30 Anos da Transição no Brasil: luta de classes e dependência na constituição do Brasil contemporâneo

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[REVISTA  CONTEMPORÂNEA  –  DOSSIÊ  REDEMOCRATIZAÇÕES  E   TRANSIÇÕES  POLÍTICAS  NO  MUNDO  CONTEMPORÂNEO]  

Ano  5,  n°  7  |  2015,  vol.1       ISSN  [2236-­‐4846]  

 

30 Anos da Transição no Brasil: luta de classes e dependência na constituição do Brasil contemporâneo

Roberto Santana Santos*

Resumo: Nos trinta anos do fim da Ditadura e da Transição no Brasil o artigo propõe uma reflexão sobre o referido processo histórico, tendo como pontos de debate uma dupla visão: um panorama estrutural, para compreendermos as modificações econômicas globais de meados da década de 1980 e que tiveram forte impacto para o fim do regime de exceção; e o entendimento da Transição como um agudo momento de luta de classes, onde dois projetos de sociedade se enfrentaram pela liderança do novo Brasil pós-ditatorial. Essa disputa se desenvolve através de momentos-chave da história recente do país, como o Colégio Eleitoral de 1985, a Assembleia Nacional Constituinte e as eleições presidenciais de 1989. Palavras-chave: Transição, Dependência, Nova República 30 Years of Transition in Brazil: class struggle and dependence in the constitution of contemporary Brazil Abstract: In the thirty years since the end of dictatorship and the processes of democratic Transition in Brazil, the article propose a reflection on that historical process, based on a double vision : a structural view , to understand the global economic changes of the mid- 1980s which had a strong impact to the end of the authoritarian regime; and the understanding of the transition as a moment of acute class struggle , where two projects of society faced by the leadership of the new postdictatorial Brazil . This dispute develops through key moments of the recent history of the country, such as the 1985 Electoral College, the National Constituent Assembly and the 1989 presidential elections. Keywords: Transition, Dependency, New Republic

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Doutorando em Políticas Públicas pelo Programa de Políticas Públicas e Formação Humana da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PPFH/UERJ). Graduado em História e Mestre em História Política pela mesma instituição. Secretário Executivo Adjunto da REGGEN (Rede de Economia Global e Desenvolvimento Sustentável) da UNESCO (Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura) e UNU (Universidade das Nações Unidas). Contato: [email protected]

 

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  O ano de 2015 marca a data de trinta anos do fim da Ditadura no Brasil e a instalação do atual sistema político liberal em que vivemos. Na historiografia e na imprensa esse fato ficou conhecido como Transição, e o período histórico por ele inaugurado e que se prolonga até hoje como Nova República. Aproveitando a data redonda, o presente artigo apresenta uma reflexão sobre o referido processo histórico, tendo como pontos de debate uma dupla visão acerca da Transição: um panorama estrutural, para compreendermos as modificações econômicas globais de meados da década de 1980 e que tiveram forte impacto para o fim do regime de exceção; e o entendimento da Transição como um agudo momento de luta de classes, onde dois projetos de sociedade se enfrentaram pela liderança do novo Brasil pós-ditatorial. Essa disputa perpassa momentos-chave, como o Colégio Eleitoral de 1985, a Assembleia Nacional Constituinte e as eleições presidenciais de 1989. Dessa forma, apresentamos um rápido panorama do nascimento de nosso atual momento histórico, tanto na análise econômica, quanto nas disputas políticas. Finalizaremos o artigo com uma reflexão sobre nosso atual sistema político e eleitoral, suas pretensões democráticas, acertos e limites formulados ao longo das últimas três décadas. 1) Panorama Estrutural da Transição Os primeiros indícios de uma crise internacional do capitalismo já apareceram em 1967, com a baixa na taxa de lucros de grandes empresas e a estagnação das principais economias mundiais. No entanto, a crise passa a ser mais sentida na década de 1970, com os choques do petróleo (1973 e 1979), o fim do padrão-ouro do dólar estadunidense e a alta do desemprego, minando a sustentação do modelo keynesiano e o estado de bem-estar social. Ao entrarmos nos anos 1980, observamos importantes transformações na economia capitalista mundial como resposta à crise. Estava então em marcha a consolidação hegemônica do neoliberalismo como conjunto de ideias redefinidoras do

 

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  sistema em escala global. Os governos de Ronald Reagan nos Estados Unidos (19811989) e Margareth Thatcher na Inglaterra (1979-1990) foram os baluartes dessa onda conservadora, que logo passou a ser implementada também nos países periféricos. Essas mudanças ocorrem simultaneamente aos anos finais da Ditadura e ao período de Transição no Brasil. Medidas como privatizações, flexibilização dos direitos trabalhistas, terceirização e liberalização do comércio passam a ser aplicadas na política econômica de diversas nações. Para recuperar suas finanças baseadas num enorme déficit público, o governo Reagan nos Estados Unidos, assim como outros países centrais, eleva de forma drástica os juros e amortizações da dívida dos países subdesenvolvidos (SANTOS, 2004). Esse novo cenário da economia mundial vai prejudicar fortemente os países mais pobres, que estavam em situação de grande endividamento. O caso brasileiro é notório, com a queda nos indicadores econômicos. A média anual de inflação na década de 1980 foi de incríveis 330% ao ano.1 A população brasileira cresceu 1,7%, mas a população moradora de favelas aumentou 7,65% no mesmo período. O coeficiente de GINI do Rio de Janeiro, cidade com grande avanço da favelização no período, subiu de 0,58 em 1981, para 0,67 em 1989, indicando um aumento da desigualdade social. (DAVIS, 2006. P 160-161). No ano de 1983 o desemprego chegava a 15% da população economicamente ativa, e a inflação a 250% (Dados do IBGE. GIANNOTTI, 2009. P. 255). Entendemos o Brasil como um país capitalista dependente, dentro dos conceitos formulados por Ruy Mauro Marini. Países dependentes são nações formalmente emancipadas, mas que possuem sua economia numa relação subordinada e constantemente modificada pelo mercado internacional comandado pelas nações centrais, na qual o resultado do desenvolvimento de suas economias é gerar formas mais complexas de dependência (MARINI, 2000, p. 109). Os anos 1980 se apresentam como um momento de formulação da globalização capitalista, onde os interesses do capital internacional se traduzem na 1

Fonte IBGE. In: PORTAL BRASIL. Inflação. Disponível em: . Acesso em 25 de dezembro de 2013.

 

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  aplicação do ideário neoliberal, derrubando restrições ao comércio de bens e serviços, abrindo novos espaços de reprodução do capital (por meio de privatizações, por exemplo), aumentando o grau de exploração da força de trabalho – terceirizações e redução de direitos – e forçando uma forte intervenção estatal a favor do capital financeiro, que se torna hegemônico a partir desse momento. O discurso do “Estado mínimo”, apesar de propagandeado pela mídia monopolizada, se aplica a setores sociais, não a favorecimentos ao grande capital. A economia dos países, principalmente do capital privado, gira cada vez mais em torno do endividamento público (que desloca recursos para o capital financeiro) e gastos estatais - como a indústria militar, de softwares, ou mesmo o trabalho terceirizado utilizado na esfera pública. O governo que inaugurou essas políticas foi justamente o de Ronald Reagan, tido como um dos maiores defensores do neoliberalismo (SANTOS, 2004). Em um momento de rearranjo da economia mundial, principalmente a norteamericana, as dívidas dos países da América Latina serviram para transferência de valor da periferia para as economias centrais. O Brasil apresentava forte endividamento externo devido à política de desenvolvimento da Ditadura, baseada no financiamento internacional. Desde o final da Segunda Guerra Mundial (1945) até o fim da Ditadura (1985), a dependência se manifestava no capitalismo brasileiro por meio do investimento direto das multinacionais em nossa economia. A implementação de unidades produtivas dessas empresas em nosso país visava o controle do mercado interno brasileiro, ainda fechado para a importação de determinados produtos. A transferência de valor para o centro do sistema capitalista internacional se dá pela remessa de lucros das empresas estrangeiras, a apropriação de mais-valia pela circulação das mercadorias produzidas no Brasil no mercado internacional e o pagamento de juros, empréstimos e dividendos (MARINI, 2000). Com a globalização neoliberal a situação muda em grande medida. Com um aumento avassalador da produção, assim como rebaixa nos custos da mesma – devido à instalação de fábricas na Ásia, as empresas multinacionais pressionam para a liberalização total do comércio mundial. Seu intuito é construir um mercado mundial

