8. (2009). Parecer sobre o Projecto de Programas de Português do Ensino Básico. Parecer enviado à Direcção-Geral de Inovação e de Desenvolvimento Curricular, do Ministério da Educação, em Fevereiro.

June 7, 2017 | Autor: Carlos A M Gouveia | Categoria: Literacia, Ensino E Aprendizagem De Línguas
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Parecer sobre o Projecto de Programas de Português do Ensino Básico A Direcção-Geral de Inovação e de Desenvolvimento Curricular do Ministério de Educação colocou em consulta pública até dia 22 de Fevereiro de 2009 um projecto de Programas de Língua Portuguesa para o Ensino Básico (1º, 2º e 3º ciclos). O presente parecer, elaborado em resposta a tal consulta pública e à disponibilização no sítio da DGIDC do texto do projecto de programas, decorre das minhas funções como professor de linguística da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (nas áreas da linguística aplicada, da análise do discurso e da linguística sistémico-funcional), de formador reconhecido pelo Conselho Científico e Pedagógico de Formação Contínua do Ministério da Educação, de orientador de acções de formação na área da língua portuguesa para professores dos ensinos básico e secundário e de investigador e coordenador de investigação no grupo de investigação Discurso e Literacia do ILTEC-Instituto de Linguística Teórica e Computacional. No presente projecto de programas são de louvar diferentes aspectos, de que destaco, em particular, os seguintes: a) a afirmação explícita de que é obrigação da escola trabalhar para que a integração de textos literários no curriculum seja consequente: “por muitas dificuldades que se levantem à integração dos textos literários nos programas de Português, é obrigação da escola trabalhar para que essa integração seja inequívoca e culturalmente consequente.” (p. 5); b) a afirmação inequívoca de que a aprendizagem da língua não se esgota na aula de português e de que o princípio da transversalidade da língua é relevante: “se o ensino do Português previsto nestes programas se desenrola numa aula específica e com um professor formado para o efeito, isso não significa que nessa aula e com esse professor se esgote, para o aluno, a aprendizagem do idioma e a sua correcta utilização.” (p. 6); “Sendo a língua de escolarização no nosso sistema educativo, o português afirma-se, antes de mais por essa razão, como um elemento de capital importância em todo o processo de aprendizagem, muito para além das suas “fronteiras” disciplinares. O princípio da transversalidade afirma aqui toda a sua relevância (...)” (p. 12); c) a afirmação inequívoca de que estamos perante a “revisão dos programas que até agora têm vigorado” (p. 3) e não de programas erigidos contra os

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anteriores, “comportando-se todavia em relação a eles com uma considerável liberdade de movimentos” (idem); d) o uso de conceitos e de terminologia que fazem parte do património histórico do ensino do português.

Enfatizados estes aspectos, entre outros que não cabe aqui registar, passo agora a focar temas que considero serem por demais importantes para não terem sido tratados neste projecto de programas ou para terem sido tratados superficialmente, bem como questões relacionadas com os aspectos acima listados e que resultam em parte na sua negação.

QUE VISÃO DE LÍNGUA? Lamento que entre as referências de enquadramento para a liberdade de movimentos na construção deste projecto face aos programas anteriores conste o documento Currículo Nacional do Ensino Básico: Competências Essenciais (CNEB), um documento que, em 2001, quando viu a luz do dia, já se encontrava datado. Este projecto de programas reconhece em parte isso mesmo ao afirmar, na nota 5, pág. 14, que, embora os conceitos tratados em “2. Fundamentos e conceitos-chave” tenham provindo do CNEB, foram “pontualmente reajustados, também por confronto com o Quadro Europeu Comum de Referência para as Línguas” (QECRL), documento do Conselho da Europa, também de 2001. Talvez pela importância dada ao QECRL, nota-se uma clivagem entre este projecto de programas e o documento CNEB, já que em um e outro documentos se jogam diferentes definições de língua. Daí que seja pertinente perguntar, almejando uma resposta concisa, clara e inequívoca: qual a definição de língua que subjaz a este projecto de programas? É necessário ter em consideração que as orientações presentes no Quadro Europeu Comum de Referência para as Línguas se distinguem das orientações do CNEB, no que diz respeito a possíveis definições de língua. Se considerarmos que nos estudos linguísticos se confrontam há várias décadas posições antagónicas, porque a elas correspondem visões alternativas, aparentemente inconciliáveis ou pelo menos ainda não conciliadas, do que é a língua e a linguagem, verificamos que a questão aqui trazida não é despicienda. Construir programas de português tendo como base uma posição

