50 anos da ditadura - lições de resistência e democracia dos cineclubes

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Carta de Curitiba – documento final da 8ª. Jornad Nacional de Cineclubes, Curitiba, 1974.
1956 – fundação do Centro de Cineclubes; 1958 – Federacão do Rio de Janeiro; 1959 – 1ª. Jornada Nacional de Cineclubes; 1960 – Federação de Minas Gerais; 1961, Federação do Rio Grande do Sul e fundação do Conselho Nacional de Cineclubes.
Ironicamente, contra a letra da Lei 5.536, promulgada a poucos dias do AI-5, que liberava os filmes exibidos em cineclubes da apresentação de Certificado de Censura.
O Clube Teresinense de Cinema, por exemplo, durante anos reunia seus membros para discutir filmes do circuito comercial; só começou a exibir, a programar filmes de sua escolha, a partir da criação da Dinafilme.
O então presidente do CNC, Felipe Macedo, foi eleito para o Comitê Executivo da Federação Internacional de Cineclubes em 1977 e 79, e Secretário Latino-americano da entidade em 1981.
Além de Antonio Gramsci, os escritos de Carlos Nelson Coutinho, Leandro Konder, Vianinha, Paulo Pontes, entre outros, foram importantes na elaboração da "teoria" e programa político dessa corrente majoritária no plano nacional entre 1972 e 1984.
O CR teve sua composição e objetivos mudados posteriormente, já neste século, e passou a representar as regiões do País, com um enfoque diferente daquele de representação de posições diferentes ou minoritárias.
A forma de associação característica do cineclube é herança das organizações proletárias que se desenvolveram em todo o Mundo ao longo do século XIX – os clubes de trabalhadores. Essa forma adquiriu uma dimensão institucional mais permanente a partir da chamada "lei de 1901", na França, que reconhecia as associações livres, sem fins lucrativos, inclusive as informais.
Duas importantes exceções foram os sindicatos dos Metalúrgicos e dos Petroleiros, ambas de Santos (SP), que mantiveram cineclubes e participaram do movimento cineclubista.
Greve!, de Joâo Batista de Andrade; Greve de Março, de Renato Tapajós (produzido pelo Sindicato dos Metalúrgicos do ABC), finalizados quase imediatamente, faziam parte dessas projeções que foram feitas durante a trégua decretada no meio daa greve. Vários outros filmes sobre os movimentos operários e populares foram distribuídos pela Dinafilme.
É importante lembrar que a realização em película exigia uma produção bem mais complicada e cara que a de hoje: o termo "cineasta", nesse contexto, refere-se a uma categoria profissional bem definida.
Essa "frente" era formada pelo grupo Centelha, que controlava a Federação de Minas Gerais, diversos grupos ligados a organizações clandestinas que tinham a direção da Federação Nordeste e outros poucos cineclubes, com uma importante representação do grupo Liberdade e Luta, de São Paulo – cuja federação estava em mãos da maioria, como também as federações do Rio de Janeiro (presidida por Nelson Krunholz), do Espírito Santo (Claudino de Jesus) e de Brasília (Antenor Gentil Jr.). Quase todos os cineclubes das demais regiões, onde não havia federação, estavam com a maioria. A direção da Federação Nordeste debandou e acabou com a entidade imediatamente após as eleições nacionais de Caxias
Hardman, Francisco Foot. 2002. Nem Pátria NEM Patrão!: memória operária, cultura e literatura no Brasil. Editora UNESP – São Paulo
Uma tradição nas Jornadas, havia sempre um painel de "troféus" atribuídos anonimamente a pessoas, cineclubes, grupos presentes, ou mesmo a coisas externas à Jornada. Alguém recebia o prêmio Stálin, identificando-o como autoritário, ou de musa sa Jornada, para uma moça bonita. O bom gosto e a educação nem sempre compareciam...
Macedo, Felipe. "O Modelo Brasileiro: um estrangeiro em nossas telas", em Moraes, Geraldo (org.). 2008. O Cinema de Amanhã. Ed. Congresso Brasileiro de Cinema e Coalizão Brasileira pela Diversidade Cultural. Brasília. Disponível também na internet.
O que não impediu que, uns anos depois, assumissem o controle do CC Bixiga, que pouco depois venderam para o empresário André Sturm, que o transformou em cinema comercial e, em seguida, o fechou.