 

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  de consumidores, sem restrições para a circulação de capitais, bens e serviços. Para isso, era necessário terminar com qualquer tipo de barreira para a livre circulação, representada essencialmente, em políticas protecionistas e alfandegárias. Esse panorama internacional foi um dos motivos da profunda crise econômica que acompanhou os anos finais da Ditadura empresarial-militar em nosso país e contribuiu consideravelmente para o seu término. Dessa forma, a Transição de regime no Brasil ocorre simultaneamente a uma outra transição, de caráter estrutural, que demarca a passagem de uma fase da dependência à outra. Trata-se do fim da dependência baseado no investimento direto no mercado interno brasileiro pelas transnacionais e início da adequação de nossa dependência aos padrões da globalização neoliberal. A Crise da Dívida é a contrapartida para a periferia do advento neoliberal. Nesse primeiro momento o receituário neoliberal estava sendo aplicado nas economias centrais. O papel da Crise da Dívida periférica foi garantir a transferência de valor dos países dependentes para as nações hegemônicas. Suas economias são destroçadas para a rearticulação dos países centrais, principalmente os Estados Unidos, num intenso processo de acumulação de capital aproveitado pelas gigantes multinacionais e pelo capital financeiro. O endividamento internacional funcionou como uma enorme drenagem de recursos, gerando dívidas impagáveis, que levaram países como o Brasil a uma situação econômica de hiperinflação e aumento da pobreza e desigualdade social. Com as economias centrais fortificadas, O Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial, com a participação ativa do Tesouro estadunidense, propuseram políticas de renegociações das dívidas2 dos países latino-americanos ao final dos anos 1980 e início dos 1990. Por meio do refinanciamento dos países endividados, foram impostos ajustes estruturais por esses órgãos multilaterais que direcionavam as economias periféricas à adoção de medidas neoliberais, como a

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Não é objetivo do artigo destrinchar essas políticas. Cito aqui o Plano Brady, de 1989, que refinanciou os países então mergulhados no endividamento externo, com abatimento de parte da dívida e aliviamento dos juros.

 

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  abertura dos mercados e a privatização de empresas estatais e serviços públicos. Esses ajustes estruturais ficaram conhecidos como Consenso de Washington. O Consenso de Washington configura-se então como um segundo passo. Primeiro a quebra das economias latino-americanas, com a Crise da Dívida, reforçando as economias centrais. Posteriormente, condicionar o refinanciamento das nações dependentes e a rolagem da sua dívida mediante a adoção dos ajustes estruturais impostos pelo FMI. Assim, o grande capital internacional consegue derrubar qualquer tipo de protecionismo ou restrição à livre circulação. Como colocado anteriormente, a liberalização do comércio é uma condição vital para essa nova fase do capitalismo. Da mesma forma, novos espaços para o investimento de capital privado transnacional se abrem, por meio da privatização de setores públicos e pela maior exploração da força de trabalho com terceirizações e retirada de direitos trabalhistas. Essa transição estrutural se deu lentamente ao longo dos anos 1980 e 1990. Passamos da dependência do investimento direito, para uma nova fase, da globalização neoliberal. Nessa etapa, os países dependentes na América Latina passam

por

um

forte

processo

de

reprimarização,

desindustrialização

e

transnacionalização. Suas economias perdem muito do setor secundário, já que não conseguem competir com os produtos importados, fabricados principalmente na Ásia por empresas transnacionais. Por outro lado, os produtos primários voltam a ser dominantes em nossas exportações, com forte participação do capital estrangeiro (CARCANHOLO, 2014). O endividamento público como forma de transferência de valor para o setor financeiro e especulativo também representa uma característica do momento atual do capitalismo dependente brasileiro. Portanto, o momento da Transição política no Brasil ocorre concomitante a mudanças estruturais no capitalismo dependente do país. Essas transformações estruturais tiveram importante papel para o esgotamento da política de desenvolvimento da Ditadura, a mudança do regime político e também para as disputas pelos rumos do país nos primeiros anos da Nova República.

 

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  Isso se manifesta no embate de forças que marcam o período da Transição. Essas forças podem ser divididas basicamente em dois grupos: os partidos e organizações comandados pelo empresariado brasileiro, que no período entre 1985 e 1990 vão amadurecendo a defesa de medidas neoliberais na economia; e, por outro lado, um grupo de forças mais à esquerda, que compreendiam a Transição como um momento ímpar para passar o país a limpo, num projeto de reformas democráticopopulares, que tinha importante eixo, na distribuição de renda e na melhora de condições socioeconômicas da maioria da população. O que estava em jogo estruturalmente, e se manifestava na arena política, era se o novo regime iniciado em 1985 seria uma ferramenta para a renovação e aprofundamento da dependência, ou, se seu desenvolvimento significaria ampliar a participação popular nos rumos do país e melhorar as péssimas condições de vida das massas, condições herdadas do período ditatorial. Essa luta de classes permeia a construção da Nova República nos anos imediatamente posteriores ao fim da Ditadura, aparecendo de forma veemente na Assembleia Nacional Constituinte (19861988) e tendo seu embate definitivo nas eleições presidenciais de 1989. 2) A Transição e os embates políticos a) Diretas Já x Colégio Eleitoral A crise internacional do capitalismo enfraqueceu a Ditadura, inviabilizando seu projeto de desenvolvimento em aliança com o capital internacional. A Crise da Dívida afundou economicamente o país, que não encontrava mais credores internacionais, devido ao seu crescente endividamento e impossibilidade de pagar os débitos contraídos. O ambiente de crise reascendeu as movimentações pródemocracia. Desde 1979 o regime já estava em um processo de Abertura com o presidente João Baptista Figueiredo. O AI-5, o bipartidarismo e a censura já haviam

 

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  sido revogados e a Anistia decretada. Eleições diretas para governadores em 1982 deram ampla vitória para a oposição.3 A partir desse momento as forças progressistas ganham terreno e passam a reivindicar as eleições diretas para presidente da República. A campanha das Diretas Já (1983-84) tomaria as ruas de todo o país e uniria no palanque as principais lideranças contrárias à Ditadura, desde os liberais Ulysses Guimarães, Tancredo Neves e Fernando Henrique Cardoso (todos, neste momento, do PMDB – Partido do Movimento Democrático Brasileiro) até as lideranças de esquerda, como Leonel Brizola (PDT – Partido Democrático Trabalhista), herdeiro do trabalhismo e portavoz de um grupo que unia nacionalistas, socialistas e anti-imperialistas; e Luis Inácio Lula da Silva (PT – Partido dos Trabalhadores), partido que congregava uma base sindical, das comunidades eclesiais de base da igreja católica e vários movimentos sociais. As Diretas Já se tornaram um dos maiores movimentos de massa da história brasileira, com comícios que arrastaram milhões de pessoas por todo o país, principalmente nas capitais. Essa mobilização seria a oportunidade de uma derrubada do regime ditatorial, tendo a população como grande protagonista. Esse era o desejo, principalmente, das forças de esquerda que se tornavam atores de grande relevo na política nacional e tentavam impulsionar a participação de sindicatos, movimentos sociais e instituições de massa para as grandes mobilizações. O objetivo central da Campanha era, por meio da mobilização popular, impor ao regime a convocação imediata de eleições diretas para presidente, nas quais era dada como certa a derrota de qualquer candidato indicado pelo governo ditatorial. Da mesma forma, os militares e civis que compunham o regime encaravam com preocupação a Campanha das Diretas, enxergando nela a possibilidade de radicalização do processo de Transição. Para as forças conservadoras, a Transição deveria ser totalmente controlada, de modo que as Forças Armadas não fossem responsabilizadas pelos crimes da Ditadura, garantindo ainda a sobrevivência política 3

Um retrato do avanço da oposição se deu com a vitória nos três principais estados da Federação. São Paulo, com Franco Montoro (PMDB); Minas Gerais, com Tancredo Neves (PMDB); e Rio de Janeiro, com Leonel Brizola (PDT), esse último, herdeiro direto do trabalhismo golpeado em 1964.