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teórica que encara a língua fundamentalmente como uma realidade mental (como acontece com o documento CNEB e com o documento Língua Materna no Ensino Básico: Competências Nucleares e Níveis de Desempenho, também tido como documento de referência por este projecto de programas) ou construir programas de português tendo como base uma posição teórica que encara a língua fundamentalmente como uma realidade social e material (como parece acontecer com este projecto de programas, muito por via da influência do QECRL, nele frequentemente posto em confronto com o CNEB), implica escolhas diferentes em termos de implementação de práticas e metodologias didácticas e pedagógicas. A própria noção de conhecimento explícito da língua presente neste projecto se ressente desta clivagem: “Entende-se por conhecimento explícito da língua o domínio reflectido e sistematizado das unidades, regras e processos gramaticais do idioma, fundamentando a capacidade para identificar e corrigir erros; o conhecimento explícito da língua assenta na instrução formal e implica o desenvolvimento de processos metacognitivos” (pp. 16-17). Nada nesta definição se reporta a aspectos materiais e sociais da língua e à importância dos contextos, dos usos e das intenções no processo comunicativo. E o que está para além do conhecimento linguístico, do conhecimento do sistema, e se reporta aos usos, à comunicação, não é conhecimento explícito? Nos termos saussurianos a língua não é apenas langue, é também parole, e o conhecimento explícito que o sistema educativo deve desenvolver em termos de instrução formal é o conhecimento da língua enquanto langue e parole. A gramática e o seu conhecimento (incluindo o explícito) são inseparáveis do uso e do saber fazer nesse uso por parte dos falantes. E essa é uma das grandes pechas deste projecto: não saber exactamente que está a contribuir, e acredito que não sabe, para o silenciamento, se não

epistemicídio,

de

posicionamentos

teórico-metodológicos

sobre

o

ensino/aprendizagem de línguas com provas dadas em tantos outros países.

COMPETÊNCIAS Talvez em resultado da importância atribuída ao QECRL, nota-se neste documento a força de certos enunciados relativos, por exemplo, ao eixo da comunicação linguística (p. 13), à competência comunicativa (p. 15), às competências linguístico-comunicativas (p. 15), etc. Porém, a força destes enunciados sai diluída muito em razão da clivagem apontada, a propósito do ponto anterior. Efectivamente, ao fazer-se das competências

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linguístico-comunicativas uma competência geral, relegando o carácter dialógicocomunicativo da língua, para o domínio das competências que “permitem realizar actividades de todos os tipos” (p. 15), como a competência de aprendizagem, e ao colocar-se apenas o conhecimento explícito (e não a competência comunicativa) no mesmo nível das competências específicas, como a elas transversal, abre-se caminho, no trabalho em torno das tipologias textuais, por exemplo, para uma espécie de quadratura circular que resulta da tentativa de fazer depender esse trabalho em torno das tipologias apenas dos parâmetros das competências específicas, quando estas são fundamentalmente definidas, descritas, analisadas, avaliadas e ensinadas em função da centralidade da competência comunicativa.

TRANSVERSALIDADE É de lamentar a inconsequência, no que diz respeito a opções e organizações programáticas, das afirmações acima louvadas relativas ao princípio da transversalidade e ao facto de a aprendizagem da língua não se esgotar na aula de português. Por exemplo, o carácter instrumental que a disciplina de língua portuguesa pode assumir relativamente a outras disciplinas é totalmente descurado em tudo o que no projecto de programas se refere a tipologias textuais, denotando este uma total ausência de reflexão sobre o contexto escolar de aprendizagem como uma constelação de contextos sociais e disciplinares nos quais os aluno se move na concretização de acções comunicativas. Não se trata de fazer dos professores de outras disciplinas professores de português, no sentido em que também lhes compete zelar pela correcta utilização do idioma, mas efectivamente fazer da disciplina de língua portuguesa (e não apenas da língua que nela é estudada) a disciplina transversal ao sistema educativo, nela sendo aprendidos conteúdos linguísticos cuja expressão se concretiza noutras disciplinas. Há formas disponíveis, precisas, claras e testadas internacionalmente, para proporcionar programaticamente estes aspectos. Isto é particularmente relevante na passagem do 1º para o 2º ciclo, em que ao valorizar-se a disciplinarização e compartimentação dos saberes, incluindo o saber da língua, que assim é colocado como disciplina e objecto de estudo, a par do saber da biologia ou do da matemática, por exemplo, se perde, por ausência de uma verdadeira defesa do princípio da transversalidade neste momento de viragem na vida do aluno, a possibilidade do reconhecimento da língua e da disciplina que a estuda como central na

