retomada de um modesto crescimento nos anos 2000, estagnou numa recessão que é ainda pior do que a crise vivida no início dos anos 1930, inclusive reduzindo sua renda per capita a níveis inferiores aos dos últimos dez anos. O principal problema para o Brasil, agora e nos anos à frente, é, portanto, a retomada de um nível de crescimento suficiente e adequado para acomodar o final do bônus demográfico (entre 10 e 15 anos à frente) e capaz de incrementar a renda per capita e a produtividade do sistema econômico, de maneira a enfrentar os desafios previdenciários e os gastos com saúde que aumentarão inapelável e inevitavelmente daqui para a frente. Este é o principal desafio brasileiro, e ele permanecerá como principal durante anos à frente. Nada disso, repita-se, depende do sistema internacional, ou dele depende muito pouco, como podem ser os preços das commodities exportadas pelo Brasil, ou eventuais crises financeiras externas que possam diminuir o acesso do Brasil a mercados ou capitais estrangeiros. Tudo, ou quase tudo, depende exclusivamente do Brasil e dos brasileiros, ou seja, de seus dirigentes, de suas políticas e instituições de Estado e das ações de governos. Não está ao alcance do Brasil mudar o mundo, que continuará aprofundando os processos atualmente em curso na economia mundial, que são basicamente os da globalização e da regionalização. Eles são, ao mesmo tempo, politicamente dirigidos e “incontroláveis”, pois combinam o neomercantilismo típico do atual sistema multilateral de comércio e avanço contínuo das inovações tecnológicas, que fortalecem ou debilitam as empresas . Cabe registrar, em todo caso, que nenhum desses dois processos são prejudiciais ao Brasil, à sua economia ou ao crescimento de sua inserção internacional. Ao contrário: 348

ambos são, ou seriam, extremamente relevantes para o progresso nacional, em prol do crescimento. Se eles não figuram na pauta do atual governo, que permanece tímido, ou reativo, defensivo e introvertido nos dois aspectos e nas duas vertentes, a culpa incumbe inteiramente aos últimos governos, especialmente ao atual, em seus dois mandatos. Com a virtual paralização, e o provável encerramento melancólico da Rodada Doha de negociações comerciais multilaterais da OMC, os grandes atores adotam soluções regionais, ou minilateralistas, de que são exemplos o recém concluído acordo de parceria transpacífica, o TPP, e o possível acordo transatlântico entre os Estados Unidos e a União Europeia. Essas novas realidades deixam claro o isolamento total do Brasil e do Mercosul nesse mundo, e a ausência de uma política comercial clara, de inserção do país no mundo. O que fazer? Quais são as tarefas à frente? Não se deve esperar grandes transformações dramáticas do cenário internacional nos próximos anos, pelo menos nos terrenos econômico, financeiro e comercial. O mundo continuará sendo o que vemos hoje: uma competição comercial acirrada entre os grandes parceiros econômicos, uma saudável e ainda mais acirrada competição tecnológica entre grandes empresas – e entre inovadores incipientes – em torno das ferramentas atuais e futuras de comunicações e de informações; uma oferta cada vez mais abundante de capitais de todos os tipos, pelos mais diferentes tipos de agentes financeiros, inclusive bancos regionais (como o do Brics). Em outros termos, o mundo continuará aberto e receptivo a todos os tipos de inovações comerciais, tecnológicas e financeiras, e a criação do ambiente propício para que as empresas possam prosperar nesse mundo algo caótico depende inteiramente dos governos nacionais, não no sentido de assumir eles mesmos as iniciativas nessas áreas, mas de estabelecer regras internas, facilitar negócios e de negociar normas internacionais que liberem as forças produtivas empresariais privadas. O Brasil, sob qualquer critério de regulação interna, de ambiente de negócios e de liberdades econômicas essenciais ao bom desempenho do mundo empresarial, padece de imensas falhas estruturais, sistêmicas, tradicionais, de nosso sistema institucional. Mas ele também foi vítima, desde 2003, de políticas ineptas em praticamente todas as áreas de regulação pública, no terreno macroeconômico, sobretudo em termos de políticas setoriais: seja na indústria, na energia, no comércio exterior, no financiamento 349

público e em diversas outras vertentes com potencial impacto em nossa inserção externa. Os erros conceituais e os equívocos operacionais foram clamorosos, o que se reflete no quadro atual de inédita recessão, pela sua duração, e de virtual estagnação nos próximos anos. O mundo e o Brasil nos anos à frente Quais são os problemas do mundo, agora e nos anos à frente? Pela ordem: 1) segurança pública, compreendendo guerras civis, que são majoritárias, conflitos interestatais (em diminuição relativa) e terrorismo (em ascensão temporária); 2) desequilíbrios sociais, desigualdade, pobreza e fluxos populacionais, fenômenos interligados e regionalmente explosivos; 3) energia e sustentabilidade, dois termos que soem contrapor-se entre eles; 4) as externalidades negativas da urbanização e o crescimento da criminalidade nacional e transnacional; 5) epidemias e endemias, naturais e “criadas” pela ação humana, que podem ser representadas tanto pela malária e doenças afins, quanto pela facilitação da disseminação de vetores humanos, acarretados pela globalização dos transportes e fluxos humanos; 6) segurança internacional, paz, equilíbrio entre os poderes, não necessariamente resultando em grandes conflitos globais, mas podendo provocar uma “guerra fria econômica” delongada; 7) embates ideológicos e religiosos, em vista da ação de grupos militantes fanatizados ou fundamentalistas. A rigor, nenhum desses problemas supostamente “internacionais” – mas, de fato, de dimensões basicamente nacionais ou regionais – afeta o Brasil, senão marginalmente, ou apenas circunstancialmente. O Brasil e a América Latina, de modo geral, são poupados dos grandes problemas de segurança, mas são particularmente afetados por desequilíbrios ligados às desigualdades sociais e aos crimes “corporativos”, ou seja, aqueles ligados ao narcotráfico, à segurança pública e à corrupção (sobretudo política). A maioria, senão a quase totalidade dos problemas brasileiros é made in Brazil, e precisa merecer soluções políticas nacionais, ainda que beneficiando-se de lições retiradas da experiência mundial em matéria de crescimento e de reformas prócompetitividade. Em síntese, os problemas “brasileiros” não são tanto de ordem técnica ou de natureza material, quanto eles são de ordem mental, ou seja, derivados da incapacidade, ignorância ou incompetência de suas elites políticas e econômicas em empreender 350

reformas e adotar as políticas adequadas. Existe alguma chance de que eles sejam encaminhados de modo satisfatório no futuro imediato? A atual conjuntura de quase anomia no plano econômico, de erosão política e institucional e de persistência de comportamentos rentistas – quando não claramente extrativos – no plano político incitam a uma resposta negativa à questão.

2893. “Desafios externos ao Brasil no futuro próximo”, Brasília, 12 novembro 2015, 5 p. Artigo para número especial de Mundorama (n. 100; 4/12/2015; ISSN: 21752052; link: http://mundorama.net/2015/12/04/desafios-externos-ao-brasil-no-futuroproximo-por-paulo-roberto-de-almeida/). Relação de Publicados n. 1203.