 

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  dos quadros civis do regime. Os políticos reunidos no então PDS, herdeiro da ARENA, partido da Ditadura, precisavam manter suas carreiras viáveis em um momento que as disputas políticas passariam a ser realizadas pelo sistema de eleições diretas. Uma radicalização do processo e uma ascensão de forças como PT, PDT, MST (Movimento dos trabalhadores Sem Terra), CUT (Central Única dos Trabalhadores) e lideranças como Lula e Brizola, poderia colocar em risco a transição ordenada em que as forças ditatoriais desejavam. Era preciso que a Transição significasse continuidade, sem grandes radicalismos políticos, ou mudanças bruscas na economia brasileira, muito menos o julgamento dos militares pelos seus crimes de assassinatos, torturas e sequestros. A Campanha das Diretas Já foi derrotada em 1984, já que a Emenda Dante de Oliveira, que colocava a proposta de eleições direitas para presidente não recebeu os 2/3 necessários para sua aprovação, mesmo conseguindo votos até de dentro do PDS. A partir desse momento, Tancredo Neves (PMDB) passou a articular sua candidatura no Colégio Eleitoral, com o intuito de rachar o partido governista, o PDS, e obter a maioria necessária para sua eleição (SANTOS, 2014. P.177-209). Esse racha se inicia quando José Sarney, então presidente do PDS, abandona a sigla para ser vice na chapa de Tancredo e do PMDB. Outros líderes do PDS fazem o mesmo, porém criando uma nova sigla, a Frente Liberal. 4 Dessa maneira, Tancredo, por meio de costuras políticas que duraram cerca de um ano, evitou uma eleição direta, onde seu partido escolheria Ulysses Guimarães, se apresentou de forma palatável aos militares, prometendo uma transição política sem radicalismos, e atraiu boa parte das lideranças civis da Ditadura para um bloco que lhe elegeu presidente e comporia seu ministério, como demonstrado pela obra de um de seus assessores, Ronaldo Costa Couto (COUTO, 1998. P. 345-399). Configura-se dessa maneira, uma Transição sob o signo da continuidade. A permanência de antigas lideranças civis da Ditadura no novo governo, e uma mudança

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A Frente Liberal se tornaria partido ainda em 1985, o Partido da Frente Liberal (PFL). O partido seria refundado em 2007, quando adota seu nome atual, Democratas (DEM).

 

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  de regime realizada não pela mobilização popular, mas sim, por meio das conversas de gabinete, fica evidente no depoimento de José Sarney: A transição deu certo, porque nós constituímos um grupo de políticos. A união do Tancredo, do Ulysses, Aureliano, Marco Maciel, eu, os outros todos. E fizemos uma coisa fundamental: tomamos vacina contra a área militar. Para inibir reações de setores militares antagônicos. Isso foi feito com o general Leônidas, no Exército. O Aureliano ajudou junto à Marinha, com os almirantes Sabóia e Maximiano (...) O brigadeiro Murilo Santos na Aeronáutica, e assim por diante. Assim, tínhamos um esquema que, na hipótese de qualquer reação, O III Exército, com o general Leônidas, garantiria. Ele fez um proselitismo dentro das Forças Armadas para que a transição fosse feita, fosse bem-sucedida. Graças a isso, nós tivemos a segurança de fazê-la. É a minha tese, que repito sempre: a transição tinha que ser feita com as Forças Armadas, não contra as Forças Armadas. Quer dizer: o contrário do caso argentino. A ideia de que a transição deveria significar a derrubada dos militares do poder, essa era extremamente perigosa. Então nós fizemos justamente com o Tancredo. Foi feito com Tancredo, com as Forças Armadas. Ninguém sabe disso até hoje [1997]! (COUTO, 1998. P. 380)

Devemos compreender que indivíduos representam interesses históricos de determinados grupos sociais. O empresariado nacional e estrangeiro verificou a necessidade de fim do regime, não só pela crescente polarização “governo x oposição”, mas pelo entendimento de que o estado militarizado interventor da economia não mais cumpria um papel benigno à reprodução do capital. O sistema de governo e a política econômica brasileira iam, naquele momento, na contra mão das reformas neoliberais que começavam a gracejar mundo afora. Parte do setor empresarial já começava a defender uma “modernização” da economia brasileira, o que se traduzia na defesa das ideias neoliberais. A classe dominante, autóctone e estrangeira, necessitava naquele momento evitar o avanço de forças populares, garantir a sobrevivência e viabilidade de seus quadros políticos civis – descolando-os do regime ditatorial, no intuito de que estes fossem capazes de manter o poder por meio de vitórias eleitorais. Ao mesmo tempo, a Transição deveria ser apresentada como uma concessão das elites, misturado com

 

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  sentido de “missão comprida” por parte dos militares. Tudo para evitar a imagem de uma Transição que fosse uma vitória popular ou uma derrubada da Ditadura. Florestan Fernandes sintetizou na época a situação da Transição como uma conciliação conservadora e seus efeitos sobre o país: Determinar o sucessor e as condições políticas da “transição” constituíam dois objetivos centrais, mas não os mais importantes. O essencial consistia (e ainda consiste) em impedir um deslocamento de poder, com uma acumulação de forças políticas acelerada das classes subalternas. O que os militares temiam era ainda mais temido pela massa reacionária da burguesia. Trocar a ditadura por um governo de “conciliação conservadora” era uma barganha imprevista, que o sistema de poder e de propagação ideológica da burguesia fortaleceu com estardalhaço por todos os meios possíveis (conferindo, inclusive, à campanha eleitoral de Tancredo Neves o estatuto de um movimento de salvação nacional). A partir daí, o PMDB perdera a capacidade de afirmar-se numa linha de combate coerente pela democracia e adernou à direita, arrastando na queda sua “esquerda parlamentar” e sua riquíssima irradiação popular. O antiditatorialismo passou por um processo análogo ao esvaziamento do republicanismo, provocado pela aliança dos fazendeiros com os “republicanos históricos”. Os touros estavam soltos na praça. Mas não havia toureiros. Os próceres do PMDB ocupavam-se em “matar as cobras com o próprio veneno”, enquanto estas mudavam de covil e se instalavam confortavelmente entre as cobras que infestavam o PMDB. Em seu clímax, o movimento político popular sofrera um golpe mortal. A “transferência de poder” converteu-se numa troca de nomes e, como afirmou um notável comentarista político, as velhas e as novas raposas aplainaram o caminho que levava à satisfação de seus apetites. Esse era o desdobramento que mais convinha às elites econômicas, culturais e políticas das classes dominantes. Esvaziar a praça pública, recolher as bandeiras políticas “radicais”, matar no nascedouro o movimento cívico mais impressionante da nossa história – restaurando de um golpe as transações de gabinete, as composições entre os varões “liberais” da República, o mandonismo político. Não o que negar: as figuras de proa, como Tancredo Neves, Ulisses Guimarães, Marco Maciel e Aureliano Chaves à frente, lavraram um tento. Exibiram um profissionalismo político de causar inveja. E tiveram êxito. O que consagra a ação política é a vitória. Vitoriosos, eles demonstraram o seu valor e a sua competência. E a Nação? Esta foi inapelavelmente empurrada da estrada principal. Moldura e cenário de uma reestruturação específica, que nos coloca metade na década de [19]20 e outra metade na década de [19]40. Mais que a eleição direta de um presidente, perdeu-se a oportunidade histórica única de usar o rancor contra a ditadura e a consciência geral da necessidade de

