61881841-LAKATOS-Imre-Desenvolvimento Do Conhecimento

October 5, 2017 | Autor: The Bafh | Categoria: Filosofía
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A CRÍTICA E o DESENVOLVIMENTO DO CONHECIMENTO Quarto volume das atas do Colóquio Internacional sobre Filosofia da Ciência, realizado em Londres em 1965 CIP-Brasil. Catalogação-na-Fonte Câmara Brasileira do Livro, SP

A crítica e o desenvolvimento do conhecimento: C951 quarto volume das atas do Colóquio Internacional sobre Filosofia da Ciência, realizado em Londres em 1965 / organizado por Imre Lakatos e Alan Musgrave ; [traduzido por Octavio Mendes Cajado ; revisão técnica de Pablo Mariconda]. — São Paulo : Cultrix : Ed. da Universidade de São Paulo, 1979. Bibliografia. 1. Ciência — Filosofia I. Colóquio Internacional sobre Filosofia da Ciência, Londres, 1965. II. Lakatos, Imre. III. Musgrave, Alan.

Organizado por

I MRE LAKATOS Ex-professor de Lógica da Universidade de Londres e

ALAN MUSGRAVE Professor de Filosofia da Universidade de Otago

CDD -501

79-0113 Indices para catálogo sistemático: 1. Ciência — Filosofia 501 2. Filosofia da ciência 501

EDITORA CULTRIX São Paulo EDITORA DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

Black [1962): Models and Metaphors, 1962. Brodbeck [1962): "Explanation, Prediction and `Imperfect Knowledge' ", no livro organizado por Feigl e Maxwell: Minnesota Studies in the Philosophy of Science, 3, pp. 231-72. Campbell [1920): Foundations of Science, 1920. Feyerabend [1962): "Explanation, Reduction and Empiricism", no livro organizado por Feigl e Maxwell: Minnesota Studies in the Philosophy of Science, 3, pp. 28-97. Good [1965] : Speculations Concerning the First Ultra-Intelligent Machine, 1965. Gregory [1966] : Eye and Brain, 1966. Hesse [1963): Models and Analogies in Science, 1963. Hesse [1964] : "The Explanatory Function of Metaphor", estampado no livro organizado por Bar-Hillel: Logic, Methodology and Philosophy of Science, 1966, pp. 249-59. Jevons [18731: The Principles of Science, 1873. Kuhn [1962): The Structure of Scientific Revolutions, 1962. Lakatos [1963-64]: "Proofs and Refutations", nas pp. 1-25, 120-39, 221-43 e 296-342 da publicação The British Journal for the Philosophy of

Science, 14.

Needham [1961a]: "The Theory of Clumps, 11", trabalho estampado na publicação Cambridge Language Research Unit Working Papers, 139. Needham [1961b]: "Research on Information Retrieval, Classification and Clumping, 1957-61", tese de doutoramento em filosofia, apresentada na

Universidade de Cambridge em 1961.

Needham [1963): "A Method for Using Computers in Information Classification", trabalho publicado no Information Process 62: Proceedings of the International Federation for Information Processing Congress, Amsterdã, 1962. Needham e Spãrck Jones [1964): "Keywords and Clumps", Journal of Documentation, 20, n.° 1. Needham [1965): "Applications of the Theory of Clumps", Mechanical Translation, 8, pp. 113-27. Parker-Rhodes e Needham [1960) : "The Theory of Clumps", Cambridge Lan-

guage Research Unit Working Papers, 126.

Parker-Rhodes [1961): "Contributions to the Theory of Clumps", Cambridge

Language Research Unit Working Papers, 138. Popper [1963]: Conjectures and Refutations, 1963.

Putnam [1962): "The Analytic and the Synthatic", ensaio incluído na obra organizada por Feigl e Maxwell: Minnesota Studies in the Philosophy of Science, 3, pp. 358-97. Sneath e Sokal [1963): Principles of Numerical Taxonomy, 1963. Tanimoto [1958): "An Elementary Mathematical Theory of Classification and Prediction". I.B.M. Research, 1958.

O FALSEAMENTO E A METODOLOGIA DOS PROGRAMAS DE PESQUISA CIENTÍFICA '

IMRE LAKATOS London School of Economics 1 . Ciência: razão ou religião? 2. Falibilismo versus falseacionismo. (a) Falseacionismo dogmático (ou naturalista). A base empírica. (b) Falseacionismo metodológico. A `base empírica'. (c) Falseacionismo sofisticado versus falseacionismo ingênuo. Mudanças progressivas e degenerativas de problemas. 3. Uma metodologia dos programas de pesquisa científica. (a) Heurística negativa; o "núcleo" do programa. (b) Heurística positiva; a construção do "cinto de proteção" e a relativa autonomia da ciência teórica. (c) Duas ilustrações: Prout e Bohr. (cl) Prout: um programa de pesquisa que progride num oceano de anomalias. 1. Este ensaio é uma versão consideravelmente melhorada de meu tralho "Criticism and the Methodology of Scientific Research Programmes", de 1968, e uma tosca versão de meu trabalho de 1973. Algumas partes do primeiro foram aqui reproduzidas sem alteração com licença do organizador das Proceedings of the Aristotelian Society. Na preparação da nova versão recebi muita ajuda de Tad Beckman, Colin Howson, Clive Kilmister, Larry Laudan, Eliot Leader, Alan Musgrave, Michael Sukale, John Watkins e John Worrall.

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(c2) Bohr: um programa de pesquisa que progride sobre fundamentos inconsistentes. (d) Um novo olhar dirigido a experiências cruciais: o fim da racionalidade instantânea. (dl) A experiência Michelson-Morley. (d2) As experiências Lummer-Pringsheim. (d3) Desintegração-beta versus leis da conservação. (d4) Conclusão. O requisito do desenvolvimento contínuo. 0 Programa de pesquisa popperiano versus o programa de pes4. quisa kuhniano. Apêndice: Popper, falseacionismo e a "tese Duhem-Quine". 1 . CIÊNCIA: RAZÃO OU RELIGIÃO? Durante séculos o conhecimento significou conhecimento provado — provado pela força do intelecto ou pela prova dos sentidos. A sabedoria e a integridade intelectual exigiam que o homem abrisse mão das afirmativas não-provadas e minimizasse, até em pensamento, o hiato existente entre a especulação e o conhecimento estabelecido. A força demonstrativa do intelecto ou dos sentidos foi posta em dúvida pelos céticos há mais de dois mil anos; mas eles foram intimidados e confundidos pela glória da física newtoniana. Os resultados de Einstein tornaram a virar a mesa e, agora, pouquíssimos filósofos ou cientistas ainda pensam que o conhecimento científico é, ou pode ser, o conhecimento demonstrado. Poucos compreendem, porém, que, com isso, toda a estrutura clássica dos valores intelectuais desmorona e precisa ser substituída: não se pode simplesmente jogar por terra o ideal da verdade demonstrada — como fazem alguns empirist'as lógicos — reduzindo-o ao ideal da "verdade provável" 2 nem — como fazem alguns sociólogos do conhecimento — à "verdade pelo consenso [mutável] ". 3 2. 0 principal protagonista contemporâneo do ideal da "verdade provável" é Rudolf Carnap. Sobre os antecedentes históricos e uma crítica dessa posição, cf. "Changes in the Problem of the Inductive Logic", de Lakatos, de 1968. 3. Os principais protagonistas contemporâneos do ideal da "verdade por consenso" são Polanyi e Kuhn. Sobre os antecedentes históricos e uma crítica dessa posição, cf. Impersonal Knowledge, de Musgrave, 1969, e a crítica feita por Musgrave do trabalho de Ziman: "Public Knowledge: An Essay Concerning the Social Dimensions of Science", 1969.

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O mérito de Popper baseia-se principalmente no fato de haver ele compreendido todas as implicações do colapso da teoria científica mais bern corroborada de todos os tempos: a mecânica newtoniana e a teoria newtoniana da gravitação. Na sua opinião, a virtude não está na cautela em evitar erros, mas na implacabilidade com que se eliminam esses erros. Audácia nas conjeturas de um lado e austeridade nas refutações de outro: essa é a receita de Popper. A honestidade intelectual não consiste em tentar alguém entrincheirar-se ou firmar sua posição demonstrando-a (ou probabilizando-a) — a honestidade intelectual consiste antes em especificar precisamente as condições em que uma pessoa está disposta a renunciar à sua posição. Marxistas e freudianos comprometidos recusam-se a especificar tais condições: essa é a marca distintiva da sua desonestidade intelectual. A crença pode ser uma fraqueza biológica lamentavelmente inevitável que deve ser mantida sob o controle da crítica: mas o compromisso, para Popper, é um crime sem limites. Kuhn já pensa de maneira diferente. Ele também rejeita a idéia de que a ciência cresce pela acumulação de verdades eternas. 4 Também se inspira na derrubada da física newtoniana levada a cabo por Einstein. O seu principal problema também é a revolução científica. Mas ao passo que, de acordo com Popper, a ciência é "revolução permanente" e a crítica é o cerne do empreendimento científico, de acordo com Kuhn a revolução é excepcional e, na verdade, extracientífica, e a crítica, em épocas "normais", é maldição. Ao parecer de Kuhn, com efeito, a transição da crítica para o compromisso assinala o ponto em que o progresso — e a ciência "normal" — principia. Para ele, a idéia de que na "refutação" se pode exigir a rejeição (a eliminação de uma teoria) é falseacionismo "ingênuo". A crítica da teoria dominante e propostas de novas teorias só são permitidas nos raros momentos de "crise". Esta última tese kuhniana tem sido amplamente criticada 5 4. Ele apresenta, com efeito, seu livro The Structure of Scientific Revolutions, de 1962, argumentando contra a idéia do "desenvolvimento por acumu-

lação" do crescimento científico. Intelectualmente, porém, ele deve mais a Koyré do que a Popper. Koyré mostrou que o positivismo proporciona má orientação ao historiador da ciência, pois a história da física só pode ser compreendida no contexto de uma sucessão de programas "metafísicos" de pesquisa. Assim sendo, as mudanças científicas estão ligadas a vastas revoluções metafísicas cataclísmicas. Kuhn desenvolve essa mensagem de Burtt e Koyré e o enorme êxito do seu livro deveu-se, em parte, à sua crítica objetiva e direta da historiografia justificacionista — que criou sensação entre os cientistas e historiadores comuns da ciência, ainda não alcançados pela mensagem de Burtt, Koyré (nem pela de Popper). Infelizmente, porém, sua mensagem tinha i mplicações autoritárias e irracionalistas.

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e não a discutirei. O que me interessa é que Kuhn, tendo reconhecido o fracasso do justificacionismo e do falseacionismo no proporcionar explicações racionais do desenvolvimento científico, parece agora recair no irracionalismo. Para Popper a mudança científica é racional ou, pelo menos, pode ser racionalmente reconstruída e cai no domínio da lógica da descoberta. Para Kuhn a mudança científica — de um "paradigma" a outro — é uma conversão mística, que não é, nem pode ser, governada por regras da razão e cai totalmente no reino da psicologia (social) da descoberta. A mudança científica é uma espécie de mudança religiosa. O choque entre Popper e Kuhn não se verifica em torno de um mero ponto técnico de epistemologia. Refere-se aos nossos valores intelectuais centrais, e tem implicações não só para a física teórica mas também para as ciências sociais subdesenvolvidas e até para a filosofia moral e política. Se nem mesmo na ciência há outro modo de julgar uma teo ri a senão calculando o número, a fé e a energia vocal dos seus apoiadores, isso terá de ocorrer principalmente nas ciências sociais: a verdade está no poder. Assim a posição de Kuhn reivindica, sem dúvida, não-intencionalmente, o credo político básico dos maníacos religiosos contemporâneos ("estudantes-revolucionários") . Neste ensaio mostrarei primeiro que na lógica da descoberta científica de Popper se fundem duas posições diferentes. Kuhn só compreende uma delas, o "falseacionismo ingênuo" (prefiro a expressão "falseacionismo metodológico ingênuo") ; entendo que a crítica que ele faz dele é correta, e até a reforçarei. Kuhn, no entanto, não compreende uma posição mais sofisticada cuja racionalidade não se baseie no falseacionismo "ingênuo". Tentarei explicar — e reforçar ainda mais — a posição mais forte de Popper que, creio eu, escapa às críticas de Kuhn e apresenta as revoluções científicas não como se constituíssem conversões religiosas, mas como progresso racional.

2. FALIBILISMO VERSUS FALSEACIONISMO. Para ver com maior clareza as teses conflitantes, precisamos reconstruir a situação do problema tal como se apresentava na filosofia da ciência após o colapso do "justificacionismo". 5. Cf., por exemplo, as contribuições de Watkins e Feyerabend para este volume.

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De acordo com os "justificacionistas", o conhecimento científico consistia em proposições demonstradas. Tendo reconhecido que as deduções estritamente lógicas nos permitem apenas infe ri r (transmitir a verdade) mas não demonstrar (estabelecer a verdade), eles discordavam em relação à natureza dessas proposições (axiomas) cuja verdade pode ser provada por meios extralógicos. Os intelectualistas clássicos (ou "racionalistas" no sentido estrito do termo) admitiam espécies muito variadas — e poderosas — de "demonstrações" extralógicas pela revelação, intuição intelectual, experiência. Com a ajuda da lógica, estas lhes permitiam provar toda a sorte de proposições científicas. Os empiristas clássicos só aceitaram como axiomas um conjunto relativamente pequeno de "proposições fatuais" que expressavam os "fatos concretos". O seu valor de verdade foi estabelecido pela experiência e elas constituíram a base empírica da ciência. Para poder provar teorias científicas partindo apenas da rigorosa base empírica, eles precisavam de uma lógica muito mais poderosa do que a lógica dedutiva dos intelectualistas clássicos: a "lógica indutiva". Todos os justificacionistas, intelectualistas ou empiristas, concordavam em que uma afirmação singular que expressa um "fato concreto" pode provar a falsidade de uma teoria universal; 6 mas poucos dentre eles julgaram que uma conjunção finita de proposições fatuais fosse suficiente para provar "indutivamente" uma teoria universal.? O justificacionismo, isto é, a identificação do conhecimento com o conhecimento provado, foi a tradição dominante do pensamento racional no correr dos séculos. O ceticismo não negou o justificacionismo: apenas asseverava que não havia (nem poderia haver) conhecimento provado e portanto qualquer espécie de conhecimento. Para 6. Os justificacionistas acentuaram repetidamente essa assimetria entre os enunciados fatuais singulares e as teorias universais. Cf. por exemplo a discussão sobre Pascal no ensaio de Popkin, "Scepticism, Theology and the Scientific Revolution in the Seventeenth Century", de 1968, p. 14, e o enunciado de Kant no mesmo sentido citado no novo moto da terceira edição alemã da Logik der Forschung de Popper, de 1969. (A escolha feita por Popper dessa pedra angular tradicional da lógica elementar como moto da nova edição da sua obra clássica demonstra sua preocupação principal: combater o probabilismo, em que a assimetria se mostra irrelevante; pois as teorias probabilistas podem tornar-se quase tão bem estabelecidas quanto as proposições fatuais.) 7. Com efeito, até alguns desses poucos, seguindo Mill, passaram do problema obviamente insolúvel da prova indutiva (de proposições universais a partir de proposições particulares) ao problema pouco menos obviamente insolúvel de provar proposições fatuais particulares a partir de outras proposições fatuais particulares.

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os céticos o "conhecimento" nada mais era do que a crença animal. Dessa maneira, o ceticismo justificacionista ridicularizou o pensamento objetivo e abriu as portas para o irracionalismo, o misticismo, a superstição. Essa situação explica o esforço enorme feito pelos racionalistas clássicos na tentativa de salvar os princípios sintéticos a priori do intelectualismo e pelos empiristas clássicos na tentativa de salvar a certeza de uma base empírica e a validade da inferência indutiva. Para todos eles a honestidade científica exigia que não se afirmasse nada que não estivesse provado. Ambos, contudo, foram derrotados: os kantianos pela geometria não-euclidiana e pela física não-newtoniana, e os empiristas pela impossibilidade lógica de estabelecer uma base empírica (como os kantianos assinalaram, fatos não provam proposições) e de estabelecer uma lógica indutiva (nenhuma lógica pode aumentar o conteúdo infalivelmente). Verificou-se que todas as teorias são igualmente indemonstráveis.

teorias têm uma probabilidade zero, seja qual for a evidência; todas as teorias não são apenas igualmente indemonstráveis mas também igualmente improváveis. 9

Os filósofos demoraram em reconhecê-lo, por motivos óbvios: os justificacionistas clássicos temiam que, se admitissem a indemonstrabilidade da ciência teórica, teriam também de concluir que ela é sofisma e ilusão, uma fraude desonesta. A importância filosófica do probabilismo (ou "neojustificacionismo") está na negação da necessidade de uma conclusão dessa natureza.

Discutirei primeiro uma das classes mais importantes de falseacionismo: o falseacionismo dogmático (ou "nauralísta"). 11 O falseacionismo dogmático admite a fabilidade de todas as teo ri as científicas sem qualificação, mas retém uma espécie de base empírica infalível. estritamente empirista sem ser indutivista: nega que a certeza da base empírica pode ser transmitida a teorias. Desse modo, o falseacionismo dogmático é a classe mais fraca de justifi'cacionismo.

O probabilismo foi elaborado por um grupo de filósofos de Cambridge em cujo entender, embora as teorias científicas sejam igualmente improváveis, elas têm diferentes graus de probabilidade (no sentido do cálculo das probabilidades) relativos à evidência empírica disponível.$ A honestidade científica, portanto, requer menos do que se havia suposto: ela consiste em proclamar apenas teorias altamente prováveis; ou até em especificar apenas, para cada teoria científica, a evidência e a probabilidade da teoria à luz dessa evidência. Está claro que a substituição da prova pela probabilidade foi um recuo importante do pensamento justificacionista. Mas até esse recuo se revelou insuficiente. Logo se evidenciou, graças sobretudo aos persistentes esforços de Popper, que em condições muito gerais todas as 8. Os fundadores do probabilismo eram intelectualistas; os últimos esforços de Carnap para construir uma classe empirista de probabilismo malogrou. Cf. meu ensaio "Changes in the Problem of Inductive Logic", de 1968. p. 367 e também p. 361, nota de rodapé n.° 2. 114

Muitos filósofos argumentam que a incapacidade de obter pelo menos uma solução probabilística do problema da indução significa que nós "jogamos fora quase tudo que a ciência e o bom senso consideram conhecimento." 10 É nesse contexto que precisamos apreciar a mudança dramática acarretada pelo falseacionismo na avaliação das teorias e, em geral, nos padrões de honestidade intelectual. Em certo sentido, o falseacionismo foi um novo e considerável recuo do pensamento racional. Mas, sendo um recuo de padrões utópicos, esclareceu muita hipocrisia e muito pensamento confuso, de modo que, na realidade, acabou representando um avanço. (a) . Falseacionismo dogmático (ou naturalista). A base empírica.

E extremamente importante sublinhar que a admissão de uma contra-evidência empírica [fortificada] como árbitro final contra uma teoria não faz de ninguém um falseacionista dogmático. Qualquer kantiano ou indutivista concordará com essa arbitração. Mas tanto o kantiano quanto o indutivista, embora se curvem diante de uma experiência crucial negativa, também especificarão condições sobre como estabelecer e fo rt ificar, mais do que outra, uma teoria não refutada. Os kantianos sustentavam que a geometria euclidiana e a mecânica newtoniana foram estabelecidas com certeza; os indutivistas sustentavam que elas tinham probabilidade 1. Para o falseacionista dogmáti9. Sobre uma discussão pormenorizada, cf. meu ensaio "Changes in the Problem of Inductive Logic", de 1968, especialmente à p. 353 e seguintes. 10. "Reply to Critics", de Russell, de 1943, it p. 683. Sobre uma discussão do justificacionismo de Russell, cf. meu ensaio de 1962, "Infinite Regress and the Foundations of Mathematics", sobretudo à p. 167 e seguintes. 11. Sobre uma explicação desse termo, cf. mais adiante, à p. 116, nota de pé de página n.° 12.

co, porém, a contra-evidência empírica é o único árbitro capaz de julgar uma teoria. A marca distintiva do falseacionismo dogmático é, pois, o reconhecimento de que todas as teorias são igualmente conjeturais. A ciência não pode provar teoria alguma. Mas se bem não possa provar, pode refutar: ela "pode executar com certeza lógica completa [o ato dej repúdio do que é falso", 12 isto é, há uma base empírica de fatos absolutamente firme que se pode usar para refutar teorias. Os falseacionistas fornecem novos padrões — muito modestos — de honestidade científica: dispõem-se a considerar uma proposição como "científica" não só se for uma proposição fatual provada, mas também se não passar de uma proposição falseável, isto é, se houver técnicas experimentais e matemáticas disponíveis na ocasião que designem certas afirmações como falseadores potenciais.' 3 A honestidade científica, portanto, consiste em especificar, de antemão, uma experiência de tal natureza que, se o resultado contradisser a teoria, a teoria terá de ser abandonada. 14 Q falseacionista exige que, uma vez refutada a proposição, não haja evasão da verdade: a proposição tem de ser rejeitada incondicionalmente. O falseacionista dogmático executa sumariamente as proposições (não-tautológicas) : que não podem ser falseadas : classifica-as de "metafísicas" e negalhes uma posição científica. Os falseacionistas dogmáticos traçam uma demarcação nítida entre o teórico e o expe rimentador: o teórico propõe, o experimentador — em nome da Natureza — dispõe. Como diz Weyl: "Desejo registrar minha admiração sem limites pela obra do expe rimentador em sua luta para arrancar fatos interpretáveis de uma Natureza obstinada, que tão bem sabe enfrentar nossas teorias com um Não decisivo — ou com um Sim inaudível." 15 Braithwaite apresenta uma exposição particularmente lúcida do falseacionismo dogmático. Ventila o proble12. The Art of the Soluble, de Medawar, 1967, p. 144. Veja também mais adiante, à p. 224, nota de pé de página n.° 341. 13. Essa discussão já indica a importância vital sobre o lslacionista dogmático de uma demarcação entre proposições fatuais que se podem provar e proposições teóricas que não se podem provar. 14. "Os critérios de refutação têm de ser estabelecidos com antecedência: é preciso que haja concordância sobre as situações observávikis que, sendo realmente observadas, significam que a teoria é refutada" (Popper, tonjectures and Refutations, p.. 38, nota de rodapé n.° 3). 15. Citado na Logik der Forschung, de Popper, 1934, seção 85, com o comentário de Popper: "Concordo plenamente".

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ma da objetividade da ciência: "Até que ponto, portanto, deve um sistema científico dedutivo estabelecido ser considerado uma livre criação da mente humana, e até que ponto deve ele ser considerado fornecedor de um relato objetivo dos fatos da natureza?" Sua resposta é a seguinte: "A forma do enunciado de uma hipótese científica e seu emprego para expressar uma proposição geral é um expediente humano; o que se deve à Natureza são os fatos observáveis, que refutam ou não a hipótese científica ... [Na ciência] deixamos à Natureza a tarefa de decidir se algumas das conclusões contingentes de nível mais baixo são falsas. Esse teste objetivo de falsidade é o que faz o sistema dedutivo, em cuja const rução temos grande liberdade, um sistema dedutivo de hipóteses científicas. O homem propõe um sistema de hipóteses: a Natureza dispõe da sua verdade ou falsidade. O homem inventa um sistema científico e depois descobre se o sistema se harmoniza ou não com o fato obse rvado." 16 De acordo com a lógica do falseacionismo dogmático, a ciência cresce mediante o repetido derrubamento de teorias com a ajuda de fatos concretos. Por exemplo, de acordo com essa concepção, a teo ri a gravitatória dos vértices de Descartes foi refutada — e eliminada — pelo fato de se moverem os planetas em elipses e não em círculos cartesianos; a teoria de Newton, contudo, explicava com êxito os fatos então disponíveis, tanto os que tinham sido explicados pela teoria de Descart es quanto os que a haviam refutado. Por isso a teoria de Newton substituiu a teoria de Descartes. De maneira semelhante, segundo os falseacionistas, a teoria de Newton, por sua vez, foi refutada — provando-se que era falsa — pela anomalia do periélio de Mercúrio, que Einstein, por sua vez, explicou. Desse modo, a ciência avança através de especulações ousadas, que nunca são demonstradas nem mesmo probalizadas mas algumas das quais, mais tarde, são eliminadas por refutações concretas e conclusivas e logo substituídas por novas especulações ainda mais ousadas, e, pelo menos no início, não-refutadas.

16. Braithwaite, Scientific Explanation, 1953, pp. 367-8. Sobre a "incorrigibilidade" dos fatos observados de Braithwaite, cf. o seu ensaio, "The Relevance of Psychology to Logic", 1938. Embora no trecho citado Braithwaite dê uma resposta vigorosa ao problema da objetividade científica, em outro passo ele assinala que "excetuand o- se as generalizações diretas de fatos observáveis... a refutação completa já é tão impossível quanto a prova completa" (Scientific Explanation, p. 19). Veja também mais adiante, à p. 138, nota de rodapé n.° 86.

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O falseacionismo dogmático, no entanto, é insustentável. Repousa sobre duas suposições falsas e sobre um critério demasiado ri goroso de demarcação entre o científico e o não-científico. psicológica, A primeira suposição é que há uma fronteira natural, entre as proposições teóricas ou especulativas de um lado e as proposições fatuais ou observacionais (ou básicas) de outro. (Isto, naturalmente, faz parte do "enfoque naturalista" do método científico. 17 A segunda suposição é que se uma proposição satisfaz ao critério psicológico de ser fatual ou observacional (ou básica), ela é verdadeira; é possível afirmar que foi demonstrada a partir dos fatos. (Cha18 marei a esta a doutrina da prova observacional (ou experimental). Essas duas suposições asseguram às contundentes refutações dos falseacionistas dogmáticos uma base empírica a partir da qual a falsidade provada pode ser transferida, pela lógica dedutiva, à teoria que está sendo testada. Tais suposições são completadas por um critério de demarcação: só são "científicas" as teorias que impedem ce rt os estados de coisas observáveis e, portanto, são fatualmente refutáveis. Ou, uma teoria será "científica" se tiver uma base empírica. 19 Mas as duas suposições são falsas. A psicologia depõe contra a primeira, a lógica contra a segunda e, finalmente, o julgamento metodológico depõe contra o critério de demarcação. Discutirei cada um deles de per si. (1) Um primeiro olhar endereçado a uns poucos exemplos característicos solapa a primeira suposição. Galileu afirmava-se capaz de "observar" montanhas na lua e manchas no sol, e que tais "observações" refutavam a teoria tradicional de que os corpos celestes são 17. Cf. Logik der Forschung, 1934, de Popper, seção 10. 18. Sobre essas suposições e sua crítica, cf. Popper, Logik der Forschung, 1934, seções 4 e 10. Ë por causa dessa suposição que — seguindo Popper — chamo a esta classe de falseacionismo naturalista. As "proposições básicas" de Popper não se devem confundir com as proposições básicas discutidas nesta seção; cf. mais adiante, à p. 129, nota de pé de página n.° 47. Importa assinalar que essas duas suposições são também partilhadas por muitos justificacionistas que não são falseacionistas: eles podem acrescentar às provas experimentais "provas intuitivas" — como fez Kant — ou "provas indutivas" — como fez Mill. O nosso falseacionista só aceita provas experimentais. 19. A base empírica de uma teoria é o conjunto dos seus falseadores potenciais: o conjunto das proposições observacionais que podem refutá-la.

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bolas impecáveis de cristal. Mas suas "observações" não eram "observacionais" no sentido de serem obse rv adas unicamente pelos sentidos, a credibilidade delas dependia da credibilidade do telescópio do observador — e da teo ri a ótica do telescópio — violentamente contestada pelos contemporâneos. Não forám as observações — puras, não-teóricas — de Galileu que se defrontaram com a teoria aristotélica, senão as "observações" de Galileu à luz da sua teoria ótica que se defrontaram com as "obsrevações dos aristotélicos à luz da teoria aristotélica dos céus?° Isso nos deixa com duas teo ri as discrepantes, prima facie em igualdade de condições. Alguns empiristas podem conceder esse ponto e concordar em que as "obse rv ações" de Galileu não eram obse rv ações genuínas; mas ainda sustentam que há uma "demarcação natural" entre as afirmações impressas diretamente pelos sentidos numa mente vazia e passiva — só estas constituem "conhecimento imediato" autêntico — e as afirmações sugeridas por sensações impuras, impregnadas de teorias. Com efeito, todas as classes de teorias justificacionistas do conhecimento que reconhecem os sentidos por origem (sejam eles uma origem, ou sejam a origem) do conhecimento estão sujeitas a conter uma psicologia da observação. Tais psicologias especificam o estado "correto", "normal", "saudável", "sem preconceitos", "cuidadoso" ou "científico" dos sentidos — ou melhor, o estado da mente como um todo — em que eles obse rv am a verdade tal como ela é. Por exemplo, Aristóteles — e os estóicos — pensavam que a mente correta era a mente sadia do ponto de vista médico. Os pensadores modernos reconheceram que, para a mente ser correta, não lhe basta ter "saúde". A mente correta de Desca rt es é temperada no fogo da dúvida cética, que não deixa nada a não ser a solidão final do cogito em que o ego pode ser restabelecido e, uma vez encontrada a mão orientadora de Deus, reconhecer a verdade. Todas as escolas do moderno justificacionismo podem ser caracterizadas pela psicoterapia particular com a qual se propõem preparar a mente para receber a graça da verdade provada no curso de uma comunhão mística. Para os empiristas clássicos, em particular, a mente correta é uma tabula rasa, esvaziada de todo conteúdo original, libertada de todos os preconceitos da teo ri a. Transpire, porém, da obra de Kant e Popper — e da obra dos psicólogos influenciados por eles — que essa psicoterapia empirista nunca pode ter êxito. Pois não há, nem pode haver, sensações não-impregnada de expectativas e, po rt anto, não há de20. A propósito, Galileu também mostrou — com a ajuda da sua ótica — que, se fosse uma bola de cristal sem jaça, a lua seria invisível. Galileu, Dialogo dei Massimi Sistemi, 1632.

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marcação natural (isto é, psicológica) entre as proposições observa21 cionais e as teóricas.

a `base empírica" fo rte, provada, não existe: todas as proposições da ciência são teóricas e incuravelmente falíveis 2 6

(2) Mas mesmo que houvesse uma demarcação natural dessa espécie, a lógica ainda assim destruiria a segunda suposição do falseacionismo dogmático. Pois o valor-de-verdade das proposições "observacionais" não pode ser indubitavelmente decidido: nenhuma proposição fatual pode ser provada a partir de uma experiência. As proposições só se podem derivar de outras proposições, não se podem derivar de fatos: não se pode provar afirmações com experiências — "como não se podem provar dando murros na mesa." 22 Este é um dos pontos básicos da lógica elementar, mas ainda hoje compreendido relativamente por pouca gente? 3

(3) Finalmente, mesmo que houvesse uma demarcação natural entre os enunciados da observação e as teorias, e mesmo que o valor-de-verdade dos enunciados da observação pudesse ver estabelecido de modo indubitável, o falseacionismo dogmático ainda assim seria inútil para eliminar a classe mais importante das comumente consideradas teorias científicas. Pois mesmo que as experiências pudessem provar relatórios experimentais, o seu poder de refutação ainda assim seria miseravelmente restrito: são exatamente as teorias científicas mais admiradas que simplesmente falham em proibir qualquer estado observável de coisas.

Se não se podem provar, as proposições fatuais são falíveis. Se são falíveis, os choques entre teorias e proposições f atuais não são "falseamentos" mas apenas discrepâncias. Nossa imaginação pode desempenhar um papel maior na formulação de "teorias" do que na formulação de "proposições fatuais", 24 mas ambas são falíveis. Assim sendo, não podemos provar teorias e tampouco podemos ref utá-las. 5i2 A demarcação entre as "teorias" francas, não-provadas, e

Em apoio da última alegação, contarei primeiro uma história característica e, a seguir, proporei um argumento geral.

21. É verdade que a maioria dos psicólogos que se voltaram contra a idéia do sensacionalismo justificacionista o fizeram sob influência de filósofos pragmatistas, como William James, que negava a possibilidade de qualquer espécie de conhecimento objetivo. Mas, mesmo assim, a influência de Kant através de Oswald Külpe, Franz Brentano e a influência de Popper através de Egon Brunswick e Donald Campbell influíram na formação da psicologia moderna; e se a psicologia vier um dia a sobrepujar o psicologismo, isso se deverá à maior compreensão da linha principal de filosofia objetivista de Kant e Popper. 22. Cf. Popper, Logik der Forschung, 1934, seção 29. 23. Parece que o primeiro filósofo a dar ênfase a isto foi Fries em 1837 (cf. Popper, Logik der Forschung, 1934, seção 29, nota de rodapé n.° 3). Trata-se, naturalmente, de um caso especial da tese geral de que as relações lógicas, como a probabilidade ou a consistência, se referem a proposições. Assim, por exemplo, a proposição "a natureza é consistente" é falsa (ou, se preferirem, carente de significado), pois a natureza não é uma proposição (nem uma conjunção de proposições). 24. A propósito, até isso é duvidoso. Cf. mais adiante, pp. 155 e seguintes. 25. Como diz Popper: "Nunca se poderá apresentar uma refutação conclusiva de uma teoria"; os que esperam uma refutação infalível antes de eliminar uma teoria terão de esperar para sempre e "nunca se beneficiarão da experiência" (Logik der Forschung, 1934, seção 9).

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A história é a respeito de um caso imaginário de mau comportamento planetário. Valendo-se da mecânica de Newton, da sua lei da gravitação, ( N), e das condições iniciais aceitas, I, um físico da era pré-einsteiniana calcula o caminho de um planetazinho recém-descoberto, p. Mas o planeta se desvia da trajetória calculada. O nosso físico newtoniano considera, acaso, que o desvio era proibido pela teoria de Newton e, portanto, uma vez estabelecido, refuta a teoria N? Não. Sugere que deve existir um planeta p', até então desconhecido, que perturba a trajetória de p. Calcula a massa, a órbita, etc., desse planeta hipotético e, em seguida, pede a um astrônomo experimental que teste sua hipótese. O planeta p' é tão pequeno que nem o maior dos telescópios disponíveis pode observá-lo: o astrônomo experimental solicita uma verba de pesquisa a fim de construir um telescópio ainda maior. 27 Em três anos o novo telescópio fica 26. Tanto Kant quanto o seu seguidor inglês, Whewell, compreenderam que todas as proposições científicas, quer a priori, quer a posteriori, são igualmente teóricas; mas ambos sustentavam que elas são igualmente demonstráveis. Os kantianos viam claramente que as proposições da ciência são teóricas no sentido de que não são escritas por sensações na tabula rasa de uma mente vazia, nem induzidas ou deduzidas de tais proposições. Uma proposição fatual é apenas um gênero especial de proposição teórica. Nisto Popper se colocou ao lado de Kant contra a versão empirista do dogmatismo. Popper, todavia, deu um passo à frente: em sua concepção, as proposições da ciên.:ía não são teóricas mas também falíveis, conjecturais para sempre. 27. Se o minúsculo planeta conjectural estivesse fora do alcance até dos maiores telescópios óticos possíveis, ele poderia experimentar um instrumento totalmente novo (como um radiotelescópio) que lhe .permitisse "observá lo", isto é, interrogar a Natureza a respeito dele, ainda que apenas de forma in-

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pronto. Se o planeta desconhecido p' fosse descoberto se ri a saudado como uma nova vitória da ciência newtoniana. Mas não o é. Porventura o nosso cientista abandona a teoria de Newton e sua idéia do planeta pe rt urbador? Não. Sugere que uma nuvem de poeira cósmica esconde o planeta de nós. Calcula a localização e as propriedades dessa nuvem e solicita uma verba de pesquisa para enviar um satélite ao espaço a fim de pôr à prova os seus cálculos. Se os instrumentos do satélite (possivelmente instrumentos novos, baseados numa teo ri a pouco testada ainda) registrassem a existência da nuvem hipotética, o resultado se ri a saudado como uma vitória extraordinária da ciência newtoniana. Mas a nuvem não é encontrada. Por acaso o nosso cientista abandona a teo ri a de Newton, juntamente com a idéia do planeta perturbador e a idéia da nuvem que o esconde? Não. Sugere a existência de um campo magnético naquela região do universo que perturbou os instrumentos do satélite. Um novo satélite é enviado ao espaço. Se o campo magnético fosse encontrado, os newtonianos comemorariam o encontro como uma vitória sensacional. Mas ninguém o encontra. Isso é considerado como uma refutação da ciência newtoniana? Não. Ou se propõe outra engenhosa hipótese auxiliar ou... toda a história é sepultada nos poentos volumes das publicações especializadas, e nunca mais se toca no assunto. 28 Essa história dá a entender vigorosamente que até a mais respeitada teoria científica, como a dinâmica e a teoria da gravitação de Newton, pode falhar em proibir qualquer estado observável de coisas 29 De fato, algumas teorias científicas só impedirão a ocorrência de um acontecimento em alguma região espaço-temporal finita especificada (ou, em poucas palavras, um "acontecimento singular") se nenhum outro fator (possivelmente escondido em algum canto espaço- temporal distante e não-especificado do universo) tiver alguma influência sobre ela. Mas, nesse caso, tais teorias nunca condireta. (A nova teoria "observacional" talvez não fosse adequadamente 'inteRigtvel, .e muito menos severamente testada, mas ele não se importaria com isso, como Galileu não se importou.) 28. Pelo menos enquanto um novo programa de pesquisa não suplantar o p ro grama de Newton, que explica este fenômeno, anteriormente recalcitrante. Nesse caso, o fenômeno será exumado e entronizado como "experiência c ru -cial";f. mais adiante, pp. 190 e seguintes. 29. Popper pergunta: "Que espécie de respostas clínicas refutaria, para satisfação do analista, não só um diagnóstico particular mas a própria psicanálise?" (Conjecturei and Refutations, p. 38, nota de rodapé n.° 3.) Mas que espécie de observação refutaria, para satisfação dos newtonianos, não só determinada versão mas também a própria teoria newtoniana?

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tradizem sozinhas uma afirmação "básica"; cotradizem, quando muito, a conjunção de um enunciado básico que descreve um acontecimento espaço-temporalmente singular e de um enunciado universal de não-existência que afirma que nenhuma outra causa pertinente se encontra em ação em algum lugar do universo. E o falseacionista dogmático não pode afirmar, de maneira alguma, que tais enunciados universais de não-existência pe rt encem à base empírita: que podem ser observados e provados pela experiência. Outra maneira de dizer a mesma coisa é declarar que algumas teorias científicas são normalmente interpretadas como se contivessem uma cláusula ceteris paribus 30 : em tais casos é sempre uma teoria específica, juntamente com essa cláusula, que se pode refutar. Mas tal refutação é irrelevante para a teoria específica que está sendo testada porque, substituindo a cláusula ceteris paribus por outra diferente, a teoria específica poderá sempre ser mantida, digam o que disserem os testes. Nessas condições, o processo de refutação "inexorável" do f alseacionismo dogmático deixa de funcionar em tais casos mesmo que haja uma base empírica firmemente estabelecida para servir de plataforma de lançamento para a seta do modus tollens: o alvo principal continua irremediavelmente esquivo. 31 E o fato é que são exatamente as teo ri as mais importantes, "maduras", da história da ciência que são prima facie irrefutáveis dessa maneira. 32 Ademais, pelos padrões do falseacionismo dogmático todas as teorias probabilísticas também figuram nessa categoria: pois nenhuma amostra finita poderá jamais refutar uma teoria probabilística universal; 33 as teorias probabilísticas, como as teo ri as com uma cláusula ceteris paribus, não têm base empírica. Mas então o falseacionista dogmático relega as teorias científicas mais impo rt antes, como ele próprio o reconhece, à metafísica, onde a discussão racional — que consiste, de acordo com os seus 30. [Acrescentada no prelo]: Essa cláusula "ceteris paribus" não precisa ser normalmente interpretada como premissa separada. Sobre uma discussão, veja mais adiante, à p. 231. 31. A propósito, podemos persuadir o falseacionista dogmático de que o seu critério de demarcação foi um erro sumamente ingênuo. Se ele o abandonar mas retiver suas duas suposições básicas, terá de eliminar da ciência as teorias e considerar o crescimento desta última como acumulação de enunciados básicos provados. Isso, com efeito, é a fase final do empirismo clássico depois de evaporar-se a esperança de que os fatos podem provar ou, pelo menos, refutar teorias. 32. Isso não é coincidência; cf. mais adiante, pp. 217 e seguintes. 33. Cf. Popper, Logik der Forschung, 1934, capítulo VIII.