50 anos da Ditadura
Lições de resistência e democracia dos cineclubes

2014, ano de lembrança e reflexão
Como não podia deixar de ser, este ano está sendo marcado por inúmeras efemérides relativas ao cinquentenário da ditadura que o Brasil viveu entre 1964 e 1985. É uma reflexão indispensável, trata-se do evento histórico mais importante da nossa experiência recente, riquíssimo para a compreensão da sociedade atual, que dele traz múltiplos traços. Conhecer e sobretudo compreender o melhor possível aquele período é indispensável para evitarmos toda possibilidade de renascimento do autoritarismo - ou autoritarismos, presentes em diferentes dimensões do convívio social. A maneira como a sociedade se articulou para derrubar o regime e construir novas bases democráticas é um reservatório de lições que continuam a servir para não apenas consolidarmos as instituições democráticas existentes, mas sobretudo para as estender e aprofundar no sentido de uma justiça social ainda subdesenvolvida em nossas terras.
Muitos dos eventos, mostras, debates que se fizeram pelo País este ano usaram uma iconografia forte da onipresença militar no período autoritário. Nada melhor para representar a tirania em estado bruto – admitindo o jogo de palavras – que tropas armadas, veículos blindados, cavalaria. Mas o arbítrio mobiliava todo o cotidiano, e a força maior da opressão exercia-se no vasto campo das instituições, na legislação de exceção, no arrocho salarial, na censura, na repressão à diversidade comportamental, na proibição de organização, nem sempre com grandes aparatos visíveis. A imagem do País seria talvez melhor representada por uma cidade vazia, um deserto, um cemitério. De forma mais ou menos análoga, a imaginária da resistência à ditadura, nesses eventos, tem destacado o repertório dos tombados na luta armada, seu inegável heroísmo ressoando forte nos sentimentos de todos nós. Mas também isso não corresponde à verdade histórica. Falta de articulação e respaldo popular, a resistência armada foi derrotada pela reação feroz e ilegítima do Estado e não contribuiu efetivamente para a derrubada do regime. A lição inestimável que tiramos da luta contra a ditadura foi que ela foi derrubada por um amplo, longo, difícil, perigoso trabalho de organização da sociedade civil – provavelmente com tantas ou mais vítimas que o combate armado – que desaguou numa mobilização crescente até tornar-se avassaladora.
Os cineclubes são um dos exemplos mais claros e instrutivos dessa sociedade civil que se expandiu por todo o tecido social. Mas são, também, caso exemplar do estiolamento e desagregação desse mesmo tecido social na restauração da hegemonia dos opressores. Seu papel ainda está para ser avaliado, e essa história, para ser contada. Apresento aqui alguns comentários que podem contribuir para a tarefa, se algum dia for empreendida.
Prolegômenos
Num livreto que escrevi em 1982 – Movimento Cineclubista Brasileiro –, editado pelo Cineclube da Fatec de São Paulo, eu propunha uma visão evolutiva do cineclubismo em nosso País. Partindo da idéia, que tinha então, de que o primeiro cineclube brasileiro fora o Chaplin Clube, via uma espécie de progressão democrática que começava naquele clube da elite da capital nacional; passava para o meio universitário do Clube de Cinema da São Paulo (1940-57); espalhava-se pelos estados e pelas instituições educativas católicas ao longo dos anos 50; chegava, através dos cineclubes universitários a "levar cultura para o povo" em experiências mais populares, às vésperas do golpe militar de 64. Os cineclubes dos anos 70, pensava eu, haviam superado o paternalismo implícito na geração cineclubista do Cinema Novo, dando origem a um movimento autóctone nas periferias, que não mais dependia da animação estudantil. Era o ponto de chegada de uma teleologia juvenil e orgulhosa, de resistência à ditadura.
A reflexão um tanto simplificadora baseava-se, contudo, em conquistas reais dos cineclubes daquela etapa da nossa história. Os anos da ditadura militar são possivelmente os mais ricos da história dos cineclubes brasileiros, sob vários aspectos. Marcam a superação de um modelo elitista dominante por 50 anos e o lançamento das bases de uma nova teoria cineclubista baseada não mais no cinema, no texto, mas no público, no contexto. Mais que isso, essa geração se inaugura pelo reconhecimento da postura colonizada do cineclubismo até então, com o firme comprometimento com o cinema brasileiro como expressão da nossa identidade e cultura. E, marcada pela perseguição e pelo arbítrio, criou instituições e modelos de gestão radicalmente democráticos que levaram o cineclubismo a uma extensão territorial, social e cultural inigualados em qualquer outro momento.
Passemos rapidamente pela história. Nos anos 50, por aqui, o cineclubismo baseado no modelo francês de culto ao "bom cinema" havia se conjugado de diferentes maneiras com um humanismo cristão de inspiração católica. Cabe uma certa analogia sobretudo com o cineclubismo parisiense do pós-Guerra, que incorporava um pouco do humanismo de André Bazin com o vanguardismo elitista – às vezes tratada de "cinefilia" - dos cineclubes que deram origem aos Cahiers du Cinéma e Positif. Aqui, sob influência daquele modelo, a década se distingue pela expansão nacional dos cineclubes, pelo florescimento de uma crítica cinéfila em diferentes estados, pela proliferação igualmente nacional de cineclubes católicos e, finalmente, pelo início de uma organização autônoma do cineclubismo como movimento cultural. Na virada e começo dos anos 60, o cinecubismo universitário se politiza mais, envolvendo-se com os Centros Populares de Cultura, com o Cinema Novo, e disputando com os cineclubes católicos dentro do movimento.
Como eu dizia no livrinho de 1982, o golpe militar atingiu mais esse segmento minoritário, extensão do movimento estudantil. Inicialmente, a ditadura ocupa-se das organizações realmente de massa, operárias, camponesas, estudantís. Destas últimas deriva, portanto, a desagregação dos CPCs e o golpe duro em parte da produção cinemanovista. A maior parte da atividade cineclubista, sem compromisso político, foi preservada. De certa forma, a ditadura atingiu o movimento de fato, mortalmente, em 1968: a 7ª. Jornada foi realizada naquele ano em Brasília (!), em meio ao golpe na sucessão do general Costa e Silva e a edição do Ato Institucional no5. Com o recrudescimento da ditadura militar, os cineclubes – e cineclubistas - passam a ser violentamente perseguidos. É estabelecida na prática a censura prévia às suas atividades e todo tipo de entraves e pressões vão desmantelando todas as entidades no País. Calcula-se que existissem cerca de 300 cineclubes em 1968, agrupados em 6 federações regionais filiadas ao Conselho Nacional de Cineclubes. Em 1969 haveria no máximo uma dúzia de cineclubes em funcionamento e quase todas as suas entidades representativas haviam sido destruídas ou abandonadas. Exceção importante, o Centro dos Cineclubes de São Paulo subsistiu, graças principalmente ao empenho de Carlos Vieira – então já quase vinte anos à frente da entidade.

Carlos Vieira, à esquerda, Hector Babenco, Roberto Santos e Marília Santos
no Clube de Cinema de Marília
Penso que se possa agrupar esse período da história do cineclubismo brasileiro em três fases: de reorganização, de expansão e consolidação e, finalmente, de crise e desagregação.