 

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  mudar profundamente como o ponto de partida de uma transformação estrutural da sociedade civil e do Estado. E se ganhou uma mistificação monstruosa: a montagem política e ideológica de Frankenstein, batizado de Nova República e trombeteado pela cultura da comunicação de massa como uma “vitória do Povo na luta pela democracia! (FERNANDES, 1985. P. 27-28)

Os mesmos deputados e senadores que derrubaram a Emenda Dante de Oliveira, que restituiria as eleições presidenciais direitas e responderia positivamente aos desejos da campanha das Diretas Já, foram os que garantiram, alguns meses depois, o fim da Ditadura por meio da eleição indireta de Tancredo Neves. Com esse ar de continuidade começava a Nova República em 1985. b) José Sarney: sentido do primeiro governo pós-ditatorial Com o falecimento de Tancredo Neves antes da posse, seu vice, José Sarney, assumiu a presidência. Seu governo, de 1985 a 1989, ficou marcado pela promulgação da nossa atual Constituição, pela continuidade dos graves problemas econômicos e, consequentemente, da insatisfação popular. Para tentar controlar a inflação, Sarney e sua equipe econômica, lançaram várias medidas, das quais a de maior relevo foi o Plano Cruzado. Consistia no congelamento de preços e salários na tentativa de conter a inflação de três dígitos. No início, o Plano parecia exitoso, mas com o tempo os preços voltavam a subir, sem os salários aumentarem na mesma proporção. Mais do que isso, o Plano Cruzado foi utilizado como uma poderosa arma eleitoral. Nas eleições para governadores de 1986, os preços foram congelados antes do pleito, para favorecer os candidatos do PMDB. A medida foi um enorme sucesso, com o partido se saindo vitorioso em todos os estados, com exceção de Sergipe. Semanas depois, por meio do Plano Cruzado II, o congelamento foi cancelado e os preços voltaram a subir. A sensação de armação eleitoral ficou no ar e o PMDB não seria perdoado pela população nas eleições presidenciais seguintes.

 

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  A desilusão crescente com um governo civil que não resolvia os graves problemas socioeconômicos, as jogadas eleitorais do Plano Cruzado e a inflação galopante aumentavam ainda mais o descontentamento popular. Greves pipocavam por todo o país e a CUT (Central Única dos Trabalhadores) se tornava um ator de peso na cena política brasileira. Foram mais de 9 milhões de grevistas em 1987, com destaque para a paralisação da CSN (Companhia Siderúrgica Nacional). Contra as três greves ocorridas na CSN o governo Sarney utilizou um triste expediente dos tempos de Ditadura. O Exército foi convocado para ocupar a Companhia, desbaratar a greve e forçar os operários a voltarem ao trabalho. Em 1988 três operários foram assassinados pelas forças militares, até que os trabalhadores conquistassem o aumento salarial e a diminuição de horas de trabalho. Em 1989, a maior paralisação em todo o país: 15 milhões de grevistas contra o arrocho salarial (GIANNOTTI, 2009. P. 261-267). Lançado em 28 de fevereiro de 1986, o Plano Cruzado não conteve a inflação, que corroia o poder de compra da classe trabalhadora e dos miseráveis. Observamos que o valor do salário-mínimo em dólares teve uma leve queda ao final do governo Sarney. Se em março de 1986, o salário-mínio brasileiro era no valor de U$ 114,94, em dezembro de 1989, ele se apresentava no patamar de U$ 103,07.5 A política econômica do governo Sarney não se desdobrava em diferença significativa para a classe trabalhadora, levando o início da Nova República ao mesmo embate de classes de outrora no regime ditatorial. O aumento das greves e outras formas de contestação social revelam que a intensidade da luta de classes no Brasil não esmorecia no novo sistema político. O aumento gradual de trabalhadores e trabalhadoras paralisadas corresponde à maneira encontrada para reaver as perdas salariais corroídas pela inflação. Contra elas foram utilizadas todo um aparato herdado da Ditadura e não desmantelado: a utilização das Forças Armadas como forma de repressão a contestações sociais e trabalhistas, a atuação do SNI (Sistema Nacional de Informações) que continuava

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IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada). Disponível http://www.ipeadata.gov.br/salárioerenda/ipea>. Acesso em 05 de julho de 2015.

 

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  espionando forças de esquerda e só seria desmantelado no governo Collor, e o poderoso aparato de mídia, monopolizada nas mãos de poucas famílias. Esses acontecimentos ocorriam ao mesmo tempo em que a nova Carta Magna era discutida. A tese aqui defendida é que o sentido do governo Sarney era manter a hegemonia conservadora no momento de formação e atuação da Assembleia Nacional Constituinte e na posterior corrida presidencial para as primeiras eleições diretas (marcadas para 1989). O desejo da burguesia era conter as forças de esquerda, formular uma constituição que lhe permita uma primazia do capital sobre o trabalho e concedê-la uma vantagem para seus candidatos conservadores chegarem com chances ao pleito presidencial (SANTOS, 2014. P. 210-229). c) A Assembleia Nacional Constituinte A formulação de uma nova constituição era o principal passo para a consolidação do novo regime político. Seus trabalhos durariam dois anos (1986-1988) e formulariam nossa atual Carta Magna. O processo de eleição de deputados constituintes, os trabalhos da Assembleia e sua promulgação foram palco de algumas polêmicas. A história da Constituinte guarda algumas tentativas de se decidi-la pelo alto, com a menor participação popular possível. Primeiramente, a vontade de Tancredo Neves não era a formulação de uma nova carta magna. Seu objetivo era que o Congresso vigente “reavaliasse” a constituição de 1967, feita pela Ditadura (SANTOS, 1994. P. 272). Mais uma vez o conservadorismo de Tancredo se sobressai sobre a figura mítica que se criou dele após sua morte. Segundo, não houve uma eleição para deputados constituintes. O que houve foi uma eleição para o legislativo federal, de deputados e senadores, em 1986, que foram transformados em constituintes e após o fim dos trabalhos permaneceram exercendo seus mandatos até o fim. Isto levou a uma situação, no mínimo, desconfortável, onde congressistas eleitos pelas antigas regras continuam com seus mandatos vigentes sob uma nova constituição. O mais adequado seria uma eleição

 