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padrões, em provas e refutações — não tem lugar, visto que uma teoria metafísica não pode ser provada nem refutada. O critério de demarcação do falseacionismo dogmático, dessa maneira, é assim ainda vigorosamente antiteórico. ( Além disso, pode argumentar-se facilmente que as cláusulas ceteris paribus não são exceções, senão a regra na ciência. A ciência, afinal de contas, precisa ser separada de uma loja de curiosidades onde engraçadas singularidades locais — ou cósmicas — são coligidas e expostas. O enunciado "todos os britânicos morreram de câncer do pulmão entre 1950 e 1960" é logicamente possível, e podia até ter sido verdadeiro. Mas se foi apenas a ocorrência de um evento com mínimas probabilidades, teria apenas um valor de curiosidade para o excêntrico coletor de fatos, seria um macabro valor de entretenimento, mas nenhum valor científico. Só se pode dizer que uma proposição é científica quando ela visa a expressar uma conexão causal; essa conexão entre ser britânico e morrer de câncer do pulmão pode até nem ser tencionada. Semelhantemente, o enunciado "todos os cisnes são brancos", se fosse verdadeiro, seria uma simples curiosidade, a não ser que afirmasse que o fato de ser um cisne causa a brancura. Mas nesse caso num cisne preto não refutaria essa proposição, visto que poderia apenas indicar outras causas operando simultaneamente. Assim, "todos os cisnes são brancos" é uma singularidade e facilmente refutável ou uma proposição científica com uma cláusula ceteris paribus e, portanto irrefutável. A tenacidade de uma teoria contra a evidência empírica seria então um argumento mais a favor do que contra a sua qualificação como "científica". ica". A "irrefutabilidade" tornar-se-ia uma marca distintiva da ciência.) 34 Resumindo: os justificacionistas clássicos só admitiam teorias provadas; os justificacionistas neoclássicos, teorias prováveis: os f alseacionistas dogmáticos compreenderam que em nenhum desses casos eram admissíveis as teorias. Decidiram admitir teorias se fossem refutáveis — refutáveis por um número finito de observações. Mas mesmo que existam tais teorias refutáveis — as que podem ser contraditadas por um número finito de fatos observáveis — ainda estão logicamente demasiado próximas da base empírica. Por exemplo, nos termos do falseacionista dogmático, uma teoria como "Todos os planetas se movem em elipses" pode ser refutada por cinco observações; por conseguinte, o falseacionista dogmático a considerará científica. Uma teoria como "Todos os planetas se movem em círculos" 34. Sobre um caso muito mais forte, cf. mais adiante, seção 3.

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pode ser refutada por quatro obse rvações; por conseguinte, o falseacionista dogmático a considerará mais científica ainda. A culminância da cientificidade será uma teoria como "Todos os cisnes são brancos", que pode ser refutada por tema única observação. Por outro lado, ele rejeitará todas as teorias probabilísticas juntamente com as de Newton, Maxwell, Einstein, por não-científicas, uma vez que nenhum número finito de obse rvações poderá refutá-las. Se aceitarmos o critério de demarcação do falseacionismo dogmático, e também a idéia de que os fatos podem provar proposições "fatuais", teremos de declarar que as teorias mais impo rtantes, se não todas elas, propostas na história da ciência são metafísicas, que a maior parte do progresso aceito, se não todo ele, é pseudoprogresso, que quase todo, se não todo, o trabalho feito é irracional. Se, todavia, ainda aceitando o critério de demarcação do falseacionismo dogmático, negarmos que os fatos podem provar proposições, acabaremos por certo no mais completo ceticismo: nesse caso, toda ciência será, sem dúvida, metafísica irracional e deverá ser rejeitada. As teorias científicas não são apenas igualmente impossíveis de ser provadas, e igualmente improváveis, mas também são igualmente irref utáveis. Mas o reconhecimento de que não só as proposições teóricas mas todas as proposições em ciência são falíveis, significa o colapso total de todas as formas de justificacionismo dogmático como teorias da racionalidade científica. (b) Falseacionismo metodológico. A "base empírica".

O colapso do falseacionismo dogmático sob o peso dos argumentos falibilísticos nos traz de volta ao início. Se todas as afirmações científicas são teo rias falíveis, só podemos criticá-las por serem inconsistentes. Mas nesse caso, em que sentido, se houver algum, a ciência é empírica? Se as teo rias científicas não podem ser provadas, nem probabilizadas, nem refutadas, os céticos parecem ter finalmente razão: a ciência não passa de uma vã especulação e não existe progresso no conhecimento científico. Ainda podemos opor-nos ao ceticismo? Podemos salvar a crítica científica do falibilismo? É possível ter uma teoria falibilística do progresso cientifico? Em particular, se a crítica cientifica é falível, baseados em que poderemos algum dia eliminar uma teoria? Uma resposta sumamente intrigante nos é fornecida pelo falseacionismo metodológico. O falseacionismo metodológico é uma classe de convencionalismo; port anto, a fim de compreendê-lo, precisamos primeiro discutir o convencionalismo em geral. 125

Há uma demarcação importante entre as teorias "passivista" e "ativista" do conhecimento. Sustentam os "passivistas" que o verdadeiro conhecimento é a marca impressa pela Natureza numa mente perfeitamente inerte: a atividade mental só pode resultar em parcialidade e distorção. A escola passivista mais influente é o empirismo clássico. Os "ativistas" sustentam que não podemos ler o livro da Natureza sem atividade mental, sem interpretá-lo à luz das nossas expectativas ou teorias. 35 Agora os ativistas conservadores sustentam que nós nascemos, com nossas expectativas básicas; com elas transformamos o mundo no "nosso mundo" mas, depois, temos de viver para sempre na prisão do nosso mundo. A idéia de que vivemos e morremos na prisão de nossos "referenciais conceituais" foi desenvolvida primeiramente por Kant; os kantianos pessimistas pensavam que o mundo real é para sempre incognoscível por causa dessa prisão, ao passo que os kantianos otimistas pensavam que Deus criou nosso referencial conceitual para ajustá-lo ao mundo. 36 Mas os ativistas revolucionários acreditam que os referenciais conceituais podem ser desenvolvidos e também substituídos por novos e melhores referenciais; somos nós que criamos nossas "p risões" e também podemos, com espírito crítico, demoli-las. 37 Novos passos do ativismo conse rvador para o ativismo revolucionário foram dados por Whewell e depois por Poincaré, Milhaud e Le Roy. Whewell afirmava que as teorias são desenvolvidas por ensaio-e-erro — nos "prelúdios das épocas indutivas" — por uma longa consideração essencialmente a priori, que ele denominava "intuição progressiva". As "épocas indutivas" são seguidas por "seqüelas das épocas indutivas": desenvolvimentos cumulativos de teorias 35. Essa demarcação — e terminologia — deve-se a Popper; cf. especialmente sua Logik der Forschung, 1934, seção 19, e seu The Open Society and its Enemies, 1945, capítulo 23 e a nota de pé de página n.° 3 do capítulo 25. 36. Nenhuma versão do ativismo conservador explicou por que a teoria gravitacional de Newton deveria ser invulnerável; os kantianos restringiam-se à explicação da tenacidade da geometria euclidiana e da mecânica newtoniana. A respeito da gravitação e da ótica newtonianas (ou outros ramos da ciência), assumiam uma posição ambígua e, ocasionalmente, indutivista. 37. Não incluo Hegel entre os "ativistas revolucionários". Para Hegel e seus seguidores, a mudança verificada nas referências conceptuais é um processo predeterminado, inevitável, em que a criatividade individual ou a crítica racional não desempenham um papel essencial. Os que correm na frente estão tão errados quanto os que ficam atrás dessa "dialética". O homem inteligente não é o que cria uma "prisão" melhor, nem o que demole com espírito crítico a prisão velha, mas o que está sempre em harmonia com a história. E assim que a dialética explica a mudança sem crítica.

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auxiliares.38 Poincaré, Milhaud e Le Roy eram avessos à idéia de prova pela intuição progressiva e preferiam explicar o continuado êxito histórico da mecânica newtoniana por uma decisão metodológica tomada por cientistas: depois de um período considerável de êxito empírico inicial, os cientistas podem decidir não permitir que a teoria seja refutada. Uma vez tomada essa decisão, resolvem (ou dissolvem) as aparentes anomalias por meio de hipóteses auxiliares ou outros "estratagemas convencionalistas". 39 Esse convencionalismo conservador, no entanto, tem a desvantagem de nos incapacitar para sair das pri sões que nós mesmos nos impusemos, depois de se haver escoado o primeiro período de ensaio-e-erro e de haver sido tomada a grande decisão. Ele não pode resolver o problema da eliminação das teorias que triunfaram durante um longo período. De acordo com o convencionalismo conse rvador, as experiêncais podem ter força bastante para refutar teorias jovens, mas não têm força para refutar teorias velhas, estabelecidas: à proporção que a ciência cres4 ce, a força da evidência empírica diminui. o Os críticos de Poincaré recusaram-se a aceitar sua idéia de que, embora os cientistas construam seus referenciais conceituais, chega uma ocasião em que esses referenciais se transformam em p risões que não podem ser demolidas. Essa crítica deu origem a du as escolas rivais

38. Cf. Whewell, Histo ry of the Inductive Sciences, from the Eearliest to the Present Time, 1837; Philosophy of the Inductive Sciences, Founded upon the Histo ry, 1840; e Novum Organum Renovatum, 1858.

39. Cf. especialmente Poincaré, "Les géometries non euclidiennes", 1891; e La Science et l'Hypothèse, 1902; Milhaud, "La Science Rationelle", 1896; e Le Roy, "Science et Philosophie", 1889, e "Un Positivisme Nouveau", 1901. Foi um dos principais méritos filosóficos dos convencionalistas dirigir os refletores para o fato de que qualquer teoria pode ser salva das refutações por "estratagemas convencionalistas". (A expressão "estratagema convencionalista" é de Popper, que discute com espírito crítico o convencionalismo de Poincaré em sua Logik der Forschung, especialmente nas seções 19 e 20.) 40. Poincaré elaborou primeiro o seu convencionalismo somente em relação à geometria (cf. o seu ensaio "Les géometries non euclidiennes"). Depois Milhaud e Le Roy generalizaram a idéia de Poincaré para cobrir todos os ramos da teoria física aceita. La Science et l'Hypothèse de Poincaré começa com uma vigorosa crítica do bergsoniano Le Roy, contra o qual ele defende o caráter empírico (falseável ou "indutivo") de toda a física, com exceção da geometria e da mecânica. Duhem, por seu turno, criticou Poincaré, em cuja concepção havia uma possibilidade de derrubar até a mecânica newtoniana.

de convencionalismo revolucionário: o simplicismo de Duhem e o falseacionismo metodológico de Popper. 41 Duhem aceita a posição dos convencionalistas de que nenhuma teoria física desmorona jamais sob o peso de "refutações", mas afiança que ela ainda pode desmoronar sob o peso de "reparos contínuos e de inúmeros esteios emaranhados", quando as "colunas comidas pelos vermes" não podem suportar por mais tempo "o edifício vaci42 lante"; a teoria perde sua simplicidade original e precisa ser substituída. Mas o falseamento é entregue então ao gosto subjetivo ou, na melhor das hipóteses, à moda científica, e deixa-se muita margem à adesão dogmática a uma teoria favorita. 43 Popper dispôs-se a encontrar um critério que fosse, ao mesmo tempo, mais objetivo e mais agressivo. Ele não poderia aceitar a debilitação do empirismo, inerente até ao enfoque de Duhem, e propôs uma metodologia que faculta às experiências serem poderosas até na ciência "madura". O falseacionismo metodológico de Popper é convencionalista e falseacionista a um tempo, mas ele "difere dos convencionalistas [conservadores] por sustentar que os enunciados decididos por consenso não são [espaço-temporalmente] universais mas [espaço-temporalmente] singulares" 44 ; e difere do falseacionista dogmático por sustentar que o valor-de-verdade de tais afirmações , não pode ser provado por fatos mas, em alguns casos, pode ser deci45 dido por consenso. 41. Os loci classici são La Théorie Physique, Son Objet et Sa Structure, 1905, de Duhem, e a Logik der Forschung de Popper. Duhem não era um convencionalista revolucionário coerente. De maneira muito semelhante a Whewell, achava que as mudanças conceptuais são apenas preliminares da "classificação natural" final — ainda que talvez distante: "Quanto mais se aperfeiçoa uma teoria, tanto mais apreendemos que a ordem lógica em que ela arranja as leis experimentais é o reflexo de uma ordem ontológica." Em particular, recusou-se a ver a mecânica de Newton realmente desmoronando e caracterizou a teoria da relatividade de Einstein como a manifestação de uma "corrida frenética e febril no encalço de uma idéia nova", que "converteu a física num verdadeiro caos, onde a lógica se desgarra e o bom senso foge espavorido" (Prefácio — de 1914 — para a segunda edição de sua obra supracitada). 42. Duhem, La Théorie Physique, Son Objet et Sa Structure, 1905, capítulo VI, seção 10. 43. Sobre uma discussão adicional do convencionalismo, veja mais adiante, pp. 228-233. 44. Popper, Logik der Forschung, 1934, seção 30. 45. Nesta seção discuto a variante "ingênua" do falseacionismo metodo-

lógico de Popper. Desse modo, em todo o correr da seção, "falseacionismo metodológico" quer dizer "falseacionismo metodológico ingênuo"; sobre essa "ingenuidade", cf. mais adiante, pp. 140-141.

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O convencionalista conservador (ou "justificacionista metodológico", se se quiser) torna não-falseáveis por decreto algumas teorias (espaço-temporalmente) universais, que se distinguem por seu poder explanatório, sua simplicidade ou sua beleza. O nosso convencionalista revolucionário popperiano (ou "falseacionista metodológico") torna não-falseáveis por decreto alguns enunciados (espaço-temporalmente) singulares que se podem distinguir pelo fato de existir na ocasião uma "técnica pertinente" tal que "quem quer que a tenha aprendido" será capaz de decidir que o enunciado é "aceitável". 46 Um enunciado dessa ordem pode ser cognominado "observacional" ou "básico", mas apenas entre aspas. 47 Com efeito, a própria seleção de todos esses enunciados é uma questão de decisão, que não se baseia em considerações exclusivamente psicológicas. Essa decisão é então seguida de uma segunda espécie de decisão relativa à separação do conjunto de enunciados básicos aceitos do resto. Essas duas decisões correspondem às duas suposições do falseacionismo dogmático. Mas há diferenças importantes. Acima de tudo, o falseacionista metodológico não é um justificacionista, não tem ilusões a respeito de "provas experimentais" e tem plena consciência da falibilidade das suas decisões e dos riscos que está assumindo.

O falseacionista metodológico compreende que nas "técnicas experimentais" do cientista estão envolvidas teorias falíveis, 48 à "luz" das quais ele interpreta os fatos. Apesar disso, "aplica" essas teorias, encara-as no contexto dado, não como teorias que estão sendo testadas, mas como conhecimento não-problemático de fundo "que nós aceitamos (tentativamente) como não-problemático enquanto testamos a teoria". 49 Ele pode chamar a essas teorias — e as afirmações cujo valor-de-verdade decide à sua luz — "observacionais": mas isto é apenas um modo de falar que herdou do falseacionismo naturalista. 50 O falseacionista metodológico usa nossas teorias mais bem sucedidas como extensões dos nossos sentidos e amplia a extensão das 46. Popper; Logik der Forschung, 1934, seção 27. 47. Op. cit. seção 28. Sobre a não-basicidade desses enunciados metodologicamente "básicos ", cf. por exemplo Popper, Logik der Forschung, 1934, passim e Popper, The Logic of Scientific Discovery, 1959, p. 35, nota de rodapé n.° 2. 48. Cf. Popper, Logik der Forschung, 1934, fim da seção 26 e também seu ensaio "Remarks on the Problems of Demarcation and Rationality", pp. 291-2. 49. Cf. Popper, Conjectures and Refutations, 1963, p. 390. 50. Efetivamente, Popper, cauteloso, colocou "observacionais" entre aspas; cf. sua Logik der Forschung, seção 28.

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teorias que podem ser aplicadas no procedimento de teste muito além da gama de teori as estritamente observacionais do falseacionista dogmático. Imaginemos, por exemplo, que se descubra uma grande radioestrela com um sistema de radioestrelas satélites descrevendo órbitas ao seu redor. Gostaríamos de testar alguma teo ria gravitacional nesse sistema planetário — assunto de considerável interesse. Imaginemos agora que Jodrell Bank consiga proporcionar um conjunto de coordenadas espaço-temporais dos planetas que contradiga a teo ria. Tomaremos esses enunciados como falseadores potenciais. Está claro que tais enunciados básicos não são "observacionais" no sentido usual mas apenas "`observacionais". Eles descrevem planetas que nem o olho humano nem os instrumentos óticos podem alcançar. Chega-se ao seu valor-de-verdade por meio de uma "técnica expe ri rimental" baseia-se na "aplicação" de-mental".Esécixp uma teoria bem corroborada de radiótica. Chamar "observacionais" a essas afirmações outra coisa não é senão uni modo de dizer que, no contexto do seu problema, isto é, no procedimento de teste de nossa teoria gravitacional, o falseacionista metodológico usa a radiótica sem espírito crítico, como "conhecimento de fundo". A necessidade de decisões para demarcar a teoria que está sendo testada do conhecimento de fundo não-problemático é um traço característico dessa classe de falseacionismo metodológico. 51 (Esta situação, na verdade, não difere da "observação" de Galileu dós satélites de Júpiter: além disso, como assinalaram com razão alguns contemporâneos de Galileu, ele se apoiava numa teoria ótica vi rtualmente inexistente — então menos corroborada e até menos bem expressa do que a radiótica atual. Por outro lado, chamar "observacionais" aos relatos do nosso olho humano só indica que nos "apoiamos" em alguma vaga teori a fisiológica da visão humana. 52 ) Essa consideração mostra o elemento convencional em conceder — num dado contexto — um status (metodologicamente) "observacional" a uma teoria. 53 De maneira semelhante, há um considerável elemento convencional na decisão relativa ao valor-de-verdade real de um enunciado básico que fazemos depois de haver decidido que 51. Essa demarcação desempenha um papel não só no primeiro mas também no quarto tipo de decisões do falseacionista metodológico. (Sobre a quarta decisão, veja mais adiante, p. 134.) 52. Sobre uma discussão fascinante, veja Feyerabend, "Problems of Empiricism II", 1969. 53. Ficamos a imaginar se não seria melhor acabar com a terminologia do falseacionismo naturalista e rebatizar as teorias observacionais com o nome de "teorias de pedra de toque" ("touchstone theories").

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"teoria observacional" aplicar. Uma única obse rvação pode ser o resultado fortuito de algum erro t rivial; no intuito de reduzir tais ri scos, os falseacionistas metodológicos prescrevem algum controle de segurança. O mais simples desses controles consiste em repetir a experiência (o número de vezes é uma questão de convenção), fortificando assim o falseador potencial por meio de uma "hipótese falseadora bem corroborada". 5 ' O falseacionista metodológico também assinala que, na realidade, essas convenções são institucionalizadas e endossadas pela comunidade científica; a lista de falseadores55"aceitos" é fornecida pelo veredito dos cientistas experimentadores. E assim que o falseacionista metodológico estabelece sua "base empírica". (Ele usa aspas a fim de "dar uma ênfase irônica" à expressão. 56 ) Essa "base" dificilmente poderá ser chamada de "base" pelos padrões justificacionistas: não há nada provado no que diz respeito a ela — ela denota "estacas colocadas em um pântano'. 57 Com efeito, se essa "base empírica" colide com uma teoria, a teoria pode ser dita "falseada", mas não é falseada no sentido em que é refutada. O "falseamento" metodológico é muito diferente do falseamento dogmático. Se uma teoria for falseada provou-se que é falsa; se for "f alsificada", ainda poderá ser verdadeira. Se seguirmos essa espécie de "falseamento" pela "eliminação" real de uma teo ria, poderemos acabar eliminando uma teoria verdadeira e aceitando uma falsa (possibilidade totalmente repugnante ao justificacionista antiquado). Não obstante, é exatamente isso que o falseacionista metodológico nos recomenda que façamos. O falseacionista metodológico compreende que, se quisermos conciliar o falibilismo com a nacionalidade (não-justificacionista), precisamos encontrar um jeito de eliminar algumas teorias. Se não o conseguirmos, o crescimento da ciência não será mais do que um caos cada vez maior. Por conseguinte, o falseacionista metodológico sustenta que "[se quisermos] fazer funcionar o método de seleção por eliminação 54 Cf. Popper, Logik der Forschung, 1934, seção 22. passaram por alto a importante restrição de Popper segundo ciado básico não tem força para refutar coisa alguma sem hipótese falseadora bem corroborada. 55. Cf. Popper, Logik der Forschung, 1934, seção 30. 56. Popper, Conjectures and Refutations, 1963, p. 387. 57. Popper, Logik der Forschung, 1934, seção 30; cf. 29: "A Relatividade dos Enunciados Básicos".

Muitos filósofos a qual um enuno apoio de uma

também a seção 1 31

das teorias mais aptas, devemos e assegurar a sobrevivência apenas 58 tornar severa sua luta pela vida". Depois que uma teoria tiver sido falseada a despeito do risco envolvido, precisa ser eliminada: "[corn as teorias só trabalhamos] enquanto elas suportam os testes". 59 A eliminação deve ser metodologicamente conclusiva: "Em geral encaramos um falseamento intersubjetivamente testável como definitivo... Uma avaliação corroborativa feita em data ulterior... pode substituir um grau positivo de corroboração por um negativo, mas não vice-versa". 60 Essa é a explicação do falseacionista metodológico sobre como sair de um atoleiro: "É sempre a experiência que nos impede de seguir um caminho que não conduz a pa rt e alguma." fi1

O falseacionista metodológico separa a rejeição da refutação, que o falseacionista dogmático havia fundido. 62 É um falibilista, mas o falibilismo não lhe enfraquece a posição crítica; converte proposições falíveis numa "base" para uma política de linha dura. Com esse pretexto, propõe um novo critério de demarcação: somente são "científicas" as teorias — isto é, proposições não-"observacionais" — que proíbem ce rt os estados de coisas "observáveis" e, portanto, podem ser "falseadas" e rejeitadas; ou, em poucas, palavras, uma teoria é "científica" (ou "aceitável") se tiver uma "base empírica". Esse critério põe de manifesto, com nitidez, a diferença entre o falseacjonismo dogmático e o metodológico. 63 58. Popper, The Poverty of Historicism, 1957, p. 134. Em outros lugares, Popper enfatiza que esse método não "assegura" a sobrevivência do mais apto. A seleção natural pode desandar: é possível que os mais aptos pereçam e monstros sobrevivam. 59. Popper, "Induktionslogik und Hypothesenwahrscheinlichkeit", 1935. 60. Popper, Logik der Forschung, 1934, seção 82. 61. Popper, Logik der Forschung, 1934, seção 82. 62. Essa espécie de "falseamento" metodológico, à diferença do falseamento dogmático (refutação), é uma idéia pragmática, metodológica. Mas então que é o que devemos exatamente entender por ela? Responde Popper — que porei de lado — que o "falseamento" metodológico indica a "necessidade urgente de substituir uma hipótese falseada por uma hipótese melhor" (Popper, The Logic of Scientific Discovery, 1959, p. 87, nota de rodapé n.° 1). Eis aí uma excelente ilustração do processo que descrevi em meu ensaio "Proofs and Refutations", de 1963-4, por cujo intermédio a discussão crítica transfere o problema original sem mudar necessariamente os velhos termos. Os subprodutos desses processos são transferências de significado. Sobre uma discussão adicional, cf. mais adiante, à p. 149, nota de rodapé n.° 127, e p. 193, nota de rodapé n.° 245. 63. 0 critério de demarcação do falseacionista dogmático era o seguinte: uma teoria será "científica" se tiver uma base empírica (veja mais acima, à p. 118).

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Esse critério metodológico de demarcação é muito mais liberal do que o dogmático. O falseacionismo metodológico abre novas avenidas para a crítica: um número muito maior de teorias pode ser qualificado de "científico". Já vimos que existem mais teo ri as "observacionais" do que teorias observacionais e, portanto, há mais enunciados "básicos" do que enunciados básicos. 65 Além disso, as teorias probabilísticas fazem jus agora â qualificação de "científicas"; embora não sejam falseáveis, podem facilmente tornar-se "falseáveis" por uma decisão adcional (de terceiro tipo) que o cientista pode tomar especificando certas regras de rejeição capazes de tornar a evidência estatisticamente interpretada "inconsistente" com a teoria pro66 babilística". 64

Mas nem essas três decisões são suficientes para permitir-nos "falsear" uma teoria que não pode explicar nada "observável" sem uma cláusula ceteris paribus. 67 Nenhum número finito de "observações" será bastante para "falsear" uma teoria nessas condições. Entretanto, se for esse o caso, como se pode razoadamente defender uma metodologia que afirma "interpretar leis naturais ou teorias como ... enunciados parcialmente decidíveis, isto é, que não são, por razões lógicas, verificáveis mas, de um modo assimétrico, falseáveis..."? fi 8 Como se podem interpretar teorias, como a teoria newto64. Veja mais acima, pp. 118-119, 65. A propósito, em sua Logik der Forschung, 1934, Popper não parece ter visto com clareza este ponto. Escreve ele: "E reconhecidamente possível interpretar o conceito de um evento observável num sentido psicologista. Emprego-o, porém, num sentido tal que ele bem pode ser substituído por `um vento que envolve posição e movimento de corpos físicos macroscópicos' ". (Logik der Forschung, seção 28.) A luz da nossa discussão, por exemplo, podemos considerar um positron que passa através de uma câmara de Wilson no momento to como um evento "observável", a despeito do caráter não-macroscópico do positron. 66. Popper, Logik der Forschung, 1934, seção 68. Com efeito, esse falseacionismo metodológico é a base filosófica de alguns dos desenvolvimentos mais interessantes da estatística moderna. Todo o enfoque Neyman-Pearson repousa no falseacionismo metodológico. Cf. também Braithwaite, Scientific Explanation, 1953, capítulo VI, (Infelizmente, Braithwaite reinterpreta o critério de demarcação de Popper como se este separasse proposições significativas de proposições carentes de significado, em lugar de separar proposiçôes científicas de proposições não-científicas.) 67. Cf. mais acima, pp. 122-4. 68. Popper, "Ein Kriterium des empirischen Charakters theoretischer Systeme", 1933.,

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niana da dinâmica e da gravitação, de "unilateralmente decidíveis"? 69 Como podemos fazer em casos assim genuínas "tentativas de suprimir teorias falsas — de encontrar os pontos fracos de uma teo ri a a fi m de rejeitá-la se ela for falseada pelo teste"? 70 Como podemos levá-las ao domínio da discussão racional? O falseacionista metodológico resolve o problema tomando mais uma decisão (de quarto tipo): quando ele testa uma teo ri a juntamente com uma cláusula ceteris paribus e descobre que essa conjunção foi refutada, precisa decidir se deve tomar a refutação também como refutação da teo ri a específica. Por exemplo, pode aceitar o periélio "anômalo" de Mercúrio como refutação da tripla conjunção N3 da teoria de Newton, das condições iniciais conhecidas e da cláusula ceteris paribus. Em seguida, testa "severamente" 71 as condições iniciais e pode decidir relegá-las ao "conhecimento de fundo não-problemático". Essa decisão implica na refutação da dupla conjunção N3 da teo ri a de Newton e da cláusula ceteris paribus. Agora lhe cabe tomar a decisão c ru cial: se também relega a cláusula ceteris paribus ao fundo comum do "conhecimento de fundo não-problemático". Será isso o que fará, se lhe parecer que a cláusula ceteris paribus está bem corroborada. Como se pode testar severamente uma cláusula ceteris paribus? Pressupondo que há outros fatores influentes, especificando tais fatores e testando as suposições específicas. Se muitas forem refutadas, a cláusula ceteris paribus será considerada bem corroborada. A decisão, porém, de "aceitar" uma cláusula ceteris paribus é muito arriscada mercê das graves conseqüências que implica. Se se decidir aceitá-la como pa rt e desse conhecimento de fundo os enunciados que descrevem o periélio de Mercúrio desde a base empírica de N2 são convertidos na base empírica da teo ri a específica de Newton N e o que era antes uma simples "anomalia" em relação a N , passa a ser agora uma prova crucial contra ela, seu falseamento. (Podemos chamar a um acontecimento desc ri to por um enunciado A uma "anomalia em relação a uma teo ri a T', se A for um falseador potencial da conjunção de T e uma cláusula ceteris paribus, mas torna-se um falseador potencial da própria T depois de haver decidido relegar a cláusula ceteris paribus ao "conhecimento de fundo não1

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70. Popper, The Poverty of Historicism, 1957, p. 133. 71. Sobre uma discussão desse importante conceito da metodologia popperiana, cf. meu ensaio, "Changes in the Problem of Inductive Logic", 1968, pp. 397 e seguintes.

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-problemático."72) como, para o nosso selvagem falseacionista, os falseamentos são metodologicamente conclusivos, 73 a decisão fatal equivale à eliminação metodológica da teoria de Newton, irracionalizando o trabalho subseqüente nela. Se o cientista fugir a essas decisões ousadas, "nunca se beneficiará da experiência", "acreditando, talvez, que é sua obrigação defender um sistema bem-sucedido con74 tra a crítica enquanto não tiver sido conclusivamente refutado". Degenerará num apologista que sempre proclamará que "as discrepâncias que se afirmam existir entre os resultados experimentais e a teoria são apenas aparentes e desaparecerão com o avanço de nosso entendimento". 75 Mas para o falseacionista isto é "exatamente o inverso da atitude crítica própria do cientista", 76 e não é permissível. Para usar uma das expressões favo ri tas do falseacionista metodológico, a teoria "precisa ser obrigada a deixar a cabeça de fora". O falseacionista metodológico vê-se numa situação séria quando chega o momento de decidir onde traçar a demarcação, nem que seja apenas num contexto bem definido, entre o problemático e o não-problemático. A situação é mais dramática ainda quando ele tem de tomar uma decisão sobre cláusulas ceteris paribus, quando lhe cabe promover um dentre as centenas de "fenômenos anômalos" numa "experiência crucial", e decidir que nesse caso a experiência foi 77 "controlada". Assim, com a ajuda desse quarto tipo de decisão, 7S o nosso falseacionista metodológico conseguiu finalmente interpretar como "científicas" até teorias como a teoria de Newton. 79 72. Sobre uma "explicação" melhorada, veja mais adiante, p. 195. nota de rodapé n.° 251. 73. Cf. mais acima, à p. 132, o texto correspondente às notas de pé de página n.°' 59 e 60. 74. Popper, Logik der Forschung, 1934, seção 9.

75. Ibid. 76. Ibid.

77. Pode dizer-se que o problema da "experiência controlada" nada mais é que o problema de arranjar condições experimentais de maneira que reduza ao mínimo o risco envolvido nessas decisões. 78. Esse tipo de decisão pertence, num sentido importante, à mesma categoria a que pertence a primeira: separa, por decisão, o conhecimento problemático do conhecimento não-problemático. Cf. mais acima, à p. 30, o texto correspondente à nota de rodapé n.° 51. 79. Nossa exposição mostra claramente a complexidade das decisões necessárias à definição do "conteúdo empírico" de uma teoria — isto é, o conjunto dos seus falseadores potenciais. O "conteúdo empírico" depende da nossa decisão sobre as "teorias observacionais" que são nossas e as anomalias

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Com efeito, não há razão para que ele não deva dar mais um passo. Por que não decidir que uma teoria — que nem essas quatro decisões podem converter numa teoria empiricamente falseável — é falseada se entra em conflito com outra teoria que é científica por alguns dos motivos anteriormente especificados e é igualmente bem corroborada? 8° Afinal de contas, se rejeitamos uma teoria porque veri ficamos que um dos seus falseadores potenciais é verdadeiro à luz de uma teoria observacional, por que não rejeitar outra teoria por completar diretamente com uma que pode ser relegada ao conhecimento de fundo não-problemático? Isso nos permiti ria, por um quinto tipo de decisão, eliminar até teorias "sintaticamente metafísicas", isto é, teorias que, como enunciados do tipo "todos-alguns" ou enunciados puramente existenciais, 81 devido a sua forma lógica, não podem ter falseadores potenciais espaço-temporalmente singulares. Resumindo: o falseacionista metodológico oferece uma solução interessante ao problema de combinar a crítica vigorosa com o falibilismo. Não só oferece uma base filosófica para o falseamento depois que o falibilismo puxou o tapete debaixo dos pés do falseacionista dogmático, mas também amplia de modo considerável a extensão dessa crítica. Colocando o falseamento num cenário novo, salva o atraente código de honra do falseacionista dogmático: que a honestidade científica consiste em especificar, de antemão, uma experiência de tal ordem que, se o resultado contradisser a teoria, esta te82 rá de ser abandonada. que devem ser promovidas a exemplos contrários. Se tentarmos comparar o conteúdo empírico de diferentes teorias científicas a fim de verificar qual 6 o "mais científico", ver-nos-emos envolvidos num sistema de decisões complexíssimo e, portanto, irremediavelmente arbitrário a respeito de suas classes respectivas de "enunciados relativamente atômicos" e seus "campos de aplicação". (Sobre o significado desses termos (muito) técnicos, cf. Popper, Logik der Forschung, seção 38.) Mas uma comparação dessa natureza só é possível quando uma teoria suplanta outra (cf. Popper, The Logic of Scientific Discovery, 1959, p. 401, nota de rodapé n.° 7). E mesmo assim pode haver dificuldades (as quais, todavia, não se somariam à irremediável "incomensurabilidade"). 80. Isto foi sugerido por J. D. Wisdom: cf. seu ensaio de 1963: "The Refutability of 'Irrefutable' Laws". 81. Por exemplo: "Todos os metais têm um solvente"; ou "Existe uma substância que pode transformar todos os metais em ouro". Sobre discussões dessas teorias, cf. especialmente Watkins, "Between Analytical and Empirical", 1957, e Watkins, "When are Statements Empirical?", 1960. Mas cf. mais adiante, pp. 154-5 e pp. 227-8. 82. Veja mais acima, p. 116.

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O falseacionismo metodológico representa um avanço considerável para além do falseacionismo dogmático e do convencionalismo conservador. Recomenda decisões arriscadas. Mas os riscos são tão ousados que atingem as raia da temeridade e a gente pergunta a si mesmo se não haverá um meio de atenuá-los. Examinemos primeiro, com mais atenção, os riscos envolvidos. As decisões desempenham um papel crucial nessa metodologia como em qualquer classe de convencionalismo. As decisões, todavia, podem levar-nos desastrosamente para o mau caminho. O falseacionista metodológico é o primeiro a admiti-lo. Mas isso, argumenta ele, é o preço que temos de pagar pela possibilidade de progresso. Cumpre apreciar a atitude diabolicamente atrevida do nosso falseacionista metodológico. Ele se tem na conta de um herói que, defrontando-se com duas alternativas catastróficas, teve a coragem de refletir friamente sobre os méritos relativos de cada uma e escolheu o menor dos males. Uma das alternativas era o falibilismo cético, com sua atitude de "vale tudo", o abandono desesperado de todos os padrões intelectuais, e com estes a idéia do progresso científico. Nada pode se restabelecido, nada pode ser rejeitado, nada sequer pode ser comunicado: o crescimento da ciência é um crescimento do caos, uma verdadeira Babel. Durante dois mil anos, cientistas e filósofos de espírito científico escolheram ilusões justificacionistas de alguma espécie para escapar a esse pesadelo. Alguns afirmaram que temos de escolher entre o justificacionismo indutivista e o irracionalismo: "Não vejo nenhuma saída, fora a afirmação dogmática de que conhecemos o princípio indutivo ou algum equivalente; a única alternativa é jogar fora quase tudo que a ciência e o bom senso consideram como conhecimento". 83 O nosso falseacionista metodológico rejeita orgulhosamente esse escapismo: ousa medir todo o impacto do falibilismo e, ainda assim, escapar ao ceticismo através de uma atrevida e arriscada política convencionalista, sem dogmas. Tem plena consciência dos riscos mas insiste em que é preciso escolher entre uma espécie de falseacionismo metodológico e o irracionalismo. Oferece um jogo em que temos poucas esperanças de vencer, mas afirma que ainda é melhor jogar 84 do que desistir. 83. Russell, "Reply to Critics", 1943, p. 683. 84. Estou certo de que alguns acolherão o falseacionismo metodológico como filosofia "existencialista" da ciência.

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Com efeito, esses críticos do falseacionismo ingênuo, que não oferecem nenhum método alternativo de crítica, são inevitavelmente impelidos para o irracionalismo. Por exemplo, o argumento confuso de Neurath de que o falseamento e a conseqüente eliminação de uma hipótese podem resultar em "um obstáculo ao progresso da ciên85 cia", não terá peso algum enquanto a única alternativa que ele parece oferecer é o caos. Hempel, sem dúvida, está certo ao acentuar que a "ciência apresenta vários exemplos [quando] o conflito entre uma teoria altamente confirmada e uma sentença experimental recalcitrante ocasional puder ser resolvida pela anulação desta última em 8e; lugar de sacrificar a primeira" não obstante, ele admite não poder oferecer nenhum outro "padrão fundamental" além do falseacionismo ingênuo. 87 Neurath — e, aparentemente, Hempel — rejeita o falseacionismo como "pseudo-racionalismo" 85 ; mas onde está o "racionalismo"? Popper advertia já em 1934 que a metodologia permissiva de Neurath (ou melhor, a sua falta de metodologia) tornaria a ciência não-empírica e, portanto, irracional: "Precisamos de um conjunto de regras para limitar a arbitra ri edade de "suprimir" (ou "aceitar") uma sentença protocolar. Neurath deixa de dar essas regras e, assim, inadvertidamente, atira o empirismo pela janela. Todo sistema se torna defensável se nos for permitido (e toda a gente tem essa permissão, no entender de Neurath) simplesmente "suprimir" uma sentença protocolar por ser inconveniente". 89 Popper concorda com Neurath em que todas as proposições são falíveis; mas defende com vigor o ponto crucial de que não podemos fazer .

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85. Neurath, "Pseudorationalismus der Falsifikation", 1935, p. 356. 86. Hempel, "Some Theses on Empirical Certainty", 1952, p. 621. Agassi, em seu ensaio de 1966, "Sensationalism", segue Neurath e Hempel, sobretudo às pp. 16 e seguintes. É divertido observar que Agassi, ao defender esse ponto de vista, pense estar pegando em armas contra "toda a literatura relativa aos métodos da ciência". Com efeito, muitos cientistas tinham plena consciência das dificuldades inerentes à "confrontação da teoria e dos fatos". (Cf. Einstein, "Autobiographical Notes", 1949, p. 27.) Vários filósofos simpáticos ao falseacionismo enfatizam que "o processo de refutação de uma hipótese cientifica é mais complicado do que parece à primeira vista" (Braithwaite, Scientific Explanation, 1953, p. 20). Mas apenas Popper ofereceu uma solução construtiva, racional. 87. Hempel, "Some Theses on Empirical Certainty", 1952, p. 622. As agudas "teses sobre a certeza empírica" de Hempel não fazem outra coisa senão tirar o pó dos velhos argumentos de Neurath — e alguns de Popper — (contra Carnap, creio eu); deploravelmente, contudo, ele não menciona seus predecessores nem seus adversários. 88. Neurath, "Pseudorationalismus der Falsifikation", 1935. 89. Popper, Logik der Forschung, 1934, seção 26.

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progresso sem uma estratégia ou método racional firme para guiarnos quando elas colidem.so Mas a estratégia firme da classe do falseacionismo metodológico discutida até aqui não será' firme demais? As decisões que ela advogada não estarão fadadas a ser demasiado arbitrárias? Alguns podem até sustentar que a única coisa que distingue o falseacionismo metodológico do dogmático é que ele é falibilista da boca para fora! Criticar uma teo ri a da crítica é quase sempre muito difícil. O falseacionismo naturalista era relativamente fácil de refutar, pois repousava numa psicologia empírica da percepção: bastava mostrar que ele era falso. Mas como se pode falsear um falseacionismo metodológico? Nenhum desastre pode jamais refutar uma teoria não-justificacionista da racionalidade. Ademais, como podemos reconhecer algum dia um desastre epistemológico? Não temos meios para julgar se a verossimilhança das nossas teorias sucessivas aumenta ou diminui. 91 Até o momento, ainda não desenvolvemos uma teoria geral da crítica nem mesmo para as teorias científicas, quanto mais para as teorias da racionalidade 92 ; portanto, se quisermos falsear nosso falseacionismo metodológico, teremos de pôr mãos à obra antes de ter uma teoria sobre como fazê-lo. Se observarmos a história da ciência, se tentarmos ver como alguns dos falseamentos mais célebres aconteceram, teremos que chegar à conclusão de que algumas delas ou são claramente irracionais ou se apóiam em princípios de racionalidade radicalmente diferentes dos princípios que acabamos de discutir. Primeiramente, o nosso f alseacionista deve deplorar o fato de que teóricos obstinados contestem com freqüência vereditos experimentais e os invertam. Na concepção falseacionista da "lei e da ordem" científica que descrevemos não há lugar para tais apelos bem-sucedidos. Outras dificuldades surgem do falseamento de teorias a que se acrescenta uma cláusula ceteris pa90. 0 ensaio de Neurath, "Pseudorationalismus der Falsifikation", 1935, mostra que ele jamais apreendeu o argumento simples de Popper. 91. Estou empregando aqui o termo "verossimilhança" no sentido de Popper: a diferença entre o conteúdo de verdade e o conteúdo de falsidade de uma teoria. Sobre os riscos envolvidos na sua avaliação, cf. meu ensaio, "Changes in the Problem of Inductive Logic", 1968, especialmente as pp. 395 e seguintes. 92. Tentei desenvolver uma teoria geral da crítica em meus trabalhos de 1971 e 1972.

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93 ribus. Seu falseamento, tal como ocorre na história real, é prima facie irracional segundo os padrões do nosso falseacionista. Segundo estes padrões os cientistas parecem ser com freqüência irracionalmente lentos: por exemplo, oitenta e cinco anos decorreram entre a aceitação do periélio de Mercúrio como anomalia e sua aceitação como falseamento da teoria de Newton, apesar de ser a cláusula ceteris paribus razoavelmente bem corroborada. Por outro lado, os cientistas parecem, não raro, irracionalmente impetuosos: Galileu e seus discípulos, por exemplo, aceitaram a mecânica celeste heliocêntrica de Copérnico apesar das abundantes evidências contra a rotação da Terra; e Bohr e seus discípulos aceitaram uma teoria de emissão da luz embora esta última contrariasse a bem corroborada teoria de Maxwell.