Primeira fase (72-74) – reestruturação, unidade, cinema brasileiro
Os cineclubes nunca deixam de existir, mesmo nos períodos em que desaparecem dos espaços midiáticos e acadêmicos e exercem pouca ou quase nenhuma influência no restante da sociedade. Subsistem no isolamento, sem notoriedade, atendendo ao que penso ser uma necessidade persistente do público. Na verdade só são notados quando muito organizados, atuantes, de forma a se impor nos noticiários, ou quando reconhecidos – geralmente de forma efêmera – por correntes acadêmicas e/ou midiáticas, como nos anos 20 e 50 na França, por exemplo. Mas estão sempre por aí, meio escondidos numa faculdade, numa forma de associação de bairro, numa cidade do interior...
Como já mencionei, depois do "golpe dentro do golpe" subsistiu uma certa atividade em São Paulo, principalmente em cineclubes tradicionais do interior, como o Clube de Cinema de Marília ou o Clube Avareense de Cinema, através do Centro dos Cineclubes. Não podemos esquecer da Cinemateca de Santos, identificada com a forte personalidade de Maurice Legeard, atuando por fora. Essa atividade se dinamiza com o surgimento de novos cineclubes estudantis e, a partir de 72, pela ação da Cinemateca Brasileira, então mantida a duras penas por um grupo de jovens sob a liderança inicial de Lucila Riberio Bernardet. A circulação do acervo 16mm e a identificação de sua equipe com a resistência dos cineclubes à ditadura logo deram à Cinemateca um papel de liderança nesse movimento.
No Nordeste também, várias personalidades da geração anterior do cineclubismo mantinham atividades diversas de exibição, debate e organização em muitas cidades da região. A Bahia centralizou de certa forma essa movimentação, que incluía uma produção de resistência e culminaria com a criação da Jornada de Curta-Metragem, sob a direção de Guido Araújo, em 1972.
Mas é do Rio de Janeiro que veio o impulso fundamental para a reorganização nacional do movimento cineclubista. Dentre alguns cineclubes que se organizaram e recriaram a Federação do Rio de Janeiro, destaca-se o CC Glauber Rocha, com um número expressivo de grandes quadros cineclubistas e a liderança de Marco Aurélio Marcondes. O "Glauber Rocha" era praticamente uma base ou célula do Partido Comunista Brasileiro; acredito que isso é fundamental para compreender a visão e o programa organizativo que esse grupo ajudaria a estabelecer em seguida para todo o País.


O Cineclube Glauber Rocha – parte de seus membros
O último à direita, embaixo, é Marco Aurélio Marcondes

Esse programa pode ser resumido em alguns tópicos: unidade de todos os cineclubes; criação ou recriação de estruturas institucionais e operacionais; cobertura nacional do movimento e, finalmente, compromisso com o cinema brasileiro. Foi Marco Aurélio, principalmente, que buscou e identificou os núcleos cineclubistas existentes no País. Em São Paulo, por exemplo, foi o maior promotor da unidade entre os cineclubes mais tradicionais, ligados ao Centro (Carlos Vieira), e os estudantis, à Cinemateca (Felipe Macedo).
Em 1972, na primeira Jornada baiana, lançaram-se as bases para a fundação da ABD e a reorganização do CNC, ambas no ano seguinte: a ABD em setembro, na 2ª. Jornada; o CNC em outubro, em reunião no Clube de Cinema de Marília, por ocasião da entrega do tradicional (criado em1966) prêmio Curumin de Cinema Brasileiro. Rio (Marco Aurélio Marcondes, Luiz Fernando Taranto), São Paulo (Carlos Vieira, Felipe Macedo) e Nordeste (representado pela Bahia, com o paraibano José Umbelino Brasil) foram as regiões que participaram. A principal deliberação da "nova" entidade foi a convocação do congresso nacional dos cineclubes já para o início de 74.

Jornada de Curitiba (1974): Cosme Alves Neto (Cinemateca do Museu de Arte Moderna) em primeiro plano, e a delegação da Federação de Cineclubes do Rio de Janeiro