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  para deputados constituintes e após o término dos trabalhos a dissolução da Assembleia e a convocação de novas eleições, agora sob as regras da nova carta. Em outro agravante, as eleições para deputados e senadores que se tornaram constituintes ocorreram junto com as eleições para governadores em 1986. Isso tirou a importância do pleito e confundiu o eleitorado, que não deu muita importância para as eleições legislativas, apresentando um número alto de votos brancos e nulos (SAAB, 1987. P. 265-273). Seria salutar que a eleição para deputados constituintes tivesse uma importância maior. A população brasileira vinha de uma Ditadura com eleições inexistentes ou altamente manipuladas e restritas. É natural que boa parte da população tivesse dificuldade em compreender o funcionamento e objetivo do pleito. Por fim, a constituição aprovada não passou por um referendo da população. Após o trabalho dos constituintes, o mais democrático a fazer seria um referendo, para a população aprovar ou não o novo texto constitucional. Parecia que o objetivo era correr com os trabalhos e passar logo essa fase de suma importância para o destino de um país. A conjugação de tantos fatos não pode ser encarada como mera coincidência. Essa é mais uma manifestação do que caracterizamos como o caráter conservador da Transição, onde a meta era tomar decisões de cúpula e afastar a população dos momentos decisivos. As forças conservadoras, agora tanto os ex-partidários da Ditadura, como a antiga oposição liberal liderada pelo PMDB, controlavam todos os momentos importantes, temendo que o jogo se radicalizasse, isto é, que a soberania popular fosse exercida de fato. A utilização do Plano Cruzado pelo PMDB nas eleições para governadores em 1986, também se manifestou no pleito para deputados e senadores constituintes. O PMDB sozinho fez mais da metade dos deputados eleitos, 260 de 487, caracterizando 53,39% do total. Somado a outros partidos, como o PFL, PDS (antiga ARENA) e outras siglas fisiológicas menores, esse agrupamento tinha ampla maioria dentro da Assembleia. A atuação conjunta de tais forças recebeu o nome de “Centro Democrático”, porém ficou mais conhecido pelo apelido “Centrão”, pretensamente

 

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  uma união de forças de centro, que na verdade era uma força de direita. Vejamos sua função como colocada por René Dreifuss: Nascido no interior do PMDB e PFL, esse agrupamento marcaria o início da fragmentação do primeiro e o enquadramento direitista de ambos. O deputado peemedebista Expedito Machado, um dos líderes do grupo (juntamente com os deputados Carlos Sant’Anna e Roberto Cardoso Alves, ambos do PMDB, e os peefelistas Ricardo Fiúza e Luiz Eduardo Magalhães), relacionaria as metas desta formação suprapartidária, que englobava cerca de metade do Congresso: alterar o Regimento Interno, modificar e ‘enquadrar’ as propostas da Comissão de Sistematização, que eram tidas como ‘muito influenciadas pela esquerda’, especialmente na questão social, no tocante à reforma agrária e ao mandato presidencial. Entre os pontos a serem modificados estavam: a garantia de emprego contra a demissão imotivada; o salário mínimo nacional unificado; a participação dos trabalhadores nos lucros e na gestão da empresa; o pagamento em dobro da hora extra e a redução da jornada de trabalho. A função do Centro Democrático era juntar, num só movimento de força, os parlamentares que poderiam redesenhar o perfil da futura Constituinte, que, como tinha sido esboçado pela progressista Comissão de Sistematização, contrariava uma diversidade de interesses entrincheirados – entre eles os do empresariado urbano e rural. Mais: o grupo pretendia servir de plataforma de sustentação à atuação política do governo Sarney. Sua tarefa básica era a luta contra a ampliação das faixas de estatização da economia e contra o que via como verdadeira subversão da ordem social vigente. Enfim, procurando delinear uma Constituinte de corte ‘privatista’, além de conservadora do ponto de vista político e social. (DREIFUSS, 1989. P. 111-112)

Para dar suporte as ações do Centrão e reverberar as reivindicações da burguesia brasileira e internacional, diversas entidades representativas das elites fizeram intenso lobby durante a constituinte. Alguns dos principais grupos foram a União Brasileira de Empresários (UB), União Democrática Ruralista (UDR) e a Associação Brasileira de Defesa da Democracia (militares). A Embaixada dos Estados Unidos também influenciava em nome dos interesses de transnacionais, como Esso, Xerox, General Motors, Ford, IBM, Banco de Boston e Citibank. (DREIFUSS, 1989. P. 191-192) Os políticos do bloco direitista tinham ampla participação nos meios de comunicação. Sua participação na mídia sempre vinha acompanhada de exaltação à iniciativa privada como eficaz, empreendedora e um caminho para um “Brasil  

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  moderno”. Ao mesmo tempo, o setor público era apresentado como um antro de corrupção e incapaz de atender a população com qualidade. Foi no ano de 1988 que os trabalhos constitucionais terminaram, no qual Fernando Collor lançou sua candidatura à presidência com seu slogan “caçador de marajás”. O objetivo de toda essa articulação da direita por meio do Centrão e da influência de organismos e instituições representativas das elites era minar os direitos trabalhistas ao máximo, vistos como custos ao empresariado, assim como, garantir em diversos setores a participação do capital estrangeiro. As forças de esquerda, junto a centrais sindicais e movimentos sociais, defendiam os direitos dos trabalhadores e uma proteção, quando não monopólio, a empresas públicas e nacionais frente à concorrência estrangeira. A ação do Centrão, portanto, indicava não só uma perpetuação do caráter dependente da economia brasileira e os interesses patronais contra os trabalhadores. Ela expressava, em vários momentos, a adequação da estrutura socioeconômica brasileira ao novo momento do capitalismo internacional, atualizando a dependência e a superexploração do trabalho aos moldes da globalização neoliberal. Os trabalhos da Constituinte desenrolam-se então como uma intensa luta de classes, conectada com as mudanças estruturais que ocorriam na economia brasileira e mundial. O Centrão se colocava contra medidas como o salário-mínimo, a licença maternidade e licença paternidade, o adicional de férias, entre outras. Conseguiram embarrerar a estabilidade no emprego. Conseguiram permitir também a participação do capital estrangeiro em várias áreas de interesse nacional, como a mineração (DREIFUSS, 1989). Posições que revelam a defesa da flexibilização de direitos trabalhistas e a participação cada vez maior do capital estrangeiro em setores econômicos antes resguardados à ação estatal. Mesmo com ampla maioria o Centrão não conseguiu emplacar toda sua agenda conservadora e o culpado por tal intento foi o próprio caráter fisiológico de boa parte de suas forças constituintes. A esquerda, apesar de minoritária, era mais coesa e se posicionava em bloco. O Centrão possuía uma série de políticos que vislumbravam serem candidatos nas eleições seguintes e não queriam ficar

 

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  reconhecidos como aqueles que votaram contra os direitos dos trabalhadores. Algumas empresas nacionais, como as empreiteiras, viam com receio o avanço do capital estrangeiro em algumas áreas e também possuíam seus defensores dentro do corpo político, fazendo a atuação do Centrão vacilar em certos momentos. Isso assegurou muitas vitórias trabalhistas, além de incentivos ao desenvolvimento tecnológico nacional em alguns setores, como a informática.6 Dessa forma, o embate de classes dentro da Constituinte foi grande, com vitórias e derrotas em ambos os lados. A disputa na Assembleia apenas reverberava o retrato do Brasil daquele momento entre uma elite que preparava uma nova fase do capitalismo dependente brasileiro e um agrupamento de forças que representava o anseio dos trabalhadores por uma renovação social total. Essa disputa teria seu palco final nas eleições presidenciais de 1989, a primeira direta em quase trinta anos no país. d) A eleição presidencial de 1989 A elite brasileira ainda se decidia por um candidato presidencial após a Constituinte. O PMDB não era mais uma opção naquele contexto. A jogada eleitoral do Plano Cruzado em 1986 teve uma recepção pública negativa, assim como as articulações antipopulares do Centrão durante a Assembleia Constituinte. A resposta eleitoral a esse comportamento fisiológico do PMDB viria rápida. Ainda em 1988 o partido vê a saída de importantes lideranças como Mario Covas, Fernando Henrique Cardoso e José Serra, que fundariam o PSDB (Partido da SocialDemocracia Brasileira). Nas eleições municipais do mesmo ano, apesar de ainda ganhar o maior número de municípios (1606), o PMDB encolheu drasticamente nas capitais – de 19 para apenas 4 prefeituras. Nas eleições presidenciais de 1989 sua derrota seria acachapante, quando seu candidato, Ulysses Guimarães, fez somente 4,43% dos votos. O partido passaria décadas sem ter candidato próprio.