De fato, não é difícil ver pelo menos duas características cruciais, comuns ao falseacionismo dogmático e ao nosso falseacionismo metodológico, que destoam claramente da verdadeira história da ciência: a saber (1) um teste é — ou deve-se fazer que seja — uma luta, de dois adversários, entre a teoria e a experiência de modo que, na confrontação final, só as duas se defrontem; e (B) o único resultado interessante dessa- confrontação é o falseamento (conclusivo): "[as únicas genuínas] descobertas são refutações de hipóteses científiJ4 cas." Entretanto, a história da ciência sugere que (1') os testes são — pelo menos — lutas, de três adversários, entre as teorias rivais e a experiência e (2') algumas das experiências mais interessantes resultam, prima facie, antes em confirmação do que em falseamento. Mas se a história da ciência como parece ser o caso — não confirma nossa teoria da racionalidade científica, temos duas alternativas. Uma delas é abandonar os esforços para dar uma explicação racional do êxito da ciência. O método científico (ou "lógica da descoberta"), concebido como disciplina da avaliação racional das teo93. 0 falseamento das teorias depende do alto grau de corroboração da cláusula ceteris paribus. Tal corroboração, todavia, muitas vezes falta. Eis aí por que o falseacionismo metodológico pode aconselhar-nos a confiar em nosso "instinto científico" (Popper, Logik der Forschung, 1934, seção 18, nota de rodapé n.° 2) ou em nosso "palpite" (Braithwaite, Scientific Explanation, 1953, p. 20). 94. Agassi, "How are Facts Discovered?" 1959, chama à idéia de ciência de Popper "scientia negativa" (Agassi, "The Novelty of Popper's Philosophy of Science", 1968).

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rias científicas — e dos critérios de progresso — desaparece. Está claro que ainda podemos tentar explicar mudanças em "paradigmas" em termos de psicologia social. 95 Esse é o caminho de Polanyi e de Kuhn. 96 A outra alte rn ativa é tentar, ao menos, reduzir o elemento convencional do falseacionismo (não podemos de maneira alguma eliminá-lo) e substituir as versões ingênuas do falseacionismo metodológico — caracterizadas pelas teses (1) e (2) acima — por uma versão sofisticada que daria um novo fundamento lógico ao falseamento e, por esse modo, salvaria a metodologia e a idéia de progresso científico. Este é o caminho de Popper, e o caminho que pretendo seguir. (c) Falseacionismo metodológico sofisticado versus falseacionismo metodológico ingênuo. Transferência progressiva e degenerativa de problemas. O falseacionismo sofisticado difere do falseacionismo ingênuo assim nas regras de aceitação (ou "critério de demarcação") como nas regras de falseamento ou eliminação. Para o falseacionista ingênuo qualquer teoria que se possa interpretar como experimentalmente falseável é "aceitável" ou "científica". 97 Para o sofisticado uma teo ri a só será "aceitável" ou "científica" se tiver um excesso corroborado de conteúdo empírico em relação à sua predecessora (ou rival), isto é, se levar à descobe rt a de fatos novos. Essa condição pode ser analisada em duas cláusulas: a nova teoria tem um excesso de conteúdo empírico ("aceitabilidade i ") e parte desse excesso de conteúdo é verificada (aceitabilida95. Dever-se-ia mencionar aqui que o cético kuhniano ainda fica com o que eu denominaria o "dilema do cético científico": qualquer cético científico ainda tentará explicar mudanças em crenças e encarará sua própria teoria psicológica como uma teoria que, sendo mais que simples crença, em certo sentido é "científica". Enquanto tentava apresentar a ciência como mero sistema de crenças com o auxílio da sua teoria da aprendizagem estímulo-resposta, Hume nunca ventilou o problema de saber se sua teoria da aprendizagem também se aplica a si própria. Em termos contemporâneos, podemos perguntar se a popularidade da filosofia de Kuhn indica que as pessoas lhe reconhecem a verdade. Nesse caso, ela seria refutada. Ou essa popularidade indica que as pessoas a consideravam como atraente moda nova? Nesse caso, ela seria "verificada". Mas gostaria Kuhn dessa "verificação"? 96. Feyerabend, que contribuiu provavelmente mais do que ninguém para a difusão das idéias de Popper, parece agora ter passado para o campo inimigo. Cf. o seu intrigante ensaio "Against Method", 1970. 97. Cf. mais acima, p. 132.

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científica precisa ser avaliada juntamente com suas hipóteses auxiliares, condições iniciais, etc., e, sobretudo, com suas predecessoras para podermos ver a espécie de mudança que foi produzida. Está visto que, nesse caso, avaliamos uma série de teorias e não teorias isoladas. Agora nos é fácil compreender por que formulamos os critérios de aceitação e rejeição do falseacionismo metodológico como o fizemos. 108 Mas talvez valha a pena reformulá-los um pouco, expressando-os explicitamente em termos de séries de teorias. Tomemos uma série de teorias, T , T2, T3... em que cada teoria subseqüente resulta da adição de cláusulas auxiliares à teoria anterior (ou das reinterpretações semânticas da teoria anterior) a fim de acomodar alguma anomalia, tendo cada teoria pelo menos tanto conteúdo quanto o conteúdo não-refutado da sua predecessora. Digamos que uma série de teorias nessas condições será teoricamente progressiva (ou "constituirá uma transferência de problemas teoricamente progressiva") se cada nova teoria tiver algum excesso de conteúdo empírico em relação à sua predecessora, isto é, se ela predisser algum fato novo, até então inesperado. Digamos que uma série teoricamente progressiva de teorias será também empiricamente progressiva (ou "constituirá uma transferência de problemas empiricamente progressiva") se parte desse conteúdo empírico excessivo for também corroborado, isto é, se cada teoria nova nos conduzir à des109 coberta real de algum fato novo. Finalmente, seja-nos permitido chamar progressiva à transferência de problemas se ela for, ao mesmo tempo, teórica e empiricamente progressiva, e degenerativa se não o for. 110 Só "aceitamos" as transferências de problemas como "científicas" se elas forem pelo menos teoricamente progressivas; se 1

108. Cf. mais acima, p. 141. 109. Se já conheço P, "O cisne A é branco", P 6) "Todos os cisnes são brancos" não representa progresso porque só pode conduzir à descoberta de outros fatos semelhantes, como P2: "O cisne B é branco". As chamadas "generalizações empíricas" não constituem progresso. Um fato novo deve ser i mprovável ou mesmo impossível à luz do conhecimento anterior. Cf. mais acima, p. 141, e mais adiante, pp. 191 e seguintes. 110. A propriedade da expressão "transferência de problemas" para uma série de teorias, em lugar de problemas, pode ser contestada. Escolhi-a, em parte, por não haver encontrado alternativa mais apropriada — "transferência de teorias" soa horrivelmente — e, em parte, porque as teorias são sempre problemáticas, nunca solucionam todos os problemas que se propõem solucionar. De qualquer maneira, na segunda metade do trabalho, a expressão mais natural "programa de pesquisa" susbstituirá "transferência de problemas" nos contextos mais importantes.

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não o forem, "rejeitamo-las" como "pseudocientíficas". O progresso mede-se pelo grau em que uma transferência de problemas é progressiva, pelo grau em que a série de teorias nos conduz à descoberta de fatos novos. Consideramos "falseada uma teoria da série quando ela é suplantada por uma teoria com um conteúdo corroborado mais elevado. 111 Essa demarcação entre as transferências progressvias e degenerativas de problemas projeta nova luz sobre a avaliação de explicações científicas — ou, melhor, progressivas. Se apresentarmos uma teoria para resolver uma contradição entre uma teoria anterior e um exemplo contrário de tal maneira quê a nova teoria, em lugar de oferecer uma explicação (científica) que aumente o conteúdo, só ofereça uma reinterpretação (lingüística) que diminui o conteúdo, a contradição se resolverá de modo meramente semântico, não-cientí-fico. Um fato dado só será explicado cientificamente se um fato novo 112 também for explicado com ele. Dessa maneira, o falseacionismo sofisticado transfere o problema da avaliação de teorias para o problema da avaliação de séries de teorias. Só de uma série de teorias se pode dizer que é científica ou não-científica, nunca de uma teoria isolada; aplicar o termo "científico" a ' , ma única teoria é incorrer num erro de categoria. 113 111. Sobre "falseamento" de certas séries de teorias ("programas de pesquisa") em oposição ao "falseamento" de uma teoria no interior da série, veja mais adiante, pp. 191 e seguintes. 112. Com efeito, no manuscrito original do meu ensaio intitulado "Changes in the Problem of Inductive Logic", de 1968, escrevi: "Uma teoria sem excesso de corroboração não tem excesso de poder explanatório; portanto, de

acordo com Popper, não representa crescimento e não é "científica"; devemos dizer, pois que ela não tem poder explanatório" (p. 386). Suprimi a metade

grifada da sentença pressionado por meus colegas, para os quais ela soava muito excêntrica. Agora me arrependo de tê-lo feito. 113. A fusão de "teorias" e "séries de teorias" de Popper impediu-o de comunicar com melhor êxito as idéias básicas do falseacionismo sofisticado. Seu emprego ambíguo redundou em formulações desconcertantes como "O marxismo [como centro de uma série de teorias ou de um "programa de pesquisa"] é irrefutável" e, ao mesmo tempo, "O marxismo [como conjunção especial desse centro, de algumas hipóteses auxiliares, de condições iniciais e de uma cláusula ceteris paribus] foi refutado." (Cf. Popper, Conjectures and Refutations, 1963.) Claro está que não erramos no dizer que uma teoria isolada, singular, é

"científica" quando representa um progresso sobre a sua predecessora, enquanto compreendemos claramente que nessa formulação avaliamos a teoria como resultado de certo desenvolvimento histórico e no contexto desse desenvolvimento.

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O tradicional critério empírico para julgar satisfatória urna teoria era a concordância com os fatos observados. Nosso critério empírico para uma série de teorias é a produção de fatos novos. A idéia de crescimento e o conceito de caráter empírico estão soldados num só. Essa forma revisada do falseacionismo metodológico tem muitos traços novos. Primeiro, nega que, "no caso de uma teo ria científica, nossa decisão depende dos resultados dos experimentos. Se estes confirmarem a teo ria, poderemos aceitá-la até encontrar uma teoria melhor. Se a contradisserem, rejeitá-la-emos." 114 Nega que "o que finalmente decide o destino de uma teo ria é o resultado de um teste, isto é, uma concordância em torno de enunciados básicos". 115 Contrariando o falseacionismo ingênuo, nenhuma experiência, nenhum relato experimental, nenhum enunciado de observação ou hipótese falseadora de baixo nível bem corroborada pode levar sozinha ao falseamento."° Não há falseamento antes da emergência de uma teoria melhor. 117 Mas nesse caso o caráter distintamente negativo do falseacionismo ingênuo desaparece; a crítica torna-se mais difícil, e também positiva, construtiva. Mas é claro que, se depender da emergência de teorias melhores, da invenção de teorias que antecipam fatos novos, o falseamento não será simplesmente uma relação entre a teoria e a base empírica, mas uma relação múltipla entre as teo rias concorrentes, a "base empírica" o riginal e o crescimento empírico resultante da competição. Pode dizer-se assim que o falseamento tem "caráter histórico". 118 Além disso, algumas teorias que dão o rigem 114. Popper, The Open Society and its Enemies, vol II, p. 233. A atitude mais sofisticada de Popper vem à tona na observação de que "conseqüências concretas e práticas podem ser mais diretamente testadas pela experiência" (ibid., o grifo é meu). 115. Popper, Logik der Forschung, 1934, seção 30. 116. Sobre o caráter pragmático do `falseamento' metodológica, cf. mais acima, p. 132, nota de pé de página n.° 62. 117. Na maioria dos casos, antes de falsear uma hipótese, temos outra na manga do paletó (Popper, The Logic of Scientific Discove ry, 1959, p. 87, nota de pé de página n.° *1). Como o demonstra nosso argumento, precisamos ter uma. Ou, como disse Feyerabend: "A melhor crítica é proporcionada pelas teorias que podem substituir as rivais por elas eliminadas" ("Reply to Criticism", 1965, p. 227). Observa ele que, em alguns casos, "as alternativas serão indispensáveis ao propósito da refutação" (ibid. p. 254). Mas de acordo com o nosso argumento a refutação sem uma alternativa mostra apenas a pobreza

da nossa imaginação no fornecer uma hipótese de salvamento. Veja também mais adiante, p. 148, nota de rodapé n.° 123.

118. Cf. o meu ensaio "Changes in the Problem of Inductive Logic", 1968, pp. 387, e seguintes.

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ao falseamento são freqüentemente propostas depois da "evidência contrária". Isso pode parecer paradoxal a pessoas doutrinadas no falseacionismo ingênuo. Na realidade, essa teoria epistemológica da relação entre a teoria e a experiência difere nitidamente da teoria epistemológica do falseacionismo ingênuo. O próprio termo "evidência contrária" tem de ser abandonado no sentido de que nenhum resultado experimental precisa ser interpretado diretamente como evidência contrária. Se ainda quisermos conservar esse termo tradicional, teremos de redefini-lo do seguinte modo: "a evidência contrária de T ' é um exemplo corroborante de T2 incompatível com T ou independente de T (corn a condição de que T seja uma teoria que explique satisfatoriamente o sucesso empírico de TO.. Isso mostra que a "evidência contrária crucial" — ou "experiências cruciais" — pode ser reconhecida como tal entre muitas anomalias, apenas mediante percepção tardia, à luz de alguma teoria que suplante a anterior.' 1 t Desse modo, o elemento crucial no falseamento é saber se a nova teoria oferece alguma informação nova, excedente, comparada com sua predecessora, e se parte dessa informação excedente é corroborada. Os justificacionistas avaliaram os casos "confirmadores" de uma teoria; os falseacionistas ingênuos puseram em destaque os casos "refutados"; para os falseacionistas metodológicos os casos corroboralores — mais raros — de informação excedente é que são os cruciais e recebem toda a atenção. Já não nos interessam os milhares de casos triviais de verificação nem as centenas de anomalias prontamente acessíveis: os poucos casos cruciais de verificação de excedente são decisivos. 120 Essa consideração reabilita — e reinterpreta — o velho provérbio: Exemplum docet, exempla obscurant. O "falseamento" no sentido do falseacionismo ingênuo (evidência contrária corroborada) não é condição suficiente para eliminar 1

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119. No espelho deformante do falseacionismo ingênuo, as novas teorias que substituem as velhas teorias refutadas nascem não-refutadas. Por conseguinte, os falseacionistas ingênuos não acreditam que haja uma diferença importante entre anomalias e evidências contrárias cruciais. Para eles, anomalia é um eufemismo desonesto de evidência contrária. Mas na história real novas teorias nascem refutadas: herdam muitas anomalias da teoria velha. Freqüentemente, além disso, somente a nova teoria prediz dramaticamente o fato que funcionará como evidência contrária crucial contra sua predecessora, ao passo que "velhas" anomalias podem continuar perfeitamente como "novas" anomalias. Tudo isso ficará mais claro quando apresentarmos a idéia do "programa de pesquisa": cf. mais adiante, pp. 166 e 218 e seguintes. 120. O falseacionismo sofisticado prenuncia uma nova teoria da apren dizagem; cf. mais adiante, p.

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uma teoria específica; apesar de centenas de anomalias conhecidas, não consideraremos que a teoria está falseada (isto é, eliminada) 121 enquanto não tivermos outra melhor. Nem o "falseamento" no sentido ingênuo é necessário ao falseamento no sentido sofisticado: uma transferência progressiva de problema não precisa ser entremeada de "refutações". A ciência pode crescer sem "refutações" que lhe mostrem o caminho. Os falseacionistas ingênuos sugerem um crescimento linear da ciência, no sentido de que as teorias são seguidas de poderosas refutações, que as eliminam; tais refutações, por seu 122 turno, são seguidas de novas teorias. E perfeitamente possível que teorias sejam apresentadas "progressivamente" em tão rápida sucessão que a "refutação" da enésima surja apenas como corroboração da enésima-primeira. A febre de problemas da ciência é muito mais suscitada pela proliferação de teorias rivais do que pela proliferação de exemplos contrários ou anomalias. Isso mostra que o slogan da proliferação de teorias é muito mais importante para o falseacionismo sofisticado do que para o falseacionismo ingênuo. Para este último a ciência cresce através do repetido derrubamento experimental de teorias; novas teorias rivais propostas antes de tais "derrubamentos" podem acelerar o cresci123; mento mas não são absolutamente necessárias a proliferação 121. É claro que a teoria T' pode ter excesso de conteúdo empírico corroborado em relação a outra teoria T, ainda que ambas, T e T' sejam refutadas. O conteúdo empírico nada tem com a verdade nem com a falsidade. Conteúdos corroborados também podem ser comparados independentemente do conteúdo refutado. Assim podemos ver a racionalidade da eliminação da teoria de Newton em favor da teoria de Einstein, conquanto se possa dizer que a teoria de Einstein — como a de Newton — nasceu "refutada". Temos apenas de lembrar-nos de que "confirmação qualitativa" é um eufemismo de "desconfirmação quantitativa". (Cf. meu ensaio "Changes in the Problem of Inductive Logic", 1968, pp. 384-6.) 122. Cf. Popper, Logik der Forschung, 1934, seção 85, p. 279 de tradução inglesa de 1959. 123. E verdade que se permite que certo tipo de proliferação de teorias rivais desempenhe um papel heurístico acidental no falseamento. Em muitos casos o falseamento heuristicamente "depende da [condição] de que um número assaz grande e assaz diferente de teorias seja oferecido" (Popper, "What is Dialectic?" 1940). Por exemplo, podemos ter uma teoria T aparentemente não-refutada. Mas pode ser que se proponha uma nova teoria T', incompatível com T, que também se ajuste aos fatos disponíveis: as diferenças são menores do que a amplitude do erro observacional. Em tais casos a incompatibilidade nos incita a aprimorar nossas "técnicas experimentais" e, assim, a refinar a "base empírica", de sorte que tanto T quanto T' (ou incidentalmente as duas) podem ser falseadas: "Precisamos de uma nova teoria a fim de descobrir onde

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constante de teorias é opcional, mas não é compulsória. Para o falseacionista sofisticado a proliferação de teorias não pode esperar que as teorias aceitas sejam "refutadas" (ou que os protagonistas passem 124 por uma crise kuhniana de confiançá). Ao passo que o falseacionismo ingênuo sublinha "a urgência de substituir uma hipótese falseada por outra melhor", 125 o falseacionismo sofisticado sublinha a urgência de substituir qualquer hipótese por outra melhor. O falseamento não pode "compelir o teórico a procurar uma teoria melhor", 126 simplesmente porque o falseamento não pode preceder a teoria melhor. A transferência de problema do falseacionismo ingênuo para o falseacionismo sofisticado envolve uma dificuldade semântica. Para o falseacionista ingênuo a "refutação" é um resultado experimental que, por força de suas decisões, é levado a conflitar com a teoria que está sendo testada. Mas de acordo com o falseacionismo sofisticado não se devem tomar tais decisões antes que o alegado "caso refutador" se tenha transformado no caso confirmador de uma teoria nova e melhor. Por conseguinte, sempre que toparmos com termos como "refutação", "falseamentck", "contra-exemplo", devemos verificar em cada caso se esses termos são aplicados em virtude de decisões tomadas pelo falseacionista ingênuo ou pelo falseacionista sofisticado. 127 O falseacionismo metodológico sofisticado oferece novos padrões para a honestidade intelectual. A honestidade justificacionista exigia a aceitação apenas do que estava provado e a rejeição de tudo o que não estivesse provado. A honestidade neojustificacionista exigia a especificação da probabilidade de qualquer hipótese à luz da evidência empírica disponível. A honestidade do falseacionismo ingênuo era deficiente a teoria antiga" (Popper, Conjectures and Refutations, 1963, p. 246). Mas o papel dessa proliferação é acidental no sentido de que, uma vez refinada a base empírica, a luta se trava entre essa base empírica refinada e a teoria T que está sendo testada; a teoria rival T' agiu apenas como catalisadora. (Veja também mais acima, p. 146, nota de rodapé n.° 117.) 124. Cf. Também Feyerabend, "Reply to Criticism", 1965, pp. 254-5. 125. Popper, The Logic of Scienti f ic Discovery, 1959, p. 87, nota de pé de página n.° *1. 126. Popper, Logik der Forschung, 1934, seção 30. 127. Cf. também mais acima, p. 132, nota de pé de página n.° 62. [Acrescentado no prelo:] Talvez fosse melhor no futuro abandonar de todo essas expressões, assim como abandonamos expressões como "prova indutiva (ou experimental)". Assim poderemos chamar às anomalias de "refutações" (ingênuas) e, de teorias "falseadas" (sofisticadamente) às teorias "suplantadas". Nossa linguagem comum está impregnada não só de dogmatismo "indutivista" mas também de dogmatismo falseacionista. Uma reforma nesse sentido já devia ter sido feita.

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exigia o teste da teo ri a falseável e a rejeição das teo ri as não-falseáveis e das falseadas. Finalmente, a honestidade do falseacionismo sofisticado exigia que se tentasse olhar para as coisas de pontos de vista diferentes, apresentando novas teorias que antecipassem fatos novos, e rejeitando teo ri as que tivessem sido suplantadas por outras, mais vigorosas. O falseacionismo metodológico sofisticado mistura várias tradições diferentes. Dos empiristas herdou a determinação de aprender principalmente com a experiência. Dos kantianos tirou o enfoque ativista da teoria do conhecimento. Com os convencionalistas aprendeu a importância das decisões em metodologia. Eu gostaria de pôr aqui em relevo mais um traço distintivo do empi ri smo metodológico sofisticado: o papel c ru cial do excedente de corroboração. Para o indutivista, aprender alguma coisa sobre uma nova teo ri a é aprender até que ponto a evidência confirmada a sustenta; a respeito de teorias refutadas nada se aprende (aprender, afinal de contas, é edificar conhecimento provado ou provável) . Para o falseacionista dogmático, aprender alguma coisa acerca de uma teoria é aprender se ela foi refutada ou não; em relação a teorias confirmadas nada se aprende (não se pode provar nem probabilizar coisa alguma), a respeito de teorias refutadas aprende-sé que elas são refutadas. 128 Para o falseacionista sofisticado, aprender alguma coisa no tocante a uma teoria é aprender, em primeiro lugar, que novos fatos foram por ela antecipados; com efeito, para a espécie de empi ri smo popperiano que advogo, a única evidência pe rt inente é a antecipada por uma teoria, e a empiricidade (ou caráter científico) e o progresso teórico estão ligados inseparavelmente 1 29 A idéia não é inteiramente nova. Em sua famosa carta a Conring em 1678, por exemplo, Leibnitz escreveu: "A maior recomendação de uma hipótese (depois da verdade [provada]) é poder fazer com sua ajuda predições até a respeito de fenômenos ou experiências não-tentadas." 130 A concepção de Leibnitz foi amplamente aceita 128. Sobre uma defesa da teoria de "aprender com a experiência", cf. Agassi, "Popper on Learning from Experience", 1969.

129. Tais observações mostram que "aprender com a experiência" é uma idéia normativa; portanto, todas as teorias puramente "empíricas" da aprendizagem não atinam com o âmago do problema. 130. Cf. Leibnitz, Carta a Conring, 1678. A expressão entre colchetes mostra que Leibnitz colocava esse critério em segundo lugar e entendia que as melhores teorias são as provadas. Desse modo, a posição de Leibnitz — como a de Whewell — está muito longe do falseacionismo sofisticado em pleno desenvolvimento.

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pelos cientistas. Mas como a avaliação de uma teoria científica, antes de Popper, significava avaliação de seu grau de justificação, essa posição foi considerada insustentável por alguns lógicos. Em 1843, por exemplo, Mill queixa-se, horrorizado: "parece que se pensa que uma hipótese... faz jus a uma recepção mais favorável se, além de explicar todos os fatos anteriormente conhecidos, conduziu à antecipação e à predição de outros, que a experiência, mais tarde, ve131 rificou". Mill tinha um argumento importante; essa avaliação conflitava não só com o justificacionismo mas também com o probabilismo; por que um acontecimento antecipado pela teoria provocaria mais do que se já fosse conhecido ante ri ormente? Enquanto a prova fosse o único critério do caráter científico de uma teoria, o 132 critério de Leibnitz só poderia ser considerado como irrelevante. Outrossim, a probabilidade de uma teoria dada a evidência não pode sofrer a influência, como Keynes observou, do momento em que a evidência foi produzida: a probabilidade de uma teoria dada a evi133 dência só pode depender da teoria e da evidência, e não de ter sido esta produzida antes ou depois daquela. Apesar dessa crítica justificacionista convincente, o critério persistiu entre alguns dos melhores cientistas, visto que lhes expressava a vigorosa aversão pelas explicações meramente ad hoc, que "embora expressem realmente os fatos [que se propõem explicar] não são corroboradas por quaisquer outros fenômenos". 134 Mas foi apenas Popper quem reconheceu que a incompatibilidade prima facie entre as poucas observações estranhas e casuais contra as hipóteses ad hoc de um lado e o imenso edifício de filosofia justificacionista do conhecimento precisa ser solucionada demolin131. Mill, A System of Logic, Racionative and Inductive, Being a Connected View of the Principles of Evidence, and the Methods of Scientific Investigation, 1843, vol. II, p. 23. 132. Esse era o argumento de J. S. Mill (ibid.). Ele dirigiu-o contra

Whewell, segundo o qual "a confluência de induções" ou predição bem-sucedida de acontecimentos improváveis verifica (isto é, prova) uma teoria. ( Whewell, Novum Organum Renovatum, 1858, pp. 95-6.) A contradição básica, sem dúvida, da filosofia da ciência, tanto de Whewell quanto de Duhem, é a fusão

que eles operam entre o poder de predição e a verdade provada. Popper se. parou os dois. 133. Keynes. A Treatise on Probability, 1921, p. 305. Mas cf. o meu

ensaio, "Changes in the Problem of Inductive Logic", de 1968, p. 394. 134. Este é o comentário crítico de Whewell sobre uma hipótese auxiliar ad hoc da teoria da luz de Newton (Whewell, Novum Organum Renovatum, vol. II, p. 317.)

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do-se o justificacionismo e apresentando novos critérios não-justificacionistas para avaliar teorias científicas baseadas no caráter antiadhoc. Atentemos para alguns exemplos. A teo ria de Einstein não é melhor que a de Newton porque a teoria de Newton foi "refutada" e a de Einstein não o foi; existem muitas "anomalias" conhecidas na teoria einsteiniana. A teoria de Einstein é melhor do que — isto é, representa progresso quando comparada com — a teoria de Newton anno 1916 (isto é, as leis da dinâmica, a lei da gravitação, o conjunto conhecido de condições iniciais; "menos" a lista de anomalias conhecidas, como o periélio de Mercúrio) porque explicava tudo que a teoria de Newton explicara com êxito, e explicava também, até certo ponto, algumas anomalias conhecidas e, além disso, proibia acontecimentos como a transmissão da luz ao longo de linhas retas perto de grandes massas, a cujo respeito a teoria de Newton nada dissera, mas que haviam sido permitidos por outras teorias científicas bem corroboradas do tempo; ademais, pelo menos parte do inesperado excedente de conteúdo einsteiniano era de fato corroborada (por exemplo, pelas experiências do eclipse). Por outro lado, de acordo com esses padrões sofisticados, a teoria de Galileu, segundo a qual o movimento natural dos objetos terrestres era circular, não introduziu melhoramento algum visto que não proibiu nada que não tinha sido proibido pelas teorias pertinentes que ele, Galileu, pretendia melhorar (isto é, pela física aristotélica e pela cinemática celeste coperniciana). Essa teoria era portanto ad hoc e portanto — do ponto de vista heurístico — sem valor. 135 Um belo exemplo de teoria que satisfazia apenas à p rimeira parte do critério de progresso de Popper (excedente de conteúdo), mas não à segunda parte (excedente corroborado de conteúdo) foi dado pelo próprio Popper: a teoria de Bohr-Kramers-Slater de 1924, 136 cujas novas predições foram todas refutadas. 135. Na terminologia do meu ensaio, "Changes in the Problem of Inductive Logic", de 1968, essa teoria era "ad hoc," (cf. op. cit., p. 389, nota de rodapé n.° 1); o exemplo me foi originalmente sugerido por Paul Feyerabend como paradigma de uma valiosa teoria ad hoc. Mas cf. mais adiante, p. 174, especialmente a nota de rodapé n.° 194. 136. Na terminologia do meu ensaio "Changes in the Problem of Inductive Logic", de 1968, essa teoria não era "ad hoc l ", mas "ad hoc2 " (cf. op. cit., p. 389, nota de rodapé n.° 1). Sobre uma ilustração simples, porém artificial, veja ibid., p. 387, nota de pé de página n.° 3. (Sobre ad hoc,, cf. mais adiante, p. 217, nota de pé de página n.° 323.)

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Consideremos finalmente quanto convencionalismo subsiste no falseacionismo sofisticado. Menos, por certo, do que no falseacionismo ingênuo. Precisamos de menos decisões metodológicas. A "decisão de quarto tipo", essencial à versão ingênua,' 37 tornou-se completamente redundante. Para mostrá-lo basta-nos compreender que quando uma teoria científica, que consiste em algumas "leis da natureza", condições iniciais, teorias auxiliares (mas sem cláusula ceteris paribus) conflita com algumas proposições fatuais, não precisamos decidir que parte — explícita ou "oculta" — cumpre substituir. Podemos tentar substituir qualquer parte e só quando esbarramos numa explicação da anomalia com a ajuda de alguma mudança aumentadora do conteúdo (ou hipótese auxiliar), e a natureza a corrobora, passamos a eliminar o complexo "refutado". Assim, o falseamento sofisticado é um processo mais lento, porém possivelmente mais seguro, do que o falseamento ingênuo. Tomemos um exemplo. Suponhamos que a trajetória de um planeta difira da trajetória prevista. Alguns concluem disso que o fato refuta a dinâmica e a teoria gravitacional aplicadas; as condições iniciais e a cláusula ceteris paribus foram engenhosamente corroboradas. Outros concluem que o fato refuta as condições iniciais usadas nos cálculos; a dinâmica e a teoria gravitacional têm sido soberbamente corroboradas nos últimos duzentos anos e todas as sugestões relativas a fatores adicionais em jogo falharam. Outros, todavia, concluem que o fato refuta a suposição implícita de que não havia outros fatores em jogo além dos uqe foram tomados em consideração: é possível que essas pessoas sejam motivadas pelo princípio metafísico de que qualquer explicação é apenas aproximativa devido à infinita complexidade dos fatores envolvidos na determinação de um único acontecimento. Devemos, acaso, elogiar o primeiro tipo como "crítico", renegar o segundo como "mercenário" e condenar o terceiro por "apologético"? Não. Não precisamos concluir coisa alguma dessa "refutação". Nunca rejeitamos uma teoria específica simplesmente por decreto. Quando se nos depara uma incompatibilidade como a mencionada, não precisamos decidir quais os ingredientes da teoria que consideramos problemáticos nem os que consideramos não-problemáticos: basta-nos considerar todos eles problemáticos à luz do enunciado básico aceito conflitante e tentar substituí-los. Conseguindo substituir algum ingrediente de modo "progressivo" (isto é, de modo que o substituto tenha mais conteúdo empírico corroborado do que o original) , diremos que está "falseado". 137. Cf. mais acima, p. 133.

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Tampouco necessitamos da decisão de quinto tipo do falseacionista ingênuo. 138 A fim de mostrá-lo atentemos de novo para o problema das teorias (sintaticamente) metafísicas — e para o problema de sua retenção e eliminação. A solução "sofisticada" é óbvia. Retemos uma teoria sintaticamente metafísica enquanto os casos problemáticos podem ser explicados por mudanças que aumentam o 139 conteúdo nas hipóteses auxiliares associadas a ela. Tomemos, por exemplo, a metafísica cartesiana C: "Em todos os processos naturais há um mecanismo de relógio regulado por princípios (a priori) que o animam." Isso é sintaticamente irrefutável: não colide com nenhum "enunciado básico" espaço-temporalmente singular. Está claro que pode colidir com uma teoria refutável como N: "a gravitação é uma força igual a fm m /r2 que age a distância". Mas N só colidirá com C se a "ação a distância" for interpretada literalmente e talvez, além disso, como representando uma verdade final, irredutível a uma causa mais profunda. (Popper a chamaria de interpretação "essencialista".) Alte rn ativamente podemos considerar a "ação a distância" como causa indireta. Nesse caso, interpretamos "ação a distância" figurativamente, considerando-a como uma síntese para algum mecanismo oculto de ação por contato. (Podemos chamá-la de interpretação "nominalista".) Nessas condições, podemos tentar explicar N por C — o próprio Newton e diversos físicos franceses do século XVIII tentaram fazê-lo. Se uma teoria auxiliar que leva a cabo essa explicação (ou, se quiserem, "redução") produz fatos novos ou seja, é "independentemente testável"), a metafísica cartesiana deve ser considerada boa, científica, empírica, geradora de uma transferência progressiva de problemas. Uma teoria metafísica (sintaticamente) progressiva produz uma transferência progressiva sustentada em seu cinto protetor de teorias auxiliares. Se a redução da teoria à estrutura "metafísica" não produz um novo conteúdo empírico, e muito menos fatos novos, a redução representa uma transferência degenerativa de problemas; é um mero exercício lingüístico. Os esforços cartesianos para sustentar sua "metafísica" a fim de explicar a gra-

vitação newtoniana é um exemplo notável de uma redução meramente 149 lingüística dessa natureza. Assim, não eliminamos uma teoria (sintaticamente) metafísica se ela colidir com uma teoria científica bem corroborada, como sugere o falseacionismo ingênuo. Eliminámo-la se ela produz uma transferência regenerativa a longo prazo e quando há uma metafísica rival, melhor, para substituí-la. A metodologia de um programa de pesquisa com um núcleo "metafísico" não difere da metodologia de um programa de pesquisa com um núcleo "refutável", exceto, talvez, no que concerne ao nível lógico das incoerências que são a força con141 dutora do programa. (Cumpre acentuar, todavia, que a própria escolha da forma lógica em que se há de expressar a teoria depende, em grande parte, da nossa decisão metodológica. Por exemplo, em vez de formular a metafísica cartesiana como um enunciado do tipo `todos-alguns", podemos formulá-la como um enunciado do tipo "todos...": todos os processos naturais são mecanismos de relógios". Um "enunciado básico" que o contradissesse seria: "a é um processo natural e não é um mecanismo de relógio". A questão é saber se, de acordo com as "técnicas experimentais", ou melhor, com as teorias interpretativas do momento, "x não é um mecanismo de relógio" pode ou não ser "estabelecido". Assim a escolha racional da forma lógica de uma teoria depende do estado do nosso conhecimento; por exemplo, o que hoje é um enunciado metafísico do tipo "todos-alguns" pode tornar-se, amanhã, com a mudança do nível de teorias observacionais, um enunciado científico do tipo "todos...". Já afirmei que somente séries de teorias e não teorias isoladas podem ser classificadas como científicas ou não-científicas; agora indiquei que até a forma lógica de uma teo ri a só pode ser racionalmente escolhida com base numa avaliação crítica do estado do programa de pesquisa em que ela está encaixada.) Entretanto, as decisões do primeiro, do segundo e do terceiro 142 não podem ser evitadas mas, tipos do falseacionismo ingênuo

138. Cf. mais acima, p. 136. 139. Só podemos formular essa condição com notável clareza em funcão da metodologia dos programas de pesquisa que será explicada no § 3: conservamos uma teoria sintaticamente metafísica como "núcleo" de um programa de pesquisa, enquanto a sua heurística positiva associada produz uma transferência progressiva de problema no "cinto protetor" das hipóteses auxiliares. Cf. mais adiante, pp. 166 7.

137. Esse fenômeno foi descrito num belo trabalho de Whewell intitulado "On the Transformation of Hypotheses in the History of Science" (1851); mas ele não pôde explicá-lo metodologicamente. Em lugar de reconhecer a vitória do programa newtoniano progressivo sobre o programa cartesiano degenerativo, entendeu ser essa a vitória da verdade provada sobre a falsidade. Acerca de uma discussão geral da demarcação entre a redução progressiva e a redução degenerativa, cf. Popper, "A Realist View of Logic, Physics and History", de 1969. , nota de rodapé n.° 138. Cf. mais acima, p. e 142. Cf. mais acim a, pp.

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como veremos, o elemento convencional da segunda decisão — e também da terceira — pode ser ligeiramente reduzido. Não podemos evitar a decisão sobre a espécie de proposições que deverão ser "observacionais" e as que deverão ser "teóricas". Tampouco podemos evitar a decisão acerca do valor-de-verdade de algumas "proposições observacionais". Tais decisões são vitais para a decisão sobre se uma transferência de problemas é empiricamente progressiva ou 143 degenerativa. Mas o falseacionista sofisticado pode ao menos mitigar o arbitrário da segunda decisão consentindo num processo de apelo. Os falseacionistas ingênuos não formulam nenhum processo de apelo dessa natureza. Aceitam um enunciado básico se este for apoiado por uma hipótese falseadora bem corroborada, 144 e deixam-no anular a teoria que 145 está sendo testada — ainda que tenham plena consciência do risco. Mas não há razão por que não devemos considerar uma hipótese falseadora — e o enunciado básico que ela apoia — tão problemática quanto uma hipótese falseada. Pois bem, como havemos de expor a problematicidade de um enunciado básico? Baseados em que podem os protagonistas da teoria "falseada" apelar e vencer? Algumas pessoas talvez digam que podemos continuar testando o enunciado básico (ou a hipótese falseadora) "pelas suas conseqüências dedutivas" até alcançar finalmente a concordância. Nesse procedimento de teste deduzimos — no mesmo modelo dedutivo — novas conseqüências do enunciado básico com a ajuda da teoria que está sendo testada ou de alguma outra teoria què consideramos não-problemática. Conquanto esse procedimento "não tenha um fim natural", sempre chegamos a um ponto em que não há discordância 14 posterior. s Mas quando o teórico apela contra o veredito do experimentador, o tribunal de apelação não costuma dividir diretamente em grupos típicos o enunciado básico, mas discute a teoria interpretativa à luz daqual foi estabelecido o seu valor-verdade. Um exemplo típico de unta série de apelos bem-sucedidos é a luta dos seguidores de Prout contra a prova experi mental desfavorável de 1815 a 1911. Dur ante décadas a teoria de Prout T ("de que 143. Cf. mais acima, p. 144. 144. Popper, Logik der Forschung, 1934, seção 22. 145. Cf., por exemplo, Popper, The Logic of Scientific Discove ry, 1959, p. 107, nota de pé de página n.° *2. Também cf. mais acima, pp. 136-38. 146. Isto é argüido em Logik der Forschung, de Popper (1934), seção 29.

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todos os átomos são compostos de átomos de hidrogênio e, assim, os "pesos atômicos" de todos os elementos químicos devem poder ser expressos em números inteiros") e hipóteses "observacionais" falseadoras, como "refutação" R de Stas ("o peso atômico do cloro é 35,5") , se defrontaram. No fim, como sabemos, T levou a melhor sobre R.147 A primeira fase de qualquer crítica sérià de uma teoria científica é reconstruir, melhorar sua articulação lógico-dedutiva. Façamos o mesmo no caso da teoria de Prout vis à vis da refutação de Stas. Primeiro que tudo, precisamos compreender que na formulação que acabamos de citar, T e R não eram incompatíveis. (Os físicos raro expressam suas teorias suficientemente para serem definidas e apanhadas pelo crítico.) A fim de apresentá-las como incompatíveis temos de dispô-las da seguinte forma. T: "os pesos atômicos de todos os elementos químicos puros (homogêneos) são múltiplos do peso atômico do hidrogênio", e R: "o cloro é um elemento químico puro (homogêneo) e seu peso atômico é 35,5". 0 último enunciado tem a forma de uma hipótese falseadora que, se for bem corroborada, nos permitirá utilizar enunciados básicos da forma B: "O cloro X é um elemento químico puro (homogêneo) e seu peso atômico é 35,5" — em que X é o nome próprio de um `;pedaço" de cloro determinado, digamos, por suas coordenadas espaço-temporais. Mas até que ponto R é bem corroborada? Seu primeiro componente depende de R : "O cloro X é um elemento químico puro." Foi esse o veredito do químico experimental depois de rigorosa aplicação das "técnicas experimentais" do momento. 1

Observemos com mais atenção a fina estrutura de R . De fato, R representa uma conjunção de dois enunciados mais longos T e T2. O primeiro enunciado, T , poderia ser este: "Se dezessete processos químicos purificadores p , p ... p , são aplicados a um gás, o que resta será cloro puro." T2 é portanto: "X foi submetido a dezessete processos p , • p ... p ." 0 cuidadoso "experimentador" aplicou cuidadosamente os dezessete processos: T2 deve ser aceito. Mas a conclusão de que, portanto, o que restou deve ser cloro puro só é um "fato concreto" em virtude de T . O experimentador, enquanto tes1

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147. Agassi afirma que este exemplo mostra que podemos "aferrar-nos

à hipótese em face dos fatos conhecidos na esperança de que os fatos se ajus-

tem à teoria em lugar de ocorrer o movimento inverso" ("Sensationalism", 1966, p. 18). Mas como podem os fatos ajustar-se? Em que condições particulares venceria a teoria? Agassi não responde.

tava T, aplicou T . Interpretou o que viu à luz de T : e o resultado foi R . No entanto, no modelo monoteórico da teoria explicativa submetida a teste essa teoria interpretativa não aparece. E se T , a teori a interpretativa, for falsa? Por que não "aplicar" T em lugar de T e sustentar que os pesos atômicos precisam ser números inteiros? Nesse caso, este será um "fato concreto" à luz de T, e T será derrubada. Talvez no os processos purificadores adicionais devam ser inventados e aplicados. O problema, portanto, não é quando devemos aferrar-nos a uma "teoria" diante de "fatos conhecidos" e quando não devemos. O problema não é o que fazer quando "teorias" colidem com "fatos". Uma "colisão" dessa natureza só é sugerida pelo "modelo dedutivo monoteórico". O fato de uma proposição ser um "fato" ou uma "teoria" no contexto de uma situação de teste depende da nossa decisão metodológica. A "base empírica de uma teoria" é uma noção monoteórica, é relativa a uma estrutura dedutiva monoteórica. Podemos empregá-la como primeira aproximação; mas em caso de "apelo" feito pelo teórico, precisamos usar um modelo pluralístico. No modelo pluralístico a colisão não se verifica "entre teorias e fatos" mas entre duas teorias de alto nível: entre uma teoria interpretativa para fornecer os fatos e uma teoria explanatória, para explicá-los; e a teoria interpretativa pode estar num nível tão elevado quanto a teoria explanatória. O choque, portanto, já não se verifica entre uma teoria de nível logicamente mais elevado e uma hipótese falseadora de nível inferior. O problema não deveria ser colocado em termos de se saber se uma "refutação" é real ou não. O problema é como reparar uma contradição entre a "teoria explanatória" que está sendo testada e as teorias. "interpretativas" — explícitas ou ocultas; ou, se quiserem, o problema é saber que teoria considerar como a teoria interpretativa, que fornece os fatos "concretos" e que teoria considerar como a teoria explanatória, que "tentativamente" os explica. Num modelo monoteórico consideramos a teoria de nível mais elevado como uma teoria explanatória que será julgada pelos "fatos" obtidos de fora (pelo experimentador autorizado); no caso de conflito rejeitamos a explicação. 148 Num modelo pluralístico podemos 1

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148. A decisão de usar um modelo monoteórico é claramente vital para o falseacionista ingênuo, pois lhe permite rejeitar uma teoria sob o único pretexto da evidência experimental. Está de acordo com a necessidade que

ele tem de dividir nitidamente, pelo menos numa situação de teste, o corpo da ciência em dois: o problemático e o não-problemático (Cf. mais acima, p. 130.) S6 a teoria que ele decide considerar problemática é por ele articulada em seu modelo dedutivo de crítica.