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Apêndices

Relação cronológica dos ensaios publicados no Boletim Mundorama Relação dos artigos publicados anteriormente em RelNet Livros publicados pelo autor Nota sobre o autor

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Boletim Mundorama: lista de artigos publicados Divulgação Científica em Relações Internacionais – ISSN 2175-2052 http://mundorama.net/ Colaborações de Paulo Roberto de Almeida Diplomata de carreira; Professor universitário ([email protected]; www.pralmeida.org). Atualizada em 2 de dezembro de 2015 Ensaios incorporados ao livro: Panorama visto de Mundorama: Ensaios Irreverentes e Não Autorizados (2a. Edição; Brasília: Edição do Autor, 2015). O que é Mundorama: Mundorama é uma abordagem ágil sobre os temas da agenda internacional e da política externa brasileira. No Boletim Mundorama são publicadas contribuições breves versando sobre os temas da agenda internacional contemporânea. A iniciativa divulga também análises de conjuntura, notas técnicas, teses de doutorado, dissertações de mestrado, artigos científicos, relatórios de pesquisa, notícias de eventos e notícias sobre o acervo em formato digital de periódicos especializados. A publicação oferece uma abordagem não-exaustiva, mas cuidadosa e atenta aos rumos do desenvolvimento da comunidade especializada em Relações Internacionais no Brasil. Apresento abaixo, na ordem inversa de sua elaboração ou divulgação, minhas colaborações ao boletim Mundorama, desde janeiro de 2007. Resultados da pesquisa por: Paulo Roberto de Almeida http://mundorama.net/?s=Paulo+Roberto+de+Almeida 54) “Desafios externos ao Brasil no futuro próximo”, Mundorama (n. 100; 4/12/2015; ISSN: 2175-2052; link: http://mundorama.net/2015/12/04/desafios-externos-aobrasil-no-futuro-proximo-por-paulo-roberto-de-almeida/). Relação de Originais n. 2893; Publicados n. 1203. 53) “The world economy, from belle Époque to Bretton Woods”, Mundorama (21/10/2015, link: http://mundorama.net/2015/10/21/the-world-economy-frombelle-epoque-to-bretton-woods-by-paulo-roberto-de-almeida/). Relação de Originais n. 2809; Publicados n. 1200. 52) “O TransPacific Partnership e seu impacto sobre o Mercosul”, para Mundorama. Publicado (15/10/2015; link: http://mundorama.net/2015/10/15/o-transpacificpartnership-e-seu-impacto-sobre-o-mercosul-por-paulo-roberto-dealmeida/?utm_source=feedburner&utm_medium=email&utm_campaign=Feed%3 A+Mundorama+%28Mundorama%29). Relação de Originais n. 2887; Publicados n. 1197. 51) “Transformações da ordem econômica mundial, do final do século 19 à Segunda Guerra Mundial – Entrevista com Paulo Roberto de Almeida”, Mundorama (30/09/2015; link: http://mundorama.net/2015/09/30/transformacoes-da-ordemeconomica-mundial-do-final-do-seculo-19-a-segunda-guerra-mundial-entrevistacom-paulo-roberto-de-almeida/). Relação de Originais n. 2846; Publicados n. 1195. 355

50) “Quais são as grandes ameaças ao Brasil?”, Mundorama (16/08/2015, link: http://mundorama.net/2015/08/16/quais-sao-as-grandes-ameacas-ao-brasil-porpaulo-roberto-de-almeida/). Relação de Originais n. 2855; Publicados n. 1188. 49) “A falácia dos modelos de desenvolvimento: enterrando um mito sociológico”, Mundorama (17/07/2015; link: http://mundorama.net/2015/07/17/a-falacia-dosmodelos-de-desenvolvimento-enterrando-um-mito-sociologico-por-paulo-robertode-almeida/). Relação de Originais n. 2844; Publicados n. 1182. 48) “Relações Brasil-EUA no início do século 21: desencontros”, Mundorama (28/06/2015; link: http://mundorama.net/2015/06/28/relacoes-brasil-eua-no-iniciodo-seculo-21-desencontros-por-paulo-roberto-de-almeida/). Relação de Originais n. 2834; Publicados n. 1180. 47) “Da diplomacia dos antigos comparada à dos modernos”, Mundorama (20/05/2015; link: http://mundorama.net/2015/05/20/da-diplomacia-dos-antigos-comparada-a-dosmodernos-por-paulo-roberto-de-almeida/);). Relação de Originais n. 2822; Publicados n. 1178. 46) “O Brasil e a agenda econômica internacional, 4: o que o Brasil deveria fazer para maximizar a “sua” agenda?”, Mundorama (06/05/2015; l nk: http://mundorama.net/2015/05/06/o-brasil-e-a-agenda-economica-internacional-oque-o-brasil-deveria-fazer-para-maximizar-a-sua-agenda-por-paulo-roberto-dealmeida/). Relação de Originais n. 2815; Publicados n. 1177. 45) “O Brasil e a agenda econômica internacional, 3: como e qual seria uma (ou a) agenda ideal para o Brasil?”, Mundorama (29/04/2015; link: http://mundorama.net/2015/04/29/o-brasil-e-a-agenda-economica-internacionalcomo-e-qual-seria-uma-ou-a-agenda-ideal-para-o-brasil-por-paulo-roberto-dealmeida/). Relação de Originais n. 2814; Publicados n. 1176. 44) “O Brasil e a agenda econômica internacional, 2: como o Brasil se insere no cenário mundial, agora e no futuro próximo?”, Mundorama (22/04/2015; link: http://mundorama.net/2015/04/22/o-brasil-e-a-agenda-economica-internacionalcomo-o-brasil-se-insere-no-cenario-mundial-agora-e-no-futuro-proximo-por-pauloroberto-de-almeida/). Relação de Originais n. 2808; Publicados n. 1175. 43) “O Brasil e a agenda econômica internacional, 1: como se apresenta o cenário econômico internacional da atualidade?”, Mundorama (15/04/2015; link: http://mundorama.net/2015/04/15/o-brasil-e-a-agenda-economica-internacionalcomo-se-apresenta-o-cenario-economico-internacional-da-atualidade-por-pauloroberto-de-almeida/). Relação de Originais n. 2807; Publicados n. 1172. 42) “A globalização e o direito comercial: uma longa evolução”, Mundorama (06/04/2015; link: http://mundorama.net/2015/04/06/a-globalizacao-e-o-direitocomercial-uma-longa-evolucao-por-paulo-roberto-de-almeida/). Relação de Originais n. 2786; Publicados n. 1171.