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Boa parte dessas vitórias da esquerda na Constituinte seriam desmontadas no governo de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002).

 

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  Boa parte do empresariado, inclusive a poderosa FIESP (Federação das Indústrias do Estado de São Paulo), percebia um PMDB vacilante, e incapaz de realizar as reformas desejadas para o capital. Com o documento “Livre Para Crescer. Propostas para um Brasil Moderno”, a Federação demonstrava claramente a posição de boa parte da burguesia brasileira, ao defender, no final da década de 1980, a implementação de políticas neoliberais. Criticava que o “déficit público ficou muito agravado com a introdução das inovações criadas pela Constituição de 1988”, clamando pela “redução das concessões constitucionais que oneram as contas públicas”, numa clara crítica aos direitos trabalhistas conquistados na Assembleia Constituinte. Consistiam também em posições da burguesia brasileira nesse momento a defesa da independência do Banco Central, os critérios de funcionamento das empresas públicas através do mercado, “como o são para qualquer empresa privada”, e o fim do que chamavam de “discriminação” aos produtos importados, desde que estadunidenses e europeus, como forma de liberalização do comércio (FEDERAÇÃO DAS INDÚSTRIAS DO ESTADO DE SÃO PAULO, 1990. P. 292-323). A direita precisava de um nome para a eleição de 1989 capaz de seduzir o eleitorado mais pobre, castigado com o pauperismo e o subconsumo, e afastá-lo das candidaturas do PT e PDT. Nas eleições municipais de 1988 essas duas siglas venceram nas duas principais capitais do país, São Paulo (PT com Luiz Erundina) e Rio de Janeiro (PDT com Marcelo Alencar). As pesquisas de intenção de votos apresentavam o pedetista Brizola na liderança e o petista Lula seguindo de perto, o que representava um cenário de total derrota para a direita liberal, que não conseguia emplacar um candidato. Fernando Collor de Melo não foi o candidato inicial da elite brasileira. Sua escolha foi resultado de um processo de “fabricação” de um candidato, no qual outros nomes foram sendo eliminados pelo caminho. Marco Maciel, Orestes Quércia, Aureliano Chaves e Afif Domingos, entre outros, foram colocados de lado, assim como alguns que chegaram a sair candidatos, como Ulysses Guimarães (PMDB) e Mario Covas (PSDB). Os motivos variavam, desde a não confiança em alguns candidatos devido sua participação na Constituinte (caso de Covas, que votou junto à

 

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  esquerda em diversas ocasiões), até o fato do repúdio nas urnas de boa parte dos pertencentes ao Centro Democrático durante os trabalhos de formulação da nova carta magna. Boa parte dessas figuras não cumpria os requisitos para ser o “novo” que a direita precisava para aquele momento político. Talvez Quércia se enquadrasse no mesmo perfil de Collor. Mas o político paulista foi barrado dentro do PMDB pela ambição pessoal de Ulysses Guimarães em ser presidente (ambição que não seria satisfeita). Afif Domingues também poderia ser uma saída para o empresariado, mas foi avaliado como sem penetração popular. (DREIFUSS, 1989) Collor construiria sua retórica não só sobre o discurso de levar o Brasil para a modernidade, em consonância com a posição de classe apresentada pela FIESP, mas também sobre o signo de oposição. O campo de direita aliado à sua candidatura, principalmente por meio dos meios de comunicação, capitaliza a ideia de mudança radical, de rompimento de anos de inflação e miséria e dos políticos tradicionais da Ditadura. Era com esse sentimento que a população aguardava a eleição presidencial de 1989, a primeira em quase trinta anos. Em um trabalho de marketing midiático, Collor foi fabricado como um contestador do sistema, pegando vácuo no sentimento de renovação. A classe dominante lançava sua candidatura para realizar as mudanças econômicas necessárias e atualizar o caráter dependente do capitalismo brasileiro. Para reforçar sua imagem de oposição e contrário à “política tradicional”, abandonou o PMDB durante seu mandato como governador de Alagoas e filiou-se a um partido nanico, o PRN (Partido da Reconstrução Nacional), apenas para se candidatar à presidência. Nos seus discursos e comícios, usou o genérico termo da corrupção para atacar a política estatal. Dizia que seria o “caçador de marajás”, em alusão a funcionários públicos que enriqueciam com dinheiro público sem trabalhar. Nesse discurso já se encontra a retórica neoliberal, em apresentar o estatal/público como sinônimo de ineficaz e corrupto, enquanto a iniciativa privada seria exemplo de lisura e bom funcionamento. Collor não seria um político tradicional, porque esses seriam “todos iguais”, numa clara tentativa de se mostrar diferente de todos os demais candidatos.

 

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  Contribuiu para uma derrota da esquerda o fato de PT e PDT não terem formulado uma chapa conjunta com seus nomes mais fortes, respectivamente, Lula e Brizola. Tanto PT, quanto PDT, não se colocavam como partidos revolucionários, nem defendiam que, caso seus candidatos fossem eleitos presidente, este seria o primeiro passo para a instalação do socialismo no Brasil. Certo é que, tanto Lula quanto Brizola, significava naquele momento a ruptura com o controle político por parte da classe dominante e o real significado que o povo esperava da Transição: uma modificação radical do pauperismo e do estado de penúria que vivia a maior parte da população. As propostas tanto do PT, como do PDT, passavam por pontos que desagradavam claramente o empresariado, como a distribuição de renda, os serviços públicos, a reforma agrária, a participação do Estado na economia, o controle da remassa de lucros, dos bancos e principais recursos econômicos do país. No caso do PDT, havia um diferencial importante que consistia na sua radical posição antiimperialista, atacando ferozmente o pagamento da dívida externa, as multinacionais, os organismos internacionais, como o FMI, e o governo estadunidense. Entre as promessas de Brizola durante a campanha estava, caso eleito, “fechar a Rede Globo no dia seguinte”. Essas propostas permitiriam um empoderamento político dos trabalhadores organizados e representariam um forte golpe contra as elites nacionais e internacionais. Portanto, em caso de vitória de Brizola ou Lula, era clara a situação de revés para a classe dominante, a qual estaria num terreno muito incerto, já que as forças populares seriam colocadas em posição mais vantajosa na luta pelo poder. O projeto presidencial do PDT e do PT era um projeto de transição real para uma democracia no sentido mais amplo, que abarcava não só direitos civis constitucionais, mas também justiça social. Suas propostas objetivavam a readequação da economia para as necessidades das massas, a busca pela soberania e autonomia do país, uma maior proteção trabalhista contra as ambições do grande capital e a participação política dos trabalhadores de forma efetiva. Contra tudo isso, se formava um bloco de forças conservadoras ao redor da candidatura Collor.