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decidir, alternativamente, considerar a teoria de nível mais elevado como teoria interpretativa para julgar os "fatos" obtidos de fora; em caso de conflito podemos rejeitar os "fatos" como "monstros". Num modelo pluralístico de teste, várias teo ri as — mais ou menos dedutivamente organizadas — estão soldadas umas nas outras. Só esse argumento bastaria para mostrar a correção da conclusão, extraída de um argumento ante rior diferente, de que as experiências simplesmente não derrubam teorias, de que nenhuma teoria proí14 be um estado de coisas especificável de antemão. s Não se trata de propormos uma teo ria e a Natureza poder gri tar NÃO; trata-se de propormos um emaranhado de teorias, e a Natureza poder gritar INCOMPATIVEIS. 15 o O problema é então transferido do velho problema de substituir uma teoria refutada por "fatos" para o novo problema de como resolver incompatibilidades entre teorias intimamente associadas. Qual das teori as mutuamente incompatíveis deve ser eliminada? O falseacionista sofisticado pode responder com facilidade à pergunta: precisamos tentar substituir p rimeiro uma, depois a outra, depois talvez as duas, e optar pela nova organização, que proporciona o maior aumento de conteúdo corroborado, que proporciona a transferência mais progressiva de problemas. 151 Estabelecemos assim um processo de apelo para o caso de querer o teórico contestar a sentença negativa do experimentador. O teórico pode exigir que o experimentador especifique sua "teoria inter149. Cf. mais acima, p. 120. 150. Seja-me aqui permitido responder a uma possível objeção: "Por certo não precisamos de que a Natureza nos diga que um conjunto de teorias é inconsistente. A inconsistência — à diferença da falsidade — pode ser determinada sem a ajuda da Natureza". Mas o "NAO" real da Natureza numa metodologia monoteórica assume a forma de um "falseador potencial" fortificado, isto é, uma sentença que, nessa maneira de falar, afirmamos ter sido proferida pela Natureza e que é a negação da nossa teoria. A "INCONSISTENCIA" real da Natureza numa metodogia pluralística assume a forma de um enunciado "fatual" expresso à luz de uma das teorias envolvidas, que proclamamos ter sido proferida pela Natureza e que, acrescentada às nossas teorias propostas, produz um sistema inconsistente. 151. Por exemplo, em nosso exemplo anterior (cf. mais acima, p. 129 e seguintes) alguns podem tentar substituir a teoria gravitacional por uma nova e outros podem tentar substituir a radiótica por uma nova: escolhemos o processo que oferece o crescimento mais espetacular, a transferência mais progressiva de problemas.

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Não poderemos livrar-nos do problema da "base empírica", se quisermos aprender com a experiência 156; mas podemos tornar nosso aprendizado menos dogmático — mas também menos rápido e menos dramático. Encarando como problemáticas algumas teorias observacionais podemos tornar mais flêxível nossa metodologia, mas não podemos expressar e incluir todo o "conhecimento de fundo" (ou "ignorância de fundo"?) em nosso modelo dedutivo crítico. Esse processo está fadado a realizar-se aos poucos e é preciso traçar uma linha convencional a qualquer tempo dado.

pretativa", 152 , podendo então substituí-la — para contrariedade do experimentador — por outra melhor, a cuja luz sua teoria original153 mente "refutada" recebe uma avaliação positiva. Mesmo esse apelo, porém, não pode fazer mais do que adiar a decisão convencional. Pois a sentença do tribunal de apelação também não é infalível. Quando decidimos se é a substituição da teoria "interpretativa" ou a substituição da teoria "explanatória" que produz fatos novos, precisamos decidir outra vez acerca da aceitação ou rejeição de enunciados básicos. Nesse caso, porém, teremos apee possivelmente melhorado — a decisão; não a terenas adiado — 154 mos evitado. As dificuldades que dizem respeito à base empírica com as quais se defrontou o falseacionismo "ingênuo" também não podem ser evitadas pelo falseacionismo "sofisticado". Mesmo que consideremos "fatual" uma teoria, isto é, se a nossa imaginação limitada, de movimentos lentos, não puder oferecer uma alternativa para ela (como Feyerabend costumava dizê-lo), precisamos tomar, pelo menos ocasional e temporariamente, decisões a respeito do seu valor-de-verdade. Mesmo assim, a experiência continua sendo, num senti155 do importante, o "árbitro imparcial" da controvérsia científica. 152. A crítica não presume uma estrutura dedutiva plenamente inteligível: cria-a. (A propósito, esta é a tese principal do meu ensaio de 1963-4, "Proofs and Refutations" ) 153. Um exemplo clássico desse modelo é a relação entre Newton e Flamsteed, o primeiro astrônomo real. Newton, por exemplo, visitou Flamsteed no dia 1.° de setembro de 1694, quando trabalhava o dia inteiro em sua teoria lunar; pediu-lhe que reinterpretasse alguns dos seus dados, que lhe contradiziam a própria teoria; e explicou-lhe exatamente como deveria proceder. Flamsteed obedeceu e escreveu a Newton no dia 7 de outubro: "Depois que o senhor foi para casa, examinei minhas observações para determinar as maiores equações da órbita da terra e considerar os lugares da lua nessas ocasiões... Verifico que (se, como o senhor afirma, a terra se inclina para o lado em que está a lua) o senhor pode descontar cerca de 20" dela..." Assim Newton criticava e corrigia constantemente as teorias observacionais de Flamsteed. Newton ensinou-lhe, por exemplo, uma teoria melhor do poder de refração da atmosfera; Flamsteed aceitou-o e corrigiu seus "dados" originais. Pode compreender-se a constante humilhação e a fúria crescente desse grande observador ao ver seus dados criticados e aprimorados por um homem que, como ele mesmo confessava, não fazia observações por si próprio: e desconfio muito de que foi esse sentimento a origem de uma rancorosa controvérsia entre ambos. 154. 0 mesmo se aplica ao terceiro tipo de decisão. Se só rejeitarmos uma hipótese aleatória por outra que, ao nosso entender, a suplanta, a forma exata das "regras de rejeição" se tornará menos importante. 155. Popper, The Open Society and Its Enemies, 1945, vol. II, capítulo 23, p. 218.

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Há uma objeção até para a versão sofisticada do falseacionismo metodológico à qual não se pode responder sem fazer uma concessão ao "simplismo" duhemiano. A objeção é o chamado "paradoxo de rodeios" ("tacking paradox") . De acordo com nossas definições, acrescentar hipóteses de baixo nível completamente desconexas a uma teoria dada pode constituir uma "transferência progressiva". É difícil eliminar tais transferências provisórias sem exigir que as asserções adicionais devam ser ligadas à asserção original mais intimamente do que por simples conjunção. Claro está que isso é uma espécie de requisito de simplicidade que asseguraria a continuidade na série de teorias que, segundo se pode dizer, constitui uma transferência de problemas. Isso nos conduz a novos problemas. Pois um dos traços cruciais do falseacionismo sofisticado é substituir o conceito de teoria, como conceito da descoberta, pelo da série de teorias. E uma sucessão de teorias e não uma teoria determinada que se avalia como científica ou pseudocientífica. ica. Mas os elementos dessa série de teo rias costumam estar ligados por notável continuidade, que os solda em programas de pesquisa. Essa continuir '1de — que lembra a "ciência normal" kuhniana — desempenha gim papel vital na história da ciência; os principais problemas da lógica da descoberta só podem ser satisfatoriamente discutidos na estrutura de uma metodologia dos programas de pesquisa. e

3. UMA METODOLOGIA DOS PROGRAMAS DE PESQUISA CIENTÍFICA Discuti o problema da avaliação objetiva do crescimento científico em termos de transferências progressivas e degenerativas de pro156. Agassi, portanto, está errado em sua tese de que "os relatos de observação podem ser aceitos como falsos e, por conseguinte, assim se elimina o problema da base empírica" (Agassi, "Sensationalism", 1966, p. 20).

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'fiares que poderiam tê-la salvo da aparente evidência contrária — como as elipses keplerianas (heurística positiva).

blemas em séries de teorias científicas. As mais importantes dessas séries no crescimento da ciência caracterizam-se por certa continuidade que liga seus elementos. Essa continuidade se desenvolve de um autêntico programa de pesquisa esboçado a princípio. O programa consiste em regras metodológicas; algumas nos dizem quais são os caminhos de pesquisa que devem ser evitados (heurística negativa), outras nos dizem quais são os caminhos que devem ser palmi157 lhados (heurística positiva).

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(a) Heurística negativa: o "núcleo" do programa.

Todos os programas de pesquisa científica podem ser caracterizados pelo "núcleo". A heurística negativa do programa nos proibe dirigir o modus tollens para esse "núcleo". Ao invés disso, precisamos utilizar nosso engenho para articular ou mesmo inventar "hipóteses auxiliares", que formam um cinto de proteção em torno do núcleo, e precisamos redirigir o modus tollens para elas. E esse cinto de proteção de hipóteses auxiliares que tem de suportar o impacto dos testes e ir se ajustando e reajusando, ou mesmo ser completamente substituído, para defender o núcleo assim fortalecido. O programa de pesquisa será bem-sucedido se tudo isso conduzir a uma transferência progressiva de problemas, porém mal sucedido se conduzir a uma transferência degenerativa de problemas.

A própria ciência como um todo pode ser considerada um imenso programa de pesquisa com a suprema regra heurística de Popper: "arquitetar conjeturas que tenham maior conteúdo empírico do que as predecessoras." Essas regras metodológicas podem ser formuladas, como Popper assinalou, como princípios metafísicos. 158 Por exemplo, a regra anticonvencionalista úniversal contra a exclusão da exceção pode ser formulada como o princípio metafísico: "A natureza não admite exceções". Por isso é que Watkins chamava a tais regras "metafísica influente". 159

O exemplo clássico de programa de pesquisa bem-sucedido é a teoria gravitacional de Newton; talvez seja até o mais bem-sucedido programa de pesquisa já levado a cabo. Quando foi produzido oceano de "anomalias" (ou, pela pri meira vez, viu-se submerso )num ,161 e enfrentou a oposição das se quiserem, de "contra-exemplos" teorias observacionais que sustentavam tais anomalias. Os newtonianos, contudo, transformaram, com tenacidade e engenho brilhantes, um contra-exemplo depois do outro em exemplos corroborativos, principalmente derrubando as teorias observacionais originais a cuja luz essa "evidência contrária" foi estabelecida. No processo, eles mesmos produziram novos contra-exemplos, que novamente resolviam. "Converteram cada nova dificuldade numa nova vitória do seu pro162 grama".

Mas o que tenho sobretudo em mente não é a ciência como um todo, senão programas particulares de pesquisa, como o conhecido por "metafísica cartesiana". A metafísica cartesiana, isto é, a teo ria mecanicista do universo — de acordo com a qual o universo é um imenso mecanismo de relógio (e um sistema de vórtices) que tem o impulso como única causa do movimento — funcionou como poderoso princípio heurístico. Desestimulava o trabalho em teorias científicas que — como [a versão "essencialista" da] teo ria de Newton de ação a distância — fossem incompatíveis com ela (heurística negativa) e, de outro lado, estimulava o trabalho sobre hipóteses auxi157. Pode-se assinalar que a heurística negativa e a positiva dão uma definição tosca (implícita) do "referencial conceptual" (e conseqüentemente da linguagem) O reconhecimento de que a história da ciência é a história dos programas de pesquisa mais do que das teorias pode, portanto, ser visto como uma justificação parcial do ponto de vista de que a história da ciência é a história de estruturas conceptuais ou das linguagens científicas. 158. Popper, Logik der Forschung, 1934, seções 11 e 70. Uso "metafísicos" como termo técnico do falseacionismo ingênuo: uma proposição contingente será "metafísica" se não tiver "falseadores potenciais". 159. Watkins, "Influential and Confirmable Metaphysics", 1958. Watkins adverte que "a lacuna lógica entre os enunciados e as prescrições no campo metafísico-metodológico é ilustrado pelo fato de poder uma pessoa rejeitar uma doutrina [metafísica] em sua forma de exposição de fatos enquanto lhe subscreve a versão prescritiva" (Ibid., pp. 356-7).

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No programa de Newton a heurística negativa nos sugere que desviemos o modus tvl ens das três leis da dinâmica e da lei de gravitação de Newton. Esse "núcleo" é. "irrefutável" por decisão tr;etodoi^ 160. Sobre esse programa de pesquisa cartesiano, cf. Popper, "Philosophy and Physics", 1958, e Watkins, "Influential and Confirmable Metaphysics", pp. 350-1. 161. Sobre o esclarecimento dos conceitos de "exemplo contrário" e "anomalia", cf. mais acima, p. 133, e sobretudo mais adiante, p. 195, o texto correspondente à nota de pé de página n.° 251. 162. Laplace, Exposition du Système du Monde, 1796, livro IV, capítufo ii.

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lógica de seus protagonistas: as anomalias só devem conduzir a mudanças no cinto "protetor" da hipótese auxiliar, "observacional" e 163 das condições iniciais. Dei um microexemplo inventado de uma transferência progressiva newtoniana, de problemas. 164 Se o analisarmos, veremos que cada elo sucessivo nesse exercício prediz um fato novo; cada passo representa um aumento do conteúdo empírico: o exemplo constitui uma transferência teórica coerentemente progressiva. Outrossim, cada predição se verifica no fim; embora em três ocasiões subseqüen165 tes as predições pareçam ter sido momentaneamente "refutadas". Ao passo que o "progresso teórico" (no sentido aqui descrito) pode 166 o "progresso empírico" não pode, e ser verificado imediatamente, num programa de pesquisa somos, às vezes, frustrados por uma longa série de "refutações" antes que hipóteses auxiliares, engenhosas e felizes, capazes de aumentar o conteúdo, convertam — retrospectivamente — uma cadeia de derrotas numa ressoante história de sucesso, quer revendo alguns "fatos" falsos, quer acrescentando novas hipóteses auxiliares. Podemos dizer então que precisamos exigir de cada passo de um programa de pesquisa que aumente consistentemente o conteúdo: que cada passo constitua uma transferência teórica consistentemente progressiva de problemas. Além disso, só precisamos, pelo menos de vez em quando, que se veja que o aumento de conteúdo foi retrospectivamente corroborado; o programa como um todo deve também exibir uma transferência empírica intermitentemente progressiva. Não exigimos que cada passo produza imediatamente um fato novo observado. Nosso termo "intermitentemente" dá suficiente amplitude racional para a adesão dogmática a um programa em face de "refutações" prima facie. A idéia da "heurística negativa" de um programa de pesquisa científica racionaliza de forma considerável o convencionalismo clássico. Podemos decidir racionalmente não permitir que "refutações" transmitam falsidade ao núcleo enquanto aumenta o conteúdo empírico corroborado do cinto protetor de hipóteses auxiliares. Nossa 163. 0 núcleo real de um programa não emerge, na realidade, completamente armado — como Atenas da cabeça de Zeus. Desenvolve-se aos poucos, por um longo processo preliminar de ensaio-e-erro. Neste ensaio não se discute o citado processo. 164. Cf. mais acima, pp. 120-1. 165. A "refutação" foi, todas as vezes, desviada com êxito para "lemas ocultos"; isto é, para lemas que emergem, por assim dizer, da cláusula ceteris

paribus.

166. Mvs cf. mais adiante, pp. 190-2.

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abordagem, porém, difere do convencionalismo justificacionista de Poincaré no sentido de que, à diferença de Poincaré, sustentamos que na hipótese de o programa deixar de antecipar fatos novos, e quando isso acontecer, o seu núcleo talvez tenha de ser abandonado; isto é, o nosso núcleo, à diferença do de Poincaré, pode desintegrar-se em certas condições. Nesse sentido estamos com Duhem, segundo o qual mas para era preciso tomar em consideração essa possibilidade; 167 168 Duhem a razão da desintegração é puramente estética, ao passo que para nós ela é sobretudo lógica e empírica. (b) Heurística positiva: a construção do "cinto de proteção" e a relativa autonomia da ciência teórica. Os programas de pesquisa, além da sua heurística negativa, caracterizam-se também pela sua heurística positiva. Até os programas mais rápida e coerentemente progressivos de pesquisa só podem digerir sua "evidência contrária" aos poucos: as anomalias nunca se esgotam de todo. Não se deve pensar, porém, que anomalias ainda não-explicadas — "quebra-cabeças" como Kuhn lhes poderia chamar — são compreendidas ao acaso, e o cinto de proteção construído de maneira eclética, sem nenhuma ordem preconcebida. A ordem costuma ser decidida no gabinete do teórico, independentemente das anomalias conhecidas. Poucos cientistas teóricos empenhados num programa de pesquisa dão indevida atenção a "refutações". Eles têm uma política de pesquisa a longo prazo que as antecipa. Essa política, ou ordem, de pesquisa é exposta — com maiores ou menores minúcias — na heurística positiva do programa de pesquisa. A heurística negativa especifica o "núcleo" do programa, que é "irrefutável" por decisão metodológica dos seus protagonistas; a heurística positiva consiste num conjunto parcialmente articulado de sugestões ou palpites sobre como mudar e desenvolver as "vari antes refutáveis" do programa de pesquisa, e sobre como modificar e sofisticar o cinto de proteção "refutável". A heurística positiva do programa impede que o cientista se confunda no oceano de anomalias. A heurística positiva apresenta um programa que inclui uma cadeia de modelos, cada vez mais complicados, que simulam a realidade: a atenção do cientista focaliza-se na construção dos modelos de acordo com as instruções que figuram 167. Cf. mais acima, p. 127.

168. Ibid.

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na parte positiva do programa. Ele ignora os contra-exemplos reais, os "dados" disponíveis. 169 Newton elaborou primeiro o seu programa para um sistema planetário com um ponto fixo como sol e um único ponto como planeta. Desse modelo, derivou sua lei do inverso do quadrado para a elipse de Kepler. Mas esse modelo foi proibido pela própria terceira lei da dinâmica de Newton e, portanto, precisou ser substituído por outro em que tanto o sol quanto o planeta giravam em torno do seu centro comum de gravidade. A mudança não foi motivada por nenhuma observação (os dados não sugeriram aqui' "anomalia" alguma) mas por uma dificuldade teórica no desenvolvimento do programa. Em seguida, Newton desenvolveu o programa para um número maior de planetas, como se houvesse apenas forças heliocêntricas mas não houvesse forças interplanetárias. Ato contínuo, desenvolveu a hipótese de não serem o sol e os planetas pontos-massa, mas bolas-massa. E para essa mudança tampouco precisou da obse rv ação de uma anomalia; a densidade infinita era proibida por uma teoria (não-expressa) que servia de critério e, por conseguinte, os planetas tinham que ter extensão. A mudança supunha consideráveis dificuldades matemáticas, retardou o trabalho de Newton — e atrasou a publicação dos Principia por mais de um decênio. Tendo solucionado esse "enigma", ele pôs-se a trabalhar em esferas giratórias e suas oscilações. A seguir, admitiu a existência 'de forças interplanetárias e começou a trabalhar em perturbações. Nesse ponto principiou a olhar com maior ansiedade para os fatos. Muitos eram magnificamente explicados (qualitativamente) pelo modelo, muitos não o eram. Foi então que começou a trabalhar com planetas irregulares, em lugar de planetas redondos, etc. Newton desprezava as pessoas que, à semelhança de Hooke, tropeçavam num primeiro modelo ingênuo mas não tinham a tenacidade nem capacidade para desenvolvê-lo e transformá-lo num programa de pesquisa, e encaravam uma primeira versão, um mero aparte, como uma "descoberta". Sustou a publicação até que o seu programa logrou uma notável transferência progressiva. 170 169. Quando um cientista (ou matemático) tem uma heurística positiva, recusa-se a ser atraído para a observação. "Deita-se em seu sofá, fecha os olhos e esquece-se dos dados". (Cf. meu ensaio, "Proofs and Refutations", 1963-4, especialmente às pp. 300 e seguintes, onde se encontra um estudo circunstanciado de um programa dessa natureza.). Ocasionalmente, é claro, ele fará à Natureza uma pergunta ladina, e sentir-se-á animado pelo SIM da Natureza, mas não se sentirá desanimado pelo seu NAO. 170. Seguindo Cajori, Reichenbach dá uma explicação diferente do atraso da publicação dos Principia de Newton: "Para seu desapontamento ele descobriu que os resultados observacionais não concordavam com os seus

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A maioria, se não todos, os "enigmas" newtonianos, que conduziram a uma série de novas variantes que se sucediam umas às outras era previsível ao tempo do primeiro modelo ingênuo de Newton, que sem dúvida os previu, como os devem ter previstos os seus colegas; Newton deve ter tido plena consciência da falsidade berrante de suas primeiras variantes. Nada mostra com maior clareza a existência de uma heurística positiva num programa de pesquisa do que este fato; por isso se fala em "modelos", em programas de pesquisa. Um "modelo" é um conjunto de condições iniciais (possivelmente junto com algumas teorias observacionais) que se sabe condenado a ser substitíudo durante o subseqüente desenvolvimento do programa, e que até se sabe, mais ou menos, como o será. Isso mostra mais uma vez o quanto são irrelevantes as "refutações" de qualquer variante específica num programa de pesquisa. A existência delas é plenamente esperada, a heurística positiva lá está como estratégia não só para as predizer (produzir) mas também para as digerir. Com efeito, se se expuser claramente a heurística positiva, as dificuldades do programa serão muito mais matemáticas do que empíricas. 171 Pode formular-se a "heurística positiva" de um programa de pesquisa como um princípio "metafísico". Pode formular-se, por exemplo, da seguinte maneira o programa de Newton: "os planetas são essencialmente piões giratórios de forma aproximadamente esférica e dotados de gravitação". Essa idéia nunca foi rigidamente mantida: os planetas não são apenas gravitacionais, possuem também, por exemplo, características eletromagnéticas que podem influenciarlhes o movimento. Desse modo, a heurística positiva, em geral, é mais flexível do que a negativa. Além disso, acontece ocasionalmente que, quando um programa de pesquisa entra numa fase degenerativa, uma revoluçãozinha ou uma transferência criativa em sua heurística cálculos. Entretanto, em lugar de propor uma teoria qualquer, por mais bonita que fosse, antes dos fatos, Newton engavetou o manuscrito da sua teoria. Uns vinte anos mais tarde, depois que uma expedição francesa realizou novas medições da circunferência da terra, Newton constatou que as cifras em que baseara o seu teste eram falsas e que os novos resultados concordavam com seus cálculos teóricos. Só depois disso publicou sua lei... A história de Newton é uma das mais notáveis ilustrações do método da ciência moderna" (Reichenbach, The Rise of Scientific Philosophy, 1951, pp. 101-2). Feyerabend crtica o relato de Reichenbach (Feyerabend, "Reply to Criticism", 1965, p. 229), mas não apresenta um fundamento lógico alternativo. 171. Sobre esse ponto cf. Truesdell, "The Program toward Rediscovering the Rational Mechanics in the Age of Reason", 1960.

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positiva pode empurrá-lo de novo para a frente. 172 É melhor, portanto, separar o "núcleo" dos princípios metafísicos mais flexíveis que expressam a heurística positiva. Das nossas considerações se depreende que a heurística positiva avança aos poucos, com dificuldade, e com descaso quase completo 173 das "refutações"; pode parecer que as "verificações", mais do que as refutações, fornecem os pontos de contato com a realidade. Conquanto se deve assinalar que qualquer "verificação" da enésima-primeira versão do programa é uma refutação da enésima versão, não podemos negar que sempre se prevêem algumas derrotas das versões subseqüentes: são as "verificações" que mantêm o programa em andamento, apesar dos casos recalcitrantes. Podemos avaliar os programas de pesquisa, mesmo depois da sua "eliminação", pela sua força heurística; quantos fatos novos produziram, até onde ia "a capacidade deles para explicar suas refutações 174 no decorrer do crescimento"? (Podemos avaliá-los também pelo estímulo que dão à matemática. As dificuldades reais para o cientista teórico nascem mais das dificuldades matemáticas do programa do que das anomalias. A grandeza do programa newtoniano procede, em parte, do desenvolvimento — por newtonianos — da análise infinitesimal clássica, pré-condição crucial do seu bom êxito.) De modo que a metodologia dos programas de pesquisa científica explica a relativa autonomia da ciência teórica: fato histórico cuja racionalidade não pode ser explicada pelos primeiros falseacionistas. Os problemas racionalmente escolhidos por cientistas que trabalham em poderosos programas de pesquisa são determinados pela heurística positiva do programa, muito mais do que pelas anomalias psicologicamente preocupantes (ou tecnologicamente urgentes). Embora arroladas, as anomalias são postas de lado na esperança de que se transformem, com o tempo, em corroborações do programa. Só 172. A contribuição de Soddy para o programa de Prout ou a contribuição de Pauli para o programa de Bohr (a antiga teoria quântica) são exemplos típicos dessas transferências criativas. 173. Uma "verificação" é uma corroboração do excesso de conteúdo no programa em expansão. Mas uma "verificação", naturalmente, não verifica um programa: apenas lhe mostra a força heurística. 174. Cf. meu ensaio "Proofs and Refutations", 19634, pp. 324-30. Infelizmente, em 1963-4 eu ainda não fizera uma clara distinção terminológica entre teorias e programas de pesquisa, o que me prejudicou a exposição de um programa de pesquisa da matemática informal, quase empírica.

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precisam concentrar sua atenção em anomalias os cientistas empe175 ou que trabalham numa nhados em exercícios de ensaio-e-erro fase degenerativa de um programa de pesquisa quando a heurística positiva perde o gás. (1✓ claro que' tudo isso há de parecer repugnante aos falseacionistas ingênuos, segundo os quais, depois que uma teoria é "refutada" pela experiência (segundo o livro de regras deles), é irracional (e desonesto) continuar a desenvolvê-la: cumpre substituir a velha teoria "refutada" por uma teoria nova, não-refutada.) (c) Duas ilustrações: Prout e Bohr. A dialética da heurística positiva e negativa num programa de pesquisa pode ser melhor esclarecida por meio de exemplos. Esboçarei, portanto, alguns aspectos de dois programas de pesquisa espetacularmente bem-sucedidos: o programa de Prout 175 baseado na idéia de que todos os átomos são compostos de átomos de hidrogênio, e o programa de Bohr, baseado na idéia de que a emissão da luz se deve a elétrons que saltam de uma órbita para outra no interior dos átomos. ,

(Ao redigir o estudo de um caso histórico deve-se, creio eu, adotar o seguinte procedimento: (1) faz-se uma reconstrução racional; (2) tenta-se cotejar essa reconstrução racional com a história real e criticar tanto a reconstrução racional por falta de historicidade quanto a história real por falta de racionalidade. Dessa maneira, todo estudo histórico deve ser precedido de um estudo heurístico: a história da ciência sem a filosofia da ciência é cega. Neste estudo não é minha intenção entrar seriamente na segunda fase.) (c 1) Prout: um programa de pesquisa que avança num oceano de anomalias. Num ensaio anônimo de 1815, Prout afirmou que os pesos atômicos de todos os elementos químicos puros eram números inteiros. Ele sabia muito bem que as anomalias eram abundantes, mas disse que elas surgiam porque as substâncias químicas tal como costumavam se apresentar eram impuras: isto é, as "técnicas experimentais" pertinentes que existiam nessa época não mereciam confiança ou, em outras palavras, as teorias "observacionais" contemporâneas, a cuja luz foram estabelecidos os valores-de-verdade dos enunciados 175. Cf. mais adiante, p. 216. 176. Já mencionado mais acima, pp. 156-8. I /.O

básicos de sua teoria, eram falsas. 177 Os defensores da teo ria de Prout lançaram-se, portanto, numa grande aventura: derrubar as teorias que proporcionavam a evidência contrária à sua tese. Para isso era-lhes preciso revolucionar a química analítica estabelecida naquela época e, correspondentemente, revisar as técnicas experimen178 A teoria tais com que se haviam de separar os elementos puros. de Prout, na realidade, derrotou as teorias ante riormente aplicadas na puri ficação de substâncias químicas, uma depois da outra. Mesmo assim, os químicos cansaram-se do programa de pesquisas e renunciaram a ele, visto que os sucessos ainda estavam longe de indicar uma vitória final. Stas, por exemplo, frustrado por alguns casos obstinados e recalcitrantes, concluiu em 1860 que a teoria de Prout "não tinha fundamentos". 170 Outros, porém, se sentiram mais animados pelo progresso do que desanimados pela falta de sucesso completo. Marignac, por exemplo, retrucou imediatamente que "embora [ele estivesse convencido de que] as experiências de Monsieur Stas são perfeitamente exatas, [não há prova] de que as diferenças observadas entre seus resultados e os requeridos pela lei de Prout não podem ser explicadas pelo caráter imperfeito dos métodos experimentais". 180 Como disse Crookes em 1886: "Não poucos químicos de reconhecida eminência consideram que temos aqui [na teoria de Prout] uma expressão da verdade, mascarada por alguns fenômenos "181 Isto residuais ou colaterais que ainda não conseguimos eliminar. 177. Tudo isso, infelizmente, é mais reconstrução racional do que história verdadeira. Prout negou a existência de quaisquer anomalias. Ele afirmava, por exemplo, que o peso atômico do cloro era exatamente 36. 178. Prout estava ciente de alguns traços metodológicos básicos do seu programa. Permitam-nos citar as primeiras linhas do seu ensaio de 1815, "On the Relation between the Specific Gravities of Bodies in their Gaseous State and the Weights of their Atoms": "O autor do ensaio que se segue submete-o à apreciação do público com a maior desconfiança... Ele se fia, contudo, de que sua importância será percebida e de que alguém lhe empreenderá o exame e, assim, verificará ou refutará suas conclusões. Se estas se revelarem errôneas, novos fatos ainda poderão ser trazidos à luz, ou velhos fatos poderão ser melhor estabelecidos, mas se elas vierem a verificar-se, uma luz nova e interessante se projetará sobre toda a ciência da química." 179. Clerk Maxwell estava do lado de Stas: ele acreditava ser impossível que houvesse dois tipos de hidrogênio, "pois se algumàs [moléculas] fossem de massa ligeiramente maior do que outras, temos meios de separar as moléculas de massas diferentes, uma das quais seria um pouco mais densa do que a outra. Como isso não pode ser feito, temos de admitir [que todas são iguais] " (Maxwel, Theory of Heat, 1871). 180. Marignac, "Commentary on Stas' Researches on the Mutual Relations of Atomic Weights", 1860. 181. Crooks, Discurso Presidencial Dirigido à Seção de Química da British Association, 1886.

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é, devia haver alguma falsa suposição oculta adicional nas teorias "observacionais" em que se baseavam as "técnicas experimentais" para a purificação química e com cuja ajuda foram calculados os pesos atômicos; no entender de Crookes mesmo em 1886 "alguns pesos atômicos atuais representavam tão-somente um valor médio". 182 Com efeito, Crookes prosseguiu no afã de dar a essa idéia uma forma científica (aumentadora de conteúdo): propôs novas teorias concretas de "fracionamento", um novo "Demônio classifica183 dor". Infelizmente, todavia, suas novas teorias observacionais revelaram-se tão falsas quanto ousadas e, sendo incapazes de antecipar um fato novo sequer, foram eliminadas da história da ciência (racionalmente construída). Como se verificou uma geração depois, uma suposição oculta básica escapou aos pesquisadores: a de que dois elementos puros devem ser separáveis por métodos químicos. A idéia de que dois elementos puros diferentes podem comportar-se de maneira idêntica em todas as reações químicas mas podem ser separados por métodos físicos exigia uma mudança, uma "extensão" do conceito de "elemento puro" que constituía uma mudança — uma expansão da extensão do conceito — do próprio programa de pes184 quisa. Essa transferência revolucionária, altamente criativa, foi tomada apenas pela escola de Rutherford 185; e então, "depois de inúmeras vicissitudes e das mais convincentes refutações aparentes, a hipótese levantada tão ligeiramente por Prout, médico de Edimburgo, em 1815, tornou-se, um século mais tarde, a pedra angular das 186 modernas teorias da estrutura dos átomos". Esse passo criativo, no entanto, foi, de fato, apenas um resultado colateral do progresso num programa de pesquisa diferente e, com efeito, distante; carecendo desse estímulo externo, os proutianos nunca pensaram em tentar, por exemplo, construir máquinas centrífugas poderosas para separar elementos. (Quando se elimina uma teoria "observacional" ou "interpretativa", as mensurações "precisas" levadas a cabo no interior do re182. Ibid. 183. Ibid., p. 491. 184. Sobre "estiramento de conceito", cf. meu ensaio, "Proofs and Refutations", 1963-4, parte IV. 185. A transferência é antecipada no fascinante Relatório Apresentado à Reunião Geral Anual da Chemical Society, em 1888, por Crookes, onde ele indica que a solução deveria ser buscada numa nova demarcação entre o "físico" e o "químico". Mas a antecipação permaneceu filosófica; coube a Rutherford e a Soddy o desenvolvimento dela e sua transformação, depois de 1919, em teoria científica. 186. Soddy, The Interpretation of the Atom, 1932, p. 50.

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ferencial desprezado podem parecer — considerando-as retrospectivamente — um tanto tolas. Soddy ridicularizou a "precisão experimental" a suas próprias custas: "Há, sem dúvida, algo semelhante a uma tragédia, ou capaz de transcendê-la, no destino que se abateu de repente sobre a obra a que dedicou sua vida a distinta galáxia de químicos do século XIX, reverenciados com razão pelos seus contemporâneos como representando o cúmulo da perfeição da mensuração científica exata. Os resultados que conseguiram com tanto esforço parecem, pelo menos por enquanto, tão despidos de interesse e de importância quanto a determinação do peso médio de uma coleção de garrafas, algumas cheias e algumas mais ou menos vazias." 187 Acentuemos que, à luz da metodologia dos programas de pesquisa aqui proposta, nunca houve uma razão racional para eliminar o programa de Prout. O programa, com efeito, produzia uma bela e progressiva transferência, ainda que, nos inte rvalos, surgissem consideráveis transtornos. 188 Nosso esboço mostra como um programa de pesquisa pode desafiar um volume considerável de conhecimento científico aceito; plantado, por assim dizer, num ambiente hostil, pouco a pouco o sujeito se transformou. Outrossim, a história real do programa de Prout ilustra bem demais até que ponto o justificacionismo e o falseacionismo ingênuo estorvaram e retardaram o progresso da ciência. (A oposição à teoria atômica no século XIX foi fomentada por' ambos.) Uma elaboração da influência da má metodologia sobre a ciência pode ser um programa de pesquisa recompensador para o historiador da ciência. (c 2) Bohr: um programa de pesquisa que progride sobre fundamentos inconsistentes. Um rápido resumo do programa de pesquisa de Bohr sobre a emisão da luz (no princípio da física quântica) ilustrará ainda mais 18 — e até expandirá — nossa tese. s 187. Ibid. 188. Esses transtornos induzem inevitavelmente muitos cientistas individuais a arquivar ou a jogar fora o programa e a participar de outros programas de pesquisa em que acontece a heurística positiva oferecer, na ocasião, êxitos mais fáceis: a história da ciência não pode ser cabalmente compreendida sem a psicologia das multidões. (Cf. mais abaixo, pp. 219-22.) 189. Esta seção pode impressionar novamente o historiador menos como esboço do que como caricatura; mas espero que sirva ao seu propósito (Cf. mais acima, p. 169). Alguns enunciados não devem ser tomados com uma pitada, senão com toneladas de sal.

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A história do programa de pesquisa de Bohr pode ser caracterizada por (1) seu problema inicial; (2) sua heurística negativa e sua heurística positiva; (3) os problemas que ele tentou resolver no decurso do seu desenvolvimento; e (4) seu ponto de degeneração (ou, se quiserem, seu "ponto de saturação") e, finalmente, (5) o programa pelo qual foi ultrapassado. O problema básico era o enigma de como os átomos de Rutherford (isto é, minúsculos sistemas planetários com elétrons que descrevem órbitas em torno de um núcleo positivo) podem permanecer estáveis; pois, de acordo com a teoria bem corroborada de MawellLorentz do eletromagnetismo, eles deviam desintegrar-se. Mas a teoria de Rutherford também era bem corroborada. A sugestão de Bohr consistia em ignorar por ora a incongruência e desenvolver conscientemente um programa de pesquisa cujas versões "refutáveis" fossem incompatíveis com a teoria de Maxwell-Lorentz.t"" Ele propôs cinco postulados como núcleo do seu programa: "(1) que a radiação de energia [no interior do átomo) não é emitida (nem absorvida) da maneira contínua presumida na eletrodinâmica comum, mas apenas durante a passagem dos sistemas entre diferentes estados "estacionários". (2) Que o equilíbrio dinâmico dos sistemas nos estados estacionários é governado pelas leis ordinárias da mecânica, ao passo que essas leis não vigem em relação à passagem dos sistemas entre os diferentes estados. (3) Que a radiação emitida durante a transição de um sistema entre dois estados estacionários é homogênea, e que a relação entre a freqüência v e a quantidade total de energia emitida E é dada por E = iiv , sendo lt a constante de Planck. (4) Que os diferentes estados estacionários de um sistema simples, composto de um elétron que gira em torno de um núcleo positivo, são determinados por uma condição: que o quociente entre a energia total, emitida durante a formação da configuração, e a freqüência da revolução do elétron seja um múltiplo inteiro de 1/2h. Presumindo-se que a órbita do elétron é circular, essa suposição equivale à suposição de que o momento angular do elétron em torno do núcleo é igual a um múltiplo inteiro de h/2 . (5) Que o estado "permanente" de qualquer sistema atômico, isto é, o estado de máxima energia emitida, é

190. Isto, naturalmente, é mais um argumento contra a tese de J. O. Wisdom de que as teorias metafísicas podem ser refutadas por uma conflitante e bem corroborada teoria científica (Wisdom, "The Refutability of 'Irrefutable' Laws", 1963). Cf. também mais acima, p. 136, texto correspondente à nota de rodapé n.° 80, e pp. 154-55.

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determinado por urna condição: que o momento angular de cada elétron em torno do centro de sua órbita seja igual a h/2 7r Temos de avaliar a diferença metodológica crucial entre a incompatibilidade introduzida pelo programa de Prout e a incompatibilidade introduzida pelo programa de Bohr. O programa de pesquisa de Prout declarou guerra à química analítica do seu tempo: sua heurística positiva destinava-se a derrubá-la e a substituí-la. Mas o programa de pesquisa de Bohr não continha uma intenção semelhante: sua heurística positiva, ainda que fosse totalmente bem-sucedida, teria deixado sem solução a incompatibilidade com a teoria de Maxwell-Lorentz. 192 Para sugerir uma idéia dessa natureza fazia-se mister uma coragem maior que a de Prout; a idéia cruzou a mente de Einstein mas este a achou inaceitável e rejeitou-a. 1 "" De fato, alguns dos mais importantes programas de pesquisa da história da ciência enxertavam-se em programas mais antigos com os quais eram francamente incompatíveis. Por exemplo, a astronomia coperniciana foi "enxertada" na física aristotélica; o programa de Bohr foi enxertado no programa de Maxwell. Tais "enxertos" são irracionais para o justificacionista e para o falseacionista ingênuo, nenhum dos quais aprova o crescimento sobre fundamentos incompatíveis. Por isso são habitualmente escondidos por estratagemas ad hoc — como a teoria de Galileu da inércia circular ou a correspondência de Bohr e, mais tarde, o princípio da complementaridade — cujo único propósito era esconder a "deficiência". 19 t À medida que o jovem programa enxertado se fortalece, a coexistência pacífica chega ao fim, a simbiose torna-se competitiva e os defensores do novo programa tentam substituir completamente o velho programa. Talvez tenha sido o sucesso do seu "programa enxertado" que mais tarde induziu erroneamente Bohr a acreditar que tais incompatibilidades fundamentais em programas de pesquisa podem e devem 191. Bohr, "On the Constitution of Atoms and Molecules", 1913, p. 874. 192. Bohr sustentava nessa ocasião que a teoria de Maxwell e Lorentz finalmente teria de ser substituída (a teoria do fóton de Einstein já indicara essa necessidade). 193. Hevesy, "Carta a Rutherford em 14.10.1913"; cf. também mais acima, p. 166, texto correspondente à nota de rodapé n." 170. 194. Em nossa metodologia não há necessidade de tais estratagemas pro. tetores ad hoc. Por outro lado, eles serão inofensivos enquanto forem claramente vistos como problemas e não como soluções.