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41) “Desafios da economia brasileira na interdependência global”, Mundorama (30/03/2015; link: http://mundorama.net/2015/03/30/desafios-da-economiabrasileira-na-interdependencia-global-por-paulo-roberto-de-almeida/). Relação de Originais n. 2781; Publicados n. 1167. 40) “Reforming the World Monetary System: book review”, [Book Review of Carol M. Connell: Reforming the World Monetary System: Fritz Machlup and the Bellagio Group (London: Pickering & Chatto, 2013. xii + 272 pp.; ISBN 978-1-84893-360-6; Financial History series n. 21, $99.00; hardcover)], em Mundorama (n. 91, 22/03/2015; ISSN: 2175-2052; link: http://mundorama.net/2015/03/22/review-ofreforming-the-world-monetary-system-of-carol-m-connell-by-paulo-roberto-dealmeida/). Relação de Originais n. 2705; Publicados n. 1164. 39) “Desafios da economia brasileira na interdependência global”, Mundorama (30/03/2015; link: http://mundorama.net/2015/03/30/desafios-da-economiabrasileira-na-interdependencia-global-por-paulo-roberto-de-almeida/). Relação de Originais n. 2781; Publicados n. 1167. 38) “Um congresso de Viena para o século 21?: Kissinger e o ‘sentido da História’”, Publicado, sem o subtítulo, em Mundorama (8/03/2015; link: http://mundorama.net/2015/03/08/um-congresso-de-viena-para-o-seculo-21-porpaulo-roberto-de-almeida/); linkado na página da Amazon, resenhas do livro World Order, de Henry Kissinger (http://www.amazon.com/review/ROIR90NVFAQJP). Relação de Originais n. 2779; Publicados n. 1166. 37) “Imperfeições dos mercados ou ‘perfeições’ dos governos?: estabeleça quais são as suas preferências”, Mundorama (n. 88, 10/02/2015; link: http://mundorama.net/2015/02/10/imperfeicoes-dos-mercados-ou-perfeicoes-dosgovernos-estabeleca-quais-sao-as-suas-preferencias-por-paulo-roberto-de-almeida/). Relação de Originais n. 2767; Publicados n. 1163. 36). “As ilusões perdidas do século 21”, Mundorama (8/02/2015; link: http://wp.me/p79nz-40a); republicado em Dom Total (12/02/2015; link: https://domtotal.com/colunas/detalhes.php?artId=4839). Relação de Originais n. 2762; Publicados n. 1161 35) “Miséria do Capital no Século 21”, Mundorama (n. 19, 31/01/2015; links: http://wp.me/p79nz-3ZG ou http://mundorama.net/2015/01/31/miseria-do-capital-noseculo-21-a-proposito-do-livro-de-thomas-piketty-por-paulo-roberto-de-almeida/); publicada em versão resumida no jornal O Estado de S. Paulo (10/02/2015; link: http://opiniao.estadao.com.br/noticias/geral,miseria-do-capital-no-seculo-21-imp,1632135). Relação de Originais n. 2726; Publicados n. 1160. 34) “Fim das utopias na Casa de Rio Branco?”, Mundorama (n. 88, 31/12/2014; link para o boletim: http://mundorama.net/2014/12/31/boletim-mundorama-no-88dezembro2014/; link para o artigo: http://mundorama.net/2014/12/30/fim-dasutopias-na-casa-de-rio-branco-por-paulo-roberto-de-almeida/). Relação de Originais n. 2739; Publicados n. 1158.

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33) “O Instituto Brasileiro de Relações Internacionais e a Revista Brasileira de Política Internacional: contribuição intelectual, de 1954 a 2014”, Mundorama (n. 88, 31/12/2014; link para o boletim: http://mundorama.net/2014/12/31/boletimmundorama-no-88-dezembro2014/; link para o artigo: http://mundorama.net/2014/12/23/o-instituto-brasileiro-de-relacoes-internacionais-ea-revista-brasileira-de-politica-internacional-contribuicao-intelectual-1954-a-2014por-paulo-roberto-de-almeida/); reproduzido em Meridiano 47 (vol. 15, n. 146, novembro-dezembro 2014, p. 3-18; ISSN: 1518-1219; link: http://periodicos.unb.br/index.php/MED/article/download/12508/8881; boletim completo, link: http://periodicos.unb.br/index.php/MED/article/view/12698/8880). Relação de Originais n. 2724; Publicados n. 1155. 32) “Algumas recomendações de leituras: lista seletiva”, Mundorama (n. 88, 31/12/2014; link para o boletim: http://mundorama.net/2014/12/31/boletimmundorama-no-88-dezembro2014/; link para o artigo: http://mundorama.net/2014/12/18/algumas-recomendacoes-de-leituras-lista-seletivapor-paulo-roberto-de-almeida/). Reproduzido no blog Diplomatizzando (link: http://diplomatizzando.blogspot.com/2014/12/recomendacoes-de-leituras-paracuriosos.html) e divulgado no Facebook. Relação de Originais n. 2732; Publicados n. 1154. 31) “As Quatro Liberdades e um Projeto para o Brasil: leitura de dois livros recentes, por Paulo Roberto de Almeida”, Mundorama (n. 87, 9/11/2014; link: http://mundorama.net/2014/11/09/as-quatro-liberdades-e-um-projeto-para-o-brasilleitura-de-dois-livros-recentes-por-paulo-roberto-de-almeida/); notas sobre os livros de Harvey J. Kaye: The Fight for the Four Freedoms, e de Neill Lochery: Brazil: The Fortunes of War. Relação de Originais n. 2713; Publicados n. 1151. 30) “A política externa companheira e a diplomacia partidária: um contraponto aos gramscianos da academia”, Mundorama (4/10/2014, link: http://mundorama.net/2014/10/04/a-politica-externa-companheira-e-a-diplomaciapartidaria-um-contraponto-aos-gramscianos-da-academia-por-paulo-roberto-dealmeida/). Relação de Originais n. 2684; Publicados n. 1144. 29) “A guerra de 1914-1918 e o Brasil: impactos imediatos, efeitos permanentes”, em Mundorama (28/07/2014; link: http://diplomatizzando.blogspot.com/2014/07/aprimeira-guerra-mundial-e-o-brasil.html). Relação de Originais n. 2622; Publicados n. 1138. 28) “O Brasil e a integração regional, da Alalc à Unasul: algum progresso?”, Mundorama (11/06/2014; link: http://mundorama.net/2014/06/11/o-brasil-e-aintegracao-regional-da-alalc-a-unasul-algum-progresso-por-paulo-roberto-dealmeida/). Relação de Originais n. 2606; Publicados n. 1130. 27) “Os Brics na nova conjuntura de crise econômica mundial”, Mundorama (10/10/2011; link: http://mundorama.net/2011/10/10/os-brics-na-nova-conjuntura-decrise-economica-mundial-por-paulo-roberto-de-almeida/). Relação de Originais n. 2325; Publicados n. 1056.

