450 ANOS DO RIO DE JANEIRO A PARTIR DA FAVELA

July 1, 2017 | Autor: Adriana Facina | Categoria: Slums, Favelas, and Shanty-towns, Favelas, Culturas Populares, Funk Carioca
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450 ANOS DO RIO DE JANEIRO A PARTIR DA FAVELA Adriana Facina* Na década de 1990, um gênero musical começava a se afirmar no cenário cultural carioca. O funk trazia para as letras de seus raps as histórias e o cotidiano vivido pelos moradores de favelas do Rio de Janeiro. Era o período de consolidação da redemocratização, em que os brasileiros e brasileiras retomaram o direito de votar para presidente e, com a constituição de 1988, garantiram outros direitos de cidadania. No entanto, a década de 1990 foi também a da vitória do neoliberalismo e da ampliação do Estado Penal: a ameaça às políticas que visavam a igualdade social veio acompanhada do crescimento do encarceramento em massa da população mais pobre. Sem subversivos e comunistas a caçar, o aparelho repressivo que herdamos da ditadura empresarial-militar voltou-se com força para jovens negros e pobres das favelas e periferias. Assim, enquanto o funk cantava as favelas, os funkeiros eram vistos como ameaça à ordem e inimigos da sociedade. A imagem que sintetiza isso no início dos anos 1990 é a dos arrastões ocorridos nas praias da Zona Sul, que a imprensa relacionou na época a galeras que se confrontavam nos bailes funk. Mas, os que eram vistos como ameaças estavam de fato ameaçados. A década de 1990 é também tristemente inaugurada com a Chacina de Acari e depois as Chacinas da Candelária e Vigário Geral, as primeiras de uma série de massacres envolvendo policiais e tendo sempre como vítimas negros e pobres, em sua maioria jovens favelados. Ainda hoje, em pleno século XXI, tivemos entre 2010 e 2013 nada menos que 1275 vítimas de homicídios cometidos pela Polícia Militar, sendo 79% negros e 75% jovens (dados da Anistia Internacional). Filhos dos favelados que foram removidos na década de 1960 e dos que, através dos mutirões, urbanizaram seus locais de moradias, os funkeiros enunciavam essa cidade com um olhar sobre seu cotidiano construído a partir da favela. Contra o discurso criminalizante, afirmavam que a favela é lugar bom de se morar, que ali viviam trabalhadores, que diversão não faltava. Contra a democracia racial, denunciavam opressão, pobreza, discriminação. Ressignificavam assim o mapa simbólico na cidade e davam a conhecer a todo o Brasil, por meio de suas músicas, os detalhes da vida cotidiana das favelas cariocas. Desse modo, o funk se inscreveu na história de uma cidade que sempre criminalizou os costumes populares, suas formas de convívio, de solidariedade e sobrevivência. Cidade do medo gerado pela escravização dos que aqui chegavam arrancados da África. Medo que se acirrou no pós-Abolição e que teve como uma primeira resposta legal o Código Penal de 1890 e sua criminalização da vadiagem. O trabalho deveria disciplinar esses corpos e docilizar mentes a favor da civilização obcecadamente almejada pela República nascente. Entretanto, a coisa não saiu bem assim. Felizmente. A cidade da ordem, era também a cidade do samba, dos batuques, das festas e frestas. Das estratégias de sobrevivência e das negociações que permitiram aos populares existir e resistir. Podemos afirmar, assim, que as culturas populares sempre foram assunto de polícia. Antes mesmo da existência das favelas. A UPP e suas interferências na vida cultural das favelas são apenas um capítulo de uma longa história feita de lutas, negociações, acomodações e resistências. Se, por um lado, temos a repetição no tempo de sofrimentos e dores, por outro perdura uma pulsão de vida que há 450 anos                                                                                                                 *  Antropóloga,  professora  do  Museu  Nacional/UFRJ.  

singulariza o Rio de Janeiro. No dizer poético de Thamires, moradora da Maré, “a favela foi a forma que o Rio encontrou de se tornar possível.” Que possamos encontrar um outro caminho para que essa cidade possa ser para as pessoas e não para o dinheiro, que se aprenda com aqueles que a tornaram possível como fazer para ela ser uma cidade feliz. Quem sabe ouvindo o recado do funk não possamos inventar a felicidade e andar tranquilamente pela favela e por toda parte?

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