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ser tolerados em princípio, que não apresentam nenhum problema sério e que basta a gente acostumar-se com elas. Bohr tentou, em 1922, abaixar os padrões da crítica científica; argumentava ele que "o máximo que se pode exigir de -uma teori a [isto é, programa] é que a classificação [que ela estabelece] seja empurrada tão longe que possa contri buir para o desenvolvimento do campo de observação pela predição de novos fenômenos." 195 (Esse enunciado de Bohr é semelhante ao de d'Alembert quando se lhe deparou a incompatibilidade nos fundamentos da teoria infinitesimal: "Allez en avant et la foi vous viendra." De acordo com Maigenau, "é compreensível que, na excitação provocada pelo êxito, os homens passassem por alto uma malformação na arquitetura da teoria; pois o átomo de Bohr se apoia como uma torre barroca na base gótica da eletrodinâmica clássica." 196 Na realidade, porém, a "malformação" não foi "passada por alto": todos tinham consciência dela, e apenas a ignoraram — mais ou menos — durante a fase progressiva do programa. 197 Nossa metologia de programas de pesquisa mostra a racionalidade dessa atitude, mas também mostra a irracionalidade da defesa de tais "malformações" depois de encerrada a fase progressiva. Nesse ponto, deve-se ressaltar que nas décadas de 30 e 40 Bohr abandonou a exigência de "novos fenômenos" e preparou-se para "proceder à tarefa imediata de coordenar as multiplas evidências relativas aos fenômenos atômicos, que se acumulavam dia a dia na exploração desse novo campo de conhecimento". 198 Isso indica que Bohr, a esse tempo, voltara a "salvar os fenômenos", ao passo que Einstein insistia, sarcástico, em que "toda teo ria é verdadeira contanto que se associem adequadamente seus símbolos com quantidades observadas". 199 ) Mas a compatibilidade — num sentido forte do termo 200 — deve continuar a ser um princípio regulador importante (acima do 195. Bohr, "The Structure of the Atom", 1922; o grifo é meu. 196. Margenau, The Nature of Physical Reality, 1950, p. 311. 197. Sommerfeld ignorou-o mais do que Bohr: cf. mais adiante, p. 185, nota de rodapé n.° 227. 198. Bohr, "Discussion with Einstein on Epistemological Problems in Atomic Physics", 1949, p. 206. 199. Citado em Schrõdinger, "Might perhaps Energy be merely a Statistical Concept?", 1958, p. 170. 200. Duas proposições serão inconsistentes se sua conjunção não tiver modelo, isto é, se não houver interpretação dos seus termos descritivos em que a conjunção é verdadeira. Mas no discurso informal empregamos maior

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requisito da transferência progressiva de problemas); e as inconsistências (incluindo anomalias) devem ser vistas como problemas. A razão é simples. Se a ciência visa à verdade, deve visar à consistência; se ela renuncia à consistência, renuncia à verdade. Afirmar que "devemos ser modestos em nossas exigências", 201 que devemos resignar-nos às inconsistências — fracas ou fortes — continua a ser um vício metodológico. Por outro lado, isso não quer dizer que a descoberta de uma inconsistência — ou de uma anomalia — precisa deter imediatamente o desenvolvimento de um programa: pode ser racional colocar a inconsistência em quarentena temporária, ad hoc, e prosseguir com a heurística positiva do programa. Isso tem sido feito até em matemática, como o revelam os exemplos dos primórdios do cálculo infinitesimal e da teoria ingênua de conjuntos 2°2 número de termos formativos do que no discurso formal: a alguns termos descritivos se dá uma interpretação fixa. Nesse sentido informal duas proposições podem ser (fracamente) inconsistentes em face das interpretações comuns de alguns termos característicos ainda que formalmente, numa interpretação não-tencionada, elas possam ser consistentes. Por exemplo, as primeiras teorias do spin eletrônico eram inconsistentes com a teoria especial da relatividade se se desse a "spin" sua interpretação comum ("forte") e ele fosse, por esse modo, tratado como um termo formativo; mas a incompatibilidade desaparece quando "spin" é tratado como um termo descritivo não-interpretado. A razão por que não devemos renunciar com demasiada facilidade às interpretações comuns é porque essa emasculação de significados pode emascular a heurística positiva do programa. (Por outro lado, tais transferências de significado podem ser progressivas em alguns casos: cf. mais acima, p. 154.) Sobre a demarcação progressiva entre os termos formativos e descritivos no discurso informal, cf. meu ensaio, "Proofs and Refutations", 1963-4, 9(b), especialmente p. 335, nota de pé de página n.° 1. 201. Bohr, "The Structure of the Atom", 1922, último parágrafo. 202. Os falseacionistas ingênuos tendem a considerar esse liberalismo c omo um crime contra a razão. O seu pri ncipal argumento reza deste teor: "Se tivéssemos de aceitar contradições, teríamos de abrir mão de toda a espécie de atividade científica: o que significaria um colapso total da ciência. Isso pode mostrar-se provando que se se admitirem dois enunciados contraditórios, qualquer tipo de enunciado terá de ser admitido; pois de um par de enunciados contraditórios se poderá inferir validamente qualquer enunciado, seja ele qual for... Uma teoria que envolve uma contradição, por conseguinte, é inteiramente inútil como teoria" (Popper, "What is Dialectic?", 1940). Manda a justiça que se frise que Popper, aqui, está argumentando contra a dialética hegeliana, em que a inconsistência se torna uma virtude; e está absolutamente certo quando lhe assinala os perigos. Mas Popper nunca analisou padrões de progresso empírico (ou não-empírico) sobre fundamentos inconsistentes; com efeito, na seção 24 da sua Logik der Forschung (1934), ele faz da consistência e da falseabilidade requisitos obrigatórios de qualquer teoria científica. Discuto esse problema mais circunstanciadamente em meu ensaio intitulado "History of Science and its Rational Reconstructions", de 1970.

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(Desse ponto de vista, o "princípio de correspondência" de Bohr desempenhou interessante papel duplo em seu programa. De um lado, funcionou como princípio heurístico importante, que sugeriu inúmeras hipóteses científicas, as quais, pôr seu turno, conduziram a fatos novos, mormente no campo da intensidade das linhas do espectro 2 03 De outro lado, funcionou também como mecanismo de defesa, que "tentou utilizar na máxima extensão os conceitos das teorias clássicas da mecânica e da eletrodinâmica, a despeito do contraste entre essas teorias e o quantum de ação", 204 em lugar de enfatizar a urgência de um programa unificado. Nesse segundo papel reduziu o grau de problematicidade do programa 2°5) Não há dúvida de que o programa de pesquisa da teoria quântica como um todo foi um "programa enxe rtado" e, por conseguinte, repugnante aos físicos de concepções profundamente conservadoras, como Planck. Existem duas posições extremas e igualmente irracionais em relação ao programa enxertado. A posição conservadora consiste em sustar o novo programa até que a incompatibilidade básica com o velho tenha sido, de um modo ou de outro, reparada: é irracional trabalhar sobre fundamentos incompatíveis. Os "conservadores" concentrarão seus esforços em eliminar a Incompatibilidade explicando (aproximadamente) o postulado do novo programa em termos do velho: parece-lhes irracional continuar com o novo programa sem uma redução bem-sucedida do gênero mencionado. O próprio Planck escolheu esse caminho. Não 206 teve êxito, apesar da década de trabalho intenso que lhe dedicou. Por conseguinte, a observação de Laue, segundo a qual sua palestra do dia 14 de dezembro de 1900 foi "a data do nascimento da teoria quântica" não é totalmente exata: essa foi a data do nascimento do 203. Cf., por exemplo, Kramers, "Das Korrespondenzprinzip und der Schalenbau des Atoms", de 1923. 204. Bohr, "Light and Life", 1933. 205. Em seu ensaio de 1954, "The Statistical Interpretation of Quantum Mechanics", Born apresenta um vigoroso relato do princípio de correspondência que sustenta robustamente essa dupla avaliação: "A arte de adivinhar fórmulas corretas, que se apartam das clássicas e que, no entanto, as contêm como um caso-limite... foi levada a um alto grau de perfeição." 206. Sobre a história fascinante dessa longa série de malogros frustrantes, cf. Whittaker, History of the Theories of Aether and Electricity (1953), vol. II, pp. 103-4. 0 próprio Planck dá uma dramática descrição desses anos: "Minhas fúteis tentativas de enquadrar o quantum elementar de ação na teoria clássica continuaram por alguns anos e me custaram grande soma de esforços. Muitos dos meus colegas viram nisso algo que beirava a tragédia..." (Planck, Scientific Autobiography, 1947).

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programa de redução de Planck. A decisão de prosseguir com fundamentos tempora ri amente incompatíveis tomou-a Einstein em 1905, mas até ele hesitou em 1913, quando Bohr voltou a fazer progressos. A posição anárquica em relação a programas enxertados é louvar a anarquia nos fundamentos como virtude e considerar a incompatibilidade [fraca] propriedade básica da natureza ou limitação final do conhecimento humano, como o fizeram alguns seguidores de Bohr. A posição racional é melhor caracterizada pela posição de Newton, que enfrentou uma situação até ce rt o ponto semelhante à situação discutida. A mecânica cartesiana da impulso, em que foi originalmente enxertado o programa de Newton, era (fracamente) incompatível com a teo ri a newtoniana da gravitação. Newton trabalhava não só em sua heurística positiva (com êxito) mas também num programa reducionista (sem êxito), e desaprovou tanto os cartesianos que, como Huyghens, entendiam não valer a pena perder tempo com um programa "ininteligível", quanto alguns dos seus discípulos temerários que, como Cotes, entendiam que a incompatibilidade não apresentava problema algum2 07 A posição racional em relação a programas "enxe rt ados" é, pois, explorar-lhes a força heurística sem se resignar ao caos fundamental em que ela está crescendo. De um modo geral, essa atitude dominou a velha teoria quântica de antes de 1925. Na nova teoria quântica, pós-1925, a posição "anarquista" passou a dominar e a física quântica moderna, em sua "interpretação de Copenhague", to rn ou-se um dos principais porta-estandartes do obscurantismo filosófico. Na nova teoria, o notório "princípio de complementa ri dade" de Bohr entronizou a incompatibilidade [fraca] como um traço básico e final da natureza, e fundiu o positivismo subjetivista, dialética antilógica e até a filosofia da linguagem comum numa aliança ímpia. Depois de 1925, Bohr e seus colaboradores introduziram uma nova e sem precedentes diminuição dos padrões críticos para teorias científicas. Isto Ievou a uma derrota da razão dentro da física moderna e a um culto 207. Está visto que um programa reducionista só é científico quando explica mais do que se propunha explicar; a não ser assim, a redução não é científica (cf. Popper, "A Realist View of Logic, Physics and History", 1969). Quando a redução não produz um novo conteúdo empírico e muito menos fatos novos, a redução representa uma transferência degenerativa de problema — é um me ro exercício lingüístico. Os esforços cartesianos para apoiar sua metafísica a fim de poder interpretar a gravitação newtoniana em seus termos, representam um exemplo notável de uma redução dessa natureza puramente lingüística. Cf. mais acima, p. 155, nota de rodapé n.° 140.

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anarquista do caos incompreensível. Einstein protestou: "A tranqüilizante filosofia — ou religião? — de Heisenberg-Bohr é tão delicadamente planejada que, por ora, fornece um macio travesseiro para o verdadeiro crente" 2 08 Por outro lado, os padrões demasiado altos de Einstein podem muito bem ter sido a razão que o impediu de descobrir (ou talvez apenas de publicar) o modelo de Bohr e a mecânica ondulatória. Einstein e seus aliados não venceram a batalha. Os compêndios de física, hoje em dia, estão cheios de enunciados como este: "Os dois pontos de vista, a força quântica e a força do campo eletromagnético são complementares no sentido de Bohr. Essa complementaridade é uma das grandes consecuções da filosofia natural em que a interpretação de Copenhague da epistemologia da teoria quântica resolveu o conflito secular entre as duas teorias da luz, a teoria corpuscular e a teoria ondulatória. Desde as propriedades de reflexão e de propagação retilínea de Hero de Alexandria no primeiro século de nossa era, diretamente através das propriedades interferenciais e e ondulatórias de Young e Maxwell no século XIX, essa controvérsia estendeu-se violenta. A eoria çuântica da radiação, durante o último meio século, de uma forma notavelmente hegeliana, solucionou 209 completamente a dicotomia". 208. Einstein, Carta a Schrõdinger de 31.5.1928. Entre os críticos do "anarquismo" de Copenhague deveríamos mencionar — além de Einstein — Popper, Landé, Schródinger, Margenau, Blokhinzev, Bohm, Fényes e Jánossy. Sobre uma defesa da interpretação de Copenhague, cf. Heisenberg, "The Development of the Interpretation of Quantum Theory", 1955; sobre uma crítica enérgica e recente, cf. Popper, "Quantum Mechanics without 'The Observer"', 1967. Em seu ensaio de 1968-9, "On a Recent Critique of Complementarity", Feyerabend se utiliza de algumas inconsistências e vacilações da posição de Bohr para um tosco falseamento apologético da filosofia de Bohr. Feyerabend desfigura a atitude crítica de Popper, Landé e Margenau em relação a Bohr, não dá ênfase suficiente à oposição de Einstein e parece ter-se esquecido completamente de que, em alguns dos seus primeiros trabalhos, ele era mais popperiano do que o próprio Popper acerca dessa questão. 209. Power, Introductory Quantum Electrodynamics, 1964, p. 31 (o grifo é meu). "Completamente" é tomado aqui de forma literal. Como lemos em Nature (222, 1969, pp. 1034-5): "E absurdo pensar que qualquer elemento fundamental da teoria [quântica] pode ser falso... Os argumentos de que os resultados científicos são sempre temporários não procedem. Temporárias são as concepções dos filósofos sobre a física moderna, porque eles ainda não compreenderam quão profundamente os descobrimentos da física quântica influem em toda a epistemologia... A afirmativa de que a linguagem comum é a última fonte da não-ambigüidade da descrição física verifica-se da maneira mais convincente pelas condições observacionais da física quântica."

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Voltemos agora à lógica da descoberta da velha teoria quântica e, em particular, concentremo-nos em sua heurística positiva. O plano de Bohr era descobrir p rimeiro a teoria do átomo de hidrogênio. Seu primeiro modelo devia basear-se num núcleo fixo de próton com um életron numa orbita circular; em seu segundo modelo ele quis calcular uma órbita elíptica num plano fixo; depois, pretendeu eliminar as restri ções claramente artificiais do núcleo fixo e do plano fixo; depois, pretendeu eliminar as rest rições claramente artificiais do núcleo fixo e do plano fixo; em seguida, pensou em tomar em consideração o possível giro do elétron 210 e, por fim, esperou estender o seu programa à estrutura de átomos e moléculas complicadas e ao efeito de campos eletromagnéticos sobre eles, etc., etc. Tudo isso estava planejado desde o princípio: a idéia de que os átomos eram análogos a sistemas planetários prenunciou um longo, difícil mas otimista programa e indicou claramente a política de pesquisa 2 11 "Dir-se-ia nessa ocasião — no ano de 1913 — que a chave autêntica dos espectros fora finalmente encontrada, como se apenas fossem necessários tempo 212 e paciência para resolver completamente os seus enigmas. " O famoso primeiro ensaio de Bohr, em 1913, continha o passo inicial do programa de pesquisa. Continha o seu primeiro modelo (chamar-lhe-ei M ) que já predizia fatos até então não-preditos por nenhuma teoria anterior: os comprimentos de onda das linhas do espectro de emissão do hidrogênio. Conquanto alguns desses comprimentos de ondas fossem conhecidos antes de 1913 — a série de Balmer (1885) e a série de Paschen (1908) — a teo ria de Bohr predizia muito mais do que as duas séries conhecidas. E os testes 1

logo corroboraram o seu novo conteúdo: uma série adicional de Bohr foi descobe rta por Lyman em 1914, outra por Brackett em 1922 e uma terceira por Pfund em 1924. Visto que as séries de Balmer e Paschen eram conhecidas antes de 1913, alguns historiadores apresentam a história como exemplo de "ascensão indutiva" baconiana: (1) o caos das linhas do espectro, (2) uma "lei empírica" (Balmer), (3) a explicação teórica (Bohr). Isto se parece, sem dúvida, com os três "pavimentos" ("floors") de Whewell. Mas o progresso da ciência pouco se teria atrasado se nos faltassem os louváveis ensaios e erros do engenhoso mestre-escola suíço: a linha principal especulativa da ciência, levada adiante pelas ousadas especulações de Planck, Rutherford, Einstein e Bohr teriam produzido dedutivamente os resultados de Balmer, como enunciados-testes de sua teoria, sem o chamado "pioneirismo" de Balmer. Na reconstrução racional da ciência há escassa recompensa para os tra213 balhos dos descobridores de "conjeturas ingênuas". Na verdade, o problema de Bohr não consistia em explicar as séries de Balmer e Paschen, mas em explicar a estabilidade paradoxal do átomo de Rutherford. Além disso, Bohr nem sequer ouvira falar nessas fórmulas antes de escrever a primeira versão do seu trabalho 214 Nem todo o conteúdo novo do p rimeiro modelo M, de Bohr foi corroborado. O M, de Bohr, por exemplo, afirmava predizer todas as linhas do espectro de emissão do hidrogênio. Mas havia uma prova experimental da existência de uma série de hidrogênio, ao passo que, de acordo com a M de Bohr, não deveria haver nenhuma. A série anômala era a série ultravioleta de Pickering-Fowler. 1

210. Isso é reconstrução racional. Em realidade, Bohr só aceitou essa idéia em sua Carta a Nature de 1926. 211. Além dessa analogia, havia outra idéia básica na heurística positiva de Bohr: o "princípio da correspondência", que ele já indicava em 1913 (cf. o segundo dos seus cinco postulados citados acima, à p. 173), mas que só desenvolveu mais tarde, quando passou a usá-lo como princípio orientador na solução de alguns problemas dos modelos sofisticados mais recentes (como as intensidades e os estados de polarização). Uma singularidade dessa segunda parte da sua heurística positiva era que Bohr não acreditava na sua versão metafísica: supunha tratar-se de uma regra temporária até a substituição do eletromagnetismo clássico (e possivelmente da mecânica). 212. Davisson, "The Discovery of Electron Waves", 1937. Euforia semelhante foi experimentada por MacLaurin em 1748 diante do programa de Newton: "fundando-se na experimentação e na demonstração, a filosofia [de Newton] não falhará enquanto a razão ou a natureza das coisas não tiverem mudado... [Newton] deixou à posteridade pouco mais para fazer além de observ ar o céu e computar de acordo com os seus modelos" (MacLaurin, Account of Sir Isaac Newton's Philosophical Discoveries, 1748, p. 8).

213. Uso aqui "conjectura ingênua" como termo técnico no sentido do meu ensaio "Proofs and Refutations", de 1963-4. Sobre o estudo de um caso e uma crítica minuciosa do mito da "base indutiva" da ciência (natural ou matemática) cf. ibid., seção 7, especialmente pp. 298-307, onde mostro que a "conjectura ingênua" de Descartes e Euler de que para todos os poliedros V—E+F=2 era irrelevante e supérflua para o desenvolvimento ulterior; como exemplos adicionais podemos mencionar que os esforços de Boyle e seus sucessores para estabelecer pv = RT não influíram no desenvolvimento teórico ulterior (a não ser para desenvolver algumas técnicas experimentais), assim como as três leis de Kepler podem ter sido supérfluas para a teoria newtoniana da gravitação. Sobre uma discussão adicional desse ponto, cf. mais adiante, p. 216. 214. Cf. Jammer, The Conceptual Development of Quantum Mechanics,

1966.

181

Pickering descob ri u essa série em 1896 no espectro da estrela Puppis. Fowler, depois de haver descobe rto sua p ri meira linha também no sol em 1898, produziu toda a série num tubo de descarga que continha hidrogênio e hélio. E verdade que se pode ri a argumentar que a linha-monstro nada tinha que ver com o hidrogênio — afinal de contas, o sol e Puppis contêm muitos gases e o tubo de descarga também continha hélio. Efetivamente, a linha não poderia ter sido produzida num tubo de hidrogênio puro. Mas a "técnica experimental" de Pickering e Fowler, que conduziu a uma hipótese falseadora da lei de Balmer, possuía uma base teórica plausível, embora nunca severamente testada: (a) a série deles tinha o mesmo número de convergência da série de Balmer e, po rt anto, foi considerada como uma série de hidrogênio e (b) Fowler deu uma explicação plausível da razão por que o hélio não poderia ser responsável pela produção das séries 215 Bohr, todavia, não ficou muito impressionado com os físicos experimentais "autorizados". Não lhes contestou a "precisão experimental" nem a "fidedignidade das observações", mas contestou-lhes a teo ri a obse rv acional. Na verdade, propôs uma alte rn ativa. Primeiro, elaborou um novo modelo ( M ) do seu programa de pesquisa: o modelo do hélio ionizado, com um próton duplo a cuja volta .um elétron descrevia uma órbita. Ora, esse modelo prediz uma série ultravioleta no espectro do hélio ionizado que coincide com a série de Pickering-Fowler. Isso constituía uma teoria rival. Bohr suge ri u, então, uma "experiência crucial": predisse que a série de Fowler pode ser produzida, possivelmente com linhas até mais fo rt es, num tubo cheio de uma mistura de hélio e cloro. Ademais, explicou aos 2

215. Fowler, "Observations of the Principal and Other Series of Lines in the Spectrum of Hydrogen", 1912. Incidentemente, sua teo ri a "observacional" foi propiciada pelas "investigações teóricas de Rydberg", que, "na ausência de uma prova experimental rigorosa, [ele] considerava como justificativa de [sua] conclusão [experimental] " (p. 65). Mas seu colega teórico, o Professor Nicholson, referiu-se três meses depois aos achados de Fowler como "confirmações de laboratório da dedução teórica de Rydberg" (Nicholson, "A Possible Extension of the Spectrum of Hydrogen", 1913). Essa historieta, creio eu, corrobora minha tese favorita de que a maioria dos cientistas tende a entender um pouco mais de ciência do que os peixes de hidrodinâmica. No Relatório do Conselho Endereçado à Nonagésima Terceira Reunião Geral Anual da Royal Astronomical Society, a "observação [de Fowler] em experiências de laboratório" de novas "linhas de hidrogênio que durante tanto tempo se furtaram aos esforços dos físicos" é descrita como "um progresso de grande interesse" e como "um triunfo do trabalho experimental bem dirigido".

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experimentadores, sem sequer olhar para o aparelhamento deles, o papel catalisador do hidrogênio na experiência de Fowler e de cloro na experiência por ele sugerida 2 16 Em realidade, ele estava certo?" Dessa maneira, a primeira derrota aparente do programa de pesquisa conve rt eu-se numa vitória retumbante. A vitória, contudo, foi imediatamente posta em dúvida. Fowler reconheceu que sua série não era uma série de hidrogênio, mas uma série de hélio. Assinalou, porém, que o ajustamento-monstro de Bohr 218 ainda falhava: os comp ri mentos de ondas na série de Fowler diferem significativamente dos valores preditos pela M2 de Bohr. Desse modo, a série, embora não refute M , ainda refuta M2 e, mercê da íntima conexão entre M e M , solapa M1! 219 1

1

2

Bohr rejeitou o argumento de Fowler: é claro que ele nunca pretendera que M2 fosse levado muito a sério. Seus valores tinham por base um cálculo tosco, baseado no elétron que descrevia uma órbita em torno de um núcleo fixo; é claro que essa órbita , se descreve em torno do centro comum de gravidade; é claro que cumpre substituir, como acontece quando se enfrentam problemas de dois corpos, a massa por massa reduzida: m' e = m e / [1 -1- (m / e mn)]2 20 Esse modelo modificado era o M3 de Bohr. E o próprio Fowler precisou admitir que Bohr tinha razão outra vez. 221 A aparente refutação de M2 conve rt eu-se numa vitória para M3; e era claro que M2 e M3 teriam sido desenvolvidos dentro do progra216. Bohr, Carta a Rutherford de 6.3.1913. 217. Evans, "The Spectra of Helium and Hydrogen", 1913. Sobre um exemplo semelhante de um físico teórico que ensina um experimentador amante de refutações o que ele — experimentador — realmente observara, cf. mais acima, p. 160, nota de pé de página n.° 153. 218. Ajustamento-monstro: transformar um exemplo contrário, à luz de uma nova teoria, em um exemplo. Cf. meu ensaio. "Proofs and Refutations", de 1963-4, pp. 127 e seguintes. Mas o "ajustamento-monstro" de Bohr era empiricamente "progressivo": predizia um fato novo (o aparecimento da linha 4686 em tubos que não continham hidrogênio). 219. Fowler, "The Spectra of Helium and Hydrogen", 1913. 220. Bohr, "The Spectra of Helium and Hydrogen", 1913. Esse ajustamento-monstro também era "progressivo": Bohr predisse que as observações de Fowler deviam ser ligeiramente imprecisas e que a "constante" de Rydberg devia ter uma est ru tura fina. 221. Fowler, "The Spectre of Helium and Hydrogen", 1913. Mas ele notou, cético, que o programa de Bohr ainda não explicara as linhas do espectro do hélio comum, não ionizado. Entretanto, logo abandonou o seu ceticismo e entrou a participar do programa de pesquisa de Bohr (Fowler, "Se ries Lines in Spark Spectra", 1914). -

-

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ma de pesquisa — talvez até M17 ou M20 — sem nenhum estímulo da observação ou da experiência. Foi nessa fase que 222 Einstein disse da teoria de Bohr: "É uma das maiores descobertas. " O programa de pesquisa de Bohr continuou, então, como fora planejado. O passo seguinte consistia em calcular órbitas elípticas. Isso foi feito por Sommerfeld em 1915, mas com um resultado inesperado: o número aumentado de possíveis órbitas regulares não aumentou o número de possíveis níveis de energia, de modo que parecia não haver possibilidade de uma experiência crucial entre a teoria elíptica e a circular. Entretanto, os elétrons descrevem órbitas em torno do núcleo com altíssima velocidade de sorte que, ao acelerarem seu movimento, sua massa deve mudar de maneira notável, se a mecânica einsteiniana for exata. Com efeito, calculando tais correções relativistas, Sommerfeld conseguiu um novo conjunto de níveis de energia e, assim, a "estrutura fina" do espectro. A transferência para o novo modelo relativista exigia muito maior habilidade matemática e muito mais talento do que o desenA realização de Sommerfeld foi volvimento dos primeiros modelos. 223 principalmente matemática. .

Por curioso que pareça, as duplicações do espectro de hidrogênio 224 já tinham sido descobertas em 1891 por Michelson. Moseley assinalou imediatamente após a primeira publicação de Bohr que "ela não explica a segunda linha mais fraca encontrada em cada espectro". 225 Bohr não se deixou impressionar, convencido que estava de que a heurística positiva do seu programa de pesquisa, a seu tempo, explicaria e até corrigiria as obse rv ações de Michelson 2 26 E foi o que aconteceu. A teoria de Sommerfeld, naturalmente, era incompatível com as p ri meiras versões de Bohr; as experiências da estrutura fina — com as velhas obse rv ações corrigidas! — forneceram a prova crucial em seu favor. Inúmeras derrotas dos primeiros modelos de Bohr 222. Cf. Hevesy, "Carta a Rutherford de 14.10.1913". "Quando eu lhe falei do espectro de Fowler, os grandes olhos de Einstein pareceram maiores ainda e ele me disse: "Nesse caso é uma das maiores descobertas." 223. Sobre os aspectos matemáticos vitais dos programas de pesquisa, veja mais acima, p. 168. 224. Michelson, "On the Application of Interference Methods to Spectroscopic Measurements, I-II", 1891-2, especialmente as pp. 287-9. Michelson nem sequer menciona Balmer. 225. Moseley, "Letter to Nature", 1914. 226. Sommerfeld, "Zur Quantentheorie der Spektrallinien", 1916, p. 68.

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foram convertidas por Sommerfeld e sua escola de Munique em vitórias do programa de pesquisa de Bohr. É interessante notar que, assim como Einstein se aborreceu e moderou sua marcha no meio do prógresso espetacular da física quântica por volta de 1913, Bohr se aborreceu e moderou sua marcha por volta de 1916; e assim como Bohr, em 1913, tomara a iniciativa de Einstein, assim Sommerfeld tomou a iniciativa de Bohr em 1916. A diferença entre a atmosfera da escola de Copenhague de Bohr e a da escola de Munique de Sommerfeld era notável: "A [escola de] Munique usava formulações mais concretas e era, portanto, compreendida com maior facilidade; fora bem sucedida na sistematização dos espectros e no emprego do modelo vetorial. [A escola de] Copenhague, no entanto, acreditava que ainda não se descobrira uma linguagem adequada para os novos [fenômenos], mostrava-se reticente em face de formulações demasiado definidas, expressava-se com maior cautela e em termos mais gerais e era, portanto, muito mais difícil de compreender." 227 Nosso esboço mostra que uma transferência progressiva pode emprestar credibilidade — e uma base lógica — a um programa inconsistente. Em seu necrológio de Planck, Bo rn descreve com vigor esse processo: "Claro está que a mera introdução do quantum de ação não significa ainda que se estabeleceu uma verdadeira Teoria Quântica ... Já aludimos às dificuldades que a introdução do quantum de ação na teoria clássica solidamente estabelecida encontrou desde o princípio. Elas têm aumentado gradativamente em vez de diminuir; e conquanto a pesquisa em sua marcha, tenha passado por cima de algumas, as lacunas restantes na teoria são as que mais consternam o físico teórico consciencioso. Com efeito, o que na teoria de Bohr se rv iu como base das leis de ação foram hipóteses que todo físico da geração anterior, teria sem dúvida, categoricamente rejeitado. Poder227. Hund, "Gottingen, Copenhagen, Leipzig im Riickblick", 1961. Isto

é discutido com alguns pormenores no ensaio de Feyerabend intitulado "On

a Recent Critique of Complementarity", de 1968-9, pp. 83-7. Mas o trabalho de Feyerabend é pesadamente preconceituoso. O objetivo principal da sua análise é passar por alto o anarquismo metodológico de Bohr e mostrar que Bohr se opunha à interpretação de Copenhague do novo (depois de 1925) programa quântico. A fim de fazê-lo, Feyerabend, de um lado, dá uma ênfase exagerada à infelicidade de Bohr no que concerne à inconsistência do velho (anterior a 1925) programa quântico e, de outro lado, empresta demasiada importância ao fato de Sommerfeld preocupar-se menos do que Bohr com a problematicidade dos fundamentos inconsistentes do velho programa.

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se-ia conceder perfeitamente que, dentro do átomo, certas órbitas quantizadas (isto é, escolhidas pelo princípio quântico) desempenhassem um papel especial; mas algo menos fácil de aceitar era a suposição adicional de que os elétrons que se movem nessas órbitas curvilíneas e, portanto, acelerados, não irradiam energia. Mas um teórico que tivesse sido educado na escola clássica teria considerado monstruoso e quase inconcebível que a freqüência do quantum de luz emitida fosse diferente da freqüência do quatum emissor. Mas como são os números [ou melhor, as transferências progressivas de problemas] que decidem, viraram-se as mesas. Embora no princípio fosse uma questão de ajustar com o menor esforço possível um elemento novo e estranho num sistema existente geralmente considerado estabelecido, o intruso, depois de haver conquistado uma posição segura, assumiu a ofensiva; e agora parece estar a pique de mandar pelos ares o velho sistema em algum ponto. A única pergunta que se pode fazer é esta: em que ponto, e até que ponto, isso acontecerá? 228 Uma das coisas mais impo rtantes que se aprendem estudando os programas de pesquisa é que relativamente poucas experiências são de fato import antes. A orientação heurística que o físico teórico recebe de testes e "refutações" é de ordinário tão trivial que o procedimento de teste em larga escala — ou até uma excessiva preocupação com os dados já disponíveis — pode ser uma perda de tempo. Na maioria dos casos dispensamos refutações que nos digam que a teoria está urgentemente necessitada de substituição: a heurística positiva do programa nos impele para a frente de qualquer maneira. De mais a mais, dar uma severa "interpretação refutável" à versão incipiente de um programa é uma perigosa crueldade metodológica. As primeiras versões podem até "aplicar-se" somente a casos "ideais" não-existentes; pode-se levar decênios de trabalho teórico para chegar aos primeiros fatos novos e mais tempo ainda para chegar a versões interessantemente testáveis dos programas de pesquisa, na fase em que as refutações já não são previsíveis à luz do próprio programa. A dialética dos programas de pesquisa, portanto, não é necessariamente uma série alternada de conjecturas especulativas e refutações empíricas. A interação entre o desenvolvimento do programa e as verificações empíricas pode ser muito variada — o modelo realmente realizado depende apenas do acidente histórico. Permitam-nos mencionar três variantes típicas. meus.

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228. Born, "Max Karl Ernst Ludwig Planck", 1948, p. 180; os grifos são

(1) Imaginemos que cada uma das três primeiras versões consecutivas, H,, H , H3 prediz alguns fatos novos com êxito mas outros sem êxito, isto é, cada versão é corroborada e, por seu turno, refutada. Finalmente se propõe H4, que prediz alguns fatos novos mas resiste aos testes mais severos. A transferência de problemas é progressiva e também temos um excelente exemplo em que se alternam popperianamente conjecturas e refutações 2 39 As pessoas admirarão esse fato como um exemplo clássico de trabalho teórico e expe rimental que caminha de mãos dadas. 2

(2) Outro modelo poderia ter sido um Bohr solitário (possivelmente sem que Balmer o precedesse), elaborando H,, H , H3, H4 mas, por uma questão de autocrítica, retendo a publicação até H4. Depois H é testado: todas as evidências se revelam corroborações de H4, a primeira (e única) hipótese publicada. O teórico — sentado à sua mesa — é visto aqui trabalhando à frente do experimentador: temos um período de relativa autonomia do progresso teórico. 2

4

(3) Imaginemos agora que todas as evidências empíricas mencionadas nesses três modelos já estão ali ao tempo da invenção de H,, H2, H3, H4. Nesse caso, H,, H2, H3 e H4 não representarão uma transferência de problemas empiricamente progressiva e, portanto, embora todas as evidências lhe apoiem as teo rias, o cientista precisa continuar a trabalhar para provar o valor científico do seu programa. 230 Tal estado de coisas pode ser provocado por já ter um programa de pesquisa mais antigo (desafiado pelo que conduziu a H,, H2, H3, H4) produzido todos esses fatos — ou por haver dinheiro em demasia, do gove rno, destinado à obtenção de dados acerca das linhas do espectro, tendo as tentativas tropeçado com todos os dados. O último caso, todavia, é muito pouco provável pois, como Cullen costumava dizer, "o número de fatos falsos, à solta pelo mundo, excede infi231; nitamente o das teorias falsas" na maioria desses casos o programa de pesquisa colidirá com os "fatos" disponíveis, o teórico exami229. Nos três primeiros modelos não envolvemos complicações tais como apelos bem-sucedidos contra o veredito dos cientistas experimentais. 230. Isso mostra que se as mesmas teorias e a mesma evidência forem racionalmente reconstruídas em diferentes ordens de tempo, poderão constituir uma transferência progressiva ou uma transferência degenerativa. Cf. também meu ensaio "Changes in the Problem of Inductive Logic", de 1968, p. 387. 231.Cf. McCulloch, The Principles of Political Economy: With a Sketch of the Rise and Progress of the Science, 1825, p. 21. Sobre um vigoroso argumento acerca da extrema improbabilidade de um modelo dessa natureza, veja mais abaixo, pp. 156-7.

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nará as "técnicas expe rimentais" do experi mentador e, tendo derrubado e substituído suas teorias observacionais, corrigirá seus fatos produzindo, por essa meneira, fatos novos 232 Concluída essa excursão metodológica, voltemos ao programa de Bohr. Nem todos os desenvolvimentos do programa foram previstos e planejados no esboçar-se pela primeira vez a heurística positiva. Quando algumas lacunas cu riosas apareceram nos modelos sofisticados de Sommerfeld (algumas linhas perdidas nunca apareceram), Paulo propôs uma hipótese auxiliar profunda (o seu "princípio de exclusão") que não só explicou as lacunas conhecidas mas também remodelou a teoria incipiente do sistema periódico de elementos e antecipou fatos então desconhecidos. Não é minha intenção apresentar aqui um relato circunstanciado do desenvolvimento do programa de Bohr. Mas o seu estudo pormenorizado do ponto de vista metodológico é uma verdadeira mina de ouro: seu progresso maravilhosamente rápido — sobre fundamentos inconsistentes! — foi emocionante, a beleza, a originalidade e o sucesso empírico de suas hipóteses auxiliares, propostas por cientistas brilhantes e até geniais, não tiveram precedente na história da física. 233 De vez em quando, a versão seguinte do programa exigia apenas uma melhoria tri vial, como a substituição da massa péla massa reduzida. De vez em quando, entretanto, para chegar à versão seguinte, fazia-se mister uma nova matemática sofisticada, como a matemática do problema de n-corpos, ou novas teorias auxiliares físicas sofisticadas. A matemática ou a física adicionais eram tiradas de alguma pa rte do conhecimento existente (como a teoria da relatividade) ou inventadas 232. Talvez se deva mencionar que a mania da coleção de dados e da "exagerada" precisão também — impede até a formação de hipóteses "empíricas" ingênuas como a de Balmer. Se Balmer tivesse tido conhecimento dos espectros finos de Michelson, teria acaso encontrado sua fórmula? Ou, se os dados de Tycho Brahe tivessem sido mais precisos, a lei elíptica de Kepler teria sido algum dia apresentada? O mesmo se aplica à primeira versão ingênua da lei geral dos gases, etc. A conjectura de Descartes e Euler sobre os poliedros talvez nunca tivesse sido feita não fora a escassez de dados; cf. meu ensaio de 19634, intitulado "Proofs and Refutations", pp. 298 e seguintes. 233. "Entre o aparecimento da grande trilogia de Bohr em 1913 e o advento da mecânica ondulatória em 1925, surgiu grande número de estudos que desenvolviam as idéias de Bohr numa impressionante teoria de fenômenos atômicos. Foi um esforço coletivo e os nomes dos físicos que contribuíram para isso constituem uma lista imponente: Bohr, Born, Epstein, Debye, Schwarzschild, Wilson..." (Ter Haar, The Old Quantum Theory, 1967, p. 43).

188

(como o princípio de exclusão de Pauli) . No último caso temos uma "transferência criativa" da heurística positiva. Mas até esse grande programa chegou a um ponto em que sua força heurística se esgotou. Multiplicaram-se as hipóteses ad hoc e não puderam ser substituídas por explicações aumentadoras de conteúdo. Por exemplo, a teoria dos espectros (faixa) moleculares de Bohr predisseram a seguinte fórmula para as moléculas diatômicas:

v

=

h 8

N2

I

Hui + 1) 2 —

m2 )

Mas a fórmula foi refutada. Os adeptos de Bohr substituíram o termo m 2 por m(m + 1) : este se ajustava aos fatos mas era tristemente ad hoc. Veio depois o problema de alguns desdobramentos não explicados nos espectros de álcalis. Landé explicou-os em 1924 por uma "regra divisória relativista" ad hoc; Goudsmit e Uhlenbeck em 1925, pelo giro do elétron. Se a explicação de Landé era ad hoc, a de Goudsmit e Uhlenbeck também se revelou inconsistente com a teoria especial da relatividade: pontos de superfície no elétron aumentado tinham de viajar mais depressa do que a luz, e o elétron tinha até de ser maior 234 do que o átomo todo. Fazia-se mister muita coragem para propô-lo (Kronig teve a idéia primeiro, mas absteve-se de publicá-la por supôla inadmissível 235) Mas a teme ri dade em se propor veementes inconsistências não colheu novas recompensas. O programa ficou para trás da descoberta de "fatos". Anomalias não-digeridas inundavam o campo. Com inconsistências cada vez mais estéreis e hipóteses cada vez mais ad hoc, começara a fase degenerativa do programa de pesquisa: este principaira — para usarmos uma das frases favoritas de Popper — "a perder 234. Uma nota de rodapé no trabalho deles diz o seguinte: "Deveria observar-se que [de acordo com a nossa teoria) a velocidade periférica do eléctron excederia de maneira considerável a velocidade da luz" ((Jhlenbeck e Goudsmit, "Ersetzung der Hypothese von unmechanischen Zwang durch eine Forderung bezüglich des inneren Verhaltens jedes einzelnen Electrons", 1925). 235. Jammer, The Conceptual Development of Quantum Mechanics, 1966, pp. 146-8 e 151.