 

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  A propaganda midiática foi primordial para a vitória de Collor. Primeiro, as mídias monopolizadas, principalmente a Rede Globo, criaram a imagem do candidato como um modelo de sucesso individualista. Depois, trataram de dar forma ao discurso da austeridade fiscal, da falência do Estado, do falso moralismo contra a corrupção. O combate às forças de esquerda também foi realizado através do monopólio midiático. Repetidas vezes eram veiculadas cenas da queda do Muro de Berlim (ocorrida também em 1989) para associar Lula e Brizola com uma ideologia supostamente falida. Collor também repetia o discurso do “pacto social”, ou seja, a posição empresarial de que todas as classes sociais deveriam se sacrificar num momento de crise profunda como aquele. A eleição de 1989, por meio de projetos políticos tão distintos e antagônicos representados pelas principais candidaturas, configurou-se dessa maneira como mais uma aguda luta de classes no período da Transição, tal como tinham sido o embate Diretas Já x Colégio Eleitoral e os trabalhos da Constituinte. Além disso, a eleição presidencial era a evidência de que o país passaria por uma reforma estrutural profunda. O caráter dessa reforma também era diverso de acordo com o lado da disputa que saísse vitorioso: o projeto popular, com duas candidaturas separadas, Brizola e Lula; ou o projeto de modernização reflexa do capitalismo dependente, capitaneado por Fernando Collor de Mello. Graças ao trabalho midiático, Collor ficou em primeiro lugar no primeiro turno com 28,52% dos votos. Lula e Brizola brigaram voto a voto pelo segundo lugar. No fim, Lula (16,08%) avançou ao segundo turno, com Brizola (15,45%) em terceiro. Os demais resultados foram: Covas do PSDB com 10,78%, Maluf do PDS com 8,28%, Afif Domingos do PL com 4,53% e Ulysses Guimarães do PMDB com 4,43% (GIANNOTTI, 2006, p. 268). As urnas mostraram um claro rechaço aos políticos tradicionais e a necessidade de mudança em relação à situação socioeconômica do país. O segundo turno colocaria frente a frente um empresário e um líder sindical. Numa rara cena, ainda mais se tratando de um país periférico, a luta eleitoral evidenciou a luta de classes e dois projetos antagônicos de país. Lula significava a

 

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  participação política das massas num processo de desenvolvimento com referência no social. Enquanto isso, Collor era o rosto do individualismo burguês, que apresentava “modernização” como sinônimo de consumismo e acesso aos padrões de vida das elites do Primeiro Mundo, tendo como método para isso, a adoção de privatizações e flexibilizações nos moldes neoliberais. Na semana final antes do segundo turno, a Rede Globo, maior cabo eleitoral de Collor, promoveu um debate entre os dois candidatos. Esse debate foi editado de modo a mostrar eloquentes respostas de Collor e somente os momentos em que Lula balbuciou ou não se saiu tão bem em uma questão. Essa versão editada do debate foi repetida a exaustão nos dias anteriores à votação, assim como cenas da queda do Muro de Berlim. Era clara a tentativa de mostrar Lula como alguém despreparado para ser presidente, principalmente por uma estética preconceituosa de classe, já que “não sabia falar direito” e não “tinha diploma”.7 Collor vence as eleições no segundo turno com 53,03% contra 46,96% de Lula. O povo brasileiro foi enganado, não por um candidato, mas sim, por uma peça de publicidade, um personagem criado pela grande mídia, em especial a Rede Globo de televisão. Sua vida de presidente seria curta, sofrendo um impedimento em 1992, com forte mobilização popular. Por ironia, o estopim para sua derrocada foram justamente denúncias de casos de corrupção e favorecimento, o que Collor jurou combater durante a campanha eleitoral. A vitória de Collor significou o desfecho de uma articulação de classe do capital desde o momento que se configurou a insustentabilidade do regime militar. A luta na Transição contra uma vitória das ruas, com a campanha das Diretas Já, que foi sufocada pelo Colégio Eleitoral; os embates de classe durante os trabalhos da Assembleia Nacional Constituinte, principalmente em relação aos direitos trabalhistas e a participação do capital estrangeiro na economia brasileira; culminando com a eleição de Collor, derrotando duas claras opções de esquerda (Lula e Brizola, que 7

Décadas depois a Globo confessaria que editou o debate de forma deliberada para favorecer Collor. A confissão foi realizada por um de seus mais famosos produtores, José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni. Também houve uma confissão da empresa nos programas especiais de 50 anos do canal de televisão em 2015, com a desculpa de que em 1989, a Globo ainda estava “aprendendo com a democracia como todo o país”.  

 

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  apoiou o candidato petista no segundo turno). Todos esses movimentos podem ser compreendidos como etapas de modificação do sistema político brasileiro, sem a ameaça de radicalização do processo, ou a perda de controle das rédeas do país para grupos que representavam os interesses da classe trabalhadora. O empresariado nacional e estrangeiro travou lutas contra as forças populares para impedir sua chegada ao poder, mas também, para readequar o capitalismo dependente brasileiro a um novo momento do capitalismo internacional. A vitória de Collor fecha o ciclo do investimento estrangeiro direto no mercado interno e passa o Brasil para a nova fase da divisão internacional do trabalho, o capitalismo globalizado. A super exploração do trabalho seria aprofundada com a adoção da multifuncionalidade do trabalhador, o desemprego estrutural, a terceirização, o crescimento da informalidade e a diminuição da participação industrial na economia brasileira. O século XXI se aproximava e, de fato, o mundo caminhava para o encurtamento de distâncias geográficas, mas também, para o crescimento das distâncias socioeconômicas. 3 – Considerações finais O processo de Transição no Brasil foi complexo e plural. Muitas opções estavam disponíveis e forças políticas de matizes diversas tiveram participação ativa na conjuntura. Se a Transição não foi realizada de forma violenta, isso não quer dizer que foi isenta de disputas entre projetos bem diferentes. A eleição de Tancredo Neves em 1985, de forma indireta pelo Colégio Eleitoral, já se constituiu como um intricado jogo político. A Ditadura evitou ser derrubada pela gigantesca mobilização popular da Campanha das Diretas Já, para realizar uma transição mais suave, por meio de um pacto com um opositor liberalconservador que era Tancredo. Estava em jogo desde a garantia do não julgamento dos militares pelos crimes cometidos durante o regime de exceção, passando pela manutenção de uma política econômica excludente, e chegando a necessidade de não permitir o crescimento de siglas de esquerda, como o PT e o PDT.

 

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  Dessa maneira, afastou-se a população do papel de protagonista da Transição, para que o processo fosse decidido pelas negociações escusas dos bastidores e gabinetes. Boa parte dos políticos civis partidários da Ditadura e agrupados naquele momento no PDS (sucessor da antiga ARENA) abandonaram o barco governista às vésperas do Colégio Eleitoral, para formar um novo partido, o PFL (atual Democratas), enquanto uma de suas principais lideranças, José Sarney, rumou para o PMDB e se tornou vice na chapa de Tancredo Neves. Essa manobra assegurou a maioria do Colégio Eleitoral para Tancredo e pois fim a Ditadura. Sarney, ex-presidente do partido da Ditadura e recém-convertido à “democrata”, viu a presidência cair em seu colo com o falecimento de Tancredo antes da posse. Assim a Transição acabou sendo capitaneada por um antigo prócer da Ditadura. Seu governo (1985-1989) ficou marcado pela continuidade da crise inflacionária, da extrema pobreza que permanecia castigando boa parte dos brasileiros e brasileiras, da utilização das Forças Armadas para conter movimentos grevistas reivindicatórios da classe trabalhadora, assim como, planos econômicos com víeis eleitoreiros. A maior dessas empreitadas foi o Plano Cruzado que assegurou a seu partido, o PMDB, uma grande vitória nas eleições estaduais de 1986 e na escolha dos congressistas da Assembleia Constituinte. Na mesma proporção, que seu posterior fracasso e revelação da jogada eleitoral condenariam o partido a sucessivas derrotas no futuro. A Assembleia Nacional Constituinte reunida durante o governo Sarney formulou uma nova carta magna para o país. Seu conteúdo de garantias civis e democráticas foi um avanço. Seus embates como vimos, se trataram de um verdadeiro conflito de classes por meio de propostas irreconciliáveis entre capital e trabalho, como o caso dos direitos trabalhistas, e sob o signo da dependência, como nos debates sobre a participação do capital estrangeiro em determinados setores da economia. Esse conflito se arrastou até as eleições presidenciais de 1989, onde projetos de nação distintos se enfrentaram, numa cena não usual nos nossos dias: um segundo turno que materializou a luta de classes em viés eleitoral, ao colocar um membro da elite