A 8ª. Jornada Nacional de Cineclubes foi realizada em fevereiro de 74, em Curitiba, com a presença de 40 entidades – entre elas, as duas cinematecas brasileiras e a ABD recém criada. Penso que as duas grandes resoluções da Jornada foram: a mudança dos estatutos do CNC, que assumiu uma forma nacional e democrática, tornando-se uma federação de cineclubes por voto direto – antes era um conselho que reunia apenas as direções das federações regionais – e a Carta de Curitiba, que definia o vínculo e compromisso do cineclubismo brasileiro com o cinema nacional. Isso significou uma ruptura histórica com a postura elitista e colonizada que prevalecia até então, de culto a um "bom" cinema, fundamentalmente identificado com a produção estrangeira. Certos autores identificam essa nova postura como herança do Cinema Novo; equivocam-se, a origem deste novo "nacionalismo" - sem abdicar da crítica que é inerente à prática do cineclubismo - estava nas posições de Paulo Emílio Salles Gomes e envolvia todo o cinema brasileiro – da chanchada e Vera Cruz ao Cinema Novo - como expressão de uma cultura que havíamos desdenhado e desconhecido. Carlos Vieira presidiu a primeira diretoria do novo CNC.
Segunda fase (75-84) – A Dinafilme e um movimento social nacional
Em Curitiba já se colocava a questão fundamental: como obter filmes para os cineclubes. Há vários aspectos a considrar nesse tema:
Primeiro, é preciso lembrar que filme era película – e 16mm a bitola consagrada dos cineclubes. Além da cara copiagem, a própria circulação de filmes era um desafio logístico de transporte e custos;
Os monopólios regionais de exibição, em acordo com as distribuidoras americanas, não permitiam a circulação de filmes em diversas partes do País;
Da mesma forma, filmes brasileiros raramente estavam disponíveis e curtas-metragens menos ainda;
A Censura proibia sistematicamente filmes mais críticos e a Polícia Federal, os serviços secretos das forças militares e até organizações terroristas de extrema direita assediavam e atacavam atividades de vários cineclubes.
O movimento fez desde logo uma série de experiências de circulação de pacotes de filmes, com resultados variados. Mas na Jornada seguinte, em Campinas (1975), concluiu pela necessidade de criação de uma distribuidora organizada, ligada ao CNC.
Na Cinemateca Brasileira, em 1975, tinha havido uma espécie de luta pelo poder: um grupo mais "técnico", vindo dos cursos de cinema da USP e contrário a qualquer atividade que pudesse comprometer o relacionamento da instituição com o governo militar, acabou assumindo a direção. O pessoal que lá estava desde 1972 foi afastado e parte dele assumiu a direção da Federação Paulista de Cineclubes, nova denominação e estrutura adotadas pelo Centro dos Cineclubes. A questão toda foi arbitrada por Paulo Emílio Salles Gomes: ao mesmo tempo que sacramentava a nova equipe da Cinemateca, doou o acervo 16 mm – duplicado de cópias já preservadas - para a Federação. Em fevereiro de 76, na Jornada de Juiz de Fora, foi oficialmente criada a Dinafilme – Distribuidora Nacional de Filmes, e sua administração central entregue à Federação Paulista que já tinha sede e acervo em duas salas na famosa Boca do Lixo, em São Paulo. Marco Aurélio Marcondes foi eleito presidente do CNC e Felipe Macedo, secretário-geral e diretor da distribuidora.
O acervo inicial, de clássicos do cinema, foi sendo incrementado com o depósito sobretudo de curtas-metragens feito pelos realizadores. A Dinafilme combinava a fórmula "trabalho legal – trabalho ilegal", distribuindo clandestinamente os filmes proibidos ou não submetidos à Censura (ver nota iii), mas atuando igualmente na "legalidade", mais ou menos dialogando com as instituições do governo de exceção. Com a nova distribuidora, os cineclubes de todo o País puderam ter acesso a filmes e o movimento não parava de crescer, começando a ter um certo peso político real: no fim da década, o CNC chegou a ter cerca de 600 cineclubes associados e a Dinafilme atendia a uns 2.000 "exibidores" de caráter cultural e comunitário. Em 1977, Marco Aurélio afastiu-se formalmente da direção do CNC, tendo sido contratado para criar um Setor 16mm na Embrafilme. Era o complemento ideal para a programação dos cineclubes, pois só o Estado tinha recursos para poder fazer cópias de longas-metragens brasileiros em 16mm. Resumida e esquematicamente: o Setor 16mm da Embrafilme fornecia longas-metragens brasileiros; a Dinafilme, clássicos e curtas, inclusive clandestinos. No começo dos anos 80 a distribuidora cineclubista passou a distribuir também filmes latino-americanos.
Paralelamente a esse processo, o movimento vivia uma prática política intensa. Expandia-se horizontal e verticalmente, espalhando-se pelo País todo, sendo adotado ou trabalhando conjuntamente com muitos movimentos sociais e mesmo estabelecendo relações internacionais. Voltarei a isso. Mas também internamente o movimento praticava um debate político muito vivo. As assembléias ou jornadas – então anuais, com eleições a cada 2 anos – especialmente entre 1977 e 1984 foram marcadas por intensa disputa. Pode-se resumir um pouco essa divisão entre uma visão e programa que defendiam o cinema brasileiro e um cineclubismo plural, em torno das idéias gramscianas de nacional-popular, de um lado, e uma posição que propugnava uma prática internacionalista e revolucionária de inspiração trotskista. A base social do primeiro grupo era bem ampla, nacional, indo dos cineclubes de periferia aos mais tradicionais e organizados, passando pelos de escolas de todos os níveis, além de movimentos específicos de gênero, orientação sexual, etc. Os "internacionalistas" tinham bases exclusivamente universitárias, ligadas a algumas tendências do movimento estudantil, especialmente em Minas (Grupo Centelha) – onde eram hegemônicos - e no Nordeste, mas também em praticamente todos os outros estados (Grupo Liberdade e Luta, em São Paulo, por exemplo). Menos importante, sob alguns aspectos, tinha a vantagem da organização através das tendências partidárias do movimento estudantil, resultando numa maior facilidade de mobilização.

Jornada de Caxias do Sul (1979), a maior até hoje: 124 cineclubes com direito a voto e quase 500 participantes em renhida disputa eleitoral.