189

236

seu caráter empírico". Tampouco se poderia esperar que muitos problemas, como a teo ria das perturbações, fossem resolvidos dentro dele. Logo apareceu um programa de pesquisa rival: a mecânica ondulatória. Não somente o nova programa, até em sua primeira versão (de Broglie, 1924), explicava as condições quânticas de Planck e de Bohr; mas também conduzia a um fato novo emocionante, a experiência de Davisson-Germer. Em suas versões ulteriores, ainda mais sofisticadas, oferecia soluções para problemas que tinham estado completamente fora do alcance do programa de pesquisa de Bohr, e explicava as teorias ad hoc subseqüentes do citado programa por teorias que satisfaziam a elevados padrões metodológicos. A mecânica ondulatória não tardou a alcançar, vencer e substituir o programa de Bohr. O trabalho de Broglie surgiu na ocasião em que o programa de Bohr estava degenerando. Mas isso não passou de coincidência. Ficamos a perguntar-nos o que teria acontecido se de Broglie tivesse escri to e publicado seu estudo em 1914 em lugar de fazê-lo em 1924.

(d) Um novo olhar dirigido a experiências cruciais: o fim da racionalidade instantânea. Seria um erro supor que precisamos conse rvar um programa de pesquisa até que se tenha esgotado toda a sua força heurística, que não devemos apresentar um programa rival antes de haverem todos concordado em que foi provavelmente atingido o ponto de degeneração. (Embora se possa compreender a irritação do físico quando, no meio da fase progressiva de um programa de pesquisa, se lhe depara uma proliferação de vagas teorias metafísicas que não estimulam nenhum progresso empírico 2 37 ) Nunca devemos permitir que um programa de pesquisa se conve rta num Weltanschauung, ou numa espécie de rigor científico, arv orando-se em árbitro entre a explicação e a não-explicação, como o rigor matemático se a rvora em árbitro entre a prova e a não-prova. Esta, infelizmente, é a posição que Kuhn tende 236. Sobre uma excelente descrição dessa fase degenerativa do programa de Bohr, cf. Margenau, The Nature of Physical Reality, 1950, pp. 311-3. Na fase progressiva de um programa o principal estímulo heurístico provém da heurística positiva: as anomalias são largamente ignoradas. Na fase degenerativa a força heurística do F )grama some aos poucos. Na ausência de um programa rival essa situação pede refletir-se na psicologia dos cientistas por uma hipersensibilidade inusitada às anomalias e por uma sensação de "crise" kuhniana. 237. Isto é o que mais deve ter irritado Newton na "cética proliferação de teorias" pelos cartesianos. 190

a advogar: na verdade, o que ele denomina "ciência normal" nada mais é que um programa de pesquisa que logrou monopólio. Mas, em realidade, os programas de pesquisa só lograram monopólio completo em raras ocasiões e, mesmo assim, por períodos relativamente curtos, a despeito dos esforços de alguns cartesianos, newtonianos e bohrianos. A história da ciência tem sido, e deve ser, uma história de programas de pesquisa competitivos (ou, se quiserem, de "paradigmas"), mas não tem sido, nem deve vir a ser, uma sucessão de períodos de ciência normal: quanto antes se iniciar a competição, tanto melhor para o progresso. O "pluralismo teórico" é preferível qo "monismo teórico": nesse ponto Popper e Feyerabend estão certos e Kuhn está 8 errado2s A idéia de programas de pesquisa científica concorrentes conduznos ao problema: como são eliminados os programas de pesquisa? Transpirou de nossas considerações anteriores que uma transferência degenerativa de problemas não é uma razão mais forte para eliminar um programa de pesquisa do que uma "refutação" antiquada ou uma "crise" kuhniana. Pode haver alguma razão objetiva (em oposição às razões sociopsicológicas) para rejeitar On programa, isto é, para eliminar-lhe o núcleo e o programa ctfr cintos protetores? Nossa resposta, em linhas gerais, resume-se nisto: uma razão objetiva dessa natureza é proporcionada por um programa de pesquisa rival que explica o êxito anterior de seu rival e o suplanta por uma demonstração adicional de força heurística. 2 t 9 O critério da "força heurística", no entanto, depende muito de como interpretamos a "novidade fatual". Até agora temos presumido que se pode imediatamente determinar se uma nova teoria prediz ou 238. Não obstante, há qualquer coisa para ser dita ao menos a respeito de algumas pessoas que se aferram a um programa de pesquisa até que ele atinge seu "ponto de saturação"; desafia-se então um novo programa a responder pelo pleno sucesso do velho. O fato de um argumento rival ter podido, ao ser proposto pela primeira vez, explicar todo o sucesso do primeiro programa; não constitui argumento contra isso; não se pode predizer o crescimento de um programa de pesquisa — capaz de estimular importantes teorias auxiliares próprias imprevisíveis. Outrossim, se uma versão A n de um programa de pesquisa P t é matematicamente equivalente a uma versão A m de um rival P 2 devemos desenvolver os dois: a força heurística deles ainda pode ser multo diferente. 239. Emprego aqui "força heurística" como termo técnico a fim de caracterizar a força de um programa de pesquisa para antecipar teoricamente fatos novos em seu crescimento. Eu poderia empregar, naturalmente, "poder explanetório": cf. mais acima, p. 145, nota de pé de página n.° 112. 1.e. co tvira- . Ai.0

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et Z - - •

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não um fato novo 2 40 Mas a novidade de uma proposição fatual muitas vezes só pode ser vista depois da passagem de um longo período. A fim de mostrá-lo, começarei com um exemplo. A teoria de Bohr implicava logicamente241 a fórmula de Balmer para as linhas de hidrogênio como conseqüência. Tratava-se de um fato novo? Poderíamos sentir-nos tentados a negá-lo, uma vez que a fórmula de Balmer, afinal de contas, era bem conhecida. Mas esta é uma meia verdade. Balmer apenas "observou" B 1 : que as linhas de hidrogênio obedecem à fórmula de Balmer. Bohr predisse B2: que as dif erenças nos níveis de energia em diferentes órbitas do elétron de hidrogênio obedecem à fórmula de Balmer. Agora podemos dizer que B 1 já encerra todo o conteúdo puramente "obse rvacional" de B2. Mas dizê-lo pressupõe que pode haver um "nível observ acional" puro, não contaminado pela teoria, e impermeável à mudança teórica. Com efeito, B 1 só foi aceito porque as teorias óticas, químicas e outras aplicadas por Balmer foram bem corroboradas e aceitas como teorias interpretativas, sempre passíveis de ser postas em dúvida. Talvez fosse possível argumentar que podemos "purgar" até B 1 de suas pressuposições teóricas, e chegar ao que Balmer realmente "obse rvou", que poderia ser expresso num asserção mais modesta, B 0 : que as linhas emitidas em certos tubos em determinadas circunstâncias bem especificadas (ou no 242) correr de uma "experiência controlada" obedecem à fórmula de Rainier. Ora, alguns argumentos de Popper mostram que nunca chegaremos, dessa maneira, a nenhum mínimo "obse rvacional" concreto; pode mostrar-se facilmente que teorias "observacionais" estão envolvidas em B 0 . 243 Por outro lado, como o programa de Bohr, depois de um longo desenvolvimento progressivo, havia mostrado sua força heu240. Cf. mais acima, p. 142, texto correspondente à nota de pé de página n.° 98, e p. 164, texto correspondente à nota de pé de página n.° 166. 241. Cf. mais acima, p. 180. 242. Cf. mais acima, p. 135, nota de pé de página n.° 77. 243. Um dos argumentos de Popper é particularmente importante: "Há uma crença generalizada de que o enunciado 'Vejo que esta mesa aqui é branca' possui alguma profunda vantagem sobre o enunciado 'Esta mesa aqui é branca', do ponto de vista da epistemologia. Mas do ponto de vista da avaliação dos seus possíveis testes objetivos, o primeiro enunciado, ao falar sobre mim, não parece mais seguro do que o segundo, que fala a respeito da mesa aqui" (Logik der Forschung, 1934, seção 27). Neurath faz um comentário caracteristicamente estúpido acerca desse trecho: "Para nós esses enunciados protocolares têm a vantagem de ter maior estabilidade. Podemos conservar o enunciado 'As pessoas no século XVI viram espadas de fogo no céu' ao mesmo tempo que riscamos 'Havia espadas de fogo no céu'" (Neurath, "Pseudorationalismus der Falsifikation", 1935, p. 362).

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e, porrística, o próprio núcleo se teria tornado bem corroborado tanto, qualificado como teoria "obse rvacional" ou interpretativa. Mas nesse caso B2 não será visto como mera reinterpretação teórica de B 1 , e sim como um fato novo por méritos próprios. Tais considerações emprestam nova ênfase ao elemento retrospectivo de nossas avaliações e conduzem a uma liberalização subseqüente de nossos padrões. Um novo programa de pesquisa que acabasse de entrar na competição poderia começar explicando "fatos antigos" de um modo novo, mas poderia levar muito tempo para produzir fatos "genuinamente novos". Por exemplo, a teoria cinética do calor pareceu ir, durante décadas, a reboque dos resultados da teoria fenomenológica antes de alcançá-la finalmente com a teo ria de Einstein-Smoluchowski do movimento browniano, em 1905. Depois disso, o que antes parecera uma reinterpretação especulativa de fatos velhos (acerca do calor, etc.) revelou-se uma descobe rta de fatos novos (acerca de átomos). Tudo isso dá a entender que não devemos pôr de lado um programa de pesquisa incipiente só porque não conseguiu, até esse momento, alcançar poderoso rival. Não devemos abandoná-lo se ele, supondo-se que o rival não estivesse presente, constituísse uma trans245 E devemos, por certo, considerar ferência progressiva de problemas um fato recém-interpretado como um fato novo, ignorando as insolentes pretensões à prioridade de coletores amadores de fatos. Enquanto um programa incipiente de pesquisa puder ser racionalmente reconstruído como transferência progressiva de problemas, deverá ser 246 resguardado durante algum tempo de um poderoso rival estabelecido. Tais considerações, de um modo geral, ressaltam a importância da tolerância metodológica, e deixam ainda sem resposta a pergunta sobre como são eliminados os programas de pesquisa. O leitor pode 244. Esta observação, a propósito, define um `grau de corroboração' para os núcleos `irrefutáveis' dos programas de pesquisa. A teoria de Newton (isolada) não tinha conteúdo empírico e, no entanto, nesse sentido era altamente corroborada.

245. A propósito, na metodologia dos programas de pesquisa, o significado pragmático de "rejeição" [de um programa] torna-se cristalinamente claro: significa a decisão de parar de trabalhar nele. 246. Alguns podem considerar — cautelosamente — esse período abrigado de desenvolvimento como "pré científico" (ou "teórico"); e só estão preparados para reconhecer-lhe o caráter verdadeiramente científico (ou "empírico") quando ele começa a produzir fatos "genuinamente novos" — mas, nesse caso, o seu reconhecimento terá de ser retroativo. -

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até desconfiar de que tanto destaque dado à falibilidade liberaliza, ou melhor, abranda nossos padrões a ponto de imbuir-nos de ceticismo radical. Até as célebres "experiências cruciais", nesse caso, não terão força para derrubar um programa de pesquisa; tudo vale 2 47 Mas essa desconfiança é infundada. Dentro de um programa de pesquisa as "experiências cruciais menores" entre versões subseqüentes são muito comuns. As experiências "decidem" facilmente entre enésima e enésima-primeira versão científica, visto que a enésima-primeira não somente é inconsistente com a enésima, mas também a suplanta. Se a enésima-primeira versão possui mais conteúdo corroborado à luz do mesmo programa e à luz das mesmas teo ri as observacionais bem corroboradas, a eliminação é um assunto relativamente de rotina (só relativamente, pois mesmo aqui a decisão pode estar sujeita a uma apelação). Os processos de apelação também são ocasionalmente fáceis: em muitos casos a teoria obse rv acional contestada, longe de ser bem corroborada, é de fato uma suposição mal expressa, ingênua, "escondida"; só a contestação revela a existência da suposição oculta, e lhe provoca a expressão, o teste e a queda. Vez por outra, contudo, as próprias teorias observacionais estão inseridas em algum programa de pesquisa e, nesse caso, o processo de apelação conduz um choque entre dois programas: em tais circunstâncias podemos precisar de uma "experiência crucial importante". Quando dois programas de pesquisa competem entre si, seus primeiros modelos "ideais" geralmente tratam de diferentes aspectos da questão (assim, por exemplo, o primeiro modelo da ótica simicorpuscúlar de Newton descrevia a refração da luz, o primeiro modelo da ótica ondulatória de Huyghens descrevia a interferência luminosa). À medida que se expandem, os programas de pesquisa rivais invadem, pouco a pouco, o território uns dos outros e a enésima versão do primeiro será flagrantemente, dramaticamente incompatível com a enésima versão do segundo 2 48 Realiza-se repetidamente uma experiência e, como resultado, enquanto o primeiro é derrotado nessa batalha, o segundo vence. Mas a guerra não acabou: a qualquer programa de pesquisa é lícito sofrer algumas derrotas dessa natureza. A ú ni ca de C.o lsd

247. Incidentalmente, pode dizer-se com razão que o conflito entre a falibilidade e a crítica é o problema principal — e a força propulsora — do pr ograma da pesquisa popperiano na teoria do conhecimento. 248. Um caso especialmente interessante de competição dessa natureza é a simbiose competitiva, quando se enxerta um programa novo num programa velho, incompatível com ele; cf. mais acima, p. 174.

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que ele precisa para reabilitar-se é produzir uma enésima-primeira versão (ou n + k) aumentadora de conteúdo e uma verificação de parte do seu novo conteúdo. Se a reabilitação, depois de um esforço sustentado, não se verificar, a guerra estará perdida e. a experiência original será vista, retrospectivamente, como tendo sido "crucial". Mas se o programa derrotado for um programa jovem, que se desenvolve depressa, e se decidirmos dar suficiente crédito aos seus êxitos pré-científicos, experiências pretensamente cruciais dissolver-se-ão uma depois da outra na esteira da sua investida. Mesmo que seja um programa velho, estabelecido e "cansado", pe rt o do seu "ponto natural de saturação", 249 o programa derrotado pode continuar a resistir por muito tempo e a manter-se com engenhosas inovações aumentadoras de conteúdo, ainda que estas não sejam com o sucesso empírico. E muito difícil derrotar um programa de pesquisa sustentado por cientistas talentosos e imaginativos. Alternativamente, defensores teimosos do programa derrotado podem oferecer explicações ad hoc das experiências ou uma "redução" ad hoc do programa vitorioso ao programa derrotado. Mas devemos rejeitar tais esforços comoLnão-científicos. 25 o Nossas considerações explicam po r que experiências cruciais só são vistas como cruciais décadas mais tarde. De um modo geral, as elipses de Kepler só foram admitidas como prova crucial a favor de Newton e contra Desca rt es uns cem anos depois da reivindicação de Newton. O compo rt amento anômalo do periélio de Mercúrio foi conhecido, durante decênios, como uma das muitas dificuldades ainda não resolvidas do programa de Newton; mas só o fato de que a teoria de Einstein o explicava melhor transformou uma aborrecida anomalia 51 numa brilhante "refutação" do programa de pesquisa de Newton2 249. Não existe essa coisa que se poderia denominar "ponto natural de saturação"; em meu ensaio, "Proofs and Refutations", 1963-4, sobretudo nas páginas 327-8, eu era mais hegeliano e supunha que existisse; agora uso a expressão com ênfase irônica. Não há uma limitação predizível nem determinável que se possa impor à imaginação humana na invenção de novas teorias aumentadoras de conteúdo, nem à "astúcia da razão" (List der Vernunft) no recompensá-las com algum sucesso empírico ainda que elas sejam falsas ou ainda que a nova teoria tenha menos verossimilhança — no sentido de Popper — do que a sua predecessora. (Provavelmente todas as teorias científicas já proclamadas pelos homens são falsas: ainda assim poderão ser recompensadas pelo sucesso empírico e até apresentar uma crescente verossimilhança.) 250. Sobre um exemplo, cf. mais acima, p. 155, nota de rodapé n.° 140. 251. Dessa maneira, uma anomalia num programa de pesquisa é um

fenômeno que consideramos como algo que deve ser explicado em função do programa. De um modo mais geral, podemos falar, seguindo Kuhn, acerca de

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Young afirmou que sua experiência da dupla fenda em 1802 constituiu uma experiência crucial entre o programa corpuscular e o programa ondulatório da ótica; sua afirmação, todavia, só foi reconhecida muito mais tarde, depois que Fresnel desenvolveu o programa ondulatório muito mais "progressivamente" e se tornou claro que os newtonianos não poderi am igualar-lhe a força heurística. A anomalia, já conhecida havia décadas, só recebeu o título honorífico de refutação, e a experiência o de "experiência crucial", depois de um longo período de desenvolvimento desigual dos dois programas rivais. O movimento browniano esteve, durante quase um século, bem no meio do campo de batalha antes de ser visto derrotando o programa de pesquisa fenomenológica e fazendo pender a balança da guerra em favor dos atomistas. A "refutação" da série de Balmer feita por Michelson foi ignorada por toda uma geração até que o triunfante programa de pesquisa de Bohr passou a dar-lhe o necessário apoio. Talvez valha a pena esmiuçar alguns exemplos de experiências cujo caráter "crucial" só se tornou manifesto a posteriori. Examinarei primeiro a célebre experiência de Michelson e Morley em 1887, que, segundo se diz, falseou a teoria do éter e "conduziu à teo ria da relatividade"; depois, as experiências de Lummer e Pringsheim, as quais, afirma-se, falsearam a teoria clássica da radiação e "conduziram à 252 teoria quântica". Finalmente, discutirei uma experiência que muitos físicos imaginaram que se revela ria contrária às leis da conse rvação mas que, na verdade, acabou sendo sua mais triunfante corroboração. (d 1) A experiência de Michelson e Morley Michelson foi o primeiro a idear uma experiência no intuito de pôr à prova as teorias contraditórias de Fresnel e Stokes acerca da 253 influência do movimento da terra sobre o éter, durante a visita que "enigmas": um "enigma" num programa é um problema que encaramos como um desafio a esse programa. Um "enigma" pode ser resolvido de três maneiras: solucionando-o dentro do programa original (a anomalia transforma-se em exemplo); neutralizando-o, isto é, solucionando-o dentro de um programa independente, indiferente (a anomalia desaparece); ou, por mim, solucionando-o dentro de um programa rival (a anomalia converte-se num exemplo contrário). 252. Cf. Popper, Logik der Forschung, 1934, seção 30.

253. Cf. Fresnel, "Lettre à François Arago sur l'Influence du Mouvement Terrestre dans quelques Phénomènes Optiques", 1818; Stokes, "On the Aberration of Light", 1845, e "On Fresnel's Theory of the Aberration of Light", 1846. Sobre uma excelente e breve expor cão cf. Lorentz, Versuch einer Theorie der electrischen und optischen Ers inungen in bewegten Kárpen, 1895.

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fez ao instituto de Helmholtz em Berlim no ano de 1881. De acordo com a teoria de Fresnel, a terra se move através de um éter em repouso, mas o éter dentro da terra é parcialmente carregado com ela; a teoria de Fresnel, por conseguinte, exigia que a velocidade do éter fora da terra em relação à terrà fosse positiva (isto é, supunha a existência de um "vento de éter"). De acordo com a teoria de Stokes, a terra arrastava o éter e imediatamente sobre a sua superfície a velocidade do éter era zero (isto é, não havia vento de éter na superfície). Stokes julgou, a princípio, que as duas teo ri as eram observacionalmente equivalentes; com adequadas suposições auxiliares, por exemplo, ambas explicavam a aberração da luz. Michelson, porém, proclamava que sua experiência de 1881, experiência c rucial entre as duas, provava a teoria de Stokes 2 54 Sustentava ele que a velocidade da terra em relação ao éter era muito menor do que a supunha a teoria de Fresnel. Na realidade, concluía que de sua experiência "se infere a conclusão necessária de que a hipótese [de um éter estacionário] é errôneo. Essa conclusão contradiz frontalmente a explicação do fenômeno da aberração, o qual... pressupõe que a terra se move através do éter, permanecendo este em repouso"2 55 Como acontece freqüentemente, Michelson, o experimentador, recebeu uma lição de um teórico. Lorentz, o principal físico teórico do período, no que Michelson descreveu mais tarde como "uma análise muito circuns256 tanciada... de toda a experiência", mostrou que Michelson "interpretou erroneamente" os fatos e que o que ele obse rvara, com efeito, não contrariava a hipótese do éter estacionário. Lorentz demonstrou que os cálculos de Michelson estavam errados; a teo ria de FresneI predizia apenas a metade do efeito que Michelson calculara. Lorentz concluiu que a experiência de Michelson não refutava a teoria de Fresnel e tampouco provava a de Stokes. Lorentz prosseguiu mostrando que a teoria de Stokes era inconsistente: presumia que o éter à superfície da terra estava em repouso em relação a esta última e exigia que a velocidade relativa tivesse um potencial; mas as duas condições são incompatíveis. Entretanto, ainda que Michelson tivesse refutado uma teoria do éter estacionário, o programa continua ria intocado: podem-se imaginar facilmente várias outras versões do programa do éter, que predizem valores muito pequenos para os ventos 254. Isso transpira, obliquamente, da seção final do seu ensaio de 1881 intitulado, "The Relative Motion of the Earth and the Luminiferous Ether". 255. Michelson, "The Relative Motion of the Earth and the Luminiferous Ether", 1881, p. 128. 0 grifo é meu. 256. Michelson e Morley, "On the Relative Motion of the Earth and the Luminiferous Ether", 1887, p. 335.

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de éter e ele, Lorentz, imediatamente produziu a sua. A teoria testável 257 e Lorentz submeteu-a, orgulhosamente, ao veredito da experiência. Michelson, juntamente com Morley, aceitou o desafio. A velocidade relativa da terra no tocante ao éter pareceu de novo ser zero, contrariando a teo ri a de Lorentz. Desta vez, porém, mais cauteloso na interpretação dos seus dados, Michelson até pensou na possibilidade de que o sistema solar pudesse ter-se movido como um todo na direção oposta à da terra; portanto, decidiu repetir a experiência "a inte rv alos de três meses e, assim, evitar toda e qualquer incerteza" 2 58 Em seu segundo trabalho, Michelson já não fala em "conclusões necessárias" nem em "contradições diretas". Apenas é de opinião que, da sua experiência, "parece, de tudo o que precede, razoadamente certo que, se houver algum movimento relativo entre a terra e o éter luminífero, este terá de ser pequeno; suficientemente pequeno para refutar de todo a explicação de Fresnel da aberração"259 Assim, nesse trabalho, Michelson ainda afirma ter refutado a teoria de Fresnel (e também a nova teoria de Lorentz); mas nele não se lê uma única palavra acerca de sua velha afirmativa, feita em 1881, de que refutara "a teo ri a do éter estacionário" em geral. (Pois acreditava que, para poder fazêlo, ser-lhe-ia preciso testar o vento do éter também em grandes altitu260 des, "no pico de uma montanha isolada, por exemplo". Ao passo que alguns teóricos do éter -- como Kelvin — não se fiavam da "habilidade experimental", 261 de Michelson, Lorentz assinalou que, apesar da afirmativa ingênua de Michelson, nem a sua 257. Lorentz, "De 1'lnfiuence du Mouvement de la Terra sur les Phénomènes Lumineux", 1886. Sobre a incompatibilidade da teoria de Stokes, cf. também o ensaio de Lorentz de 1892 intitulado, "Stokes' Theory of Aberration". 258. Michelson e Morley, "On the Relative Motion of the Earth and the Luminiferous Ether", 1887, p. 341. Mas Pearce Williams assinala que ele nunca o fez. (Pearce Williams, Relativity Theory: Its Origins and Impact on Modern Thought, 1968, p. 34.) 259. Ibid. p. 341. 0 grifo é meu. 260. Michelson e Morley, "On the Relative Motion of the Earth and the Luminiferous Ether", 1887. Como se depreende desse reparo, Michelson compreendia que sua experiência de 1887 era perfeitamente compatível com um vento de éter mais alto. Em seu trabalho de 1920, isto é, trinta e três anos mais tarde, Max Born afirmou que da experiência de 1887 "precisamos concluir que o vento de éter não existe ". ( O grifo é meu.) 261. Kelvin disse no Congresso Internacional de Física de 1900 que "a única nuvem [existente] no céu claro da teoria ,[do éter] era o resultado nulo da experiência Michelson-Morley" (cf. Miller, "Ether-Drift Experiments at Mount Wilson", 1925) e imediatamente persuadiu Morley e Miller, que ali estavam, a repetir a experiência.

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nova experiência "fornece subsídios para a questão pela qual foi empreendida". 262 Pode considerar-se a teoria de Fresnel perfeitamente como uma teo ri a interpretativa, que interpreta os fatos, em lugar de ser refutável por eles e, como Lorentz mostrou, "a importância da experiência de Michelson e Morley reside antes no fato de poder ela ensinar-nos alguma coisa sobre as mudanças das dimensões" 263 : as dimensões dos corpos são afetadas pelo seu movimento através do éter. Lorentz elaborou essa "transferência criativa" dentro do programa de Fresnel com grande engenho e por essa maneira afirmou haver "afastado a264 contradição entre a teoria de Fresnel e o resultado de Michelson". Mas admitiu que, "sendo a natureza das forças moleculares inteiramente desconhecidas para nós, é impossível testar a hipótese"; 265 pelo menos por enquanto ela não pode predizer fatos 266 novos. 262. Lorentz, "The Relative Motion of the Earth and the Ether", 1892. 263. Ibid. O grifo é meu. 264. Lorentz, Versuch einer Theorie der electrischen and optischen Ers• cheinungen in bewegten Kõrpern, 1895. 265. Lorentz, "Stokes' Theory of Aberration", 1892. 266. Ao mesmo tempo, independentemente de Lorentz, Fitzgerald produziu uma versão testável dessa "transferência criativa" que foi logo refutada pelas experiências de Trouton, Rayleigh e Brace: era teórica mas não empiricamente progressiva. Cf. Whittaker, From Euclid to Eddington, 1947, p. 53 e Whittaker, History of the Theories of Aether and Electricity, vol. II, 1953, pp. 28-30. Existe uma concepção amplamente difundida da "ad hocidade" da teoria de Fitzgerald. Mas os físicos contemporâneos queriam dizer que a teoria era ad hoc, (cf. mais acima, p. 152, nota de rodapé n.° 136): que não havia "evidência independente [positivo] " dela. (Cf. por exemplo, Larmor "On the Ascertained Absence of Effects of Motion through the Aether, in Relation to the Constitution of Matter, and on the Fitzgerald-Lorentz Hypothesis", 1904, p. 624.) Mais tarde, sob a influência de Popper, o termo "ad hoc" foi principalmente usado no sentido de ad hoc,, que não havia teste independente possível para ele. Mas, como mostram as experiências refutantes, é um erro proclamar, como faz Popper, que a teoria de Fitzgerald era ad hoc, (cf. Popper, Logik der Forschung, 1934, seção 20). Isso mostra mais uma vez a importância de separar ad hoc, de ad hoc,. Quando Grünbaum, em seu ensaio de 1959, "The Falsifiability of the Lorentz-Fitzgerald Contraction Hypothesis", mostrou o erro de Popper, este o reconheceu, mas replicou que a teoria de Fitzgerald era, sem dúvida, mais ad hoc do que a de Einstein (Popper, "Testability and 'ad-Hocness' of the Contraction Hypothesis", 1959), e que isso proporciona outro " . excelente exemplo de `graus de ad hocidade' e de uma das principais teses do [seu] livro — que os graus de ad hocidade se relacionam (inversamente) com os graus de testabilidade e importância ". A diferença, porém, não é simplesmente uma questão de graus de ad hocidade, única que pode ser medida pela testabilidade. Cf. também mais adiante, p. 216.

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Nesse intervalo, em 1897, Michelson levou a cabo a experiência longamente planejada de medir a velocidade do vento do éter no topo das montanhas. Não encontrou nenhum. Como supusera haver provado a teoria de Stokes que predizia um vento de éter a uma altitude maior, sentiu-se perplexo. Se a teoria de Stokes continuasse correta, o gradiente da velocidade do éter teria de ser muito reduzido. Michelson teve de concluir que "a influência da terra sobre o éter se estendia 267 a distâncias da ordem do diâmetro da terra" Supôs que este fosse um resultado "improvável" e concluiu que, em 1887, obtivera a conclusão errada da sua experiência: era a teoria de Stokes que devia de ser rejeitada e a de Fresnel que devia de ser aceita; e decidiu aceitar qualquer hipótese auxiliar razoável para salvá-la, incluindo a teoria de Lorentz de 1892. 268 Agora parecia preferir a contração Fitzgerald-Lorentz e, por volta de 1904, seus colegas em Case estavam tentando descob ri r se essa contração varia com materiais diferentes 269 Enquanto a maioria dos físicos tentava interpretar as experiências de Michelson dentro da estrutura do programa do éter, Einstein, sem tomar conhecimento de Michelson, Fitzgerald e Lorentz, mas estimulado sobretudo pela crítica de Mach dirigida à mecânica newtoniana, chegou a um novo e progressivo programa de pesquisa. 270 Esse novo programa não só "predisse" e explicou o resultado da experiência de Michelson e Morley mas também vaticinou uma série imensa de fatos com os quais até então ninguém sonhara e que obtiveram dramáticas corroborações. Só então, vinte e cinco anos depois, veio a experiência de Michelson e Morley a ser encarada como "a maior experiência negativa da história da ciência". 27 Mas isso não poderia ser visto instantaneamente. Ainda que a experiência fosse negativa, uma coisa não ficara muito clara: negativa exatamente em relação ao quê? Além disso, em 1881, Michelson também a julgava positiva: 267. Michelson, "On the Relative Motion of the Earth and the Ether", 1897, P. 478. 268. Lorentz, com efeito, comentou de pronto: "Embora [Michelson] considere improvável uma influência de tão longo alcance da terra, eu, ao contrário, a esperaria" (Lorentz, "Concerning the Problem of the Dragging Along of the Ether by the Earth"; o grifo é meu). 269. Morley e Miller, Carta e Kelvin, 1904. 270. Houve considerável controvérsia a respeito dos antecedentes histórico-heurísticos da teoria de Einstein, à luz da qual este enunciado pode revelar-se falso. 271. Bernal, Science in History, 1965, p. 530. Para Kelvin, em 1905, foi apenas uma "nuvem no céu claro "; cf. mais acima, p. 198, nota de pé de página, 261.

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ele sustentava que havia refutado a teoria de Fresnel, porém verificado a de Stokes. O próprio Michelson e depois Fitzgerald e Lorentz ex272 plicaram o resultado positivamente dentro do programa do éter. Como se dá com todos os resultados experimentais, sua negatividade em relação ao programa velho só mats tarde foi estabelecida, pela lenta acumulação de tentativas ad hoc para explicá-la dentro do velho programa em fase de degeneração e pelo gradativo estabelecimento de um novo e vitorioso programa progressivo em que ela se tornou um caso positivo. Mas a possibilidade de reabilitação de alguma pa rt e do programa velho "que degenerava" nunca poderia ser excluída racionalmente. Só um processo extremamente difícil e indefinidamente longo pode estabelecer um programa de pesquisa capaz de suplantar o seu rival; e não convém empregar a expressão "experiência crucial" com excessiva precipitação. Mesmo quando se vê eliminado pelo seu predecessor, um programa de pesquisa não é eliminado por uma experiência "crucial"; e ainda que uma experiência crucial desse gênero seja mais tarde posta em dúvida, o novo programa de pesquisa não pode ser sustado sem uma vigorosa e progressiva ascensão do velho 273 programa A negatividade e a importância da experiência de Michelson e Morley residem sobretudo na transferência progressiva no novo programa de pesquisa a que ele veio emprestar poderoso apoio, e sua "grandeza" é apenas um reflexo da grandeza dos dois programas envolvidos. Seria interessante fazer uma análise minuciosa das transferências rivais envolvidas nas fo rt unas declinantes da teoria do éter. Mas sob a influência do falseacionismo ingênuo, a fase degenerativa mais interessante da teoria do éter, depois da "experiência crucial" de Michel272. De fato, o excelente compêndio de física de Chwolson dizia, em 1902, que a probabilidade da hipótese do éter estava à beira da certeza. (Cf. Einstein, "Ober die Entwicklung unserer Anschauungen über das Wesen und die Konstitution der Strahlung", 1909, p. 817.) 273. Polanyi conta-nos, com gusto, que, em 1925, em seu discurso presidencial pronunciado perante a American Physical Society, Miller anunciou possuir, a despeito dos relatórios de Michelson e Morley, "esmagadora evidência" de um redemoinho de éter; apesar de tudo, o público se manteve fiel à teoria de Einstein. Polanyi tira disso a conclusão de que nenhuma "estrutura `objetivista"' pode ser responsabilizada pela aceitação ou rejeição de teorias por parte do cientista (Polanyi, Personal Knowledge, Towards a Postcritical Philosophy, 1958, pp. 12-14). Minha reconst rução, todavia, faz da tenacidade do programa de pesquisa einsteiniano, em face da pretensa evidência contrária, um fenômeno completamente racional e por esse modo solapa a mensagem mística e "pós-crítica" de Polanyi.

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son, é simplesmente ignorada pela maioria dos einsteinianos. Acreditam eles que a experiência de Michelson e Morley, sozinha, derrotou a teoria do éter, cuja tenacidade se deveu exclusivamente ao conservacionismo obscurantista. Por outro lado, o período pós-Michelson da teo ri a do éter é examinado com espírito crítico pelos antieinsteinianos, para os quais a teoria do éter não sofreu revés algum: o que é bom na teoria de Einstein estava essencialmente na teoria do éter de Lorentz e a vitória de Einstein só se deve à moda positivista. Na realidade, porém, a longa série de experiências de Michelson de 1881 a 1935, realizadas com a finalidade de pôr à prova versões subseqüentes do programa do éter, fornece um exemplo fascinante de transferência degenerativa de problemas. 274 (Mas os programas de pesquisa podem sair de depressões degenerativas. Todos sabem que a teoria do éter de Lorentz pode ser facilmente fortalecida de maneira que se torna, nurn sentido interessante, equivalente à teoria do não-éter de Einstein. 275 No contexto de uma "transferência criativa" impo rt ante o 276 éter ainda pode voltar. ) 274. Um sinal típico da degeneração de um programa, não discutido neste ensaio, é a prolifera0o de "fatos" contraditórios. Usando uma teoria falsa como teoria interpretativa, podem conseguir-se — sem comentar nenhum "equívoco experimental" — proposições fatuais contraditórias, resultados experimentais incongruentes. Michelson, que se manteve fiel ao éter até o fim,

viu-se principalmente frustrado pela incompatibilidade dos fatos que obteve por intermédio das suas mensurações ultraprecisas. Sua experiência de 1887 "mostrou" que não havia vento de éter sobre a superfície da terra. Mas a aberração "mostrou" que havia. Ademais, sua própria experiência de 1925 (ou nunca mencionada ou, como no trabalho de Jaffe em 1960, Michelson and the Speed of Light, apresentada incorretamente) também "provou" que havia (cf. Michelson e Gale, "The Effect of the Earth's Rotation on the Veloci ty of Light", 1925, e, sobre uma crítica aguda, Runge, "Ather und Relativitãtstheorie", 1925). 275. Cf. por exemplo Ehrenfest, "Zur Krise der Lichtãther-Hypothese", 1913, pp. 17-18, citado e discutido por Dorling em seu ensaio de 1968, "Lenght Contraction and Clock Synchronisation: The Er Tirical Equivalence of the Einsteinan aü Lorentzian Theories". Não se deve esquecer, contudo, que duas

teorias específicas, embora matemática (e observacionalmente) equivalentes, podem estar engastadas em diferentes programas de pesquisa rivais, e a força da heurística positiva desses programas pode ser diferente. Esse ponto foi passado

por alto pelos que propuseram tais provas de equivalência (um bom exemplo é a prova de equivalência entre o enfoque da física quântica de Schrõdinger e o de Heisenberg). Cf. também mais acima, p. , nota de pé de página n" 276. Cf. por exemplo Dirac, "Is there an Aether?", 1951: "Se reexaminamos a questão à luz do conhecimento atual, descobriremos que o éter já não é excluído pela relatividade, podemos agora apresentar boas razões para postular um éter." Cf. também o parágrafo final de Rabi, "Atomic St ructure", 1961, e Prokhovnik, The Logic of Special Relativity, 1967.

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O fato de avaliarmos retrospectivamente as experiências explica por que, entre 1881 e 1886, a experiência de Michelson não foi sequer mencionada na literatura. Com efeito, quando um físico francês, Potier, mostrou a Michelson o seu erro de 1881, Michelson decidiu não publicar uma nota de correção. Ele explica o motivo dessa decisão numa ca rt a a Rayleigh em março de 1887: "Tenho tentado repetidamente, mas debalde, interessar meus amigos científicos nessa experiência, e nunca publiquei a correção (envergonho-me de confessá-lo) por sentir-me desanimado pela pouca atenção que o trabalho recebia, e não achar que valesse a pena." 27 Essa ca rt a, a propósito, foi a resposta a uma ca rt a de Rayleigh chamando a atenção de Michelson para o trabalho de Lorentz, que desencadeou a experiência de 1887. Mas mesmo depois de 1887, e até depois de 1905, não se considerava a experiência de Michelson e Morley, de um modo geral, como ref utação da existência do éter, e com muita razão. Isso talvez explique por que Michelson não recebeu o seu Prêmio Nobel (em 1907), por "refutar a teoria do éter", mas "por seus instrumentos óticos de precisão e pelas investigações espectroscópicas e metodológicas levadas 278; e por que a experiência de Michelson a efeito com a ajuda deles" e Morley não foi sequer mencionada nos discursos de apresentação. Em sua Nobel Lecture, Michelson não fez alusão a ela; e calou o fato de que, embora pudesse haver originalmente ideado seus instrumentos para medir com precisão a velocidade da luz, viu-se compelido a aprimorá-los para testar algumas teorias específicas do éter, tendo sido a "precisão" da sua experiência de 1887 motivada, em fato que a literatura grande pa rt e, pela crítica teórica de Lorentz: 276 contemporânea clássica nunca menciona. Finalmente, tendemos a esquecer que, ainda que a experiência de Michelson e Morley tivesse mostrado a existência de um "vento 277. Shankland, "Michelson-Morley Experiment", 1964, p. 29. 278. 0 grifo é meu. 279. 0 próprio Einstein tendia a acreditar que Michelson inventara o seu interferômetro com a finalidade de testar a teoria de Fresnel. (Cf. Einstein, "Gedenkworte auf Albert A. Michelson", 1931.) A propósito, as primeiras experiências de Michelson acerca das linhas do espectro — como o seu ensaio "On the Application of Interference Methods to Spectroscopic Measurements, I-II", 1891-2 — foram também importantes para as teorias do éter do seu tempo. Michelson só superenfatizava o seu sucesso em "mensurações precisas" quando se via frustrado pela falta de êxito no avaliar-lhes a importância para as teorias. Einstein, que não gostava da precisão por amor da precisão, perguntou-lhe por que dedicava a ela tanta energia. A resposta de Michelson foi "porque a achava divertida". (Cf. Einstein, Carta a Shreidinger de 31 .5. 1928.)

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de éter", o programa de Einstein poderia ter sido vitorioso. Quando Miller, ardente defensor do clássico programa do éter, publicou sua sensacional afirmação de que a experiência de Michelson e Morley estava sendo feita com desleixo e que de fato havia um vento de éter, o noticiarista de Science escreveu, jubiloso, que "os resultados do Professor Miller derrubam radicalmente a teoria da relatividade" 2 70 No entender de Einstein, contudo, ainda que Miller tivesse relatado o verdadeiro estado de coisas " [só] a forma atual da teoria da relatividade" teria de ser abandonada 2 81 Com efeito, Synge assinalou que os resultados de Miller, mesmo tomados pelo seu valor aparente, não conflitam com a teoria de Einstein: o que conflita é a explicação de Miller. Pode substituir-se com facilidade a teoria auxiliar de corpos rígidos existente por uma teoria nova, de Gardner e Synge e, nesse caso, os resultados de Miller serão totalmente digeridos pelo programa 282 de Einstein. (d 2) As experiências de Lummer e Pringsheim Discutamos outra chamada experiência crucial. Planck afirmava que as experiências de Lummer e Pringsheim, que "refutavam" as leis da radiação de Wien, Rayleigh e Jeans no princípio do século "conduziram" — ou "até deram origem" — à teoria quântica. 288 Mais uma vez, porém, o papel dessas experiências é muito mais complicado e está perfeitamente de acordo com o nosso enfoque. Não se trata simplesmente de que as experiências de Lummer e Pringsheim puseram fi m ao enfoque clássico, mas que também foram muito bem explicadas pela física quântica. De um lado, algumas versões primitivas da teoria quântica de Einstein exigem a lei de Wein e, portanto, não foram menos refutadas pelas experiências de Lummer e Pringsheim do que a teoria clássica2 84 Por outro lado se ofereceram várias explicações 280. Science, 1925. 281. Einstein, "Neue Experimente über den Einfluss der Erdbewegung auf die Lichtgeschwindigkeit relativ zur Erde", 1927. 0 grifo é meu. 282. Synge, "Effects of Acceleration in the Michelson-Morley Experiment", 1952-4. 283. Planck, "Zwanzig Jahre Arbeit am Physikalischen Weltbilt", 1929. Na seção 30 de sua Logik der Forschung, 1934, e à p. 37 do seu Thirty Years that Shook Physics, 1966, Popper e Gamow, respectivamente, utilizam -se dessa locução. É evidente que os enunciados de observação não "conduzem" a uma teoria unicamente determinada. 284. Cf. Ter Haar, The Old Quantum Theory, 1967, p. 18. Um programa de pesquisa que se desenvolve geralmente começa explicando "leis empíricas" já refutadas — e isso, à luz do meu enfoque, pode ser racionalmente encarado como um sucesso.