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formação de estudantes e de cidadãos conscientes e críticos da força da língua.

TERMINOLOGIA Congratulo-me com o uso do conceito de oração, inexplicavelmente ausente das primeiras

versões

da

TLEBS/Dicionário

terminológico,

expurgado

à

custa

do

favorecimento de modismos associados a modelos de descrição linguística particulares, mesmo que hegemónicos no panorama das ciências da linguagem em Portugal. Congratulo-me, também, com o uso do conceito de género (textual/discursivo). Note-se, porém, que se o primeiro termo, oração, se encontra devidamente recuperado nas suas possibilidades descritivas e referenciais, estando definitivamente presente na última versão da TLEBS/Dicionário terminológico, o segundo conceito, o de género textual/discursivo,

está

ausente

das

diferentes

versões

da

TLEBS/Dicionário

terminológico, incluindo (lamentavelmente) a última versão. Talvez em consequência dos tais modismos associados a modelos de descrição linguística particulares, o uso do termo oração neste projecto de programas restringe-se infelizmente ao contexto de classificação das orações, deixando livres para a utilização do termo frase todos os outros contextos. A oração deixa assim, inexplicavelmente, de ser um elemento constituinte do texto ou da escala de níveis de descrição gramatical, sendo favorecidas formulações em que consta a palavra frase em detrimento da palavra oração, como em “Segmentar (recortar) textos em frases e palavras, identificar as frases e reconstruir o texto. Realizar a mesma actividade segmentando frases em palavras.” (p. 49, embora exemplos semelhantes sejam recorrentes). Se um projecto de programas não se deve erigir contra os programas anteriores, que por certo tinham noções pertinentes a manter, também um modelo de descrição gramatical para as escolas se não deve erigir contra outro, se nesse outro houver aspectos que continuam correctos. A boa e velha descrição de Celso Cunha e de Lindley Cintra, na Nova Gramática do Português Contemporâneo relativa a coisas como a oração, a frase, a oração e os seus termos essenciais, a colocação dos termos na oração, etc. não está incorrecta, serve os propósitos de se privilegiar “uma gramática normativa, como ponto de partida para a revalorização da gramaticalidade do idioma”, como defendido na nota 2, pág. 5, deste projecto de programas, e, mais importante e fundamental, faz parte do património histórico e cultural do ensino do português, sendo, portanto, os seus termos de descrição facilmente reconhecidos por sucessivas gerações

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de portugueses.