 

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  empresarial contra um líder sindical na disputa pelo posto mais importante da política nacional. O que esses acontecimentos que marcaram o período da Transição nos colocam é a confrontação entre projetos distintos em um momento em que era perceptível a necessidade de uma reestruturação socioeconômica do país. Essa reestruturação estava ligada à conjuntura internacional, de ascensão do neoliberalismo e da globalização, novos pilares de funcionamento do sistema capitalista internacional. E também à conjuntura interna, onde o modelo de desenvolvimento da Ditadura chegou à exaustão com a Crise da Dívida. Boa parte da população brasileira almejava o novo regime político como caminho para uma grande mudança no conjunto da sociedade, dando resposta aos graves indicadores sociais do Brasil na época. O projeto das elites saiu vitorioso, aparado por um potente sistema midiático monopolizado. Esse projeto, iniciado no governo Collor (1990-1992) e seu sucessor pós-impeachment, Itamar Franco (1992-1994), aprofundado durante o governo de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) e com ecos até nos governos do PT no século XXI (já diferenciado e com algum contorno social, devido à crise de hegemonia que o pensamento neoliberal vive desde a virada do século) tem como pilar a readequação da economia brasileira dependente ao capitalismo globalizado. As políticas neoliberais vêm se manifestando no Brasil das últimas três décadas

pelo

Fenômeno

RDT:

reprimarização,

desindustrialização

e

transnacionalização. Boa parte do aparato público brasileiro foi privatizado, as leis trabalhistas flexibilizadas e aumentou o número de profissionais terceirizados. Ao mesmo tempo, houve um encolhimento do setor industrial e um agigantamento do agronegócio, num processo de reprimarização da economia, que responde hoje por mais da metade dos indicadores de exportações brasileiras. Boa parte desse e de outros setores, está na mão de empresas estrangeiras de influência global. Metade do PIB brasileiro é deslocado para o pagamento de juros e amortizações da dívida pública, revelando uma grande fonte de lucros para o capital financeiro e especulativo internacional.

 

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  É inegável que a Nova República se apresenta como um grande avanço em relação ao período ditatorial, onde nenhum tipo de movimentação política popular era permitido. Nossa atual constituição garante direitos civis, Justiça e participação política a todos os cidadãos. Além disso, os principais cargos da República são decididos em eleições periódicas e multipartidárias. Tudo isso se conjuga como a visão liberal de regime democrático na atualidade. Contudo, a realidade subdesenvolvida do Brasil e a herança de séculos de violência e repressão contra a maioria do seu povo ainda pesam. Soma-se ao fato que até o fim do século XX, os governos da Nova República foram incapazes de diminuir a miséria absoluta. Muito pelo contrário, a situação social brasileira continuou degradante durante a década de 1990 e piorou, principalmente em relação ao desemprego, com a adoção das políticas neoliberais e as sucessivas crises enfrentadas pela economia brasileira durante o governo Fernando Henrique Cardoso devido à vulnerabilidade de nosso país no mundo das finanças internacionais. Mesmo com as melhorias sociais alcançadas durante os governos Lula (20032010) e Dilma (2011-...), nossa democracia continua truncada. Os direitos civis são constantemente violados, muitas vezes pelo próprio Estado, por meio da polícia, Justiça e outros órgãos. Percebemos que os direitos de um indivíduo em nossa sociedade são mais ou menos respeitados de acordo com questões classistas e raciais. Quanto mais rico e branco uma pessoa é, mas direito a ser tratada como cidadão ela possui. Caso contrário, o indivíduo é vista como um inimigo em potencial da sociedade. Questões como o financiamento empresarial de campanhas impedem um aprofundamento democrático e permitem a vitória de forças políticas somente se financiadas por representantes do grande capital brasileiro e estrangeiro. A chamada “crise de representatividade”, tão discutida nas academias e na imprensa atual, e escancarada no Brasil com as Jornadas de Junho de 2013, trata-se de uma crise da “democracia” liberal como um todo. Movimentos em todo mundo vem nos últimos anos questionando os limites desse sistema, como o Occupy Wall Street nos Estados Unidos, ou os Indignados na

 

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  Espanha, além de governos progressistas na América Latina, como Venezuela e Bolívia, que desenvolvem mecanismos de democracia representativa junto à democracia direita. Nosso tempo histórico presencia um início de contestação à concentração de poderes e riquezas, mas que parece não ter ainda assumido uma forma organizativa clara. Nesse ponto, os significados da Nova República nesses seus 30 anos, como um processo de democratização e justiça social, não se concretizaram por completo, encontrando resistências na estrutura socioeconômica brasileira, na conjuntura histórica e na ação de grupos privilegiados do Brasil e do exterior. Grandes desafios para uma verdadeira Nova República estão colocados, como a dependência da economia brasileira, baseada cada vez mais na reprimarização, desindustrialização e transnacionalização, e a falta de representatividade política, além da seletividade classista e racista dos direitos sociais no Brasil. Todas as forças principais da Nova República nessas três décadas (PMDB, PSDB e PT) já passaram pelo governo federal e foram incapazes (ou se negaram por posicionamento político) a realizarem as reformas necessárias para o povo brasileiro superar esses grandes entraves para seu desenvolvimento justo e soberano. Cabe às novas gerações superarem os limites da Nova República. Formularem novas forças políticas capazes de oxigenar o cenário político nacional e colocar em prática um projeto popular que realmente solucione os problemas civilizacionais do Brasil e que se arrastam desde a sua formação enquanto povo, insistindo em nos assolar com sua miséria, violência e servilismo internacional. Bibliografia CARCANHOLO, Marcelo Dias. Desafios e Perspectivas para a América Latina do Século XXI. IN: Argumentum. Vitória (ES), v.6, n.2, p.6-25, jul./dez. 2014. COUTO, Ronaldo Costa. História indiscreta da Ditadura e da Abertura: Brasil: 1964-1985. Rio de Janeiro: Record, 1998. DAVIS, Mike. Planeta favela. Tradução de Beatriz Medina. São Paulo: Boitempo, 2006.

 

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  DREIFUSS, René Armand. O jogo da direita. Petrópolis: Vozes, 1989. FEDERAÇÃO DAS INDÚSTRIAS DO ESTADO DE SÃO PAULO. Livre para crescer. Propostas para um Brasil moderno. São Paulo: Cultura Editores Associados, 1990. FERNANDES, Florestan. Nova República? Rio de Janeiro: Zahar, 1986 GIANNOTTI, Vito. História das lutas dos trabalhadores no Brasil. 3.ed. rev.amp. Rio de Janeiro: Mauad X, 2009. MARINI, Ruy Mauro. Dialética da dependência. In: MARINI, Ruy Mauro. Dialética da dependência / uma antologia da obra de Ruy Mauro Marini. Petrópolis, RJ: Vozes; Buenos Aires: CLACSO, 2000. SAAB, Paulo. A eleição do cruzado. São Paulo: Global Editora, 1987. SANTOS, Roberto Santana. Uma análise estrutural do fim da Ditadura. IN: História e luta de classes. Ano 10. Nº 17. Mar. 2014. P. 53-57. ______. Coronéis e empresários. Da esperança da transição democrática à catástrofe neoliberal (1985-2002). Rio de Janeiro: Multifoco, 2014. SANTOS, Theotonio dos. Do Terror à Esperança. Auge e declínio do neoliberalismo. Aparecida: Ideias & letras, 2004. ______. A evolução histórica do Brasil: da colônia à crise da “Nova República”. Petrópolis, RJ: Vozes, 1994. Internet IPEA: < www.ipeadata.gov.br > PORTAL BRASIL. Inflação. Disponível em: . Acesso em 25 de dezembro de 2013.

 

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