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clássicas da fórmula de Planck. Na reunião de 1913 da Associação Britânica para o Progresso da Ciência, por exemplo, houve uma reunião especial sobre radiação, à qual assistiram, entre outros, Jeans Rayleigh, J. J. Thompson, Larmor, Rutherford, Bragg, Poynting, Lorentz, Pringsheim e Bohr. Pringsheim e Rayleigh mantiveram-se estudadamente neutros em relação às especulações quânticas teóricas, mas o Professor Love "representava os pontos de vista mais velhos e sustentava a possibilidade de explicar os fatos da radiação sem adotar a teoria dos quanta. Criticou a aplicação da teoria da eqüipartição da energia, sobre a qual repousa parte da teoria quântica. A evidência máxima para a teoria quântica é a concordância com a experiência da fórmula de Planck relativa à emissividade de um corpo negro. Do ponto de vista matemático pode haver muitas outras fórmulas que concordariam igualmente com as experiências. Ventilou-se uma fórmula devida a A. Korn, que deu resultados numa ampla esfera e mostrou concordar tão bem com a experiência quanto a fórmula de Planck. Numa afirmação adicional de que os recursos da teoria comum não estão esgotados, ele mostrou que pode ser possível estender a outros casos o cálculo, devido a Lorentz, da emissividade de uma chapa fina. Para esse cálculo nenhuma expressão analítica simples representa os resultados em toda a série de comprimentos de ondas, e pode ser que, no caso geral, não exista nenhuma fórmula simples aplicável a todos os comprimentos de ondas. A fórmula de Planck, com efeito, pode não ser nada mais que uma fórmula empírica." 285 Um exemplo de explicações clássicas deveu-se a Callendar: "A discordância entre a conhecida fórmula de Wien e a experiência no tocante à partição da energia em plena radiação explicar-se-á prontamente se supusermos que ela representa apenas a energia intrínseca. O valor correspondente da pressão deduz-se com muita facilidade mediante referência ao princípio de Carnot, como Lorde Rayleigh indicou. A fórmula que propus (Phil. Mag., outubro de 1913) é simplesmente a soma da pressão e da densidade da energia assim obtidas, e concorda de modo muito satisfatório com a experiência, tanto no que concerne à radiação quanto no que concerne ao calor específico. Prefiro-a à fórmula de Planck (entre outras razões) por não se poder conciliar esta última com a termodinâmica clássica e envolver a concepção de um quantum, ou unidade indivisível de ação, que é inadmissível. Em minha teoria, a magnitude física correspondente, que 285. Nature, "Physics at the British Association", 1913-14.

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denominei em outro lugar molécula de calórico, não é necessariamente indivisível, mas tem uma relação muito simples com a energia intrínseca do átomo, que é tudo o que se requer para explicar o fato de poder a radiação, em casos especiais, ser emitida em unidades atômicas, que são múltiplos de uma magnitude determinada." 286 possível que estas citações tenham sido tediosamente longas mas, pelo menos, tornam a mostrar, de forma convincente, a ausência de experiências cruciais instantâneas. As refutações de Lummer e Pringsheim não eliminaram a abordagem clássica do problema da radiação. A situação pode ser melhor descrita se assinalarmos que a fórmula "ad hoc" original de Planck 287 que se ajustou aos dados de Lummer e Pringsheim (e os corrigiu) — poderia ser explicada progressivamente pelo novo programa quântico teórico, 288 ao passo que nem sua fórmula "ad hoc", nem seus rivais "semi-empí ricos" poderiam ser explicados pelo programa clássico, exceto à custa de uma transferência degenerativa de problemas. A propósito, o desenvolvimento "progressivo" dependia de uma "transferência criativa": a substituição (por Einstein) da estatística de Boltzman-Maxwell pela de É



286. Callendar, "The Pressure of Radiation and Carnot's Principle", 1914. 287. Estou-me referindo à fórmula de Planck tal como foi dada em seu trabalho de 1900, "Ober eine Verbesserung der Wienschen Spektralgleichung", em que ele admitiu que depois de haver tentado provar durante muito tempo que "a lei de Wien deve ser necessariamente verdadeira", a "lei" foi re futada. Por isso ele deixou de provar leis eternas sublimes para "construir expressões completamente arbitrárias". Claro está, todavia, que toda teoria física se revela "completamente arbitrária" pelos padrões justificacionistas. Com efeito, a fórmula arbitrária de Planck contou essa parte da história em sua autobiografia científica.) E claro que, num sentido importante, a fórmula original da radiação de Planck era "arbitrária", "formal", "ad hoc": mais uma fórmula isolada que não fazia parte do programa de pesquisa. (Cf. adiante, P. 217, nota de pé de página n.° 323.) Como ele mesmo o disse: "Ainda que se presuma a validade absolutamente precisa da fórmula da radiação, enquanto ela ocupar a posição de uma lei descoberta por uma intuição feliz, não se poderá esperar que possua mais que uma importância formal. Por essa razão, no mesmo dia em que a formulei, principiei a dedicar-me à tarefa de conferir-lhe um verdadeiro sentido físico" (Scientific Biography, p. 41). Mas a importância principal de "conferir à fórmula um sentido físico" — e não necessariamente um "verdadeiro sentido físico" — é que uma interpretação dessa natureza conduz com freqüência a um programa sugestivo de pesquisa e ao crescimento. 288. Primeiro pelo próprio Planck, em seu ensaio de 1900, "Zur Theorie des Gesetzes der Energieverteilung im Normalspektrum", que "fundou" o programa de pesquisa da teoria quântica.

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Bose-Einstein.289 A progressividade do novo desenvolvimento foi claríssima: na versão de Planck ele predizia corretamente o valor da constante de Boltzman-Planck e na versão de Einstein predizia uma série estonteante de fatos novos adicionais 2 90 Mas antes da invenção das novas hipóteses auxiliares do programa velho — novas, porém tristemente ad hoc —, antes do desenrolar do programa novo, e antes da descoberta dos novos fatos que indicavam uma transferência progressiva de problemas neste último, a importância objetiva das experiências de Lummer-Pringsheim era muito limitada. (d 3 ) Desintegração beta versus leis da conservação.

Finalmente, contarei a história de uma experiência que quase se tornou "a maior experiência negativa na história da ciência". A história também ilustra as supremas dificuldades que encontramos para decidir exatamente o que aprendemos com a experiência, o que esta "prova' e o que "refuta". A parte da experiência submetida a exame será a "observação" da desintegração beta, de Chadwick, em 1914. A história mostra uma experiência apresentando, a princípio, um enigma de rotina num programa de pesquisa, depois quase promovida ao posto de "experiência crucial", e depois novamente rebaixada para apresentar um (novo) enigma de rotina, tudo isso dependendo de todo o mutável panorama teórico e empírico. A maioria dos relatos convencionais, confundidos por essas mudanças, prefere falsificar a 291 história. Quando Chadwick descobriu o espectro contínuo da desintegração radioativa beta em 1914, ninguém supôs que esse curioso fenõmeno tivesse alguma relação com as leis da conservação. Ofereceram289. Isso já tinha sido feito por Planck, mas apenas inadvertidamente e, por assim dizer, por engano. Cf. Ter Haar, The Old Quantum Theory, de 1967, p. 18. Com efeito, o papel de Pringsheim e Lummer foi estimular a análise crítica das deduções informais na teoria quântica da radiação, deduções carregadas de "lemas ocultos" vitais, expressos apenas no desenvolvimento subseqüente. Um passo importantíssimo nesse "proceso de articulação" foi o de Ehrenfest, "Welche Züge der Lichtquantenhypothese spielen in der Theorie der Wãrmestrahlung eine wesentliche Rolle?", 1911. 290. Cf., por exemplo, a lista de 1910 de Joffé (Joffé, "Zur Theorie der Strahlungserscheinungen", 1911, p. 547). 291. Notável exceção parcial é o relato de Pauli (Pauli, "Zur ãlteren und neueren Geschichte des Neutrinos", 1958). Nas linhas que se seguem tento, ao mesmo tempo, corrigir a história de Pauli e mostrar que sua racionalidade pode ser facilmente vista à luz do nosso enfoque.

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se em 1922 duas engenhosas explicações rivais, ambas dentro da estrutura da física atômica da época, uma de L. Meitner, outra de C. D. Ellis. De acordo com a Srta. Meitner, os elétrons eram, em parte, elétrons primários do núcleo e, em parte, elétrons secundários da envoltória eletrônica. De acordo com o Sr. Ellis, eram todos elétrons primários. Ambas as teorias continham sofisticadas hipóteses auxiliares, mas ambas predisseram fatos novos. Os fatos preditos se contradisseram uns aos outros e o testemunho experimental sustentou Ellis contra Meitner. 292 A Srta. Meitner apelou; o "tribunal de apelação" experimental recusou-lhe apoio, mas sentenciou que uma hipótese auxiliar crucial da teoria de Ellis tinha de ser rejeitada. 293 O resultado da briga foi um empate. Mesmo assim ninguém pensaria que a experiência de Chadwick desafiasse a lei da conservação da energia, se Bohr e Kramers, exatamente na ocasião da controvérsia entre Ellis e Meitner, não tivessem chegado à conclusão de que só poderiam desenvolver uma teoria coerente se renunciassem ao princípio da conservação da energia em processos simples. Um dos traços principais da fascinante teoria de Bohr-Kramers-Slater em 1924 era que as leis clássicas da conservação da energia e do momento tinham sido substituídas por leis estatísticas. 294 Essa teoria (ou, melhor, "programa") foi imediatamente "refutada" e nenhuma das suas conseqüências corroborada; com efeito, nunca foi suficientemente desenvolvida para explicar a desintegração beta. Mas a despeito do abandono imediato do programa (não só por causa das "refutações" que lhe opuseram as experiências de ComptonSimon e de Bothe-Geiger, mas também por causa da emergência de um poderoso rival: o programa Heisenberg-Schrõdinger 295 Bohr permaneceu convencido de que as leis não-estatísticas da conservação

teriam de ser finalmente abandonadas e que a anomalia da desintegração beta só seria explicada quando essas leis fossem substituídas; e, nessa ocasião, a desintegração beta seria vista como uma experiência crucial contrária às leis da conservação. Conta-nos Gamow que Bohr tentou usar a idéia da não-conservação da energia na desintegração beta para uma engenhosa explicação da produção aparentemente eterna de energia nas estrelas 2 96 Só Pauli, em seu anseio mefistofélico de desafiar o Senhor, permaneceu conservador 297 e engenhou, em 1930, sua teoria do neut ri no para explicar a desintegração beta e salvar o princípio da conse rv ação da energia. Comunicou sua idéia numa ca rt a faceta dirigida a uma conferência em Tubingen — pois em vez de ir à conferência ele preferiu ficar em Zurique para assistir a um baile. 298 Aludiu a ela, pela primeira vez, numa conferência pública em 1931 em Pasadena, mas não permitiu que a conferência fosse publicada, porque se sentia "inseguro" em relação à idéia. Bohr, nessa ocasião (1932), ainda pensava que — pelo menos em física nuclear — talvez fosse preciso "renunciar à própria idéia do equilíbrio da energia". 299 Pauli decidiu afinal publicar sua palestra sobre o neut ri no, que pronunciou na conferência de Solvay em 1933, conquanto " a recepção do congresso, excetuando-se dois jovens físicos, fosse cét ca". 300 Mas a teoria de Pauli possuía méritos metodológicos. Salvou não só o princípio da conservação da energia mas também o princípio da conse rv ação do spin e da estatística: explicava não só o espectro da desintegração beta mas também, ao mesmo tempo, a "anomalia

),

292. Ellis e Wooster, "The Average Energy of Desintegration of Radium E", 1927. 293. Meitner e Orthmann, "Ober eine absolute Bestimmung der Energie der primãren fj — Strahlen von Radium E", 1930. 294. Slater só cooperou com relutância no sacrifício do princípio de conservação. Escreveu a van der Waerden em 1964: "Como você suspeitava, a idéia da conservação estatística da energia e do momento foi posta em teoria por Bohr e Kramers, contrariando o meu ponto de vista." Van der Waerden faz comicamente o que pode para exonerar Slater do crime terrível de ser responsável por uma teoria falsa (van der Waerde, Source of Quantum Mechanics, 1967. 295. Popper não tem razão quando sugere que essas "refutações" foram suficientes para provocar a derrocada da teoria. (Popper, Conjectures and Refutations, p. 242.)

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296. Gamow, Thirty Years that Shook Physics, 1966, pp. 724. Bohr nunca publicou essa teoria (que, tal como se achava não poderia ser testada) "mas tinha-se a impressão" — escreveu Gamow — "de que ele não ficaria muito surpreendido se ela fosse verdadeira". Gamow não precisa a data da teoria não-publicada, mas parece que Bohr se ocupou dela em 1928-9, quando Gamow trabalhava em Copenhague. 297. Cf. a divertida peça "Fausto" produzida no instituto de Bohr em 1932; publicada por Gamow como apêndice do seu livro Thirty Years that Shook Phyhics, 1966. 298. Cf. Pauli, "Zur ãlteren und neueren Geschichte des Neutrinos", 1958. 299. Bohr, "Light and Life", 1933. Ehrenfest também ficou do lado de Bohr contra o neutrino. O descobrimento do nêutron, levado a efeito por Chadwick em 1932, abalou-lhes apenas levemente a oposição: eles ainda temiam a idéia de uma partícula sem carga e até, possivelmente, sem massa (em repouso), e tendo apenas spin "desencorpado". 300. Wu, "Beta Decay", 1966.

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do nitrogênio". 301 Consoante os padrões Whewellianos, essa "confluência de induções" deveria ter sido suficiente para estabelecer a respeitabilidade da teoria de Pauli. De acordo, porém, com os nossos critérios, fazia-se mister a predição bem-sucedida de alguns fatos novos. Isso também foi propiciado pela teoria de Pauli, que tinha uma conseqüência observável interessante: se estivesse certa, os espectros-P teriam de ter uma área superior clara. Essa questão, na oportunidade, não ficou decidida, mas Ellis e Mott passaram a interessar-se 302 e, logo, um aluno de Ellis, Henderson, mostrou que as experiências confirma303 vam o programa de Pauli. Bohr não se deixou impressionar. Sabia que, se se encetasse algum dia um programa importante baseado na conservação estatística da energia, o cinto crescente de hipóteses auxiliares daria conta da evidência de aspecto mais negativo. De fato, nesses anos, a maioria dos físicos mais notáveis supôs que na física nuclear as leis da conservação da energia e do aumento 304 deixariam de funcionar. A razão foi exposta claramente por Lise Meitner, que só em 1933 admitiu a derrota: "Todas as tentativas para defender a validade da lei da conservação da energia também em processos simples exigiam um segundo processo [na desintegração beta] . Mas esse processo não foi encontrado. . . " aos : isto é, o programa de conservação relativo ao núcleo mostrava uma transferência de problema empiricamente degenerativo. Fizeram-se diversas tentativas engenhosas para explicar o espectro contínuo de emissão beta sem presumir a existência de uma "partícula ladra". 306 Embora tenham 301. Sobre uma fascinante discussão dos problemas abertos apresentados pela desintegração beta e pela anomalia do nitrogênio, cf. a Conferência Faraday de Bohr em 1930, lida antes mas publicada depois da solução de Pauli (Bohr, "Chemistry and the Quantum Theory of Atomic Constitution", 1930, especialmente as pp. 380-3). 302. Ellis e Mott, "Energy Relations in the /3-Ray Type of Radioactive Desintegrations", 1933. 303. Henderson, "The Upper Limits of the Continuous /3-ray Spectra of Thorium C and C"", 1934. 304. Mott, "Wellennvechanik and Kernphysik", 1933. Heisenberg, no seu célebre trabalho de 1932, em que apresentou o modelo próton-nêutron do núcleo, assinalou que "Em virtude do colapso da conservação da energia na decomposição beta não se pode dar uma definição única da energia aglutina -dora elétron dentro do nêutron" (p. 164). 305. Meitner, "Kernstruktur", 1933, p. 132. 306. Como, por exemplo, Thomson, "On the Waves associated with /3-rays, and the Relation between Free Electrons and theis Waves", 1929, e Kudar, "Der wellenmechanische Charakter des /3-Zerfalls, I-II-III", 1929-30.

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sido discutidas com grande interesse, 307 essas tentativas foram abandonadas porque não conseguiram estabelecer uma transferência progressiva. Nesse ponto, Fermi entrou em cena. Em 1933-4 ele reinterpretou o problema da emissão beta na estrutura do programa de pesquisa de uma nova teoria quântica. Dessa maneira, deu início a um pequeno e novo programa de pesquisa do neutrino (que mais tarde veio a ser interações fracas). Calculou alguns dos primeiros o programa das 3 8 modelos toscos. ° Se bem sua teoria ainda não tivesse predito nenhum fato novo, deixou claro que isto era apenas uma questão de algum trabalho futuro. Dois anos se passaram e a promessa de Fermi ainda não se tinha cumprido. Mas o novo programa de física quântica desenvolveu-se depressa, pelo menos no que dizia respeito aos fenômenos não-nucleares. Bohr convenceu-se de que algumas das idéias originais básicas do programa Bohr-Kramers-Slater se achavam agora firmemente engastadas no novo programa quântico e que o programa novo resolvera os problemas teóricos intrínsecos do velho programa quântico sem tocar nas leis da conservação. Por isso mesmo, Bohr acompanhou o trabalho de Fermi com simpatia e, em 1936, numa insólita seqüência de acontecimentos, apoiou-o publicamente, conquanto a sua atitude, pelos nossos padrões, fosse um tanto prematura. Em 1936 Shankland ideou um novo teste de teorias rivais de espalhamento de fótons. Seus resultados pareciam dar apoio à teoria refugada de Bohr-Kramers-Slater e solapar a confiabilidade de experiências que, mais de uma década antes, a refutavam. 309 O trabalho de Shankland causou sensação. Os físicos que detestavam a nova tendência deram-se pressa a saudar a experiência de Shankland. Dirac, por exemplo, não tardou a dar as boas-vindas ao programa "refutado" de Bohr-Kramers-Slater, que voltava, escreveu um artigo incisivo contra a "chamada eletrodinâmica quântica" e exigiu "uma profunda alteração das idéias teóricas atuais, envolvendo um afastamento das leis da conservação [a fim de] obter uma mecânica quântica relati307. Sobre uma discussão interesantíssima, cf. Rutherford, Chadwick e Ellis, Radiations from Radioactive Substances, 1930, pp. 335 6. 308. Fermi, "tentativo di una teoria dell'emissione dei raggi `beta"', 1933 e "Versuch einer Theorie der /3-Strahlen. I", 1934. 309. Shankland, "Michelson-Morley Experiment", 1936. -

')1 1

vista satisfatória".i 70 No art igo, Dirac tornou a sugerir que a desintegração beta pode muito bem revelar-se uma peça de evidência crucial contra as leis da conse rvação e ridicularizou a "nova partícula inobservável, o neutrino, especialmente postulado por alguns investigadores na tentativa de preservar a conse rv ação da energia, presumindo que a partícula inobservável lograria o equilíbrio". 311 Logo depois Peierls se juntou à discussão e sugeriu que a experiência de Shankland talvez fosse até capaz de refutar a conse rvação estatística da energia. E acrescentou: "Isso também parece satisfatório, depois " 312 que tiver sido abandonada a conservação particularizada. No instituto de Boh em Copenhague, as experiências de Shankland foram imediatamente repetidas e postas de lado. Jacobsen, colega de Bohr, relatou esses fatos numa carta a Nature. Os resultados de Jacobsen foram acompanhados por uma carta do próprio Bohr, que saiu firmemente a campo contra os rebeldes e em defesa do novo programa quântico de Heisenberg. Empenhou-se, sobretudo, na defesa do neutrino contra Dirac: "Observe-se que as razões para dúvidas sérias no tocante à rigorosa validade das leis da conservação no problema da emissão dos raios-a dos núcleos atômicos foram agora em grande parte removidas pelo acordo sugestivo entre a prova experimental, que aumenta rapidamente, tocante aos fenômenos dos raios-a e as conseqüências das hipóteses do neutrino de Pauli, tão notavelmente desenvolvidas na teoria de Fermi." 313 Em sua primeira versão, a teoria de Fermi não teve nenhum sucesso empírico notável. Com efeito, até os dados disponíveis, especialmente no caso de RaE, em que centralizou a pesquisa da emissão beta, contradiziam vigorosamente a teoria de Fermi de 1933-4. Ele queria tratar desses dados na segunda pa rte do seu trabalho, que, todavia, nunca se publicou. Ainda que se interprete a teoria de Fermi de 1933-4 como a primeira versão de um programa flexível, por volta de 1936 não era possível detectar nenhum sinal sério de uma trans314 ferência progressiva. Mas Bohr desejava colocar sua autoridade

1936.

310. Dirac, "Does Conservation of Energy Hold in Atomic Processes?",

311. Ibid. 312. Peierls, "Interpretation of Shankland's Experiment", 1936. 313. Bohr, "Conservation Laws in Quantum Theory", 1936. 314. Entre 1933 e 1936, vários físicos ofereceram alternativas ou propuseram mudanças ad hoc da teoria de Fermi; cf., por exemplo, Becke e Sitte, "Zur Theorie des ,Q-Zerfalls", 1933, Bethe e Peierls, "The `Neutrino'", 1934,

212

por trás da ousada aplicação de Fermi ao núcleo do novo grande programa de Heisenberg; e como a experiência de Shankland e os ataques de Dirac e Peierls haviam focalizado na desintegração beta a crítica do novo grande programa, ele pôs nas nuvens o programa do neutrino de Fermi, que prometia preencher uma lacuna sensível. Esse último desenvolvimento, sem dúvida, poupou a Bohr uma dramática humilhação: os programas baseados nos princípios da conservação progrediram, ao mesmo tempo que não se fez nenhum progresso no 315 campo rival. A moral da história, mais uma vez, é que o status de uma experiência tão "crucial" depende do status da competição teórica em que se acha envolvida. À maneira que crescem ou minguam as fo rtunas dos campos concorrentes, a interpretação e a avaliação da experiência podem mudar. Nosso folclore científico, no entanto, está impregnado de teorias de racionalidade instantânea. A história que contei, falseada na maioria dos relatos, foi reconstruída nos termos de alguma teoria errônea da racionalidade. Até nas exposições mais populares abundam esses falseamentos. Permitam-me mencionar dois exemplos. Num ensaio aprendemos o seguinte acerca da desintegração beta: "Quando esta situação foi enfrentada pela primeira vez, as alternativas Konopinski e Uhlenbeck, "On the Fermi theory of ¡3-radioactivity", 1935. Wu e Moszkowski escreveram, em 1966, que "a teoria [isto é, o programa] de desintegração beta de Fermi, segundo se sabe agora, prediz com notável exatidão não só a relação entre o coeficiente de desintegração beta e a energia da desintegração, mas também a forma dos espectros beta". Mas acentuam que "logo no começo a teoria de Fermi topou infelizmente com um teste injusto. Até o momento em que se pôde produzir grande cópia de núcleos radioativos artificiais, RaE era o único candidato que satisfazia belamente a muitos requisitos experimentais como uma fonte ¡3 para a investigação da forma do seu espectro. Como poderíamos ter sabido que o espectro /3 de RaE se revelaria apenas um caso muito especial, um caso cujo espectro, na verdade, só foi compreendido muito recentemente? Sua dependência peculiar da energia desafiava o que se esperava da simples teoria de Fermi da desintegração ,Q e retardou de forma considerável o ritmo do progresso inicial da teoria [isto é. do programa]" (Wu e Moszkowski, Beta Decay, 1966, p. 6). 315. E muito duvidoso que o programa do neutrino de Fermi fosse progressivo ou degenerativo mesmo entre 1936 e 1950; e depois de 1950 o veredito ainda não está cristalinamente claro. Discutirei, porém, o assunto em outro lugar qualquer. (A propósito, Schródinger defendeu a interpretação estatística dos princípios de conservação a despeito do seu papel crucial no desenvolvimento da nova física quântica; cf. seu ensaio intitulado, "Might perhaps Energy be merely, a Statistical Concept?", 1958.)

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pareciam sombrias. Os físicos tinham de aceitar o desmoronamento da lei da conservação da energia ou supor a existência de uma partícula nova e não-vista. Essa partícula, emitida juntamente com o próton e o elétron na desintegração do nêutron, poderia salvar o pilar central da física ficando com a energia faltante. Isso aconteceu no começo da década de 1930, quando a introdução de uma nova partícula não era o assunto casual de hoje. Não obstante, só depois da mais breve das vacilações, os físicos optaram pela segunda alternativa. " 316 Está claro que as alternativas discutida' 'oram bem mais do que duas e que a "vacilação" não foi, por certt `a mais breve". Num conhecido compêndio dE 1i% sofia da ciência aprendemos que (1) "a lei (ou princípio) de Conservação da energia foi seriamente contestada pelas experiência, sobre a desintegração dos raios beta, cujo resultado não poderia ser r: gado"; que (2) apesar disso, a lei não foi abandonada, presumindo-se a existência de uma nova espécie de entidade (chamada "neutrino") a fim de estabelecer a concordância entre a lei e os dados experimentais"; e que (3) "a razão fundamental dessa suposição é que a rejeição da lei da conservação privaria grande parte do nosso conhecimento físico de sua coerência sistemática". 317 Mas os três pontos estão errados; (1) está errado porque nenhuma lei pode ser "seriamente contestada" só por experiências; (2) está errado porque não se elaboram hipóteses científicas só para preencher lacunas entre os dados e a teoria, senão para predizer fatos novos; e (3) está errado porque, na ocasião, parecia aue só a rejeição da lei da conservação asseguraria a "coerência sistemática" do nosso conhecimento físico. (d 4) Conclusão. O resultado do desenvolvimento contínuo. Não existem experiências cruciais, pelo menos não existem se por elas se entenderem experiências capazes de deriubar instantaneamente um programa de pesquisa. Com efeito, quando urn programa de pesquisa sofre uma derrota e é suplantado por outro, podemos — numa longa visão retrospectiva — chamar crucial a uma experiência se se verificar que ela propiciou uma corroboração espetacular do programa vitorioso e o fracasso do programa derrotado (no sentido de que nunca foi "explicada progressivamente — ou, numa palavra, "expli316. Treiman, "The Weak Interactions", 1959; o grifo é meu. 317. Nagel, The Structure of Science, 1961, pp. 65-6. 318. Cf. mais acima, p. 145, nota de pé de página n.° 112.

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cada" 318 — pelo programa derrotado) . Está visto, porém, que os cientistas nem sempre julgam corretamente situações heurísticas. Um cientista precipitado pode afirmar que sua experiência derrotou um programa, e partes da comunidade científica podem até, precipitadamente, aceitar-lhe a afirmativa. Mas 'se um cientista do campo "derrotado" apresentar, alguns anos depois, uma explicação científica da pretensa "experiência crucial" no programa pretensamente derrotado. o título honorífico pode ser retirado e a "experiência crucial" pock converter-se, de uma derrota, numa nova vitória para o programa. Os exemplos abundam. Fizeram-se muitas experiências no século XVIII que foram, de um ponto de vista histórico-sociológico, amplamente aceitas como evidência "crucial" contra a lei da queda livre de Galileu e a teoria da gravitação de Newton. No século XIX houve diversas "experiências cruciais" baseadas em mensurações da velocidade da luz que "refutavam" a teoria corpuscular e que, mais tarde, se revelaram errôneas à luz da teoria da relatividade. Tais "experiências cruciais" foram depois eliminadas dos compêndios justificacionistas como manifestações de vergonhosa miopia ou até de inveja. ( Recentemente reapareceram em alguns manuais, desta feita para ilustrar a inevitável irracionalidade das modas científicas.) Entretanto, nos casos em que "experiências" ostensivamente "cruciais" foram, de fato, confirmadas mais tarde pela derrota do programa, os historiadores tacharam de estúpidos, invejosos e aduladores do pai do programa de pesquisa em apreço os que a elas resistiram. ("Sociológos do conhecimento" que estão na moda — ou "psicólogos do conhecimento" — tendem a explicar posições em termos puramente sociais ou psicológicos quando, na realidade, elas são determinadas por princípios de racionalidade. Um exemplo típico é a explicação da oposição de Einstein ao princípio da complementaridade de Bohr sob a alegação de que "em 1926 Einstein tinha quarenta e sete anos. Quarenta 319 e sete anos podem ser a plenitude da vida, mas não para físicos". ) 319. Bernstein, A Comprehensible World: On Modern Science and its Origins, 1961, p. 129. A- fim de avaliar elementos progressivos e degenerativos em transferências de problema rivais precisamos compreender as idéias envolvidas. Mas a sociologia do conhecimento serve com freqüência de cobertura de sucesso para a ignorância: a maioria dos sociólogos do conhecimento não entende as idéias nem mesmo se interessa por elas; limita-se a observar os modelos sociopsicológicos de comportamento. Popper costumava contar uma história a respeito de um "psicólogo social", o Dr. X, que estudava o comportamento de um grupo de cientistas. Tendo participado de um seminário de física no intuito de estudar a psicologia da ciência, observou a "emergência de um líder", o "efeito de agrupamento em torno" em alguns e a "reação de

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A luz de minhas considerações, a idéia da racionalidade instantânea pode ser vista como utópica. Mas essa idéia utópica é a marca registrada da maior parte das epistemologias. Os justificacionistas queriam que as teorias científicas fossem provadas antes até de ser publicadas; os probabilistas esperavam que uma máquina pudesse dar instantaneamente o valor (grau de confirmação) de uma teoria, em fase da evidência; os falseacionistas ingênuos esperavam que a eliminação fosse ao menos o resultado instantâneo do veredito da expe320 riência. Espero haver demonstrado que todas essas teorias da racionalidade instantânea — e de aprendizado instantâneo — fracassam. Os estudos de casos desta seção mostram que a racionalidade trabalha muito mais devagar do que a maioria das pessoas tende a pensar e, mesmo assim, falivelmente. A coruja de Minerva voa ao cair da noite. Também espero ter mostrado que a continuidade na ciência, a tenacidade de algumas teorias, a racionalidade de certa dose de dogmatismo só poderão ser explicados se interpretarmos a ciência como um campo de batalha onde pelejam programas de pesquisa muito mais do que teorias isoladas. Pode compreender-se muito pouco do crescimento da ciência quando o nosso paradigma de uma quantidade apreciável do conhecimento científico é uma teoria isolada como "Todos os cisnes são brancos", que permanece à distância, sem se achar envolvida num programa importante de pesquisa. Meu relato implica um novo critério de demarcação entre a "ciência maJura", que consiste em programas de pesquisa, e "ciência imatura", que consiste 321 simplesmente num remendado padrão de ensaio-e-erro. Podemos, por exemplo, fazer uma conjectura, vê-la refutada e depois salva por uma hipótese auxiliar que não é ad hoc nos sentidos discutidos anteriormente. Ela talvez prediga fatos novos, alguns dos quais podem até defesa" em outros, a correlação entre a idade, o sexo e o comportamento agressivo, etc. (O Dr. X afirmava ter usado algumas técnicas sofisticadas de pequenas amostras de estatística moderna.) No fim do entusiástico relato Popper perguntou ao Dr. X: "Qual era o problema que o grupo estava discutindo?" O Dr. X ficou surpreso: "Por que pergunta? Não prestei atenção às palavras! Afinal de contas, que é o que tem isso com a psicologia do conhecimento?". 320. É claro que os falseacionistas ingênuos talvez levem algum tempo para chegar ao "veredito da experiência": a experiência tem de ser repetida e considerada com espírito crítico. Mas depois que a discussão termina num acordo entre os entendidos, e assim se torna "aceito" um "enunciado básico", e se decide qual foi a teoria específica atingida por ele, o falseacionista ingênuo terá pouca paciência com os que ainda "prevaricarem". 321. A elaboração dessa demarcação nos dois parágrafos seguintes foi melhorada no prelo, depois de discussões inestimáveis com Paul Meehl em Minneapolis em 1969.

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322

ser corroborados. Ainda assim é possível alcançar-se tal "progresso" com uma série arbitrária e remendada de teorias desconexas. Mas para os bons cientistas esse progresso témporário não será satisfatório; eles poderão até rejeitá-lo por não ser genuinamente científico. Qualificarão tais hipóteses auxiliares simplesmente de "formais", "arbitrárias", 323 "empíricas", "semi-empíricas", ou mesmo "ad hoc". A ciência madura consiste em programas de pesquisa em que se antecipam não só fatos novos mas também, num sentido importante, novas teorias auxiliares; a ciência madura — á diferença do ensaio-e-erro corriqueiro — tem "força heurística". Não nos esqueçamos de que na heurística positiva de um programa poderoso, desde o começo, há um esquema geral de construção dos cintos protetores: essa força heurística gera a autonomia da ciência teórica. 321

O requisito do crescimento contínuo é minha reconstrução racional do requisito amplamente reconhecido da "unidade" ou "beleza" da ciência. Ele focaliza a fraqueza de dois tipos — aparenteni,:,ne muito diferentes — da teorização. Primeiro, mostra a fraqueza de programas que, como o marxismo ou o freudismo, são sem dúvida, "unificados", e dão um apanhado geral da espécie de teorias auxiliares que usarão na absorção de anomalias, mas que planejam infalivelmente suas teorias auxiliares reais na esteira de fatos sem, ao mesmo tempo, antecipar outros. (Que fato novo predisse, o marxismo, digamos, desde 1917?) Em segundo lugar, mostra séries remendadas, 322. Anteriormente, em meu ensaio de 1968, "Changes in the Problem of Inductive Logic", distingui, acompanhando Popper, dois critérios de ad-hocidade. Chamei ad hocAàs teorias que prediziam fatos novos mas falhavam ■4 completamente: nada do seu excesso de conteúdo foi corroborado (cf. também mais acima, à p. 152, nota de pé de página n.° 135, e p. 152, nota de pé de página n.° 136). 323. A fórmula da radiação de Planck — dada em seu ensaio de 1900, "Ober eine Verbesserung der Wienschen Spektralgleichung" — é um bom exemple: cf. mais acima, p. 206, nota de rodapé n.° 287. Podemos chamar a essas hipóteses, que não são ad hoc,, nem ad hoc,, mas ainda insatisfatórias no sentido especificado no texto, ad hocs. Esses três empregos de ad hoc — infalivelmente pejorativos — proporcionarão um verbete satisfatório ao Ox-

ford English Dictionary.

É curioso notar que os termos "empírico" e "formal" são usados como sinônimos do nosso ad hoes. Em seu brilhante ensaio de 1967, "Theory Testing in Psychology and Physics: a Methodological Paradox", Meehl refere que na psicologia contemporânea — especialmente na psicologia social — muitos pretensos "programas de pesquisa" consistem, na realidade, em cadeias de estratagemas ad hoc.. 324. Cf. mais acima, p. 168. 11 et-. „. f rial' q ^Z n .^u ^■ 11.'4\s4ir): C.A►,1Q; ,;,A h 0 i cu-

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destituídas de imaginação, de ajustamentos "empíricos" corriqueiros, .tão freqüentes, por exemplo, na moderna psicologia social. Com a ajuda das chamadas "técnicas estatísticas", tais ajustamentos podem fazer algumas predições "novas" e podem até fazer com que nelas apareça algumas sementes sem importância de verdade. Mas essas teorizações não têm idéia unificadora, não têm força heurística, não têm continuidade. Não significam um autêntico programa de 325 pesquisa e são, de um modo geral, inteiramente sem valor. Conquanto baseado no de Popper, meu relato da racionalidade científica afasta-se de algumas das suas idéias gerais. Endosso até certo ponto não só o convencionalismo de Le Roy em relação às teorias, mas também o convencionalismo de Popper em relação às proposições básicas. Neste sentido os cientistas (e, como já demons32t1) não são irracionais quando tendem trei, os matemáticos também a ignorar exemplos contrarios ou, como preferem chamar-lhes, exemplos "recalcitrantes" ou "residuais", e seguem a seqüência de problemas tal como foi prescrita pela heurística positiva do seu programa, 327 e elaboram — e aplicam — suas teorias sem dar-lhes maior atenção. 325. Depois de ler o ensaio de Meehl, "Theory Testing in Psychology and Physics" (1967) e o de Lykken, "Statistical Significance in Psychological Research" (1968) ficamos a imaginar se a função das técnicas estatísticas nas ciências sociais não é, principalmente, fornecer um maquinismo para produzir corroborações espúrias e, desse modo, uma aparência de "progresso científico" onde, na verdade, não há nada mais que um acréscimo de lixo pseudo-intelectual. Meehl escreve que "nas ciências físicas, o resultado habitual de um aperfeiçoamento do modelo exprimental, da instrumentação ou da massa numérica de dados, é aumentar a dificuldade da "barreira observacional" que a teoria física do interesse precisa sobrepujar com êxito; ao passo que na psicologia e em algumas ciências aliadas do comportamento, o efeito costumeiro dessa melhoria na precisão experimental é fornecer uma barreira que a teoria transpõe com maior facilidade". Ou, como disse Lykken: "A importância estatística [em psicologia] talvez seja o atributo menos importante de uma boa experiência; nunca é condição suficiente para se afirmar que uma teoria foi utilmente corroborada, que se estabeleceu um fato empírico significativo, ou que um relato da experiência deve ser publicado." Parece-me que a maior das teorizações condenadas por Meehl e Lykken talvez seja ad hoca. Desse modo, a metodologia dos programas de pesquisa talvez nos ajude a elaborar as leis para deter essa poluição intelectual, capaz de destruir nosso meio cultural antes até que a poluição industrial e do tráfego destrua nosso meio físico. 326. Cf. meu ensaio de 1963-4 intitulado "Proofs and Refutations". 327. Assim se esvai a assimetria metodológica entre os enunciados universais e os singulares. Podemos adotar qualquer um dos dois por convenção: no "núcleo" decidimos "aceitar" enunciados universais; na "base empírica", enunciados singulares. A assimetria lógica entre os enunciados universais e os singulares só é fatal para o indutivista dogmático que só quer aprender com

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Contrari ando a moral falseacionista de Popper, os cientistas freqüente e racionalmente proclamam "que os resultados experimentais não merecem confiança, ou que as discrepâncias que se afirmam existir entre os resultados experimentais e a teoria são apenas aparentes e desaparecerão com o progresso dõ nosso entendimento". 328 Pode ser que, ao fazê-lo, eles não estejam "adotando o próprio inverso da atitude crítica que ... é a atitude aprop riada ao cientista". 329 Popper, na verdade, tem razão ao acentuar que "a atitude dogmática de aferrar-se a uma teori a pelo maior tempo possível é de considerável importância. Sem ela, talvez nunca descobríssemos o que há numa teoria — abriríamos mão da teoria antes de ter uma opo rtunidade real de descobri r-lhe a força: e, em conseqüência disso, nenhuma teo ria seria jamais capaz de representar o seu papel de trazer ordem ao mundo, de preparar-nos para acontecimentos futuros, de chamar nossa atenção para acontecimentos que, de outro modo, nunca observaría330 mos". Assim, o "dogmatismo" da "ciência normal" não impede o crescimento enquanto o combinamos com o reconhecimento popperiano de existência de uma ciência normal, progressiva e boa e de uma ciência normal, degenerativa e má, e enquanto mantemos a determinação de eliminar, sob ce rt as condições objetivamente definidas, alguns programas de pesquisa. A atitude dogmática na ciência — que explica ria seus períodos estáveis — foi descrita por Kuhn como um traço fundamental da "ciência normal". 331 Mas a estrutura conceptual de Kuhn para lidar com a continuidade na ciência é sociopsicológica: a minha é normativa. Olho para a continuidade na ciência através de "óculos popperiaa experiência e a lógica. E claro que o convencionalista pode "aceitar" a assimetria lógica: ele não tem de ser (embora possa sê-lo) também um indutivista. "Aceita" enunciados universais, mas não porque afirma deduzi-los (ou induzilos) dos singulares. 328. Popper, Logik der Forschung, 1934, seção 9.

329. Ibid. 330. Popper, "What is Dialectic?", primeira nota de pé de página. Encontramos um reparo semelhante em seu livro Conjectures and Refutations, 1963, p. 49. Mas esses reparos estão em contradição prima facie com algumas de suas observações (Logik der Forschung, 1934) (citadas mais acima, à p. 135 e, por conseguinte, só podem ser interpretados como sinais de uma percepção popperiana cada vez mais aguda de uma anomalia não-digerida em seu próprio programa de pesquisa. 331. Com efeito, meu critério de demarcação entre a ciência madura e a imatura pode ser interpretado como absorção popperiana da idéia de "normalidade" de Kuhn como marco distintivo de ciência [madura] ; e também

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nos". Onde Kuhn vê "paradigmas", também vejo "programas de pesquisa" racionais. 4. 0 PROGRAMA DE PESQUISA POPPERIANO VERSUS O PROGRAMA DE PESQUISA KUHNIANO Sumariemos agora a controvérsia Kuhn-Popper. Mostramos que Kuhn está certo quando faz objeçõés ao falseacionismo ingênuo e quando acentua a continuidade do crescimento científico, a tenacidade de algumas teo rias científicas. Mas Kuhn está errado ao pensar que, pondo de lado o falseacionismo ingênuo, pôs de lado, por essa maneira, todas as classes de falseacionismo. Kuhn opõe objeções a todo o programa popperiano de pesquisa e exclui qualquer possibilidade de reconstrução racional do crescimento da ciência. Numa sucinta comparação entre Hume, Carnap e Popper, Watkins assinala que o crescimento da ciência é indutivo e irracional segundo Hume, indutivo e racional segundo Carnap, não-indutivo e 332 racional segundo Popper. Mas a comparação de Watkins pode ser estendida para acrescentar que ele é não-indutivo e irracional segundo Kuhn. No entender de Kuhn não pode haver lógica, mas apenas psicologia da descoberta. 333 Na concepção de Kuhn, por exemplo, as anomalias e incoerências sempre abundam na ciência, mas em perfodos "normais" o paradigma dominante assegura um padrão de crescimento finalmente derrubado por uma "c rise". Não existe nenhuma causa racional determinada para o aparecimento de uma "c rise" kuhniana. "Cri se" é um conceito psicológico; é um pânico contagioso. Emerge então um novo "paradigma", incomensurável com o seu predecessor. Não existem padrões racionais para a sua comparação. Cada reforça meu argumento anterior contra considerar os enunciados altamente falseáveis como eminentemente científicos. (Cf. mais acima, p. 123.) A propósito, essa demarcação entre ciência madura e ciência imatura já aparece em meus ensaios "Infinite Regress and the Foundations of Mathematics" (1962) e "Proofs and Refutations" (1963-4), onde chamei à primeira "adivinhação dedutiva" e à segunda "ensaio-e-erro ingênuo". (Veja, por exemplo, no ensaio de 1963-4, a seção 7(e): "Adivinhação dedutiva contra adivinhacão ingênua".) 332. Watkins, "Hume, Carnap and Popper", 1968, p. 281. 333. Kuhn, "Logic of Discovery or Psychology of Research?" 1965. Mas essa posição já se acha implícita em sua obra de 1962, The Structure of Scien-

tific Revolutions.