TIPOLOGIAS TEXTUAIS Sendo de assinalar o aparecimento neste projecto de programas do discurso sobre as tipologias textuais no 1º e 2º ciclos, há que dizer que falta consistência a tal discurso, porquanto o uso da terminologia ao longo do documento não é coerente e não há nele uma visão sistémica para os diversos tipos de texto, nem linhas norteadoras ou percursos de progressão para o ensino das práticas textuais. Na verdade, apenas se constata a sua diversidade e se advoga o princípio da comparação contrastiva, para se alcançar a visão sistémica. Por exemplo, no capítulo “4. Resultados Esperados”, a especificação para os diferentes textos/discursos a que os alunos são expostos no 1º e 2º anos e no 3º e 4º anos baseia-se apenas no princípio de uso de expressões como “pequenos”, “breves” ou “curtos”, para caracterizar os textos dos dois primeiros anos, a que se acrescenta “variados” e “diferentes”, na caracterização dos textos do 3º e 4º anos. As expressões “tipos de textos”/ “tipologia de textos”, “géneros (textuais)” e “modos” (retóricos?) são usadas sem que se torne claro no discurso as diferentes acepções com que são usados. São termos sinónimos? (cf. “Distinguir modos e géneros de textos literários”, “correspondentes aos três modos, lírico, narrativo e dramático”, “Géneros e subgéneros literários: modos narrativo, lírico e dramático”, “do mesmo ou de diferentes modos e géneros”; “No 6.º ano, mantém-se o foco na diversidade de tipologias, mas dá-se maior atenção ao texto literário”; “Produzir diferentes tipos de textos, em português padrão, tendo em conta tema e finalidade”, “Escrever textos em termos pessoais e criativos, em diferentes suportes e num registo adequado ao leitor visado (...) adoptando as convenções próprias do género seleccionado”). A palavra modo é, aliás, demasiado usada no documento com acepções muito variadas que apenas causam confusão e pouco ajudam a clarificar sentidos - “modo imperativo”, “modos e géneros”, “modo oral e escrito” (sic), “tempo e modo”, “locativo, temporal e de modo”, “máxima de modo” -, pelo que a palavra neste contexto, que deduzo se reporte a modalidade de uso retórico, pode ser substituída facilmente por modalidade (modalidade retórica), ou simplesmente acrescida de um modificador que precise o seu significado (modos retóricos e géneros), se bem que tal precisão não resolva o problema maior de o projecto de programas não clarificar as diferenças entre as expressões terminológicos atrás enunciadas, jogando-as muitas vezes

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como termos sinónimos. Infelizmente, o dicionário terminológico/ex-TLEBS também não ajuda muito a clarificar estes aspectos.

PROGRESSÃO Embora reconheça que “os três ciclos traduzem uma progressão constante, obrigando a ponderados cuidados de gestão curricular nos momentos de passagem entre eles.” (p. 8), o documento não torna claro como se processa a progressão e, nas “Orientações de Gestão”, fica-se por um discurso demasiado abstracto que pouco ou nada ajuda os professores a configurar as práticas de gestão do processo de ensino/aprendizagem de ano para ano, de ciclo para ciclo. A título de exemplo, citem-se os dois quadros referenciais de géneros/tipologias/modos (sim, a confusão grassa) das páginas 79 e 116, o primeiro relativo ao primeiro ciclo, o segundo relativo ao segundo ciclo. No conjunto dos textos não-literários, estamos perante a mesma realidade nos dois quadros. Ou seja, os tipos de textos a que os alunos são expostos em ambos os ciclos são os mesmos, sem que haja indicações de que, por exemplo, relativamente a uns, haverá prática de produção textual, mas relativamente a outros, não, ou sem que haja indicações de quais as competências específicas que se espera ver activadas, se for esse o caso, a propósito de cada tipo de textos em cada ciclo. É que ponho como hipótese que, no caso das tipologias textuais, o conhecimento explícito relativo a tudo o que a elas diz respeito só pode ser alcançado se houver conhecimento “implícito” e esse, ao contrário do conhecimento intuitivo da gramática, também se ensina, isto é, é fomentado pela escola, no contacto com os textos. Assim sendo, haverá obviamente uma progressão, do contacto para a descrição e para a produção, que ocorrerá ao longo de um ciclo, em alguns tipos de textos, de um ciclo para outro, em outros tipos. O caso dos textos instrucionais nestes dois quadros (“textos instrucionais: regulamentos, receitas, regras, normas”) é paradigmático nesse sentido. Por um lado, estabelece distinções entre três coisas que basicamente pertencem ao mesmo paradigma, e que o aluno dos primeiros anos do 1º ciclo dificilmente entenderá (regulamentos, regras, normas). Por outro lado, deixa de fora um género fundamental, talvez o texto instrucional mais presente no quotidiano dos alunos: a indicação de direcção, ou instruções dadas a uma pessoas sobre como ir de um sítio para outro. Ainda que completamente ausente da descrição, este é um tipo de texto que se pode ir complexificando (variando no subgénero) de ano para ano, de ciclo para ciclo,

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do modo oral para o modo escrito, da conversa casual para o texto escrito afixado na parede, sobre como ir da entrada da escola para uma sala determinada, até ao mesmo texto, na página internet, a dizer como se chega à escola, a partir do centro da cidade/vila/aldeia. No geral, faltam parâmetros que tornem claros os objectivos e resultados esperados em cada ciclo, como decorre do exemplo dado.

