A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA E A EFICÁCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS: A PRERROGATIVA-RESTRIÇÃO DA POLÍCIA ADMINISTRATIVA E O EMBLEMÁTICO CASO EFAVIRENZ

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A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA E A EFICÁCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS: A

PRERROGATIVA-RESTRIÇÃO

DA

POLÍCIA

ADMINISTRATIVA

E

O

EMBLEMÁTICO CASO EFAVIRENZ André de O. S. Moreira 1

SUMÁRIO: I – Introdução. II - Os direitos fundamentais como norte do sistema jurídico atual e o dever geral da administração pública. 2.1 - A evolução dos direitos fundamentais: da proteção individual à orientação objetiva do agir estatal. 2.2 - O §1º do art. 5º da Constituição Federal e seus efeitos sobre a atuação administrativa. III - O exercício do poder de polícia no contexto da predominância de direitos fundamentais. 3.1 – Interesse público e direitos fundamentais: o papel da motivação na atividade da polícia administrativa. 3.2 - O caso EFAVIRENZ como exemplo da esperada atuação administrativa. IV – Considerações finais.

I - Introdução

Ao analisarmos estudos mais recentes realizados no âmbito do direito administrativo brasileiro, como as obras do ilustre Juarez Freitas 2 e mais explicitamente nos textos de Gustavo Binenbojm3, é possível observar um sentimento geral pela mudança na forma de atuar da administração (ou ao menos uma mudança na forma como a administração deveria agir). A visualização dos novos paradigmas do direito administrativo nos mostra que o Estado está cada vez mais “se humanizando”, se é que podemos utilizar essa expressão. Coincidentemente, ou não, estas alterações substanciais nos pilares do direito administrativo crescem e se fortalecem juntamente com a noção de Estado Democrático de Direito, ou, mais especificamente, como a maximização da importância dos direitos fundamentais como norteadores da ordem jurídica, intimamente ligados com o posicionamento das Constituições como centro orbital. As relações jurídico-administrativas, típicas relações verticais entre administração e administrado, parecem cada vez mais permeadas por um mandamento geral de proteção e 1

Mestrando pela Faculdade de Direito da UFRGS, advogado. FREITAS, Juarez. Discricionariedade administrativa e o direito fundamental à boa administração pública. 2a. ed., São Paulo: Malheiros editores, 2009. FREITAS, Juarez. O controle dos atos administrativos e os princípios fundamentais. 3a. ed. rev. e ampl., São Paulo: Malheiros editores, 2004. 3 BINENBOJM, Gustavo. Uma teoria do direito administrativo: direitos fundamentais, democracia e constitucionalização. 2a. ed., rev. e atual., Rio de Janeiro: Renovar, 2008. 2

promulgação dos direitos fundamentais. Com a derrocada dos antigos paradigmas, as prerrogativas e restrições impostas à atividade estatal também sofrem mutações, e a capacidade de limitar e regular os direitos dos cidadãos, exercida pelo poder de polícia administrativa, merece uma acentuada atenção neste cenário. Referido poder, principal braço executivo da administração, não pode mais usar os mesmos caminhos e ferramentas que possuía para fazer valer o interesse estatal frente ao indivíduo quando aquele era autojustificável, sendo o poder de polícia administrativa, portanto, um fértil campo para análise dessas mudanças. Nesse sentido, o presente estudo buscará apresentar algumas reflexões sobre a eficácia dos direitos fundamentais no âmbito da relação jurídico-administrativa com especial atenção ao poder de polícia administrativa, analisando o papel que o dever da fundamentação do administrador exercerá no exercício deste. Por estas razões o presente trabalho será dividido em duas partes, cada uma subdividida, onde em um primeiro momento se pretende analisar a evolução dos direitos fundamentais e da maneira como eles influenciam a atuação administrativa, concedendo especial atenção ao §1º do art. 5º da Constituição Federal, que demanda a aplicação imediata dos direitos e garantias fundamentais. Na segunda parte, analisaremos como a atividade de polícia administrativa deverá se conformar no atual ambiente de enaltecimento de direitos fundamentais, bem como um específico caso que, além de estar ligado com a área de atuação deste autor, representa uma forma esperada da atuação administrativa no atual cenário. Como marco teórico deste trabalho importante citar as contribuições dos autores Ingo Sarlet, Juarez Freitas e Daniel Sarmento, dentre outros autores que também contribuíram consideravelmente para a base do que será exposto, e que serão devidamente apontados ao longo da exposição.

II - Os direitos fundamentais como norte do sistema jurídico atual e o dever geral da administração pública

2.1 - A evolução dos direitos fundamentais: da proteção individual à orientação objetiva do agir estatal

Importante destacar, antes de adentrarmos nesta sumária abordagem evolutiva dos direitos fundamentais, a distinção dos termos Direitos Fundamentais, Direitos Humanos e

Direitos do Homem, pois ainda que possam ser utilizados como sinônimos (desde que alertados os leitores), tais expressões guardam em si distinções próprias 4. Sem contar, ainda, o problema que seria gerado para o subtítulo posterior a este, conforme será visto a seguir. Nesse sentido, faço uso das diferenciações trabalhadas pelo renomado jurista Ingo Sarlet que, em suma, identifica estes termos sendo da seguinte maneira: - Direitos do Homem (ou Direitos Naturais do Homem): é um conceito marcadamente jusnaturalista, refere-se à chamada pré-história dos direitos humanos ou fundamentais. Eram os direitos reconhecidamente inerentes ao homem e a sua vida, mas antes de um processo de positivação; - Direitos Fundamentais: são os direitos do homem reconhecidos e positivados por uma ordem constitucional de um Estado – estão intimamente ligados à Constituição (e ao surgimento das ordens constitucionais); - Direitos Humanos: são os direitos do ser humano previstos em documentos internacionais, que aspiram à validade universal, para todos os povos e tempos – muito ligados às acepções jusnaturalistas, mas previstas em instrumentos internacionais, mesmo que de maneira abstrata;5 Dessa maneira, para fins de limitação do texto ora apresentado, trataremos especificamente dos direitos fundamentais no certame nacional, pois é neste campo onde sua eficácia pode ser melhor estudada, conforme veremos posteriormente. Nesse sentido, retornando à evolução dos direitos fundamentais, é importante analisarmos o nascimento destes, ou seja, quando tais mandamentos foram elevados ao nível constitucional, o que não é de se surpreender, ocorreu juntamente com o nascimento das primeiras Leis Maiores. Historicamente 6 discussões sobre direitos como a dignidade da pessoa humana, a liberdade e a igualdade entre os homens já podiam ser observadas nas lições filosóficas