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26) “Digressões contrarianistas sobre o desarmamento nuclear”, Mundorama (27/09/2011; link: http://mundorama.net/2011/09/27/digressoes-contrarianistassobre-o-desarmamento-nuclear-por-paulo-roberto-de-almeida/). Relação de Originais n. 2320; Publicados n. 1053. 25) “O mundo sem o Onze de Setembro: explorando hipóteses”, Mundorama (n. 48, 12/09/2011; link: http://mundorama.net/2011/09/12/o-mundo-sem-o-onze-desetembro-explorando-hipoteses-por-paulo-roberto-de-almeida/; Twitter: http://t.co/0cLk2qk). Relação de Originais n. 2310; Publicados n. 1046. 24) “Wikileaks-Brasil: qual o impacto real da revelação dos documentos?”, Mundorama (12/08/2011; link: http://mundorama.net/2011/08/12/wikileaks-brasil-qual-oimpacto-real-da-revelacao-dos-documentos-por-paulo-roberto-de-almeida/). Relação de Originais n. 2295; Publicados n. 1042bis. 23) “Continuidade e Mudança na Política Externa Brasileira”, Mundorama (01/04/2011; link: http://mundorama.net/2011/04/01/continuidade-e-mudanca-na-politica-externabrasileira-por-paulo-roberto-de-almeida/). Relação de Originais n. 2259; Publicados n 1024. 22) “Formação de uma estratégia diplomática: relendo Sun Tzu para fins menos belicosos”, Mundorama (7/03/2011; link: http://mundorama.net/2011/03/07/formacao-de-uma-estrategia-diplomatica-relendosun-tzu-para-fins-menos-belicosos-por-paulo-roberto-de-almeida/). Relação de Originais n. 2251; Publicados n. 1023. 21) “Fórum Econômico e Fórum Social: dois mundos impossíveis e contraditórios?”, Mundorama (8.02.2011; link: http://mundorama.net/2011/02/08/forum-economico-eforum-social-dois-mundos-impossiveis-e-contraditorios-por-paulo-roberto-dealmeida/). Relação de Originais n. 2244; Publicados n. 1022. 20) “A Guerra Fria Econômica: um cenário de transição?”, Mundorama (01/02/2011; link: http://mundorama.net/2011/02/01/a-guerra-fria-economica-um-cenario-detransicao-por-paulo-roberto-de-almeida/#more-7197). Relação de Originais n. 2241; Publicados n. 1020. 19) “Wikileaks: verso e reverso”, Mundorama (14.01.2011; link: http://mundorama.net/2011/01/14/wikileaks-verso-e-reverso-por-paulo-roberto-dealmeida/). Relação de Originais n. 2236; Publicados n. 1018. 18) “A diplomacia brasileira numa nova conjuntura política”, Mundorama (n. 40, 29/12/2010; link: http://mundorama.net/2010/12/29/a-diplomacia-brasileira-numanova-conjuntura-politica-por-paulo-roberto-de-almeida/). Relação de Originais n. 2226; Publicados n. 1012. 17) “Memória e diplomacia: o verso e o reverso”, Mundorama (n. 37, 23/09/2010; link: http://mundorama.net/2010/09/23/memoria-e-diplomacia-o-verso-e-o-reverso-porpaulo-roberto-de-almeida/#more-6474). Relação de Originais n. 2187; Publicados n. 992. 359

16) “Fluxos financeiros internacionais: é racional a proposta de taxação?”, Mundorama (n. 34, 14/06/2010; link: http://mundorama.net/2010/06/14/fluxos-financeirosinternacionais-e-racional-a-proposta-de-taxacao-por-paulo-roberto-de-almeida/). Relação de Originais n. 2150; Publicados n. 975. 15) “A Arte de NÃO Fazer a Guerra: novos comentários à Estratégia Nacional de Defesa”, Mundorama (1/06/2010; link: http://mundorama.net/2010/06/01/a-arte-denao-fazer-a-guerra-novos-comentarios-a-estrategia-nacional-de-defesa-por-pauloroberto-de-almeida/); republicado em Meridiano 47 (vol. 11, n. 119, junho 2010, p. 21-31; ISBN: 1518-1219; link para o artigo: http://periodicos.unb.br/index.php/MED/article/view/638/407). Relação de Originais n. 2066; Publicados n. 972. 14) “Da democracia à ditadura: uma gradação cheia de rupturas”, Mundorama (31/05/2010; link: http://mundorama.net/2010/05/30/da-democracia-a-ditadura-umagradacao-cheia-de-rupturas-por-paulo-roberto-de-almeida/). Relação de Originais n. 2145; Publicados n. 969. 13) “Falência da assistência oficial ao desenvolvimento”, Mundorama (24/05/2010; link: http://mundorama.net/2010/05/24/a-falencia-da-assistencia-oficial-aodesenvolvimento-por-paulo-roberto-de-almeida/#more-6091). Relação de Originais n. 2138; Publicados n. 965. 12) “Mudanças na Economia: uma história de longo prazo”, Mundorama (3/05/2010; link: http://mundorama.net/2010/05/03/mudancas-na-economia-mundial-perspectivahistorica-de-longo-prazo-por-paulo-roberto-de-almeida/); republicado, sob o título de “Mudanças na economia mundial: perspectiva histórica de longo prazo”, em Meridiano 47 (vol. 11, n. 118, maio 2010, p. 27-29; ISBN: 1518-1219; link: http://periodicos.unb.br/index.php/MED/article/view/643/386). Relação de Originais n. 2124; Publicados n. 956. 11) “Triste Fim de Policarpo Social Mundial”, Mundorama (02/02/2010; link: http://mundorama.net/2010/02/02/triste-fim-de-policarpo-social-mundial-por-pauloroberto-de-almeida/). Relação de Originais n. 2107; Publicados n. 950. 10) “O Fim da História, de Fukuyama, vinte anos depois: o que ficou?”, Mundorama (21.01.2010; link: http://mundorama.net/2010/01/21/o-fim-da-historia-de-fukuyamavinte-anos-depois-o-que-ficou-por-paulo-roberto-de-almeida/); republicado em Meridiano 47 (n. 114, janeiro 2010, p. 8-17; ISSN: 1518-1219; link: http://periodicos.unb.br/index.php/MED/article/view/476/291). Relação de Originais n. 2101; Publicados n. 949. 9) “Fórum Social Mundial 2010, uma década de embromação: antecipando as conclusões e desvendando os equívocos”, Mundorama (20/01/2010; link: http://mundorama.net/2010/01/20/forum-social-mundial-2010-uma-decada-deembromacao-antecipando-as-conclusoes-e-desvendando-os-equivocos-por-pauloroberto-de-almeida/). Relação de Originais n. 2104; Publicados n. 948. 8) “Sucessos e fracassos da diplomacia brasileira: uma visão histórica”, Mundorama (28/12/2009; link: http://mundorama.net/2009/12/28/sucessos-e-fracassos-da360