Esse debate, especialmente no primeiro período citado, circulava por uma robusta imprensa cineclubista e estruturas organizativas cada vez mais radicalmente democráticas. As federações e o CNC – e muitos cineclubes – tinham boletins periódicos. A Dinafilme era dirigida por um Administrador eleito na Jornada, amparado num Conselho (deliberativo) de Administração, o CADINA, com representantes de todas as federações e grupos de cineclubes ditos isolados. Cada região tinha seu CADINA regional, que administrava "filiais" e acervos circulantes da distribuidora. Nos dois níveis, nacional e regional, também tinham seus "boletins Cadina", com dados da distribuição e artigos de debate. Assim, as assembleias regionais deliberavam, em última instância, sobre o andamento da distribuidora entre as jornadas. Era uma prática difícil, trabalhosa, que criava dificuldades sem conta para a gestão de uma distribuidora independente, que precisava se custear, manter uma eficiência – que, aliás, esteve sempre longe do ideal. Mas que durou mais de uma década e deu uma contribuição inigualável para a cultura e o cinema brasileiros.
Ao mesmo tempo, o reconhecimento da legitimidade dessas instâncias garantia a base de funcionamento delas, mesmo nas relações entre grupos francamente adversários. Nos casos de repressão – fora os casos pontuais, que se contam às centenas, de cineclubes perseguidos, a própria sede do CNC e a Dinafilme foram invadidas duas vezes (77 e 79) pela Polícia Federal e o acervo apreendido – a unidade era exemplar. Na invasão da Dinafilme de 79, a mobilização realizada em cada estado e nacionalmente foi tão forte que o ministro da Justiça teve de receber a direção do CNC e devolver os filmes. Foi o momento de maior exposição midiática e social do cineclubismo brasileiro, em plena ditadura, e a maior vitória política pontual em sua história.
O debate, a participação, a estrutura democrática caracterizam um movimento mesmo, uma parcela significativa da sociedade que se apoiava no cinema para se organizar como sujeito, e sujeito político. Isso ocorria de par com a organização da sociedade civil em escala muito mais ampla; os cineclubes eram parte de outros movimentos e organizações sociais, especialmente nos bairros junto a comunidades de base da igreja então marcada pela teologia da libertação, a iniciativas de alfabetização, aos movimentos contra a carestia e muitos outros. O cineclubismo também se envolveu com formas de organização identitárias, culturais, de gênero, como se diz hoje; na Bahia, graças ao trabalho incansável e liderança carismática de Luís Orlando da Silva, tornou-se canal importante de expressão do movimento negro. E cineclubes importantes marcaram também os movimentos feminista, homossexual e outros, que se destacavam também nas relações com o restante do movimento, nos grandes congressos anuais.
Luís Orlando da Silva - símbolo de um novo cineclubismo

Estes exemplos de discussão e muitas outras questões ocupavam todos os espaços de que dispunha o movimento, em artigos e ensaios, réplicas e tréplicas aguerridas, irônicas, implacáveis. Essas disputas, como me parece óbvio, contribuíam e consistiam mesmo na manifestação mais evidente do grau de democracia que regia o movimento. Independentemente de "hegemonias" locais ou nacional de uma ou outra tendência, quando havia, as oposições sempre tinham direito e espaços assegurados para se expressar. Tal foi, de fato, a intenção e modelo do Conselho de Representantes, no CNC (que assegurava a participação das minorias na gestão majoritária) e a forma de administração ultraparticipativa que marcava – e às vezes até atrapalhava – a Dinafilme. Mas, quando interesses gerais do movimento estavam em jogo – como a manutenção dessas mesmas instituições, políticas (da organização) ou econômicas (basicamente a Dinafilme, mas também a organização de encontros), a unidade do movimento cineclubista prontamente se estabelecia. O maior e mais claro exemplo disso foram as mobilizações amplamente nacionais quando das duas invasões e apreensões na Dinafilme pela Polícia Federal, em 1977 e 79. E todas as Jornadas anuais - e as Pré-Jornadas entre elas -, organizadas praticamente sem patrocínio (mas com parcerias com prefeituras de oposição ao regime militar, sindicatos, organizações religiosas).
Em meio a uma intensa disputa, viia o compartilhamento das "regras do jogo", a aceitação dos resultados eleitorais ou de propostas programáticas por eventuais minorias - que podiam ser bem numerosas ou majoritárias em determinadas regiões – em função da unidade geral em torno de princípios e conquistas comuns.
Um novo tipo de cineclubismo
A própria conjuntura autoritária e a repressão à organização da sociedade civil acentuaram o caráter político da organização cineclubista, que passou a valorizar o público em detrimento do cinema - valor maior da cinefilia consagrada pelo cineclubismo elitista, especialmente francês, dos anos 20 e 50. Recuperando os valores originais dos primeiros cineclubes, de origem socialista e anarquista - o humanismo cristão e a valorização do público trabalhador e feminino - o cineclube brasileiro do período da ditadura passou a definir-se majoritariamente como uma organização do público com vistas à apropriação e à construção de um novo cinema (expressão de uma nova sociedade), e não mais como um grupo de apreciadores de uma expressão artística, comprometidos apenas com a sua dimensão estética (independentemente da sociedade).
Essa postura mais ou menos comum em toda a América Latina, que vivenciava condições políticas e sociais muito semelhantes, foi possivelmente expressa de forma mais consciente no Brasil, onde um movimento mais vigoroso e numeroso deu margem a um debate e uma certa produção teórica mais importante. A influência do pensamento gramsciano – e particularmente sua concepção das instituições geradoras de valores éticos e culturais - também está certamente associada ao desenvolvimento desse pensamento. Concorre para demonstrar isso o fato de que uma reflexão semelhante, colocando o público na centralidade da questão do cinema, também surgia, na mesma época, na Itália, com os cineclubistas Fabio Masala, da Sardenha, e Filippo De Sanctis.
O associativismo é a premissa maior dessa concepção, que reelabora essa base geral e originária do cineclubismo e a aproxima da idéia das instituições valorativas de Gramsci, essenciais para a construção de uma sociedade efetivamente democrática. Mas também para a consttrução de um cinema que expresse a cultura e os interesses do povo – em oposição a um cinema espetáculo comercial que atende essencialmente às demandas do capital. Assim, como bem ilustra a foto, mais acima, do Cineclube Glauber Rocha (foto em que não cabem todos os membros do cineclube), os cineclubes típicos do período tinham dezenas de associados e militantes. Tal conjuntura ("beneficiada" por um clima repressivo e de relativa ausência de manifestações críticas) criava um campo de debate interno também bastante intenso, e uma grande criatividade, gerando idéias e ações que atraíam e mobilizavam grandes públicos. Sessões, inclusive clandestinas, tanto nas universidades como nos bairros, não raro reuniam públicos de muitas centenas de pessoas.
O modelo, creio, se estende e contamina as organizações que o movimento cria: daí as diversas instâncias participativas já mencionadas, como os conselhos de representantes do CNC e de gestão da Dinafilme. Também as Jornadas eram abertas a amplas participações e os cineclubes compareciam com diversos membros, em delegações numerosas de até dez ou mais pessoas.
Já mencionei a idéia de democratização paulatina do cineclubismo brasileiro, expressa no livrinho de 1982. De certa forma – e recusando a linearidade e teleologia do raciocínio – o cineclubismo brasileiro do período ditatorial (retomou e) superou a geração anterior e suas ações de "levar a cultura para o povo". Os cineclubes de bairrros de periferia e de comunidades e movimentos culturais populares – como o dos negros, especialmente na Bahia – eram autogeridos, sem "orientações" externas e participavam em igualdade com todos os outros tipos de cineclubes do movimento. Já no fim dos anos 70 esses cineclubes tornam-se maioria nas jornadas.
Certamente contribuíram para essa expansão com autonomia alguns programas de criação de cineclubes coordenados principalmente por federações regionais, como as de São Paulo - Projeto "Intercine" (Plano de Interiorização do Cinema Cultural), que chegou a até 80 cidades na terceira edição) e Espírito Santo, já com apoios dos governos estaduais. Outra instituição das federações no período da ditadura foi o Mês do Cinema Brasileiro, quando todos os cineclubes de sua base regional programavam filmes nacionais, e outras atividades sobre o tema.
Exceção muito importante a considerar nessa tendência democratizante foi a dos cineclubes propriamente operários. Os sindicatos são uma base ideal para o desenvolvimento do cineclubismo: geralmente contam com sede, instalações e recursos, além de serem virtualmente um polo de afluência de trabalhadores com alto grau de identidade. Isso, sem me estender sobre o papel central que tem a classe operária na construção de uma sociedade efetivamente democrática. No entanto, pouquíssimos foram os sindicatos que aceitaram ou adotaram cineclubes em sua estrutura. Na greve do ABC, em 1978, a Dinafilme montou equipes móveis de projeção, que exibiam filmes do movimento operário, mas a própria diretoria do Sindicato dos Metalúrgicos proibiu a criação de um cineclube em sua organização – embora contratasse a produção de vários filmes com um realizador. Essa estreiteza do movimento sindical com relação à organização cultural – muitos sindicatos e centrais sindicais promoviam (e o fazem atualmente) espetáculos totalmente comerciais e anódinos, mas não estimulam a iniciativa cultural operária.
Influência no cinema brasileiro