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“Não é, portanto, por acaso, que a doutrina tem alertado para a heterogeneidade, ambiguidade e ausência de um consenso na esfera conceitual e terminológica, inclusive no que diz com o significado e conteúdo de cada termo utilizado [...]” SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 10a. ed. rev. atual. e ampl., Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 27. 5 SARLET, op cit., p. 29-32. 6 “os direitos do homem, por mais fundamentais que sejam, são direitos históricos, ou seja, nascidos em certas circunstâncias, caracterizadas por lutas em defesa de novas liberdades contra velhos poderes, e nascidos de modo gradual, não todos de uma vez e nem de uma vez por todas” BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Campus, 1992, p. 25.

clássicas de Grécia e Roma7 e no pensamento cristão8, da mesma forma que noções de direitos inalienáveis do homem, e da legitimação do poder pelo respeito ao direito natural eram observadas em estudos na Idade Média, destacando aqui Santo Tomás de Aquino9. Tais ensinamentos, aliados a outros de similar teor, culminaram em um crescente reconhecimento de direitos inerentes à pessoa humana e indispensáveis à vida digna desta, aparecendo de maneira indelével nas teorias contratualistas dos séculos XVI, XVII e XVIII10, bem como no movimento iluminista, este que merece nossa melhor atenção. Dentro do movimento iluminista, merece destaque um de seus precursores, John Locke, que é tratado por Sarlet como o primeiro a reconhecer os valores da vida, liberdade, propriedade e resistência como direitos inalienáveis do homem, da mesma forma que foi um dos primeiros (Hobbes já o havia feito anteriormente) a desenvolver a noção de que o homem tem o poder de moldar o Estado e a sociedade de acordo com sua razão e vontade, provando que a relação autoridade-liberdade se funda na autovinculação dos governados11. Assim, tais ideais acabaram desaguando no constitucionalismo e no reconhecimento dos limites impostos ao poder estatal pelas liberdades dos indivíduos, observados no movimento iluminista do século XVIII12. De acordo com os pensamentos liberais burgueses da época, preocupados em não cair novamente nas mãos de um Estado com desejos e fundamentos próprios do tipo “the king can do no wrong”13, necessária era uma segurança maior (por meio de garantias mínimas) para a atuação livre do indivíduo, o que fez nascer as primeiras Constituições escritas embebidas naqueles ensinamentos assombrados pelo Absolutismo. Estas Leis Maiores, que regem a atividade do Estado, gozavam de uma essência extremamente individualista, isto é, 7

Fábio Konder Comparato trata das diversas etapas do processo histórico de nascimento do conceito de “pessoa humana” e da dignidade desta. Segundo Comparato, os estóicos, corrente filosófica fundada na Grécia antiga e exportada à Roma em cerca de 150 a.c., foram os primeiros a defender a idéia de direitos da dignidade humana. Com base nos ensinamentos estóicos foi possível a criação das ideias centrais sobre a unidade moral do ser humano e a dignidade do mesmo, considerado filho de Zeus, possuidor de direitos a ele inerentes e igualitário em toda parte do mundo, independente das diferenças individuais ou coletivas. COMPARATO Fábio Konder A afirmação histórica dos direitos humanos. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 11-30. 8 “A filosofia cristã foi fundamental para a concepção de dignidade humana, tendo em vista que possui uma visão mais individualista da pessoa, valorizando a sua dignidade pessoal e não apenas como membro da sociedade, como nos ensinamentos greco-romanos” FERMENTÃO, Cleide Aparecida Gomes Rodrigues. LIMA JÚNIOR, Paulo Gomes de. A eficácia do direito à dignidade da pessoa humana. In: Revista Jurídica Cesumar. V. 12, n. 1, jan./jun. 2012, p. 320. 9 SARLET, Op. cit., p. 38. 10 Ibidem, p. 39. 11 Ibidem, p. 40. 12 Ibidem. 13 “[...] é sobejamente conhecida a frase de Laferrière: “O próprio da soberania é impor-se a todos sem compensação”; bem como as fórmulas realengas que sintetizavam o espírito norteador da irresponsabilidade: “Le roi ne peut mal faire”, como se afirmava na França, ou: “The King can do no wrong”, que é a evidente versão inglesa”. MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 13ª ed. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 807.

consolidavam os direitos essenciais do indivíduo frente ao Estado, inequívocos direitos de defesa, criando uma zona de não-intervenção estatal. São chamados, por Paulo Bonavides, de direitos de resistência ou de oposição ao Estado - direitos de cunho claramente negativo14. Nasce a concepção de Estado de Direito. Esse aparecimento dos direitos fundamentais nas primeiras Constituições escritas, destacando o direito à vida, à liberdade, à propriedade, à igualdade perante a Lei, bem como os direitos de participação política, é reconhecido por Sarlet como a primeira dimensão dos direitos fundamentais 15, e vista por Bonavides como a fase inicial do constitucionalismo ocidental16. Neste ponto, portanto, mister destacar essa relação entre direitos fundamentais e constitucionalismo, pois o nascimento de ambos ocorre inegavelmente no mesmo berço e dos mesmos pais, voltados para um mesmo fim: a limitação do poder estatal. E é graças à síntese destes ideais que à Constituição foi outorgada a sua definitiva e autêntica dignidade fundamental, parafraseando Klaus Stern17. Da mesma forma, por estarem tais garantias individuais previstas na Lei Maior dos Estados, receberam as mesmas esse status de fundamentalidade. Paralelamente, e também influenciado pelos mesmos princípios, o Direito Administrativo é desenvolvido nesse mesmo caldo de cultura, como trata o ilustre professor Rafael Maffini 18, contribuindo para a consolidação do Estado de Direito, como também disse Maria Di Pietro19. Assim, trata-se de mais um esforço para limitar a atuação estatal, criando normas balizadoras da organização e da atuação dos Governantes. No entanto, esses direitos fundamentais “negativos” logo se mostraram insuficientes a permitir a efetiva fruição de liberdade e igualdade, o que foi claramente observado no decorrer do século XIX com o impacto da industrialização e dos graves problemas sociais e econômicos que assolaram diversas nações neste tempo20. Assim, intensificou-se o pleito geral por uma participação ativa do Estado na promoção da justiça social. Como disse Sarlet, 14

BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 7ª ed. São Paulo: Malheiros editores, 1997, p. 50. SARLET, op. cit., p. 46-47. 16 BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 19ª ed. São Paulo : Malheiros editores, 2006, p. 563564. 17 STERN, Klaus citado por SARLET, op. cit., p. 58. 18 MAFFINI, Rafael. Direito administrativo. 1a. ed., 2a. tir., São Paulo: RT, 2006, p. 18. 19 “[…] a formação do Direito Administrativo, como ramo autônomo, teve início, juntamente com o direito constitucional e outros ramos do direito público, a partir do momento em que começou a desenvolver-se – já na fase do Estado Moderno – o conceito de Estado de Direito, estruturado sobre o princípio da legalidade (em decorrência do qual até mesmo os governantes se submetem à lei, em especial à lei fundamental que é a Constituição) e sobre o princípio da separação de poderes, que tem por objetivo assegurar a proteção dos direitos individuais, não apenas nas relações entre particulares, mas também entre estes e o Estado.” DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 23a. ed., São Paulo: Atlas, 2010, p. 2. 20 SARLET, op cit., p. 47. 15

“não se cuida mais, portanto, de liberdade do e perante o Estado, e sim de liberdade por intermédio do Estado”21. Assim apresentaram-se estes “novos” direitos fundamentais, vistos por Sarlet como uma segunda dimensão, caracterizados essencialmente por outorgar aos indivíduos direitos a prestações sociais estatais, como assistência social, saúde, trabalho, educação, etc22. Ainda que existentes de forma embrionária em algumas Constituições do século XIX, é no segundo pós guerra que eles acabaram sendo consagrados, abraçados à ideia de uma igualdade material. Fazem parte dessa segunda dimensão também os direitos chamados de “liberdades sociais”, como o direito à greve, o direitos dos trabalhadores, entre outros23. Impende falar também sobre uma terceira dimensão de direitos fundamentais de acordo com a divisão de Sarlet, chamados de direitos de solidariedade e fraternidade, os quais se desprendem um pouco da figura homem-indivíduo como seu titular e tutelam grupos humanos, como família, povo, nação24. Dentre esses direitos cito como exemplos o direito à paz, o direito ao meio ambiente, direito à proteção do patrimônio artístico e cultural, entre outros. Há discussões sobre uma quarta e quinta dimensão25, mas não cumpre falarmos sobre as mesmas aqui, sendo válido, outrossim, a advertência feita por Sarlet sobre a nova roupagem que alguns doutrinadores concedem a direitos fundamentais já consagrados em outras dimensões26. Essa divisão dimensional em nada afeta a forma como tais direitos devem ser manejados, mas o problema ressaltado por referido doutrinador, assim como por Daniel Sarmento27, é a banalização da fundamentalidade, com o que devemos ter muito cuidado. Importante destacar, também, que no momento pós segunda guerra consolidou-se, perante a comunidade internacional, o papel chave do princípio da dignidade da pessoa humana, sustentado principalmente (mas não somente) pelo pensamento Kantiano. A Declaração Universal de Direitos Humanos da ONU (1948) consagrou o a dignidade da pessoa humana em seu texto como centro orientativo dos direitos, e a partir de então essa Declaração influenciou as Constituições posteriores, com destaque à alemã de 1949, que,

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Ibidem. Ibidem, p. 47-48. 23 Ibidem, p. 48. 24 Ibidem, p. 48-50. 25 Paulo Bonavides defende a existência de cinco gerações de direitos fundamentais, colocando na quarta dimensão os direitos à informação, ao pluralismo e à democracia e, na quinta, o direito à paz na sua concepção mais ampla e global. BONAVIDES, 2006 e BONAVIDES, Paulo. A quinta geração de direitos fundamentais. In: Direitos fundamentais & justiça. Ano 2, n. 3, abr./jun. 2008, p. 82-93. 26 SARLET, op. cit., p. 56-57. 27 SARMENTO, Daniel. Os direitos fundamentais nos paradigmas liberal, social e pós-social. In: SAMPAIO, José Adércio Leite (Coord.). Crise e desafios da constituição. Belo Horizonte: Del Rey, 2004, p. 375-414. 22

juntamente como aquele texto internacional, disseminou a dignidade da pessoa humana como centro dos direitos fundamentais e de todo o ordenamento jurídico28. Feitas essas considerações, claro está que os direitos fundamentais assumem o protagonismo do sistema legal, pois tudo deve obrigatoriamente se desenvolver a partir de e para estes. Plínio Melgaré bem destaca este papel dos direitos fundamentais: “[...] percebemos, no horizonte evolutivo dos direitos fundamentais, a impossibilidade de sua compreensão apenas sob o prisma do subjetivismo dos integrantes de uma determinada sociedade. Ao lado dos poderes e faculdades assegurados aos indivíduos, os direitos fundamentais assumem um intenso caráter objetivo, pois se vinculam ao conteúdo axiológico e à teleologia presentes e desejadas no contexto comunitário no qual vigoram.”29 Nesse sentido, devido à carga que possuem, bem como à posição em que se encontram (positivados em nossa Lei Maior), os direitos fundamentais lançam-se sobre todo o ordenamento jurídico, disseminando sua carga sobre todos os níveis e norteando a atuação da administração pública, do legislativo e dos órgãos jurisdicionais. Sua aplicação, portanto, deve ser imediata e eficaz, e isso melhor veremos a seguir.