diplomacia-brasileira-uma-visao-historica-por-paulo-roberto-de-almeida/); republicado em Meridiano 47, Boletim de Análise de Conjuntura em Relações Internacionais (Brasília: IBRI; ISSN: 1518-1219; n. 113, Dezembro/2009, p. 3-5; link: http://periodicos.unb.br/index.php/MED/article/view/490/307). Relação de Originais n. 2005; Publicados n. 944. 7) “O Brasil e o G20 financeiro: alguns elementos analíticos”, Mundorama (14/09/2009; link: http://mundorama.net/2009/09/14/o-brasil-e-o-g20-financeiroalguns-elementos-analiticos-por-paulo-roberto-de-almeida/); republicado em Meridiano 47 (n. 110. Setembro 2009, p. 5-8; ISSN: 1518-1219; link para o boletim: http://periodicos.unb.br/index.php/MED/issue/view/82; link para o artigo: http://periodicos.unb.br/index.php/MED/article/view/520/337). Relação de Originais n. 2044; Publicados n. 922. 6) “Estratégia Nacional de Defesa: comentários dissidentes”, Mundorama (14/03/2009; link: http://mundorama.net/2009/03/14/estrategia-nacional-de-defesa-comentariosdissidentes-por-paulo-roberto-de-almeida/); republicado em Meridiano 47 (n. 104, março de 2009, p. 5-9; ISSN: 1518-1219; link para o boletim: http://periodicos.unb.br/index.php/MED/issue/view/90; link para o artigo: http://periodicos.unb.br/index.php/MED/article/view/741/456). Relação de Originais n. 1984. Publicados n. 895. 5) “Fórum Surreal Mundial: Pequena visita aos desvarios dos antiglobalizadores”, Mundorama, divulgação científica em relações internacionais (27.12.2008; link: http://mundorama.net/2008/12/27/271220081129/); republicado em Meridiano 47 (n. 101; 27 Dezembro 2008; link: http://mundorama.net/2008/12/31/boletim-meridiano47-no-101-dezembro2008/). Relação de Trabalhos n. 1966; Publicados n. 881. 4) “Pequena lição de Realpolitik”, Mundorama (5/06/2008; link: http://mundorama.net/2008/06/05/pequena-licao-de-realpolitik-por-paulo-roberto-dealmeida/); republicado em Meridiano 47 (Brasília: n. 95, junho 2008, p. 2-4; ISSN: 1518-1219; link para o boletim: http://periodicos.unb.br/index.php/MED/issue/view/100; link para o artigo: http://periodicos.unb.br/index.php/MED/article/view/922/584). Relação de Trabalhos n. 1895; Publicados n. 842. 3) “O legado de Henry Kissinger”, Mundorama (31/05/2008; link: http://mundorama.net/2008/05/31/o-legado-de-henry-kissinger-por-paulo-roberto-dealmeida/); republicado em Meridiano 47 (n. 94, maio de 2008, p. 29-31; link para o boletim: http://periodicos.unb.br/index.php/MED/issue/view/101; link para o artigo: http://periodicos.unb.br/index.php/MED/article/view/1020/689). Relação de Trabalhos nº 1894; Publicados n. 838. 2) “Teses sobre o novo império e o cenário político-estratégico mundial: os Estados Unidos e o Brasil nas Relações Internacionais”, Boletim Mundorama (22/04/2008; link: http://mundorama.net/2008/04/22/teses-sobre-o-novo-imperio-e-o-cenariopolitico-estrategico-mundial-os-estados-unidos-e-o-brasil-nas-relacoesinternacionais-por-paulo-roberto-de-almeida/); republicado em Meridiano 47 (Brasília: Irel-UnB; n. 93, abril 2008, p. 5-14; link para o boletim: http://periodicos.unb.br/index.php/MED/issue/view/102; link para o artigo: 361

http://periodicos.unb.br/index.php/MED/article/view/1031/694). Relação de Trabalhos nº 1679; Publicados n. 829. 1) “Fórum Social Mundial: nove objetivos gerais e alguns grandes equívocos”, Mundorama (3/01/2007; link: http://mundorama.net/2007/01/03/forum-socialmundial-nove-objetivos-gerais-e-alguns-grandes-equivocos/); republicado em Meridiano 47 (n. 78, janeiro 2007; p. 7-14; link para o boletim: http://periodicos.unb.br/index.php/MED/issue/view/129; link para o artigo: http://periodicos.unb.br/index.php/MED/article/view/1084/745). Relação de Originais n.1708 e 1712; Publicados n. 741. Paulo Roberto de Almeida ([email protected]; www.pralmeida.org) Início da colaboração com o boletim Mundorama: janeiro de 2007

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Relação dos artigos publicados anteriormente em Relnet Colunas de RelNet: lista de artigos publicados www.relnet.com.br http://mundorama.net/ Colaborações de Paulo Roberto de Almeida Diplomata de carreira; Professor universitário ([email protected]; www.pralmeida.org). Atualizada em 20 de abril de 2015 Ensaios NÃO incorporados ao livro: Panorama visto de Mundorama: Ensaios Irreverentes e Não Autorizados (Hartford, 2015), mas listados em seu Apêndice. O que era RelNet: RelNet constituiu, a partir de 1998, uma das primeiras iniciativas dos professores do que ainda não era um Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília, e sim um grupo de acadêmicos de formações diversas – historiadores, cientistas políticos, sociólogos, internacionalistas – que pretenderam utilizar as novas possibilidades oferecidas pelas ferramentas de informática, para constituir uma rede de divulgação e debates sobre temas de relações internacionais e de história diplomática no Brasil, aproveitando o potencial já existente do curso de relações internacionais da UnB. As Colunas de RelNet faziam o que o seu sucessor atual, Mundorama, realiza: divulgação de textos relativamente breves, com análises de conjuntura, notas de estudo e pesquisa, resenhas de livros e uma grande diversidade de outros materiais pertinentes a essa grande área. Funcionou desde 1998 até meados da década seguinte, quanto converteu-se em blog, tendo sido interrompido no seu décimo ano de existência, e seu lugar e funções foram herdadas por Mundorama, num formato ainda mais moderno e sofisticado. Apresento abaixo, na ordem inversa de sua elaboração ou divulgação, minhas colaborações às Colunas de RelNet, de 2000 até 2004. 35) “O debate sobre a globalização no Brasil: muita transpiração, pouca inspiração”, Colunas de RelNet, n. 9, mês 1-6, ano 2004; link: http://www.relnet.com.br/Arquivos/html/2004/A_7742.html 34) “Um exercício comparativo de política externa: FHC e Lula em perspectiva, Colunas de RelNet, n. 9, mês 1-6, ano 2004, link: http://www.relnet.com.br/Arquivos/html/2004/A_7725.html 33) “Três vivas ao processo de globalização: crescimento, pobreza e desigualdade em escala mundial, Terceira Parte”, Colunas de RelNet, n. 7, mês 1-6, ano 2003, link: http://www.relnet.com.br/Arquivos/html/2003/A_7623.html 32) “Três vivas ao processo de globalização: crescimento, pobreza e desigualdade em escala mundial, Segunda Parte”; Colunas de RelNet, n. 7, mês 1-6, ano 2003, link: http://www.relnet.com.br/Arquivos/html/2003/A_7622.html 363