Cartazes de lançamentos da Dinafilme

Uma crítica comum ao novo modelo de cineclubismo era a da sua politização, supostamente sinônimo de descompromisso e instrumentalização do cinema. Como se verá mais adiante, esse elemento estava presente, mas essa politização também representou interação e influência no cinema brasileiro. Um grande número de cineastas trabalhava orgânicamente com o movimento, cedendo seus filmes para a Dinafilme – e vários foram produzidos especialmente para ela e para o grande circuito de exibição que ela atendia, inclusive clandestinamente. Já mencionei que, em determinado momento, a Dinafilme atendia 2.000 pontos de exibição no País.
João Batista de Andrade, Leon Hirszman, Tizuka Yamasaki, Jorge Bodanski, Osvaldo Caldeira, Renato Tapajós, Roberto Gervitz, Sergio Toledo, Carlos Reichembach, Sílvio Tendler, Alain Fresnot, Agnaldo "Siri" Azevedo, Orlando Bomfin, são alguns dos muitos realizadores que interagiam com o movimento cineclubista e recebiam sua influência pelos resultados da circulação de seus filmes. Além de participarem de debates sobre seus filmes, a Dinafilme também estimulava a elaboração de relatórios de sessão, inclusive mais informais, o que tinha bastante impacto junto aos realizadores. Assim, filmes como O Homem que Virou Suco; Eles não Usam Black-tie; Gaijin; Projeto Jari; Passe Livre; Linha de Montagem; Braços Cruzados, Máquinas Paradas; Os Anos JK;Trem Fantasma, entre muitos outros, são exemplos de filmes que dialogam e incorporam em graus variados a inflluência dos cineclubes e, principalmente, do público que eles reuniam e representavam. O cineclubismo está presente na estética, como na política, do cinema brasileiro daquele período.
Tendo sido uma das primeiras entidades do cinema brasileiro a se organizar depois da instalação da ditadura, o CNC e o movimento cineclubista criaram e participaram de todos os eventos e reuniões importantes (festivais, congressos, etc.) do meio cinematográfico brasileiro e mantiveram diálogo com todas as instituições existentes ou que foram surgindo: Associação Brasileira de Cineastas, Associação Paulista de Cineastas, Sindicatos de Artistas e Téccnicos, etc.
Baseada num texto de Antonio Gouveia Jr. (criador do cineclube do Sindicato dos Jornalistas e do CC Bixiga), uma Resolução do Conselho Nacional de Cinema (o então órgão normativo do cinema no País) regulamentou a atividade cineclubista, reconhecendo no CNC a exclusividade de registro das entidades de base (que, assim, não precisavam entrar em qualquer contato com a Polícia Federal ou outros órgãos de controle).