2.2 - O §1º do art. 5º da Constituição Federal e seus efeitos sobre a atuação administrativa

Após três séculos do aparecimento daquelas primeiras garantias individuais frente ao poder do Estado, os direitos fundamentais encontram-se hoje disseminados nas Constituições de inúmeras nações, servindo não mais de meros limites para atuação do governo, mas como critérios de legitimação dos poderes estatais (e das próprias Constituições), que agora agem para e pela realização desses direitos. Assim Ingo Sarlet bem sintetiza esse momento: “[...] há como sustentar que, além da íntima vinculação entre as noções de Estado de Direito, Constituição e direitos fundamentais, estes, sob o aspecto de concretizações do princípio da dignidade da pessoa humana, bem como dos valores de igualdade, liberdade e justiça, constituem condição de existência e medida da legitimidade de um autêntico Estado 28

SARLET, op. cit., p. 97. MELGARÉ, Plínio. Um olhar sobre os direitos fundamentais e o estado de direito: breves reflexões ao abrigo de uma perspectiva material. In: SARLET, Ingo Wolfgang (coord.). Jurisdição e direitos fundamentais: anuário 2004/2005. Vol. I, tomo II, Porto Alegre: Escola Superior da Magistratura: Livraria do Advogado, 2006, p. 199. 29

Democrático e Social de Direito, tal qual consagrado também em nosso direito constitucional positivo vigente.”30 Ainda que desnecessário dizer, nossa Constituição de 1988 recebeu de maneira maternal os direitos fundamentais como centro do ordenamento jurídico, outorgando a eles posição importante no início do texto constitucional (como que implicitamente assumindo a importância primordial destes, como disse Gilmar Mendes 31), bem como concedendo ao princípio da dignidade da pessoa humana o status de fundamento do Estado Democrático de Direito da República Federativa do Brasil32. Destaque especial merece o art. 5º de nosso texto constitucional que, além de trazer um grande número de direitos fundamentais elencados, também explicitou uma regra que reforça o mandamento de que essa gama de direitos deve ser aplicada diretamente, vinculando de forma imediata as entidades públicas e privadas: o §1º, onde se lê: “As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata.”. Muito se discute sobre a extensão dessa eficácia instalada pelo dispositivo constitucional citado. Alguns autores, como João Pedro Gebran Neto33, defendem que a mesma aplica-se tão somente aos direitos previstos no caput e incisos do respectivo art. 5º, pois parte o autor do princípio de que as normas constitucionalmente previstas já gozam de eficácia e, com base nisso, a interpretação de referido dispositivo deve gerar efeitos diferenciados. Diz o autor, nesse sentido, que os direitos e garantias previstos no art. 5º gozam de aplicação imediata, independente de intervenção legislativa – há um direito subjetivo inequívoco do cidadão que, mesmo na omissão de norma reguladora ou integrativa, deve ser aplicada pelo Judiciário. Outros autores, como Ingo Sarlet, reconhecem que o texto do §1º do art. 5º é por demais claro ao falar que “direitos e garantias fundamentais” terão aplicação imediata, e, portanto, não apenas aqueles de referido artigo, ainda que a técnica legislativa do constituinte 30

SARLET, 2009, p. 62. “A Constituição brasileira de 1988 atribuiu significado ímpar aos direitos individuais. Já a colocação do catálogo dos direitos fundamentais no início do texto constitucional denota a intenção do constituinte de lhes emprestar significado especial.” MENDES, Gilmar Ferreira. Os direitos fundamentais e seus múltiplos significados na ordem constitucional. In: Revista Jurídica Virtual, n. 13, v. 2, Brasília, jun./1999, p. 1. Disponível em acesso em 05/11/2012. 32 Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: I - a soberania; II - a cidadania; III - a dignidade da pessoa humana; IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V - o pluralismo político. 33 GEBRAN NETO, João Pedro. A aplicação imediata dos direitos e garantias individuais: a busca de uma exegese emancipatória. São Paulo: RT, 2002. 31

não tenha sido a mais coerente (ao colocar tal disposição num parágrafo do art. 5º)34. Para referido autor cristalino é o alcance desta norma, diferente do significado da aplicabilidade imediata dos direitos fundamentais, aspecto esse que mereceu intensa atenção de Sarlet em sua obra35. Para referido autor, dentro dos direitos fundamentais existem dois tipos de normas: aquelas que, devido à sua insuficiente normatividade, não conseguem gerar a plenitude de seus efeitos sem uma intervenção legislativa e, de outro lado, aquelas que podem ser diretamente aplicadas sem precisar de atos concretizadores, alcançando assim sua plena eficácia 36. Considerando essa distinção, a melhor exegese do §1º do art. 5º da CF, de acordo com Sarlet, é de que tal regra constitui um mandado de otimização (ou maximização) que estabelece que os órgão estatais deverão reconhecer a maior eficácia possível aos direitos fundamentais. Surge, assim, uma presunção em favor da aplicabilidade imediata dos direitos fundamentais, ou, conforme as palavras do citado autor: “Isto significa, em última análise, que, no concernente aos direitos fundamentais, a aplicabilidade imediata e eficácia plena assumem a condição de regra geral, ressalvadas exceções que, para serem legítimas, dependem de convincente justificação à luz do caso concreto, no âmbito de uma exegese calcada em cada norma de direito fundamental e sempre afinada com os postulados de uma interpretação tópico-sistemática [...]”37 Nesse sentido, cai como uma luva o exemplo apresentado por Juarez Freitas que, ao analisar os efeitos da ordem de aplicabilidade direta e imediata dos direitos fundamentais no âmbito da administração pública, reconhece a mesma como um anteparo contra a frequente irresponsabilidade política dos que descumprem os deveres38. Com base nessa ordem maior de eficácia dos direitos fundamentais, o ônus do administrador na tomada de decisões aumenta consideravelmente. Assim, voltando nossa atenção à administração pública, resta claro por todo o exposto que a mesma encontra-se plenamente vinculada ao presente sistema, onde a dignidade da pessoa humana, orbitada pelos demais direitos fundamentais contidos em nossa Lei Maior, deve servir de meio e de fim para a atividade do administrador. Sarlet reconhece que o §1º do art. 5º da CF reforça a ideia de vinculação dos órgãos administrativos com relação à eficácia 34