31) “Três vivas ao processo de globalização: crescimento, pobreza e desigualdade em escala mundial, Primeira Parte”, Colunas de RelNet, n. 7, mês 1-6, ano 2003, link: http://www.relnet.com.br/Arquivos/html/2003/A_7621.html 30) “Uma frase (in)feliz?: o que é bom para os EUA é bom para o Brasil?”, Colunas de RelNet, n. 7, mês 1-6, ano 2003, link: http://www.relnet.com.br/Arquivos/html/2003/A_7627.html 29) “Contra a Corrente: Treze Idéias Fora do Lugar, VI”, Colunas de RelNet, n. 7, mês 1-6, ano 2003, link: http://www.relnet.com.br/Arquivos/html/2003/A_7539.html 28) “Contra a Corrente: Treze Idéias Fora do Lugar, V”, Colunas de RelNet, n. 7, mês 1-6, ano 2003, link: http://www.relnet.com.br/Arquivos/html/2003/A_7538.html 27) “Contra a Corrente: Treze Idéias Fora do Lugar, IV”, Colunas de RelNet, n. 7, mês 1-6, ano 2003, link: http://www.relnet.com.br/Arquivos/html/2003/A_7537.html 26) “Contra a Corrente: Treze Idéias Fora do Lugar, III”, Colunas de RelNet, n. 7, mês 1-6, ano 2003, link: http://www.relnet.com.br/Arquivos/html/2003/A_7536.html 25) “Contra a Corrente: Treze Idéias Fora do Lugar, II”, Colunas de RelNet, n. 7, mês 1-6, ano 2003, link: http://www.relnet.com.br/Arquivos/html/2003/A_7535.html 24) “Contra a Corrente: Treze Idéias Fora do Lugar, I”, Colunas de RelNet, n. 7, mês 16, ano 2003, link: http://www.relnet.com.br/Arquivos/html/2003/A_7534.html 23) “O Brasil e o FMI: meio século de idas e vindas”, Colunas de RelNet, n. 7, mês 1-6, ano 2003, link: http://www.relnet.com.br/Arquivos/html/2003/A_7581.html 22) “Sinais Trocadas na Alca, Quarta e última Parte”, Colunas de RelNet, n. 7, mês 1-6, ano 2003, link: http://www.relnet.com.br/Arquivos/html/2003/A_7618.html 21) “Sinais Trocadas na Alca, Terceira Parte”, Colunas de RelNet, n. 7, mês 1-6, ano 2003, link: http://www.relnet.com.br/Arquivos/html/2003/A_7617.html 20) “Sinais Trocados na Alca, Segunda Parte”, Colunas de RelNet, n. 7, mês 1-6, ano 2003, link: http://www.relnet.com.br/Arquivos/html/2003/A_7616.html 19) “Sinais Trocados na Alca, Primeira Parte”, Colunas de RelNet, n. 7, mês 1-6, ano 2003, link: http://www.relnet.com.br/Arquivos/html/2003/A_7615.html 18) “Uma longa moratória, permeada de ajustes?: a lógica da dívida externa brasileira na visão acadêmica”, Colunas de RelNet, n. 7, mês 1-6, ano 2003, link: http://www.relnet.com.br/Arquivos/html/2003/A_7628.html 17) “A América Latina e os Estados Unidos desde o 11 de setembro de 2001”, Colunas de RelNet no. 6, mês 7-12, ano 2002, link: http://www.relnet.com.br/Arquivos/html/2003/A_7500.html 364

16) “Camaradas, agora é oficial: acabou o socialismo, V”, Colunas de RelNet no. 8, mês 7-12, ano 2003; link: http://www.relnet.com.br/Arquivos/html/2003/A_7530.html 15) “Camaradas, agora é oficial: acabou o socialismo, IV”, Colunas de RelNet, n. 8, mês 7-12, ano 2003; link: http://www.relnet.com.br/Arquivos/html/2003/A_7529.html 14) “Camaradas, agora é oficial: acabou o socialismo, III”, Colunas de RelNet, n. 8, mês 7-12, ano 2003; link: http://www.relnet.com.br/Arquivos/html/2003/A_7528.html 13) “Camaradas, agora é oficial: acabou o socialismo, II”, Colunas de RelNet, n. 8, mês 7-12, ano 2003; link: http://www.relnet.com.br/Arquivos/html/2003/A_7527.html 12) “Camaradas, agora é oficial: acabou o socialismo, I”, Colunas de RelNet, n. 6, mês 7-12, ano 2002, link: http://www.relnet.com.br/Arquivos/html/2003/A_7526.html 11) “O Boletim do Império”, Colunas de RelNet, n. 6, mês 7-12, ano 2002, link: http://www.relnet.com.br/Arquivos/html/2003/A_7578.html 10) “O Brasil e as crises financeiras internacionais, 1995-2001”, Colunas de RelNet, n. 5, mês 1-6, ano 2002, link: http://www.relnet.com.br/Arquivos/html/2003/A_7660.html 9) “Ideologia da política externa: sete teses idealistas, quarta e última parte”, Colunas de RelNet, n. 4, mês 7-12, ano 2001, link: http://www.relnet.com.br/Arquivos/html/2003/A_7674.html 8) “Mercosul e Alca: liaisons dangereuses”, Colunas de RelNet, n. 4, mês 7-12, ano 2001, link: http://www.relnet.com.br/Arquivos/html/2003/A_7572.html 7) “Mercosul e Alca na perspectiva brasileira: alternativas excludentes? Estado do problema: o caso do Mercosul e o projeto da Alca”, Colunas de RelNet, n. 3, mês 16, ano 2001, link: http://www.relnet.com.br/Arquivos/html/2003/A_7641.html 6) “O ‘day after’: o Mercosul depois da Alca”, Colunas de RelNet n. 3, mês 1-6, ano 2001, link: http://www.relnet.com.br/Arquivos/html/2003/A_7583.html 5) “Ideologia da política externa: sete teses idealistas, terceira parte”, Colunas de RelNet no. 2, mês 7-12, ano 2000, link: http://www.relnet.com.br/Arquivos/html/2003/A_7673.html 4) “Ideologia da política externa: sete teses idealistas, segunda parte”, Colunas de RelNet, n. 2, mês 7-12, 2000; link: http://www.relnet.com.br/Arquivos/html/2003/A_7672.html 3) “Ideologia da política externa: sete teses idealistas ? primeira parte”, Colunas de RelNet, n. 2, mês 7-12, 2000; link: http://www.relnet.com.br/Arquivos/html/2003/A_7671.html 365

2) “A Alca significa desnacionalização da economia brasileira?”, Colunas de RelNet, n. 2, mês 7-12, 2000; link: http://www.relnet.com.br/Arquivos/html/2003/A_7635.html 1) “Mercosul e Alca na perspectiva brasileira: O fantasma das normas laborais e ambientais”, Colunas de RelNet, n. 2, mês 7-12, 2000; link: http://www.relnet.com.br/Arquivos/html/2003/A_7642.html

Paulo Roberto de Almeida ([email protected]; www.pralmeida.org) Início da colaboração com as Colunas de RelNet: 2000

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Livros próprios de Paulo Roberto de Almeida