ESCRITA A definição de escrita apresentada na página 16, sendo decalcada da definição correspondente no CNEB (p. 32), merece revisão: “Entende-se por escrita o resultado, dotado de significado e conforme à gramática da língua, de um processo de fixação linguística que convoca o conhecimento do sistema de representação gráfica adoptado, bem

como

processos

cognitivos

e

translinguísticos

complexos

(planeamento,

textualização, revisão, correcção e reformulação do texto)”. A escrita está longe de ser apenas isto. Uma definição deste tipo centra-se na escrita como ortografia e esquece-se da dimensão semiótica da escrita, da sua possível caracterização como um sistema de significação de pleno direito. É que, de facto, escrita e oralidade são, do ponto de vista da comunicação, dois sistemas de funcionalidade complementar, usados na cultura em razão de motivações e de contextos de uso distintos. Por outro lado, reduzindo os processos cognitivos e translinguísticos complexos a “planeamento, textualização, revisão, correcção e reformulação do texto”, esta definição esquece que nem em toda a escrita existe premeditação, que há processos cognitivos e translinguísticos (e outros) envolvidos na escrita para além dos apontados e que as teorias processuais da escrita estão mais do que ultrapassadas no ensino da escrita. Em suma, e no que à escrita diz respeito,

faltam

neste

projecto

resultados

de

novas

reflexões,

de

novos

desenvolvimentos na área do ensino de línguas (com ênfase na escrita) e conhecimento de experiências internacionais testadas e validadas em países como a Austrália e o Reino Unido, por exemplo.

MULTILITERACIA (LITERACIAS MÚLTIPLAS, NO PROJECTO) Regista-se com agrado o reconhecimento da importância e da proeminência na sociedade de outros sistemas de significação para além da linguagem verbal, e das exigências de novas e variadas literacias associadas a tais sistemas: “Convém ter em

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conta que a existência de novos cenários, linguagens e suportes para o acesso à informação exige o domínio de literacias múltiplas, nomeadamente, a literacia informacional (associada às tecnologias de informação e comunicação) e a literacia visual (leitura de imagens). Este facto torna imprescindível, desde cedo, a convivência com diferentes suportes e com diferentes linguagens.” (p. 77). Lamenta-se, porém, a reduzida importância dada ao conceito de multiliteracia. Na verdade, o projecto fala de literacias múltiplas, dando assim ênfase à diversidade (há múltiplas e diferentes literacias), em detrimento da unidade (há uma literacia com múltiplas valências). Ou seja, o projecto de programas parece entender as literacias como compartimentos estanques que é necessário dominar à vez. Se bem que certas literacias possam ser encaradas desta forma, nos aspectos a que o texto do projecto se refere, há vantagem em usar o termo multiliteracia, porquanto estamos a falar de significação que pode ser simultaneamente verbal, visual, musical, etc. Efectivamente, vivemos tempos de profunda transformação nas práticas de comunicação, com a linguagem visual a ganhar espaços de significação que outrora eram propriedade da linguagem verbal (veja-se a gradual substituição nos espaços públicos dos sinais/ letreiros/ avisos em linguagem verbal por sinais/ letreiros/ avisos em linguagem visual, do tipo “É proibido fumar”, “Cuidado com o cão”, “WC Senhoras”, WC Homens”, etc.). A linguagem visual ganhou em importância e ganhou em dinamismo, sobretudo no que diz respeito ao modo como se combina com a linguagem verbal, o que nos permite hoje em dia usar o conceito de multimodalidade para nos reportarmos a muitas práticas comunicativas do presente.