SARLET, 2009, p. 262. Ibidem, p. 273 e ss. 36 Ibidem, p. 270. 37 Ibidem, p. 271. 38 FREITAS, 2009, p. 18. 35

dos direitos fundamentais, sendo entendido a partir de tal norma que, em um sentido negativo, os direitos fundamentais não se encontram na esfera de disponibilidade do poder público e, num sentido positivo, que cabe à administração a tarefa de realização desses direitos39. Não há, assim, mais lugar para ingerências administrativas, pois os órgãos administrativos estão, em todas as suas formas de manifestação e atividades, vinculados à proteção e promoção dos direitos fundamentais. Todavia, ao analisarmos as relações jurídico-administrativas sob esta nova ordem, nos parece um tanto difícil olvidar de uma das tradicionais atividades da administração pública: o seu poder de polícia, utilizado, como diz Di Pietro, para condicionar o exercício de direitos individuais ao bem estar coletivo40. O poder de polícia possuía anteriormente, como bem cita Marçal Justen Filho, uma atuação de “cunho preponderantemente repressivo e se destinava a impedir que o exercício da autonomia privada se traduzisse em lesão a interesses alheios.”41 Ainda que os tempos sejam outros, e que ao poder de polícia caiba observar o atual estado de direito42, é possível encontrarmos diversos resquícios dessa atividade, como o fundamento alçado por Di Pietro para referida atividade estatal43. Nesse sentido, difícil não nos perguntarmos como agiria o poder de polícia administrativa, hoje, considerando a eficácia irradiante dos direitos fundamentais. Na realidade, a pergunta é ainda um pouco mais específica: como agiriam os administradores quando o direito a ser limitado, cuja competência para tanto não se discute, estiver previsto no rol do art. 5º de nossa Constituição? Seguirá o pode de polícia sua essência repressiva e limitará um direito fundamental sob o manto do interesse público ou o administrador considerará todos os direitos envolvidos para lançar mão de sua medida? A carga do §1º do art. 5º da CF e a atividade do poder de polícia podem, à primeira vista, entrar em severos conflitos na lida diária da administração pública e, por esta razão, importante analisarmos como se dará essa relação, mas , principalmente, como nós, administrados, poderemos nos resguardar frente à atuação estatal.

III – O exercício do poder de polícia no contexto da predominância de direitos fundamentais 39

SARLET, 2009, p. 382-383, DI PIETRO, op. cit., p. 116-117. 41 JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 385. 42 “O poder de polícia administrativa é a competência administrativa de disciplinar o exercício da autonomia privada para a realização de direitos fundamentais e da democracia, segundo os princípios da legalidade e da proporcionalidade.” Ibidem, p. 385. 43 DI PIETRO, op. cit., p. 117. 40

3.1 – Interesse público e direitos fundamentais: o papel da motivação na atividade da polícia administrativa Recorrente na doutrina pátria, ao procurarmos pelo conceito de poder de polícia, a indicação do art. 78 do Código Tributário Nacional (CTN) como a fonte de onde podemos extrair o conceito de poder de polícia da administração pública. Assim, sem contrariar essa maioria de estudiosos, mister se faz analisar o que diz o CTN: Art. 78. Considera-se poder de polícia atividade da administração pública que, limitando ou disciplinando direito, interesse ou liberdade, regula a prática de ato ou abstenção de fato, em razão de interesse público concernente à segurança, à higiene, à ordem, aos costumes, à disciplina da produção e do mercado, ao exercício de atividades econômicas dependentes de concessão ou autorização do Poder Público, à tranqüilidade pública ou ao respeito à propriedade e aos direitos individuais ou coletivos. Parágrafo único. Considera-se regular o exercício do poder de polícia quando desempenhado pelo órgão competente nos limites da lei aplicável, com observância do processo legal e, tratando-se de atividade que a lei tenha como discricionária, sem abuso ou desvio de poder. Resta claro com a definição trazida que o poder de polícia trata, outrossim, da limitação de direitos individuais em prol do interesse público. O que a Lei não diz, no entanto, é que no atual Estado Democrático de Direito tal poder deixa de ser uma faculdade do Estado para transformar-se num dever deste com o cidadão, voltado sempre para a consecução dos direitos fundamentais, mesmo que alguns deles necessitem de alguma restrição no seu exercício. Como disse Juarez Freitas: “Sacrifícios razoáveis, por boas razões, mostram-se admissíveis, contanto que não resultem do arbítrio “legalizado” pela ordem vigente.”44. Continua referido Autor afirmando que “O exercício legítimo do poder de polícia administrativa significa intervenção reguladora, nunca mutiladora da essência dos direitos.”45 Considerando todo o exposto na primeira parte, a discricionariedade da administração no manejo de seu poder de polícia deverá obrigatoriamente respeitar a aplicabilidade direta e imediata dos direitos fundamentais, deixando claro, sempre, que a regulação de um destes 44

FREITAS, Juarez. Poder de polícia administrativa e o primado dos direitos fundamentais. In: WAGNER JÚNIOR, Luiz Guilherme da Costa. (coord). Direito público. Belo Horizonte: Del Rey, 2004. p. 402-403. 45 Ibidem.

serve para a defesa do todo fundamental. Não há mais espaço para a cega afirmação de que o interesse público é supremo e se sobrepõe a qualquer direito individual, pois tal atitude fere mortalmente todo o sistema legal existente. Ainda que o poder de polícia esteja legalmente conectado ao respeito do due process of law (parágrafo único do art. 78 do CTN), Juarez Freitas diz que se deve ir mais além, que o Estado, no exercício da atividade ora estudada, deverá respeitar o substantive due process of law46, e para tanto tece algumas considerações dignas de nossa atenção: “1 – os atos de polícia administrativa deverão incorporar o teste da proporcionalidade, isto é, os meios só serão juridicamente adequados se se prestarem a realizar o fim almejado, mas, ao mesmo tempo, devem ser adequados, necessários e razoáveis47; 2 – A auto-executoriedade, prerrogativa inerente do exercício regular do poder de polícia administrativa, será limitada pelo primado simultâneo do interesse público e dos direitos fundamentais;”48 O Estado e o próprio cidadão necessitarão de ferramentas para que as regras do jogo sejam devidamente seguidas e, nesse sentido, importante papel terá a motivação, já considerado como um princípio inafastável da atuação administrativa dentro desse contexto de novos paradigmas. O dever de motivação será o lastreador do exercício do poder de polícia administrativa, de forma a demonstrar a pertinência legal e legítima da intervenção, como disse Fritz Fleiner, citado por Juarez Freitas49. Difícil não lembramos dos ensinamentos de Sarlet, que disse que a limitação de direitos fundamentais, considerando a sua eficácia irradiante, exige uma justificação devidamente embasada nos preceitos de nossa ordem constitucional50. Parece-nos que a obrigação gerada pelo princípio da motivação vai além do que a simples obrigação de expor os fatos e fundamentos autorizadores da ação do poder de polícia, pois, como bem destaca Odete Medauar: “os motivos apresentados pelo agente como justificativas do ato associam-se à validade do ato e vinculam o próprio agente.”51 Ou seja, ao impor ao administrador o dever de motivar se está, ao mesmo tempo, forçando que o 46