32) Going Global: Brazil and Latin America in International Context (Rockville, MD: Global South Press, 2016). 31) Nunca Antes na Diplomacia…: a política externa brasileira em tempos não convencionais (Curitiba: Editora Appris, e-book, 2016). 30) Révolutions bourgeoises et modernisation capitaliste: Démocratie et autoritarisme au Brésil (Sarrebruck: Éditions Universitaires Européennes, 2015, 496 p.; ISBN: 978-3-8416-7391-6). 29) Die brasilianische Diplomatie aus historischer Sicht: Essays über die Auslandsbeziehungen und Außenpolitik Brasiliens (Saarbrücken: Akademiker Verlag, 2015, 204 p.; Übersetzung aus dem Portugiesischen ins Deutsche: Ulrich Dressel; ISBN: 978-3-639-86648-3). 28) O Panorama visto em Mundorama: Ensaios Irreverentes e Não Autorizados (Hartford: Author edition, 2015, 294 p.; DOI: 10.13140/RG.2.1.4406.7682), available: Research Gate; link: https://www.researchgate.net/publication/280883937_O_Panorama_visto_em_Mun dorama_Ensaios_Irreverentes_e_No_Autorizados?showFulltext=1&linkId=55ca73 8508aeb975674a4d44). 27) Paralelos com o Meridiano 47: Ensaios Longitudinais e de Ampla Latitude (Hartford: Author edition, 2015, 380 p.; DOI: 10.13140/RG.2.1.1916.4006; available: Academia.edu; link: https://www.academia.edu/11981135/28_Paralelos_com_o_Meridiano_47_ensaios _2015_). 26) Volta ao Mundo em 25 Ensaios: Relações Internacionais e Economia Mundial (Kindle edition; file size: 809 KB; ASIN: B00P9XAJA4; link: http://www.amazon.com/dp/B00P9XAJA4). 25) Rompendo Fronteiras: a Academia pensa a Diplomacia (Amazon Digital Services: Kindle Edition, 2014, 414 p.; ASIN: B00P8JHT8Y; disponível em Academia.edu (link: https://www.academia.edu/9108147/25_Rompendo_Fronteiras_a_academia_pensa _a_diplomacia_2014_). Relação de Originais n. 2710. Relação de Publicados n. 1148. 24) Codex Diplomaticus Brasiliensis: livros de diplomatas brasileiros (Amazon Digital Services: Kindle Edition, 2014, 326 p.; disponível no link: http://www.amazon.com/dp/B00P6261X2; e na plataforma Academia.edu; link: https://www.academia.edu/9084111/24_Codex_Diplomaticus_Brasiliensis_livros_ de_diplomatas_brasileiros_2014_ ). Relação de Originais n. 2707. Relação de Publicados n. 1147. 367

23) Polindo a Prata da Casa: mini-resenhas de livros de diplomatas (Amazon Digital Services: Kindle edition, 2014, 151 p., 484 KB; ASIN: B00OL05KYG; disponível no link: http://www.amazon.com/dp/B00OL05KYG; e na plataforma Academia.edu; link: https://www.academia.edu/8815100/23_Polindo_a_Prata_da_Casa_miniresenhas_de_livros_de_diplomatas_2014_). Prefácio e Sumário disponíveis no blog Diplomatizzando (link: http://diplomatizzando.blogspot.com/2014/10/miniresenhas-de-livros-de-diplomatas.html). Relação de Originais n. 2693. Relação de Publicados n. 1145. 22) Prata da Casa: os livros dos diplomatas (book reviews; Edição de Autor; Versão de: 16/07/2014, 663 p.); (Academia.edu, link: https://www.academia.edu/5763121/Prata_da_Casa_os_livros_dos_diplomatas_Edi cao_de_Autor_2014_). Relação de Originais n. 2533. Relação de Publicados n. 1136. 21) Nunca Antes na Diplomacia...: A política externa brasileira em tempos não convencionais (Curitiba: Editora Appris, 2014, 289 p.; ISBN: 978-85-8192-429-8); Hartford, 30 março 2104, 312 p. Relação de Originais n. 2596. Relação de Publicados n. 1133. (Academia.edu, link: https://www.academia.edu/6999273/21_Nunca_Antes_na_Diplomacia_a_politica_ externa_brasileira_em_tempos_nao_convencionais). 20) O Príncipe, revisitado: Maquiavel para os contemporâneos (Hartford, 8 Setembro 2013, 226 p. Revisão atualizada do livro de 2010) Publicado em formato Kindle (disponível: http://www.amazon.com/dp/B00F2AC146). (Academia.edu, link: https://www.academia.edu/5547603/20_O_Principe_revisitado_Maquiavel_para_os _contemporaneos_2013_Kindle_edition). Relação de Originais n. 2512; Relação de Publicados n. 1111. 19) Integração Regional: uma introdução (São Paulo: Saraiva, 2013, 174 p.; ISBN: 978-85-02-19963-7; site da Editora: http://www.saraivauni.com.br/Obra.aspx?isbn=9788502199637). Relação de Originais ns. 2996, 2998, 2300, 2303, 2304, 2313, 2316, 2317, 2373, 2383, 2431, 2438 e 2449. Divulgado no blog Diplomatizzando (link: http://diplomatizzando.blogspot.com/2013/04/integracao-regional-novo-livroenfim.html). (Academia.edu, link: https://www.academia.edu/attachments/32644653/download_file). Relação de Publicados n. 1093. 18) Relações internacionais e política externa do Brasil: a diplomacia brasileira no contexto da globalização (Rio de Janeiro: LTC, 2012, 309 p.; ISBN 978-85-2162001-3; link: http://www.pralmeida.org/01Livros/2FramesBooks/RelaIntPExt2011.html). (Academia.edu, link: https://www.academia.edu/attachments/32642402/download_file). Relação de Originais n. 2280. Relação de Publicados n. 1058. 17) Globalizando: ensaios sobre a globalização e a antiglobalização (Rio de Janeiro: Lumen Juris Editora, 2011, xx+272 p.; Inclui bibliografia; ISBN: 978-85-375368