MULTIMODALIDADE Infelizmente, a noção de multimodalidade não consta do projecto de programas, o que causa estranheza. O termo multimodalidade, associado ao conceito a que aqui nos interessa dar relevo, e que diz respeito à coexistência, num mesmo meio ou suporte de dois ou mais modos de comunicação (por exemplo, a coexistência de linguagem verbal e de linguagem visual), ocorre 47.400 vezes no Google e o termo correspondente inglês, multimodality, a partir do qual o termo português foi cunhado, corresponde a 1.660.000 ocorrências no Google. É óbvia a pertinência do conceito, mas é ainda mais óbvia a pertinência do fenómeno a que o mesmo se reporta, considerando as dinâmicas transformacionais das práticas de comunicação na sociedade contemporânea. Existem

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congressos internacionais sobre multimodalidade e sobre multimodalidade e literacia. Basta ler um manual escolar de há 20 anos atrás e outro actual para se perceber que a relação entre os dois sistemas de significação, verbal e visual, se alterou profundamente: quando relacionada no mesmo meio com a linguagem verbal (algo que é uma realidade cada vez mais frequente) a linguagem visual não é mais um suporte, uma exemplificação, um complemento da linguagem verbal, é um sistema de significação autónomo cuja funcionalidade e significação se joga directamente na relação com a linguagem verbal, muitas vezes a ela se sobrepondo.

BIBLIOGRAFIA É de louvar a tentativa de disponibilização de textos em português, mas dado o fraco desenvolvimento da linguística em Portugal, quase toda ela de uma única persuasão, de pendor estruturalista e mentalista, é de lamentar a ausência de referências bibliográficas em outras línguas, nomeadamente em inglês. Mesmo aceitando a bibliografia como “indicações de trabalho para os professores” (p. 169), e não como a bibliografia de elaboração do projecto dos programas, não se percebe como, dos itens listados, estão excluídos trabalhos de excelente qualidade produzidos em português, no Brasil, e em castelhano, em Espanha, esta uma língua de leitura acessível à maioria dos professores. Mesmo no que respeita a livros produzidos em Portugal, não se entende a exclusão dos seguintes itens, por exemplo: Pedro, E. R. (1992: O Discurso na Aula: : uma análise sociolinguística da prática escolar em Portugal. Lisboa: Caminho. Pedro, E. R. (1997): Análise Crítica do Discurso: uma perspectiva sociopolítica e funcional. Lisboa: Caminho. Faria et al. (1996): Introdução à Linguística: Geral e Portuguesa. Lisboa: Caminho. Mateus, M. H. M., Pereira, D. e Fisher, G. (2008): Diversidade Linguística na Escola Portuguesa. Lisboa: FCG. Da mesma forma, e tratando-se de indicações de trabalho, razão possível da exclusão de obras

em

inglês

e

outras

línguas,

não

se

entende

a

integração

do

sítio

http://curriculum.qca.org.uk/ (Currículo Nacional do Inglês). Porquê este e não outros do mesmo género? Porquê este, e não, por exemplo, o brasileiro? Sabe a equipa autora deste projecto que o governo brasileiro tem, desde 1997, um conjunto de documentos de qualidade absolutamente excepcional intitulados Parâmetros Curriculares (PCNs)? Refiro-me aqui a dois documentos em particular, o documento Parâmetros curriculares

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nacionais: língua portuguesa Ensino de primeira à quarta série, publicado pela Secretaria de Educação Fundamental, Brasília, em 1997, e o documento Parâmetros curriculares nacionais: terceiro e quarto ciclos do ensino fundamental: língua portuguesa (5ª a 8ª séries), publicado pela mesma Secretaria em 1998, ambos disponíveis em linha. A leitura destes documentos em contraponto com, por exemplo, os documentos portugueses, Língua Materna no Ensino Básico: Competências Nucleares e Níveis de Desempenho, e Currículo Nacional do Ensino Básico: Competências Essenciais, será por certo elucidativa relativamente aos aspectos a que me referi a propósito da pergunta “Que visão de língua?”

Expostas estas questões, quero expressar o meu agrado não só pela qualidade geral deste projecto, mas também pelas iniciativas a ele associadas e que o conduziram a uma fase tão avançada do seu desenvolvimento, fazendo votos de que o teor do mesmo não seja visto como definitivo e que, se não todos os aspectos apontados neste parecer, pelo menos alguns, possam ser tidos em consideração na revisão decorrente da consulta pública. Congratulo-me ainda pelo facto de a equipa integrar maioritariamente profissionais do ensino que é objecto dos futuros programas, os verdadeiros conhecedores da realidade quotidiana de ensino/aprendizagem na sala de aula.

22 de Fevereiro de 2009

Carlos A. M. Gouveia

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