FREITAS, 2009, p. 94-95. “O poder de polícia encontra seus limites na lei e no princípio da proporcionalidade. As restrições e imposições autorizadas explícita ou implicitamente na lei serão determinadas para o caso concreto em vista do princípio da proporcionalidade. Tal como exposto, as medidas concretas determinadas no exercício do poder de polícia deverão ser adequadas, necessárias e compatíveis com a Constituição.” JUSTEN FILHO, op. cit., p. 394. 48 Ibidem. 49 FLEINER, Fritz citado por FREITAS, 2009, p. 95. 50 Vide nota 36. 51 MEDAUAR, Odete. Direito administrativo moderno. 12ª ed., rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008, p. 137. 47

mesmo tenha muito cuidado com a medidas que optará por tomar, já que as mesmas servirão para analisar a qualidade de seus atos. A limitação administrativa, portanto, demanda fundamentação clara, explícita e congruente, dado que ela afeta direitos dos administrados. Dessa maneira, aproveitando a sugestão de releitura do poder de polícia proposta por Juarez Freitas, utilizamos seu conceito que, no atual âmbito democrático de direito, compreende: “o poder de polícia administrativa como o exercício motivado de uma competência (não mera faculdade) que consiste em regular, restringir ou limitar administrativamente, de modo legal e legítimo, o exercício dos direitos fundamentais de propriedade e de liberdade, de maneira a obter, mais positiva do que negativamente, uma ordem pública capaz de viabilizar o direito fundamental à boa administração pública, sem render ensejo a indenização, por não impor dano injusto.”52 Por fim, diz referido autor que o poder de polícia trata de uma competência administrativa que visa a proteger e a harmonizar direitos fundamentais, com suficiente justificação, para além das posturas céticas53, isto é, algo plenamente compatível com a carga emanada pelo §1º do art. 5º da CF. Dessa forma, com base na atual concepção de poder de polícia, importante entender como agirá o administrador quando houver um conflito entre o interesse público e um direito fundamental. Conforme notado na primeira parte deste texto, aquela antiga justificativa da supremacia do interesse público já não tem mais lugar em nossa atual ordem jurídica. Se o atual sistema demanda a ponderação de interesses públicos e particulares, parece lógico que este é o mínimo esperado quando tratamos de direitos fundamentais, o mínimo. Não obstante, necessário, primeiramente, analisar se o interesse público não converge com os direitos fundamentais, pois isto é o que muitas vezes ocorre. O autor Gustavo Binenbojm já disse que: “muitas vezes, a promoção do interesse público, entendido como conjunto de metas gerais da coletividade – consiste, justamente, na preservação de um direito individual, na medida do possível.”54 Porém, seria deveras ingênuo pensar que nunca haverão conflitos, ainda que a convergência entre interesse público e direitos fundamentais, conforme fala Daniel Sarmento, 52

FREITAS, 2009, p. 97. Ibidem. 54 BINENBOJM, Gustavo. Da supremacia do interessa público ao dever de proporcionalidade: um novo paradigma para o direito administrativo. In: Revista de Direito Processual Geral, n. 59, Rio de Janeiro, 2005, p. 80. 53

seja frequente55. Seguindo o estudo de referido autor, não seria possível negar a premissa de que: “o legislador democraticamente legitimado, e por maioria de razões a Administração Pública, estejam vinculados ao estrito respeito dos direitos fundamentais, que não devem ser sacrificados por razões ligadas a qualquer concepção majoritária sobre o que constitua, em cada momento, o interesse público. O que se discute é se esta posição privilegiada dos direitos fundamentais, que se baseia não só em sólidos fundamentos morais, mas antes no próprio sistema constitucional, vai ao ponto de lhes atribuir uma prevalência absoluta e integral sobre os outros bens jurídicos, mesmo os revestidos de estatura constitucional, não importa em que contexto fático.”56 É inquestionável que nosso ordenamento constitucional, pelo que foi visto até o momento, adota uma posição de ferrenha defesa dos direitos fundamentais, levando em conta que (i) centralizou a dignidade da pessoa humana e os direitos dela emanados; (ii) criou uma regra de aplicação imediata para tais direitos; e (iii) concedeu, pela primeira vez, a condição de cláusula pétrea a determinados direitos. No entanto, por toda a evolução jurídica que observamos, resultando no atual Estado Social de Direito, e com nosso convívio diário com o mundo jurídico, não seria aceitável (e tampouco inteligente) a criação de uma regra de predominância total de direitos fundamentais em toda e qualquer situação. A própria Constituição fornece restrições57 (expressas ou autorizadas) aos direitos fundamentais, sem contar que é plenamente possível que outros direitos de igual calibre, revestidos pelo interesse público, entrem em conflito com os direitos individuais fundamentais ameaçados. Importante aqui fazer menção à teoria dos “limites dos limites”58, por meio da qual se entende que a autorização constitucional dada ao legislador para restringir direitos 55

SARMENTO, Daniel. Colisões entre direitos fundamentais e interesses públicos. In: SARLET, Ingo Wolfgang (coord.). Jurisdição e direitos fundamentais: anuário 2004/2005. Vol. I, tomo II, Porto Alegre: Escola Superior da Magistratura: Livraria do Advogado, 2006, p. 50. 56 Ibidem, p. 54. 57 Assim ocorre com o direito de propriedade, que deve atender a sua função social (art. 5º, incisos XXII e XXIII da CF), bem como com o direito do consumidor, cuja disposição constitucional (art. 5º, inciso XXXII) autoriza a Lei a regulá-lo. 58 “[...] da análise dos direitos individuais pode-se extrair a conclusão errônea de que direitos, liberdades, poderes e garantias são passíveis de limitação ou restrição. É preciso não perder de vista, porém, que tais restrições são limitadas. Cogita-se aqui dos chamados limites imanentes ou ‘limites dos limites’ (Schranken-Schranken), que balizam a ação do legislador quando restringe direitos individuais. Esses limites, que decorrem da própria Constituição, referem-se tanto à necessidade de proteção de um núcleo essencial do direito fundamental, quanto à clareza, determinação, generalidade e proporcionalidade das restrições impostas” MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade: estudos de direito constitucional. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 41.