0875-6; link: http://www.pralmeida.org/01Livros/2FramesBooks/107Globalizando.html). (Academia.edu, link: https://www.academia.edu/attachments/32642383/download_file). Relação de Originais n. 2130. Relação de Publicados n. 1044. 16) O Moderno Príncipe (Maquiavel revisitado) (versão impressa: edições do Senado Federal volume 147: Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2010, 195 p.; ISBN: 978-85-7018-343-9; link: http://www.pralmeida.org/01Livros/2FramesBooks/95MaquiavelRevisitado.html). (Academia.edu, link: https://www.academia.edu/attachments/32642375/download_file). Relação de Originais n. 1804. Relação de Publicados n. 1014. 15) O Moderno Príncipe: Maquiavel revisitado (Rio de Janeiro: Freitas Bastos, edição eletrônica, 2009, 191 p.; ISBN: 978-85-99960-99-8; R$ 12,00; disponível para aquisição no seguinte link: http://freitasbas.lojatemporaria.com/o-modernoprincipe.html). Anunciado no site pessoal (link: http://www.pralmeida.org/01Livros/2FramesBooks/95maquiavelrevisitado.html) e no blog Diplomatizzando (21.12.2009; link: http://diplomatizzando.blogspot.com/2009/12/1591-novo-livro-pra-o-modernoprincipe.html), com livre disponibilidade do Prefácio, da Dedicatória, da carta a Maquiavel e das Recomendações de Leitura. (Academia.edu, link: https://www.academia.edu/5546980/15_O_Moderno_Principe_Maquiavel_revisita do_2009_e-pub). Relação de Originais n. 1804. Relação de Publicados n. 940. 14) O Estudo das Relações internacionais do Brasil: um diálogo entre a diplomacia e a academia (Brasília: LGE Editora, 2006, 385 p.; ISBN: 85-7238-271-2; link: http://www.pralmeida.org/01Livros/2FramesBooks/93EstudoRelaIntBr2006.html). (Academia.edu, link: https://www.academia.edu/attachments/32642184/download_file). 13) Formação da diplomacia econômica no Brasil: as relações econômicas internacionais no Império (2ª edição; São Paulo: Editora Senac, 2005, 680 pp., ISBN: 85-7359-210-9; link: http://www.pralmeida.org/01Livros/2FramesBooks/80FDESenac2005.html). (Academia.edu, link: http://www.academia.edu/attachments/32642332/download_file). 12) Relações internacionais e política externa do Brasil: história e sociologia da diplomacia brasileira (2ª ed.: revista, ampliada e atualizada; Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2004, 440 p.; coleção Relações internacionais e integração nº 1; ISBN: 85-7025-738-4; link: http://www.pralmeida.org/01Livros/2FramesBooks/74UFRGS2004.html). (Academia.edu, link: https://www.academia.edu/attachments/32642325/download_file). 11) A Grande Mudança: consequências econômicas da transição política no Brasil (São Paulo: Editora Códex, 2003, 200 p.; ISBN: 85-7594-005-8; link: http://www.pralmeida.org/01Livros/2FramesBooks/58GrdeMudanca.html). 369

(Academia.edu, link: https://www.academia.edu/5546940/11_A_Grande_Mudanca_consequencias_econ omicas_da_transicao_politica_no_Brasil_2003_). 10) Une histoire du Brésil: pour comprendre le Brésil contemporain (avec Katia de Queiroz Mattoso; Paris: Editions L’Harmattan, 2002, 142 p.; ISBN: 2-7475-14536; link: http://www.pralmeida.org/01Livros/2FramesBooks/48HistoireBresil2002.html). (Academia.edu, link: https://www.academia.edu/attachments/32642309/download_file). 09) Os primeiros anos do século XXI: o Brasil e as relações internacionais contemporâneas (São Paulo: Editora Paz e Terra, 2002, 286 p.; ISBN: 85-2190435-5; link: http://www.pralmeida.org/01Livros/2FramesBooks/45SeculoXXI2002.html). (Academia.edu, link: https://www.academia.edu/attachments/32642303/download_file). 8) Formação da diplomacia econômica no Brasil: as relações econômicas internacionais no Império (São Paulo: Editora Senac, 2001, 680 pp., ISBN: 857359-210-9; link: http://www.pralmeida.org/01Livros/2FramesBooks/44FDESenac2001.html). (Academia.edu, link: http://www.academia.edu/attachments/32642297/download_file). 7) Le Mercosud: un marché commun pour l’Amérique du Sud, Paris: L’Harmattan, 2000, 160 p.; ISBN: 2-7384-9350-5; link: http://www.pralmeida.org/01Livros/2FramesBooks/40Mercosud2000.html). (Academia.edu, link: https://www.academia.edu/attachments/32642281/download_file). 6) O estudo das relações internacionais do Brasil (São Paulo: Editora da Universidade São Marcos, 1999, 300 p.; ISBN: 85-86022-23-3; link: http://www.pralmeida.org/01Livros/2FramesBooks/31EstudoRelaIntBr1999.html). (Academia.edu, link: https://www.academia.edu/5546888/06_O_estudo_das_relacoes_internacionais_do _Brasil_1999_). 5) O Brasil e o multilateralismo econômico (Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, na coleção “Direito e Comércio Internacional”, 1999, 328 p.; ISBN: 857348-093-9; link: http://www.pralmeida.org/01Livros/2FramesBooks/30Multilateralismo1999.html). (Academia.edu, link: http://www.academia.edu/attachments/32642262/download_file). 4) Velhos e novos manifestos: o socialismo na era da globalização (São Paulo: Editora Juarez de Oliveira, 1999, 96 p.; ISBN: 85-7441-022-5; link: http://www.pralmeida.org/01Livros/2FramesBooks/29Manifestos1999.html). (Academia.edu, link: https://www.academia.edu/attachments/32642256/download_file). 370

3) Mercosul: Fundamentos e Perspectivas (São Paulo: Editora LTr, 1998, 160 p.; ISBN: 85-7322-548-3; link: http://www.pralmeida.org/01Livros/2FramesBooks/26MercosulLTr1998.html). (Academia.edu, link: https://www.academia.edu/attachments/32642244/download_file). 2) Relações internacionais e política externa do Brasil: dos descobrimentos à globalização (Porto Alegre: Editora da UFRGS, 1998, 360 p.; ISBN: 85-7025-4555); link: http://www.pralmeida.org/01Livros/2FramesBooks/25RelaIntPExtUFRGS1998.ht ml). (Academia.edu: https://www.academia.edu/attachments/32642231/download_file ). 1) O Mercosul no contexto regional e internacional (São Paulo: Edições Aduaneiras, 1993, 204 p.; ISBN: 85-7129-098-9; link: http://www.pralmeida.org/01Livros/2FramesBooks/09MSulAduan1993.html). (Academia.edu: https://www.academia.edu/attachments/32642206/download_file). Para os capítulos do Autor em livros coletivos, consultar o site ou ver esta lista: https://www.academia.edu/9068537/List_of_AUthors_chapters_in_collective_books_N ov._2014_ Lista elaborada em 2/12/2015

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Nota sobre o Autor: Paulo Roberto de Almeida é Doutor em Ciências Sociais, Mestre em Planejamento Econômico e diplomata de carreira desde 1977. Foi professor no Instituto Rio Branco e na Universidade de Brasília, diretor do Instituto Brasileiro de Relações Internacionais (IBRI) e, desde 2004, é professor de Economia Política no Programa de Pós-Graduação (Mestrado e Doutorado) em Direito no Centro Universitário de Brasília (Uniceub). Como diplomata, serviu nas embaixadas em Berna, Belgrado e Paris, nas delegações em Genebra e Montevidéu e foi Ministro-Conselheiro na Embaixada em Washington (1999-2003). Foi também Assessor Especial no Núcleo de Assuntos Estratégicos da Presidência da República (2003-2007). Desde janeiro de 2013 é Cônsul Geral Adjunto do Brasil em Hartford, Connecticut, EUA. É editor adjunto da Revista Brasileira de Política Internacional e participa de comitês editoriais de diversas publicações acadêmicas. Tem dezenas de obras e algumas centenas de artigos publicados. Dispõe de um site pessoal (www.pralmeida.org) e de um blog voltado para os mesmos temas que configuram seus interesses intelectuais, mas que considera ser mais para divertissement do que para a pesquisa (http://diplomatizzando.blogspot.com/).

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Redigido em MS Word 2011, Composto em MacBook Air Por Paulo Roberto de Almeida Em 4/12/2015 www.pralmeida.org [email protected] Tel.: (55.61) 9176-9412 373

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