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paradigma contém seus próprios padrões. A crise leva embora não só as velhas teorias e regras, mas também os padrões que nos fizeram respeitá-las. O novo paradigma traz uma racionalidade totalmente nova. Não há padrões superparadigmáticos. A mudança é um efeito de adesão de última hora. Assim sendo, de acordo com a concepção de Kuhn, a revolução científica é irracional, uma questão de psicologia das multidões. A redução da filosofia da ciência à psicologia da ciência não começou com Kuhn. Uma onda anterior de "psicologismo" seguiuse ao desmoronamento do justificacionismo. Para muitos, o justificacionismo representava a única forma possível de racionalidade: o fim do justificacionismo significava o fim da racionalidade. O colapso da tese de que as teorias científicas são prováveis, de que o progresso da ciência é cumulativo, fez que os justificacionistas entrassem em pânico. Se "descobrir é provar" e nada é provável, não pode haver descobertas, apenas proclamações de descobertas. Os justificacionistas desapontados — ex-justificacionistas — cuidavam que a elaboração de padrões racionais era uma atividade inútil e que a única coisa que se pode fazer é estudar — e imitar — a Mente Científica, tal como é exemplificada em cientistas famosos. Depois do colapso da física newtoniana, Popper elaborou padrões críticos novos, não-justificacionistas. Alguns dos que já haviam sabido do colapso da racionalidade justificacionista ficaram sabendo, em sua maioria por ouvir dizer, dos coloridos slogans de Popper que sugeriam o ingênuo. Achando-os insustentáveis, identificaram o colapso do ingênuo com o fim da própria racionalidade. A elaboração de padrões racionais foi novamente considerada uma empresa inútil; o melhor que se pode fazer, tornaram eles a pensar, é estudar a Mente Científica. 334 A filosofia crítica seria substituída pelo que Polanyi denominou filosofia "pós-crítica". Mas o programa de pesquisa kuhniano contém um novo traço: não devemos estudar a mente do cientista individual, mas a mente da Comunidade Científica. A psicologia individual é substituída pela psicologia social; a imitação dos grandes cientistas pela submissão à sabedoria coletiva da comunidade. Mas Kuhn fez vista grossa para a falseacionismo sofisticado de Popper e para o programa de pesquisa que ele iniciou. Popper subs334. A propósito, assim como alguns ex-justificacionistas anteriores dirigiram a onda do irracionalismo cético, assim agora alguns ex-falseacionistas dirigem a nova onda do irracionalismo cético e do anarquismo. Isso está melhor exemplificado em Feyerabend, "Against Method", 1970. 221

tituiu o problema central da racionalidade clássica, o velho problema dos fundamentos pelo novo problema do crescimento crítico-falível, e pô-se a elaborar padrões objetivos desse crescimento. Neste ensaio tentei desenvolver um pouco mais o seu programa. Creio que este pequeno desenvolvimento é suficiente para escapar às censuras de Kuhn 335 .

A reconstrução do progresso científico como proliferação de programas rivais de pesquisa e transferências progressivas e degenerativas de problemas fornece uma imagem da atividade científica que é de muitas maneiras diferente da imagem proporcionada pela sua reconstrução como uma sucessão de teorias ousadas e seus dramáticos derrubamentos. Seus principais aspectos foram desenvolvidos das idéias de Popper e, em pa rticular, da sua condenação dos estratagemas "convencionalistas", isto é, diminuidores de conteúdo. A p rincipal diferença em relação à versão o riginal de Popper, creio eu, é que na minha concepção a crítica não mata nem deve matar — tão depressa quanto Popper imaginava. A crítica destrutiva, puramente negativa, como a "refutação" ou a demonstração de uma inconsistência não elimina um programa. A crítica de um programa é um processo longo e amiúde frustrante, e os programas em desen336 Pode-se, naturalvolvimento devem ser tratados sem severidade. mente, mostrar a degeneração de um programa de pesquisa, mas sô a crítica construtiva pode, com a ajuda de programas de pesquisa rivais, obter êxitos reais; e os resultados espetaculares e dramáticos só se tornam visíveis a posteriori e através da reconstrução racional. 335. De fato, como eu já havia mencionado, meu conceito de um "programa de pesquisa" pode ser interpretado como um objetivo, uma reconstrução "do terceiro mundo" do conceito sociopsicológico de "paradigma" de Kuhn: desse modo a "transferência de gestalt" kuhniana pode ser executada

sem que seja preciso, para isso, tirar os óculos popperianos. ( Não tratei da afirmativa de Kuhn e Feyerabend de que as teorias não podem ser eliminadas por nenhum motivo objetivo mercê da "incomensurabilidade" das teorias rivais. As teorias incomensuráveis não são incompatíveis entre si nem comparáveis no que concerne ao conteúdo. Mas, segundo um dicionário, podemos torná-las incompatíveis e tornar-lhes o conteúdo comparável. Se quisermos eliminar um programa, necessitamos de determinação metodológica. Essa determinação é o centro do falseacionismo metodológico; por exemplo, nenhum resultado de amostragem estatística é incompatível com uma teoria estatística a não ser que as façamos incompatíveis com a ajuda das regras popperianas de rejeição. Cf. mais acima, p. 132.) 336. A relutância dos economistas e de outros cientistas sociais em aceitar a metodologia de Popper pode dever-se em parte, ao efeito destrutivo do falseacionismo ingênuo sobre os programas de pesquisa que estão começando.

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Kuhn mostrou, por certo, que a psicologia da ciência revela verdades importantes e, de fato, tristes. Mas a psicologia da ciência não é autônoma; pois o crescimento — racionalmente reconstruído — da ciência se verifica essencialmente no mundo das idéias, no "terceiro mundo" de Platão e - de Popper, no mundo do conhecimento inteligível, que o independe de sujeitos do conhecimento. 337 O programa de pesquisa de Popper visa a uma descrição desse crescimento científico objetivo. 338 O programa de pesquisa de Kuhn parece visar a uma descrição da mudança na mente científica (`normal") 338 (individual ou comunal). Mas a imagem-espelho do terceiro mundo na mente do indivíduo — até na mente dos cientistas "normais" 337. 0 primeiro mundo é o mundo material, o segundo é o mundo da consciência, o terceiro é o mundo das proposições, da verdade, dos padrões: o mundo do conhecimento objetivo. Os loci classici modernos sobre o assunto são os dois ensaios de Popper, "Epistemology without a Knowing Subject" e "On the Theo ry of the Objective Mind", ambos de 1968; cf. também o impressionante programa de Toulmin exposto em seu trabalho de 1967, "The Evolutionary Development of Natural Science". Cumpre mencionar aqui que muitos trechos de Popper em sua Logik der Forschung (1934) e até em suas Conjectures and Refutations (1963) parecem descrições de um contraste psicológico entre a Mente Crítica e a Mente Indutivista. Mas os termos psicologístas de Popper podem ser reinterpretados, numa grande extensão, em termos do terceiro mundo: veja Musgrave, "The Objectivism of Popper's Epistemology", 1974. 338. Com efeito, o programa de Popper estende-se além da ciência. Os conceitos de transferências "progressivas" e "degenerativas" de problemas e a idéia da proliferação de teorias podem ser generalizadas para abranger qualquer espécie de discussão racional e, assim, servir de instrumentos para uma teoria geral da crítica; cf. meus trabalhos "Popper zum Abgrenzungsund Ti dúktionsproblem" e "History of Science and its Rational Reconstructions", ambos de 1971. Meu ensaio de 19634, "Proofs and Refutations", pode ser visto como a história de um programa progressivo e não-empírico de pesquisa; e meu ensaio de 1968, "Changes in the Problem of Inductive Logic" contém a história de um programa degenerativo e não-empírico de lógica indutiva.) 339. Estados de espírito reais, crenças, etc., pertencem ao segundo mundo; estados do espírito normal pertencem a um limbo entre o segundo e o terceiro. O estudo das mentes científicas reais pertence à psicologia; o estudo da mente "normal" (ou "sadia", etc.) pertence à filosofia psicologista da ciência. Existem duas espécies de filosofias psicologistas da ciência. De acordo com uma delas não pode haver filosofia da ciência: só uma psicologia de cientistas individuais. De acordo com a outra, há uma psicologia da mente "científica", "ideal" ou "normal": isso transforma a filosofia da ciência numa psicologia da mente ideal e, ademais, oferece uma psicoterapia para transformar nossa mente na mente ideal. Discuto circunstanciadamente alhures esse segundo tipo de psicologismo. Kuhn não parece haver notado a distinção.

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— é geralmente uma caricatura do original; e descrever essa caricatura sem relacioná-la com o terceiro mundo original pode perfeitamente redundar na caricatura de uma caricatura. Não se pode compreender a história da ciência sem levar em conta a interação dos três mundos. APENDICE POPPER, O FALSEACIONISMO E A "TESE DUHEM-QUINE"

Popper começou como falseacionista dogmático na década de 1920; mas logo compreendeu a insustentabilidade de sua posição e não publicou coisa alguma antes de inventar o falseacionismo metodológico. Idéia de todo nova na filosofia da ciência, tem sua origem claramente em Popper, que a aventou como solução para as dificuldades do falseacionismo dogmático. Com efeito, o conflito entre as teses de que a ciência é crítica e falível ao mesmo tempo é um dos problemas centrais da filosofia popperiana. Embora oferecesse uma formulação coerente e uma crítica do falseacionismo dogmático, Popper nunca fez uma distinção nítida 34entre o falseacionismo ingênuo e o sofisticado. Num ensaio anterior, o distingui três Poppers: Poppero , Popper s e Popper2 . Poppero é o falseacionista dogmático que nunca publicou uma palavra: foi inventado — e "criticado" — pri341 meiro por Ayer e depois por muitos outros. Espero que este ensaio 340. Cf. meu ensaio de 196V,, Changes in the Problem of Inductive Logic". 341. Ayer parece ter sido o primeiro a atribuir o falseacionismo dogmático a Popper. (Ayer também ,nventou o mito de que, de acordo com Popper, a "confutabilidade definida" era um critério não só do caráter empírico mas também do caráter significativo da proposição: cf. o seu Language, Truth and Logic, 1936, capítulo 1, p. 38 da segunda edição.) Ainda hoje, muitos filósofos (cf. Juhos, Ober die empirische Induktion", 1966, ou Nagel, " What is True and False in Science: Medawar and the Anatomy of Research", 1967) criticam o homem -de-palha Popper. Em seu livro publicado em 1967, The Art of the Soluble, Medawar chamou ao falseacionismo dogmático "uma das idéias mais vigorosas" da metodologia de Popper. Ao fazer uma crítica do livro de Medawar, Nagel criticou-o por "endossar" o que ele também acredita serem "afirmações de Popper" (Nagel, "What is True and False in Science: Medawar and the Anatomy of Research", 1967, p. 70). A crítica de Nagel convenceu Medawar de que "o ato de falseamento não está imune ao erro humano" ( Medawar, Induction and Intuition in Scientific Thought, -

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acabe matando o seu fantasma. Popper, é o falseacionista ingênuo e Popper é o falseacionista sofisticado. O verdadeiro Popper desenvolveu-se passando da versão dogmática para a versão ingênua do falseacionismo metodológico na década de 1920 e chegou às `regras de aceitação" do falseacionismo sofisticado na década de 1950. Marcou-lhe a transição o haver ele àcrescentado ao requisito original de testabilidade o "segundo" requisito de "testabilidade independente" 342 e, a seguir, o "terceiro" requisito de que alguns desses testes 343 independentes resultassem em corroborações. Mas o verdadeiro Popper nunca abandonou suas p rimeiras (ingênuas) regras de falseamento. Ele tem exigido, até o presente, que "se estabeleçam de antemão os critérios de refutação: urge que haja consenso em torno das situações observáveis, se realmente observadas, que significam que a teo344 ria está refutada". Ele ainda interpreta "falseamento" como resultado de um duelo entre a teoria e a obse rvação, sem que outra teoria melhor esteja necessariamente envolvida. O verdadeiro Popper nunca explicou circunstanciadamente o processo de apelação por cujo intermédio alguns "enunciados básicos aceitos" podem ser eliminados. Desse modo, o verdadeiro Popper consiste em Popper, com alguns elementos de Popper . 2

2

A idéia de uma demarcação entre as transferências progressivas e as degenerativas de problemas, como foi discutida neste trabalho, baseia-se na obra de Popper: sua demarcação, na verdade, é quase idêntica345ao seu célebre critério demarcatório entre a ciência e a metafísica. 1969, p. 54). Medawar e Nagel, porém, não souberam ler Popper: a Logik der Forschung deste último é a mais forte das críticas ao falseacionismo

dogmático que já se escreveu. Pode ter-se uma visão caridosa do erro de Medawar: para cientistas brilhantes cujo talento especulativo se viu frustrado sob a tirania de uma lógica indutivista da descoberta, o falseacionismo, até em sua forma dogmática, estava destinado a ter um tremendo efeito liberatório. (Além de Medawar, outro detentor do Prémio Nobel, Eccles, aprendeu com' Popper a substituir sua cautela original por uma arrojada especulação falseável: cf. Eccles, "The Neurophysiological Basis of Experience", 1964, pp. 274-5.) 342. Popper, "The Aim of Science", 1957. 343. Popper, Conjectures and Refutations, 1963, pp. 242 e seguintes. 344. Popper, Conjectures and Ref utations, 1963, p. 38, nota de pé página n.° 3. 345. Se o leitor estiver em dúvida quanto à autenticidade de minha reformulação do critério de demarcação de Popper, releia as partes importantes de Popper (Logik der Forschung), tendo Musgrave ("On a Demarcation Dispute", 1968) por guia. Musgrave escreveu o supracitado ensaio contra

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Originalmente, Popper só tinha em mente o aspecto teórico das transferências de problemas, o que é lembrado na seção 20 da sua Logik der Forschung e desenvolvido em seu The Poverty of Historicism. 346 Só depois ajuntou uma discussão do aspecto empírico das 347 transferências de problemas em suas Conjectures and Refutations. Entretanto, a condenação de Popper aos "estratagemas convencionalistas", em certos sentidos, é muito fo rte e, em outros, muito fraca. É muito forte pois, segundo Popper, uma nova versão de um programa progressivo nunca adota um estratagema diminuidor de conteúdo para absorver uma anomalia, e nunca diz coisas como esta: "todos os corpos são newtonianos, exceto dezessete corpos anômalos". Mas visto que sempre abundam anomalias não explicadas, admito tais formulações; uma explicação é um passo dado à frente (isto é, "científica") quando explica pelo menos algumas anomalias prévias que não foram explicadas "cientificamente" por sua predecessora. Enquanto as anomalias forem consideradas problemas autênticos (embora não necessariamente urgentes), pouco importa que as dramatizemos como "refutações" ou que as despojemos de dramaticidade como "exceções": a diferença, nesse caso, é apenas lingüística. (O grau de tolerância de estratagemas ad hoc nos permite progredir até sobre fundamentos inconsistentes. As transferências de problemas podem então ser progressivas a despeito das inconsistências. 348 ) Entretanto, a condenação de Popper dos estratagemas diminuidores de Bartley, que, no seu trabalho do mesmo ano, "Theories of Demarcation between Science and Metaphysics", atribuiu erroneamente a Popper o critério de demarcação do falseacionismo ingênuo, tal como foi formulado mais acima, à p. 109. 346. Em sua Logik der Forschung (1934), Popper preocupou-se principalmente com uma proscrição dos ajustamentos ad hoc subreptícios. Popper (Popper') exige que o objetivo de uma experiência c ru cial potencialmente negativa seja apresentado juntamente com a teoria, e depois que a sentença do júri experimental seja humildemente aceita. Disso se segue que os estratagemas convencionalistas, que depois da sentença torcem retrospectivamente a teoria original a fim de escapar à sentença, são eo ipso excluídos. Mas se admitirmos a refutação e depois reformularmos a teoria com a ajuda de um estratagema ad hoc, podemos admiti-lo como "nova" teoria; e se ela for testável, Popper a aceitará para uma nova crítica: "Sempre que descob ri mos que um sistema foi salvo por um estratagema convencionalista, tornamos a testá-lo, e rejeitamo-lo, se as circunstâncias o exigirem" (Popper, Logik der Forschung, seção 20). 347. Sobre detalhes, cf. meu ensaio "Changes in the Problem of Inductive Logic", 1968, especialmente as pp. 388-90. 348. Cf. mais acima, pp. 174 e seguintes. Essa tolerância raro se encontra, se é que se encontra alguma vez, em compêndios de método científico. '

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conteúdo é também demasiado349fraca: não pode lidar, por exemplo, 350 ad com o "paradoxo de rodeios", e não condena estratagemas hoc , que só são eliminados pelo requisito de que as hipóteses auxiliares deveriam ser formadas de acordo com a heurística positiva de um programa de pesquisa autêntica. Esse novo requisito nos leva ao problema da continuidade na ciência. 3

O problema da continuidade na ciência foi levantado por Popper e seus seguidores há muito tempo. Quando propus minha teo ria do crescimento baseado na idéia de programas de pesquisa concorrentes, tornei a seguir, e tentei melhorar, a tradição popperiana. já sublinhara a O próprio Popper, em sua Logik der Forschung, 351 importância heurística da "metafísica influente", e foi visto por alguns membros do Círculo de Viena como defensor da pe rigosa 352 metafísica. Quando o seu interesse pelo papel da metafísica reviveu na década de 1950, ele escreveu um "Epílogo Metafísico" interessantíssimo a respeito de "programas de pesquisa metafísica" para 353 o seu Postscript: After Twenty Years — no prelo desde 1957. 349. Cf. mais acima, p. 160. 350. Cf. mais acima, à p. 217, nota de rodapé n' 323. 351. Cf., por exemplo, sua Logik der Forschung, fim da seção 4; cf. também seu ensaio de 1968 intitulado "Remarks on the Problems of Demarcation and Rationality", p. 93. Não nos esqueça que tal importância foi negada à metafísica por Comte e Duhem. As pessoas que mais fizeram para inverter a maré antimetafísica na filosofia e na historiografia da ciência foram Burtt, Popper e Koyré. 352. Na crítica que fizeram do livro, Carnap e Hempel trataram de defender Popper dessa acusação (cf. Carnap, Crítica do livro de Popper, Logik der Forschung, 1953, e Hempel, Crítica do livro de Popper, Logik der Forschung, 1937). Hempel escreveu: "[Popper] acentua vigorosamente certas características do seu enfoque, comuns com as características do enfoque de alguns pensadores que seguem uma orientação metafísica. Espera-se que esse valioso trabalho não seja mal interpretado como se tencionasse permitir o advento de uma metafísica nova, talvez até logicamente defensável." 353. Uma passagem desse Postscript merece ser aqui citada: "O atomismo é um ... excelente exemplo de uma teoria metafísica não-testável, cuja influência sobre a ciência excedeu a de muitas teorias testáveis... A mais recente e mais ampla até agora foi o programa de Faraday, Maxwell, Einstein, de Broglie e Schródinger, de conceber o mundo... em termos de campos continuos... Cada uma dessas teorias metafísicas funcionou, muito antes de tornar-se testável, como programa para a ciência, indicando a direção em que se podem encontrar satisfatórias teorias explanatórias de ciência, e possibilitando algo semelhante a uma avaliação da profundidade de uma teoria. Em biologia, a teoria da evolução, a da célula e a da infecção bacteriana desempenharam papéis semelhantes, pelo menos durante algum tempo. Em psicologia, o sensualismo, o atomismo (isto é, a teoria de que todas as experiências são compostas de últimos elementos, tais como, por exemplo, os

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Popper, no entanto, não associava a tenacidade com a irrefutabilidade . metodológica, mas com a irrefutabilidade sintática. Por "metafísica" entendia enunciados sintaticamente especificáveis como enunciados do tipo "todos-alguns" e enunciados puramente existenciais. Nenhum enunciado básico poderia entrar em conflito com eles devido a sua forma lógica. Nesse sentido, por exemplo, "para todos os metais há um solvente" seria `metafísico", ao passo que354 a teoria da gravitação de Newton, tomada isoladamente, não o seria. Na década de 1950, Popper também suscitou o problema crítico das teorias metafísicas e 355 sugeriu soluções. Agassi e Watkins publicaram diversos estudos interessantes sobre o papel dessa "metafísica" da ciência, que todos 356 ligavam à continuidade do progresso científico. Meu tratamento difere do deles porque vou muito mais longe do que eles no apagar a demarcação entre "ciência" [de Popper] e "metafísica" [de Popper] : nem sequer emprego mais o termo "metafísico". Só me refiro a programas de pesquisa científica cujo núcleo é irrefutável não por razões sintáticas mas por razões metodológicas que nada têm que ver com a forma lógica. Em segundo lugar, separando nitidamente o problema descritivo do papel psicológico-histórico da metafísica do problema normativo de distinguir os programas de pesquisa progressivos dos programas de pesquisa degenerativos, desenvolvi o problema além do que eles já o tinham feito.

Finalmente, eu gosta ri a de357discutir a "tese Duhem-Quine" e sua relação com o falseacionismo.

dados dos sentidos) e a psicanálise devem ser mencionados como programas de pesquisa metafísica... Até asserções puramente existenciais têm-se revelado, às vezes, sugestivas e proveitosas na história da ciência, ainda que nunca tenham feito parte dela. Efetivamente, poucas teorias metafísicas exerceram maior influência sobre o desenvolvimento da ciência do que a seguinte teoria puramente metafísica: "Existe uma substância capaz de transformar metais vis em ouro (isto é, a pedra filosofal)", embora se trate de uma teoria não-falseável, que nunca foi verificada e na qual, hoje em dia, ninguém acredita." 354. Cf. especialmente Popper, Logik der Forschung, 1934, seção 66. Na edição de 1959 ele acrescentou uma nota de rodapé esclarecedora (nota de rodapé n.° *2) a fim de acentuar que nos enunciados metafísicos do tipo todos-alguns o quantificador existencial precisa ser interpretado como "ilimitado"; mas, naturalmente, ele já deixara esse pormenor absolutamente claro na seção 15 do texto original. 355. Cf. especialmente o seu livro Conjectures and Refutations, 1963, pp. 198-9 (publicado pela primeira vez em 1958). 356. Cf. os ensaios de Watkins, "Between Analytic and Empirical" (1957) e "Influential and Confirmable Metaphysics" (1958) e os de Agassi, "The Confusion between Physics and Metaphysics in the Standard Histories of Sciences" (1962) e "Scientific Problems and Their Roots in Metaphysics" (1964).

Em sua interpretação forte a tese Duhem-Quine exclui qualquer regra de seleção racional entre as alternativas; essa versão é incompatível com todas as formas de falseacionismo metodológico. As duas interpretações não foram claramente separadas, embora a diferença seja metodologicamente vital. Duhem parece ter conservado apenas a interpretação fraca: para ele a seleção é uma questão de "sagacidade": precisamos escolher sempre ce rt o a fim de chegar mais pe rt o da "classificação natural". 360 Por outro lado, Quine, na tra-

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De acordo com a "tese Duhem-Quine", em havendo imaginação suficiente, qualquer teoria (quer consista numa proposição, quer consista numa conjunção finita de muitas proposições) pode ser salva permanentemente da "refutação" por algum ajustamento adequado no conhecimento de fundo em que está incluída. Como diz "aconteça o que acontecer, qualquer pronunciamento pode ser considerado verdadeiro, se fizermos ajustamentos suficientemente drásticos em outros pontos do sistema ... Inversamente, nenhum enunciado é imune à revisão." 358 De mais a mais, o "sistema" é nada menos que "o conjunto da ciência". "Uma experiência recalcitrante pode ser acomodada por uma de várias reavaliações alternativas em vários pontos alte rn ativos do sistema total [incluindo a possibilidade de reavaliar a própria experiência recalcitrante] ." 539 Essa tese tem duas interpretações muito diferentes. Em sua interpretação fraca apenas afirma a impossibilidade do atingimento experimental direto de um alvo teórico ri gorosamente especificado e a possibilidade lógica de modelar a ciência de maneiras muito diferentes. A interpretação fraca só atinge o falseacionismo dogmático e não o metodológico: apenas nega a possibilidade de uma refutação de qualquer componente separado de um sistema teórico.

357. Esta parte final do Apêndice foi acrescentada no prelo. 358. Quine, From a Logical Point of View, 1953, capítulo ii. 359. Ibid. A cláusula entre os colchetes é minha. 360. Segundo Duhem, uma experiência nunca pode condenar sozinha uma teoria isolada (tal como o núcleo de um programa de pesquisa): para uma "condenação" dessa natureza também precisamos de "senso comum", "sagacidade" e bom instinto metafísico que nos conduza na direção de (ou para) "certa ordem eminentíssima", (Veja o fim do Apêndice da segunda edição do seu livro publicado em 1906, La Théorie Physique, Son Objet et Sa Structure.

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Nesse caso podemos restaurar a consistência alterando qualquer uma das sentenças do nosso modelo dedutivo. Seja, por exemplo, h : "sempre que um fio estiver carregado com um peso que exceda o que caracteriza o esforço de fração do fio, este se romperá"; seja 112: "o peso característico para esse fio é 1 libra"; seja h,: "o peso colocado neste fio foi de 2 libras". Seja, finalmente, O: "colocou-se um peso de ferro de 2 libras sobre o fio localizado na posição espaço-tempo P e este não se rompeu". Pode resolver-se o problema de muitas maneiras. Para dar alguns exemplos: (1) Rejeitamos h,; substituímos a expressão "é carregado com um peso" por "é puxado por uma força"; introduzimos uma nova condição inicial: havia um ímã (ou uma força até então desconhecida) escondido no forro do laboratório. (2) Rejeitamos h ; propomos que o esforço de tração dependa do grau de umidade dos fios; o esforço de tração do fio real, desde que ele se umedeceu, foi de 2 libras. (3) Rejeitamos O; o fio não se rompeu; apenas se observou que ele não se rompeu, mas o professor que propôs h, & h & h era um conhecido burguês liberal e seus assistentes revolucionários de laboratório viram-lhe as hipóteses sistematicamente refutadas quando, na realidade, elas foram confirmadas. (5) Rejeitamos h ; o fio não era um "fio", era um "superfio", e os "superfios" nunca se rompem. :t62 Poderíamos prosse-

guir indefinidamente. Na verdade, há um número infinito de possibilidades de substituir — em havendo imaginação suficiente — qualquer uma das premissas (no modelo dedutivo) invocando uma mudança em alguma pa rte distante do nosso conhecimento total (fora do modelo dedutivo) e por essa maneira restaurar a consistência. Podemos formular esa observação trivial dizendo que "cada teste é um desafio ao conjunto do nosso conhecimento"? Não vejo nenhua ma razão para não o fazer. A resistência de alguns falseacionistas 363 deveesse "dogma holístico do caráter `global' de todos os testes" se apenas a uma fusão semântica de duas noções diferentes de "teste" (ou "desafio") que um resultado experimental recalcitrante apresenta ao nosso conhecimento. A interpretação popperiana de um "teste" (ou "desafio") é que o resultado (0) contradiz ("desafia") uma conjunção finita, bem especificada de premissas ( T) : O & T não podem ser verdadeiros Mas nenhum protagonista do argumento Duhem-Quine negaria esse ponto. A interpretação quineana do "teste" (ou "desafio") é que a substituição de O & T pode invocar alguma mudança também fora de O e T. O sucessor de O & T pode ser incompatível com H em alguma parte distante do conhecimento. Mas nenhum popperiano negaria esse ponto. A fusão das duas noções de procedimento de teste conduziu a alguns mal-entendidos e erros lógicos. Algumas pessoas sentiram intuitivamente que o modus tollens da refutação pode "repercutir" nas premissas muito distantes em nosso conhecimento total e, portanto, viram-se apanhadas na idéia de que a "cláusula ceteris paribus" é uma premissa que se associa conjuntivamente às premissas óbvias. Logra-se, porém, essa "repercussão" não pelo modus tollens mas como resultado da substituição subseqüente do nosso modelo dedu364 tivo oríginal.

361. Quine fala de enunciados que têm "distãncias variáveis de uma periferia sensocial" e estão, assim, mais ou menos expostos à mudança. Mas tanto a periferia sensorial quanto a métrica são difíceis de definir. Segundo Quine, "as considerações que dirigem lo homem] na deformação da própria herança científica para ajustar-se às suas continuadas periferias sensociais são racionais, pragmáticas" (Quine, From a Logical Point of View, 1953). Mas o "pragmatismo" para Quine, como para James ou Le Roy, não passa de conforto psicológico; e parece-me irracional chamar a isso "racional". 362. Sobre tais "defesas resumidoras de conceitos" e "refutações ampliadoras de conceitos", cf. meu ensaio de 1963-4, intitulado "Proofs and Refutations".

363. Popper, Conjectures and Refutation, 1963, capítulo 10, seção XVI. 364. 0 tocus classicus desta confusão é a crítica teimosa de Popper levada a efeito por Canfield e Lehrer em seu ensaio de 1961, "A Note on Prediction and Deduction"; Stegmüller seguiu-os ao pântano lógico no seu trabalho de 1966 a que deu o título de "Explanation, Prediction, Scientific Systematization and Non-Explanatory Information" (p. 7). Coffa contribuiu para a elucidação do problema num ensaio publicado em 1968: "Deductive predictions". Infelizmente, minha própria fraseologia neste trabalho em certos lugares dá a entender que a "cláusula ceteris paribus" tem de ser uma premissa independente na teoria que está sendo testada. Minha atenção foi chamada para essa falha facilmente reparável por Colin Howson.

dição do pragmatismo norte-americano de James e Lewis, parece manter uma posição muito próxima da interpretação forte.'s 1 Examinemos agora mais atentamente a tese Duhem-Quine. Façamos uma "experiência recalcitrante" expressa num "enunciado de observação" O' incompatível com uma conjunção de enunciados teóricos (e "observacionais") h,, h 2 ... h n , 11, 1 2 ... I , em que h, são teorias e /, as condições iniciais correspondentes. No "modelo dedutivo", h,. h, n 1 ... I n logicamente supõem O; observa-se, porém, que 0' supõe não-O. Suponhamos também que as premissas são independentes e todas necessárias para deduzir O. n

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Desse modo, a "tese fraca de Quine" mantém-se trivialmente. Mas a "tese forte de Quine" encontrará vigorosa oposição não só do falseacionista ingênuo mas também do sofisticado. O falseacionista ingênuo insiste em que, se tivermos uma série inconsistente de enunciados científicos, p rimeiro teremos de escolher dentre eles (1) uma teoria que esteja sendo testada (para servir de noz); depois precisamos escolher (2) um enunciado básico aceito (para servir de martelo) e o resto será conhecimento de fundo não-contestado (para servir de bigorna). E para dar a devida força a essa postura, precisamos oferecer um método de "endurecer" o "martelo" e a "bigorna" para poder quebrar a "noz" e, assim, realizar uma "experiência crucial negativa". Mas a "adivinhação" ingênua dessa divisão é demasiado arbitrária, não nos dá nenhum endurecimento sério. (Grünbaum, por outro lado, aplica o teorema de Bayes para mostrar que, pelo menos em certo sentido, o "martelo" e a "bigorna" têm altas probabilidades posteriores e, po rtanto, são "duras" bastante 365 para ser usadas como quebra-nozes. ) O falseacionista sofisticado permite que qualquer parte do corpo da ciência seja substituído mas só sob a condição de que seja substituído de modo "progressivo", de sorte que a substituição antecipe com êxito fatos novos. Em sua reconst rução racional do falseamento, "experiências cruciais negativas" não desempenham papel algum. Ele não vê nada de errado num grupo de cientistas brilhantes conspirando para acondicionar tudo o que podem no seu programa de pesquisa ("referencial conceitual", se quiserem) favo rito com um núcleo sagrado. Enqu anto o gênio — e a sorte — lhes permitem expandir o programa "progressivamente", enquanto permanecerem 365. Grünbaum assumiu anteriormente uma posição de falseacionismo dogmático e afirmou, referind o-se aos seus estudos interessantes de geomet ria física, que podemos verificar falsidade de algumas hipóteses científicas (por exemplo, "The Falsifiability of the Lorentz-Fitzgerald Contraction Hypothesis", de 1959, e "The Duhemian Argument", de 1960). Ao primeiro desses ensaios seguiu-se o ensaio de Feyerabend, "Comments on Griinbaum's 'Law and Convention in Physical Theory'" (1959), em que o autor argumentou que "as refutações s6 são finais enquanto faltam explicações alternativas engenhosas e não-triviais da evidência". Em seu trabalho de 1966, intitulado "The Falsifiability of a Component of a Theoretical System", Grünbaum modifica sua posição e depois, em resposta à crítica de Ma ry Hesse (Hesse, Crítica de Grünbaum, 1968) e outros, restringiu-a ainda mais: "Pelo menos em alguns casos, podemos determinar a falsidade de uma hipótese componente para todas as finalidades científicas, embora não possamos falseá-la além de qualquer possibilidade de reabilitação subseqüente" (Grünbaum, "Can We Ascertain the Falsity of a Scientific Hypothesis?" 1969, p. 1.092).

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leais ao seu núcleo, eles terão permissão para fazê-lo. E se um gênio aparecer decidido a substituir ("progressivamente") uma teo ria não-contestada e corroborada, que não lhe agrada por motivos filosóficos, estéticos ou pessoais, felicidades para ele. Se dois grupos desenvolvendo programas rivais de pesquisa competirem, o que tiver mais talento criativo tenderá a ser bem-sucedido — a não ser que Deus o castigue com uma extrema falta de êxito empírico. A direção da ciência é determinada principalmente pela imaginação criativa humana e não pelo universo de fatos que nos cercam. A imaginação criativa tem probabilidades de encontrar uma nova evidência corroboradora até para o programa mais "absurdo", se a busca for conve366 nientemente orientada. Essa busca de uma nova evidência corroboradora é perfeitamente permissível. Os cientistas sonham com fantasias e depois se empenham numa caçada altamente seletiva de fatos novos que se ajustem a essas fantasias. Esse processo pode ser descrito como a "ciência criando seu próprio universo" (enquanto nos lembrarmos de que aqui se usa "criando" num sentido provocativo-idiossincrático). Uma escola brilhante de estudiosos (patrocinada por uma sociedade rica desejosa de financiar alguns testes bem planejados) pode ter êxito na execução de qualquer programa fantástico ou, alternativamente, se tiver inclinação para tanto, no derrubamento de qualquer pilar arbitrariamente escolhido do "conhecimento estabelecido". O falseacionista dogmático erguerá as mãos aos céus horrorizado por esse enfoque. Verá o espectro do instrumentalismo de Bellarmino erguer-se do entulho debaixo do qual o êxito newtoniano da "ciência provada" o havia enterrado. Acusará o falseacionista sofisticado de construir sistemas procustianos arbitrários e forçar os fatos a ajustar-se a eles. Pode até brandi-lo como revitalização da profana aliança irracionalista entre o pragmatismo tosco de James e o voluntarismo de Bergson, triunfantemente vencido por Russell e Steb366. Um exemplo típico dessa natureza é o princípio de Newton de atração gravitacional, de acordo com o qual os corpos se atraem uns aos outros instantaneamente de imensas distâncias. Huyghens descreveu a idéia como "absurda", Leibnitz como "oculta", e os melhores cientistas do tempo "entraram a indagar como [Newton] pudera dar-se a tanto trabalho fazendo um número tão grande de investigações e cálculos difíceis sem outro fundamento além desse mesmo princípio" (cf. Koyré, Newtonian Studies, 1965, pp. 117-18). Eu já sustentara anteriormente que não é verdade que o mérito do progresso teórico pertence ao teórico, mas que o sucesso empírico é apenas uma questão de sorte. Se o teórico for mais imaginativo, é mais provável que o seu programa teórico obtenha, pelo menos, algum sucesso empírico. Cf. meu ensaio, "Changes in the Problem of Inductive Logic", 1968, pp. 387-90.

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bing. 367 Mas o nosso falseacionismo sofisticado combina "instrumentalismo" (ou "convencionalismo") com um vigoroso requisito empirista que nem os "salvadores de fenômenos" medievais, como Bellarmino, nem pragmatistas como Quine e nem bergsonianos como Le Roy tinham apreciado: o requisito de Leibnitz-Whewell-Popper de que a construção — bem planejada — de compartimentos há de prosseguir muito mais depressa do que o registro de fatos que devem ser guardados neles. Enquanto esse requisito for satisfeito, pouco importará, que acentuemos o aspecto "instrumental" dos programas de pesquisa imaginativos para descobrir fatos novos e fazer predições merecedoras de fé, ou que acentuemos a "verossimilhança" popperiana crescente e putativa (isto é, a diferença estimada entre o conteúdo de verdade e o conteúdo de falsidade) de suas versões sucessivas. 368 O falseacionismo sofisticado combina assim os melhores elementos do voluntarismo, do pragmatismo e das teorias realistas do crescimento empírico. O falseacionista sofisticado não toma o part ido de Galileu nem o do Cardeal Bellarmino. Não toma o partido de Galileu porque afirma que todas as nossas teorias básicas podem ser igualmente absurdas e inverossímeis para a mente divina; e não toma o partido de Bellarmino, a não ser que o cardeal concordasse em que as teorias científicas ainda podem conduzir, a longo prazo, a conseqüências cada vez mais verdadeiras e cada vez menos falsas e, nesse sen369 tido estritamente técnico, podem ter crescente `verossimilhança". 367. Cf. Russell, The Philosophy of Bergson (1914), Russel, History of Western Philosophy (1946) e Stebbing, Pragmatism and French Voluntarism

(1914). Justificacionista, Russell desprezava o convencionalismo: "Assim como a vontade subiu na escala, o conhecimento desceu. Essa foi a mudança mais notável que se verificou na disposição de espírito da filosofia do nosso tempo, preparada por Rousseau e Kant..." (History of Western Philosophy, p. 787). Popper, naturalmente, foi buscar parte da sua inspiração em Kant e Bergson. (Cf. sua Logik der Forschung, 1934, seções 2 e 4). 368. Sobre "verossimilhança" cf. Popper, Conjectures and Refutations, 1963, capítulo 10, e mais adiante, a nota de pé de página seguinte; sobre "fidedignidade" cf. meu ensaio de 1968, "Changes in the Problem of Inductive Logic", pp. 390-405 e também meu trabalho de 1971, "Popper zum Abgrenzungsund Induktionsproblem". 369. "Verossimilhança" tem dois significados distintos, que não se devem confundir. Primeiro, o termo pode ser usado para significar a intuitiva semelhança à verdade da teoria; nesse sentido, no meu entender, todas as teo rias científicas criadas pela mente humana são igualmente inverossímeis e "ocultas". Segundo, ele pode ser usado para significar uma diferença conjunto-teorética entre as conseqüências verdadeiras e falsas de uma teoria que nunca poderemos conhecer mas que podemos presumir. Foi Popper quem empregou "verossimilhança" como termo técnico para denotar essa espécie de diferença (Conjectures

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corresponde rigorosamente ao significado original é equivocada e enganosa. No uso original, pré-popperiano, "verossimilhança" poderia significar semelhança intuitiva à verdade ou uma protoversão ingênua da semlhança empírica à verdade de Popper. Popper apresenta interessantes citações para esta última (Conjectures and Refutation, pp. 399 e seguintes) mas nenhuma para a primeira. Bellarmino, todavia, poderia ter concordado em que a teoria coperniciana tinha grande "verossimilhança" no sentido técnico de Popper, mas não tinha nenhuma verossimilhança no primeiro sentido, intuitivo. Quase todos os "instrumentalistas" são "realistas", pois concordam em que a "verossimilhança" [popperiana] das teorias científicas provavelmente está crescendo; mas, ao mesmo tempo, não são "realistas", pois concordam, por exemplo, em que o enfoque de campo einsteiniano está intuitivamente mais próximo do Esquema do Universo do que a ação newtoniana à distância. O "objetivo da ciência", portanto, pode

estar aumentando a "verossimilhança" popperiana, mas não precisa estar aumentando a verossimilhança clássica. Esta última, como diz o próprio Popper, à diferença da primeira, é uma "idéia perigosamente vaga e metafísica" (Conjectures and Refutation, 1963, p. 231).

A "verossimilhança empírica" de Popper, em certo sentido, reabilita a idéia do crescimento cumulativo na ciência. Mas a força propulsora do crescimento cumulativo na "verossimilhança empírica" é conflito revolucionário na "verossimilhança intuitiva". Quando Popper estava escrevendo seu "Truth, rationality and the growth of knowledge", senti-me apreensivo quanto à sua identificação dos dois con-

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