fundamentais deve respeitar uma série de limitações ((i) previsão em lei geral, não casuística e suficientemente densa; (ii) respeito ao princípio da proporcionalidade em sua tríplice dimensão; e (iii) o não atingimento do núcleo essencial do direito em questão). Não suficiente, e aqui importando mais ao presente trabalho, Daniel Sarmento afirma que a restrição de direitos fundamentais pode ser realizada no caso concreto mediante a ponderação de interesses diretamente pela Administração, caso o conflito não tenha sido resolvido previamente pelo Legislativo 59. Assim, retomamos a lição de Sarlet que identifica que a carga eficacial dos direitos fundamentais deve ser vista como uma regra geral onde, para sua restrição, caberá ao operador de tal limitação um ônus argumentativo de considerável peso60. Sarmento também compactua com esse posicionamento, afirmando que os direitos fundamentais, em um procedimento ponderativo, gozarão de precedência, ou seja, receberão um peso inicial superior, transferindo aos defensores do interesse público maior dever argumentativo para que aquele possa sobrepujar os direitos fundamentais61. Tal ideia irá vincular o legislador – que caso realize ponderações exageradas ou insuficientes, que negligenciem a precedência dos direitos fundamentais, incorrerá em inconstitucionalidade - bem como os aplicadores do direito, juízes e administradores, quando se depararem com a necessidade de realização de ponderações in concreto62. Ao final, destaque-se a frase de Juarez Freitas que deverá nortear a atuação do administrador no exercício de seu poder de polícia: “O Agente público está obrigado a sacrificar o mínimo para preservar o máximo dos direitos fundamentais”63, ou dito de outro modo, caberá ao administrador encontrar a solução mais ponderada levando em conta as conseqüências de sua escolha. E isso pode ser claramente analisado no caso real a seguir apresentado.

3.2 – O caso EFAVIRENZ como exemplo da esperada atuação administrativa

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SARMENTO, 2006, p. 60. Vide nota 36. 61 SARMENTO, 2006, p. 63-66. 62 “Haverá de chegar um momento, contudo – uma encruzilhada com várias vertentes -, em que a lei não o informará qual a direção a ser seguida. Imcumbirá ao maquinista, administrador público, sem se afastar dos trilhos da lei, aferir a oportunidade e conveniência da escolha do caminho ou da vertente apropriada. Imcumbirlhe-á, sempre, inclinar-se pela melhor opção.” BACELLAR FILHO, Romeu Felipe citado por FREITAS, 2009, p. 35. 63 FREITAS, 2009, p. 66. 60

Há alguns anos atrás um caso chamou a atenção da mídia nacional e internacional, gerado por alguns atos do governo brasileiro. Trata-se do caso do licenciamento compulsório da patente de invenção do Medicamento Efavirenz64, chamado erroneamente pela mídia da “quebra da patente”65 de referido medicamento, um antiretroviral utilizado no tratamento de pacientes infectados pelo vírus da AIDS. Em 2006 o governo brasileiro, por meio do Ministério da Saúde, iniciou negociações com a empresa Merck, Sharp & Dohme, detentora das patentes de invenção PI1100250-666 e PI9608839-767, que englobam a tecnologia contida no medicamento EFAVIRENZ, um antiretroviral utilizado no tratamento de pessoas HIV positivas em boa parte do mundo na época, inclusive no próprio Brasil, na tentativa de baixar os preços exigidos por tal empresa para venda do referido medicamento. Preliminarmente, antes de adentrarmos nas etapas posteriores dessa negociação, cumpre ressaltar brevemente o que são patentes, e quais os direitos que elas conferem ao seu titular. Tratam-se institutos da propriedade industrial, consubstanciados em títulos outorgados pelo Estado que, ao reconhecer que determinada tecnologia é nova (nunca antes divulgada), possui atividade inventiva (não é algo óbvio decorrente do estado da técnica) e aplicação industrial (apto de ser produzido em escala industrial), garante ao desenvolvedor de tal inovação um direito temporário de exclusividade de exploração 68 – um monopólio, como afirma Dênis Borges Barbosa69 e como o próprio STF já reconheceu70. 64

Notícias veiculadas: Jornal Folha de São Paulo, disponível em acesso em 05/11/2012; Revista Veja, disponível em acesso em 05/11/2012; Portal Globo, disponível em acesso em 05/11/2012; 65 O termo “quebra” transmite a ideia de que a patente tenha sido anulada, desfeita, revogada, quando na verdade referido instituto manteve-se vigente, porém foi objeto de um licenciamento compulsório coordenado pelo governo brasileiro, onde seu titular foi obrigado a permitir que sua tecnologia patenteada fosse explorada por terceiros, mediante o recebimento de uma devida contraprestação. 66 Patente de Invenção n. PI1100250-6, intitulada “BENZOXAZINONAS COMO INIBIDORES DE TRANSCRIPTASE REVERSA DE HIV”, em nome de Merck Sharp & Dohme Corp; 67 Patente de Invenção n. PI9608839-7, intitulada “COMPOSTO E COMPOSTO N-(4-METOXIBENZIL)-6CLORO-2-[(R)-CICLOPROPILETINIL-HIDRÓXI-TRIFLUOROMETIL]-METIL ANILINA QUIRAL”, em nome de Merck Sharp & Dohme; 68 BARCELLOS, Milton Lucídio Leão. O sistema internacional de patentes. São Paulo: IOB Thomson, 2004, p. 13-16. 69 “Os direitos de propriedade industrial são monopólios constitucionalmente previstos (art. 5º, inciso XXIX da CF 88), assegurados por lei, que resultam na exclusividade do seu uso ou exploração pelo titular.” BARBOSA, Denis Borges. Tributação da propriedade intelectual: dedutibilidade. Disponível em www.denisbarbosa.addr.com/arquivos/apostilas/puv/puc2.doc> acessado em 10/10/2012. 70 “O monopólio (i) pode decorrer do lícito exercício de uma vantagem competitiva ou (ii) ser instituído mediante lei. (...) Já no segundo caso (instituição de monopólio mediante lei, monopólio legal), tem-se situação inversa: aí o Estado exerce uma opção política, em razão da qual o sistema jurídico atribui a determinado agente a faculdade do exercício, com exclusividade, de uma certa atividade econômica em sentido estrito. Estabelece-se artificialmente (= pela lei) um ambiente impermeável à livre iniciativa; a ausência de concorrência é total. Qualquer outro agente econômico que se disponha a explorar a atividade monopolizada estará impedido de fazê-