1980: Gaijin recebe o prêmio Curumin de melhor filme brasileiro,
do Clube de Cinema de Marília. A partir da esquerda:
diretora do Clube de Cinema; Felipe Macedo, da Dinafilme;
Orlando Fassoni, crítico de cinema, e a diretora Tizuka Yamasaki

Presença internacional (77-84)
A partir de 1977, o CNC passa a participar da Federação Internacional de Cineclubes, sendo incorporado ao seu Comitê Executivo em 1977, em Figueira da Foz, Portugal. O Secretário-geral da FICC, Jean-Pierre Brossard, participa das Jornadas de Caxias do Sul (78) e Campo Grande (80). Em 1979, Macedo é eleito novamente para o Comitê, desta vez em assembléia realizada em Marly-le-roi, perto de Paris. Em 1981, na primeira assembléia da FICC realizada na América Latina (Havana, Cuba, durante o Festival del Nuevo Cine), é eleito Secretário Latino-americano.
A relação com a FICC foi praticamente irrelevante, exceto quanto à América Latina. A organização era extremamente centrada na realidade européia, onde o intercâmbio entre federações nacionais fortes, sustentadas por países desenvolvidos ou socialistas, era uma realidade. Mas a entidade eurocêntrica não fazia quase nenhuma ação concreta em relação ao resto do mundo.
O encontro de Havana, porém, reuniu diversos países latino-americanos que compartilhavam uma mesma conjuntura de repressão e, mesmo sem muitos recursos, dispunham de vontade política para se aproximarem. Felipe Macedo e Diogo Gomes dos Santos, então diretor da Dinafilme, conseguiram trazer clandestinamente para o Brasil os filmes mais importantes do Festival e celebraram um acordo com a distribuidora mexicana Zafra para intercâmbio de filmes. Assim, no começo da década de 80, a Dinafilme distribuiu diversos documentários latino-americanos, inclusive das sublevações populares de El Salvador e Nicarágua.
Terceira Fase (84-89) – desestruturação
Se num primeiro período – especialmente entre 1977 e 1980 – o movimento se dividia em tendências ideológicas e programáticas mas conseguia preservar a unidade política, a partir de 1982 ele passa a se desentender num plano quase de classe, em que a intolerância impede a convivência. É um dos fatores da sua desagregação.
A maioria dos cineclubes, de 1974 a 1982, se identifica com os pressupostos aqui descritos, de primazia do público, do associativismo democrático, de defesa e participação no cinema brasileiro. Entre a Jornada de 1977 (Campina Grande) e a de 1978, em Caxias do Sul, algumas tendências de orientação trotskista no movimento estudantil se organizam para disputar as eleições (em 78). A disputa foi acirrada e a vitória daquela maioria foi apertada. No entanto, como parte da "frente" estudantil visava mais a tomada da entidade que a prática cineclubista, grande parte desse grupo se desestruturou completamente logo após a Jornada. Mas a Federação de Minas continuou, assim como um ou outro cineclube paulista. Na Jornada de Brasília, dois anos depois, essa oposição havia quase desaparecido e uma espécie de unanimidade parecia abrir caminhos interessantes numa conjuntura em que a ditadura se enfraquecia lenta, mas consistemente.
Foi em 1982 (Jornada de Piracicaba) que a nova forma de divisão do movimento se revelou. Ao não ser contemplado especificamente com o cargo de vice-presidente na chapa montada em reuniões muito amplas, que envolviam quase a totalidade dos cineclubes presentes, Diogo Gomes dos Santos revelou e dirigiu um "racha" inusitado: cerca de um terço dos cineclubes votaram favoravelmente ao programa da chapa, mas se abstiveram na eleição.
Era uma forma de tendência política diferente: não defendia um programa, mas pessoas. De fato, havia um clima incômodo, algo como o que Franscisco Foot Hardan chamou de estratégia do desterro, referindo-se ao purismo dos anarquistas no começo do século passado. De forma semelhante, a maioria dos cineclubes de periferia – especialmente de São Paulo – e da Federação da Bahia, isolaram-se num discurso "anti-burguês" (em que burguês era a mera aparência da pessoa, não sua ideologia ou mesmo a classe social real). Essa postura preconceituosa encontrou seu par num troféu dado ao grupo na Jornada de Petrópolis, depois de uma confusão no alojamento: Feios, Sujos e Malvados (referência ao filme de Ettore Scuola). Gomes dos Santos capitalizou o episódio e o grupo passou a assumir essa denominação. Uma nova prática política surgiu; diferentemente dos embates orais ou escritos entre as antigas tendências do movimento, os Feios, Sujos e Malvados promoviam apenas reuniões fechadas onde agregavam novos aderentes. As duas maiores tendências do cineclubismo não discutiam, não conversavam, mal conviviam.
Em 1984, na segunda Jornada de Curitiba, Gomes dos Santos e seu grupo ganharam as eleições por um único voto. O clima de intolerância se manteve e se acirrou com uma compreensão muito diferente das grandes mudanças por que passava o País, o cinema, as tecnologias e sobre o papel dos cineclubes nessa transição. Vamos falar um pouco disso.
Em meu artigo O Modelo de Cinema Brasileiro mostro como foram fechados cerca de 80% das salas de cinema no Brasil nesta mesma época que estamos examinando: entre os anos 70 e 80. Essa sitiuação – além de muitos outros significados para o cinema no País - deixou um grande número de projetores 35mm disponíveis a baixo preço, além de cadeiras de cinema. Desde 1982 o movimento, e particularmente a Dinafilme, discutia a oportunidade de criar cineclubes 35mm, com estrutura mais profissional (sem abandonar o associativismo e os demais princípios que subscrevíamos) e como "âncoras" para os cineclubes 16mm, que precisavam se adaptar às novas tecnologias – então, o VHS.
O filme 16mm estava deixando de ser usado e produzido no Brasil, com a introdução do videotape na televisão e a disseminação de diferentes formatos profissionais ou caseiros, de 4, 2 polegadas ou VHS. Para obterem filmes os cineclubes deveriam se adaptar a mais ou menos curto prazo. Nesse sentido, cineclubes fortes em 35 mm, operando diariamente (e combatendo e substituindo na prática o cinema comercial), poderiam ajudar a capitalizar nossa distribuidora e financiar a passagem tecnológica da maioria dos cineclubes. Desde 1982 o CC Bixiga já operava nesses termos, com enorme sucesso.
O grupo liderado por Gomes dos Santos, assim como sua gestão no CNC, eram, contudo, contrários aos cineclubes 35mm, que consideravam "burgueses". Assim, essa ligação entre cineclubes 35mm, Dinafilme e cineclubes 16mm não foi feita. Um dos elementos fundamentais para a desagregação da maioria dos cineclubes naquele momento foi o desaparecimento gradativo do 16mm e a falta de alternativas para substiuí-lo. Essa postura isolacionista da direção do CNC levou também a um afastamento da maioria das instituições do cinema brasileiro.
Esvaziado de muitos dos mais atuantes cineclubes, um movimento enfraquecido continuou sob controle daquele grupo que foi capaz de eleger seus sucessores na Jornada de 1986, realizada mais uma vez em Brasília. Um novo grupo político substituiu o de Gomes dos Santos, com o apoio deste. E aqui entramos no terreno da tragicomédia. A nova direção do CNC era composta por adeptos do general líbio Muamar Gadafi. Ridiculamente, passeavam armados na assembléia, distribuindo o "livro verde" do líder, em que se explicava que as mulheres eram inferiores porque adoeciam uma vez por mês – entre outras sandices. A entidade nacional do cineclubismo também passou a opor-se à Federação Paulista porque o presidente desta, na ocasião, era judeu. O CNC virou uma anedota de mau gosto, que a esssa altura não chegava a ser contada fora de um diminuto círculo de fanáticos.
Aqui cabe mais um parênteses importantíssimo: outro fenômeno, ironicamente associado ao processo de democratização do País, soma-se aos problemas tecnológicos e políticos do movimento. Na medida em que o regime era obrigado a aceitar o ressurgimento e a legalização de movimentos e organizações sociais, um grande número de lideranças cineclubistas abandonavam o movimento para atuar de forma mais explicitamente política nos DCEs, na UNE, nos partidos políticos. Essa "debandada/cooptação" foi muito importante no esvaziamento do movimento. No Rio de Janeiro deve-se somar a isso a "privatização" do Cineclube Estação Botafogo (1987), que transformou-se inicialmente em sala comercial e depois em um circuito comercial importante, levando nesse processo também um bom número de quadros do cineclubismo fluminense e quebrando uma trajetória e uma certa tradição. A Federação do Rio, contudo, ainda existiria por alguns anos com lideranças que, como em todo o País, não conseguiram deter o processo de esvaziamento do movimento cineclubista.
Os "gadafianos" não completaram seu mandato. Foram depostos na Jornada seguinte – realizada na "casa" deles, mais uma vez em Curitiba (87). Uma diretoria de emergência assumiu, composta por antigos presidentes e dirigentes do CNC. Na Jornada seguinte, realizada em Campinas, comemorou-se o 60º. aniversário do cineclubismo brasileiro (a partir do Chaplin Club), numa tentativa de mobilizar e reativar o movimento, já em plena crise. Em 1989, em Vitória, uma última tentativa marcou uma Jornada esquelética que elegeu uma direção totalmente nova, mas que nunca assumiu efetivamente. Institucionalmente, começava o longo hiato que só seria quebrado em 2003.


A conclusão é sua
Reconstruir a História é sempre reinterpretá-la à luz das condicionantes da atualidade: é, em última instância, um discurso indireto sobre a atualidade, um instrumento para compará-la e compreendê-la, muito mais que a vã pretensão de efetivamente reconstruir o momento histórico, definitivamente passado. Mesmo quando o horizonte dessa história ainda está no campo da experiência de quem o "reconstrói". O que só se complica ainda mais quando este foi e é parte da própria história assim reconstruída. Portanto, este texto se assume em suas delimitações – que não são limitações, precariedades -, isto é, um engajamento, então como agora, com uma interpretação e uma prática política em relação ao cineclubismo e ao mundo. Qualquer outra história do período estaria nas mesmas condições.
A etapa seguinte na trajetória do cineclubismo brasileiro como movimento – porque como já disse, cineclubes sempre há – começa já neste século. Numa abordagem formal e superficial, é um quadro completamente diferente: padrão de normalidade democrática, e outro paradigma tecnológico, resultando em facilidade de comunicação e acesso que não têm paralelo com os anos que comentei aqui. E um Estado que não persegue, antes procura fomentar à sua maneira o que entende por cultura.
Penso, entretanto, que numa perspectiva mais profunda, a situação permanece substancialmente igual: a sociedade continua reprimida e controlada pelos mesmos e o Estado a serviço deles. Tanto a reconstrução democrática formal a partir de 1985, como a apropriação social (na verdade, privatização) dos extraordinários avanços tecnológicos que se estendem pelos últimos 50 anos, resultaram na reorganização do controle social – ainda que mais pela desmobilização e alienação que pela repressão direta (também presente) e na apropriação indevida do trabalho e do produto de todos por muito poucos, agora até no plano virtual.
Por isso, a descrição dos mecanismos da resistência e da construção de instituições e organizações populares e democráticas me parece ter a maior importância para compreendermos nosso momento atual. Acredito que os cineclubes estão entre as mais importantes dessas instituições da sociedade civil que constroem em sua prática de hoje os fundamentos de uma sociedade livre amanhã. Acredito, como dizia no meu livrinho de 1982, que "os cineclubes são o embrião da superação do cinema comercial" numa prática que elimina a divisão do trabalho e a alienação do produtor-consumidor (ou produtor-público). E desistir dos cineclubes é desistir disso.
São Paulo, agosto de 2014.


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