A concessão desta exclusividade serve, do ponto de vista público, de estímulo ao desenvolvimento tecnológico, pois de nada adiantaria investir tempo, dinheiro e mão de obra na criação de algo que, uma vez colocado no mercado, seria prontamente aproveitado pelos demais concorrentes – a patente serve, assim, para suprir essa falha, uma artificialidade concorrencial que concede vantagem temporária àqueles que realmente preocupam-se em inovar71. Do contrário, poderíamos estar hoje inseridos em um mundo de inércia inventiva. Ao mesmo tempo em que o Estado garante essa vantagem, o detentor da tecnologia é obrigado a divulgá-la a todos, permitindo assim que a mesma seja estudada e até mesmo melhorada e, uma vez findado o prazo de vigência, adentre no domínio público. Já do ponto de vista privado, trata-se além de um reconhecimento, um afago ao ego daquele que criou algo diferenciado, também de uma remuneração/uma recompensa - “A mim pertencem os frutos de meu trabalho”, inclusive o intelectual. Como titular desse título exclusivo podemos explorar diretamente o objeto protegido, ou então licenciá-lo a terceiros para que, mediante o pagamento de royalties, paguem um “aluguel” pelo uso da propriedade intelectual alheia. Não suficiente, os direitos de propriedade industrial foram elevados à categoria de direitos fundamentais do ser humano pelo constituinte de 1988, conforme observamos no art. 5º, inciso XXIX, onde é dito que: “a lei assegurará aos autores de inventos industriais privilégio temporário para sua utilização, bem como proteção às criações industriais, à propriedade das marcas, aos nomes de empresas e a outros signos distintivos, tendo em vista o interesse social e o desenvolvimento tecnológico e econômico do País.” Feitas estas considerações, retornando ao caso em tela, o governo federal buscou em negociações com a empresa detentora das patentes citadas reduzir o valor que referida lo --- a lei não admite essa exploração. Os monopólios legais dividem-se, por sua vez, em duas espécies: (i) os que visam a impelir o agente econômico ao investimento e (ii) os que instrumentam a atuação do Estado na economia. Transitamos, quando daquele primeiro tipo de monopólio, pela seara da chamada propriedade industrial: da e na proteção dos brevetos, marcas, know-how etc. emerge autêntico monopólio privado; ao detentor do direito de propriedade industrial é assegurada a exclusividade de sua exploração.” STF, ADI 3273/DF e ADI 3366/DF, Relator Ministro Eros Grau, DJ 02/03/07. 71 Importante destacar que o Estado não garante o retorno dos investimentos feitos pelo inventor, mas apenas lhe concede uma vantagem dentro do âmbito de mercado, este sim que irá determinar se o inventor recuperará o que aplicou na atividade de criação. Sobre esse ponto bem falou Karin Grau-Kuntz: “A garantia da exclusividade de exploração de determinadas informações, ou seja, daquelas que preenchem determinados requisitos legais, não implica assim em garantia alguma de que o título exclusivo irá resultar em uma vantagem econômica ao seu titular. A propriedade intelectual garante apenas uma possibilidade de lucro, a depender dos ânimos do mercado.”. (GRAU-KUNTZ, Karin. A interface da propriedade intelectual com o direito antitruste. In: Exposição apresentada na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, em 22 de agosto de 2011. Disponível em acessado em 10/10/2012.

empresa cobrava por comprimido importado (US$ 1,59) para US$ 0,65, que era o valor cobrado do governo da Tailândia 72 – uma diferença de 136%. No Brasil, em 2006, cerca de 38% dos pacientes do programa de combate a AIDS utilizavam tal medicamento, e isso representava um gasto de cerca de US$ 45 M por ano somente para estes 75 mil pacientes. Assim, a Merck Sharp & Dohme rejeitou tal proposta de equiparação, oferecendo uma contraproposta que foi considerada inaceitável pelo Ministério da Saúde. O governo brasileiro estudou a situação e viu que a fabricação do medicamento genérico do Efavirenz em laboratórios credenciados pela OMS teria um custo de US$ 0,45 por comprimido, uma economia que, considerando a vigência da patente que findava em 2012, seria de US$ 236,8M neste período73. Porém, para que pudesse fabricar o genérico, o Brasil necessitava de uma licença de exploração. Nesse sentido, a Lei de Propriedade Industrial (Lei 9.279/96), que trata das patentes, prevê

no art. 68 e seguintes um procedimento de licenciamento compulsório de títulos

patentários, incluindo dentre as categorias autorizadoras desse procedimento o “abuso de poder” (art. 68), “a não exploração” (art. 68, §1º, I), “o não atendimento das demandas de mercado” (art. 68, §1º, II) e, no art. 71, a seguinte hipótese: Art. 71. Nos casos de emergência nacional ou interesse público, declarados em ato do Poder Executivo Federal, desde que o titular da patente ou seu licenciado não atenda a essa necessidade, poderá ser concedida, de ofício, licença compulsória, temporária e não exclusiva, para a exploração da patente, sem prejuízo dos direitos do respectivo titular. Dessa maneira, havendo a decretação de interesse público sobre determinada patente, pode a Administração promover o seu licenciamento compulsório, isto é, o governo será autorizado por meio de uma licença forçada a explorar os direitos do titular desta, e foi o que ocorreu no caso Efavirenz. Em 1999, após uma negociação do governo federal na tentativa de reduzir os valores do medicamento Nelfinavir 74, o Presidente Fernando Henrique Cardoso promulgou o Decreto 3.201/99, descrevendo o procedimento para decretação da licença compulsória nos casos de interesse público ou segurança nacional. Na época, todavia, um acordo foi firmado sem a necessidade de utilizar tal procedimento. 72

Dados extraídos do trabalho “Efeitos do licenciamento compulsório no caso Efavirenz: uma análise de law & economics”, constante nos Anais do XVII Congresso Nacional do CONPEDI. (Efeitos do licenciamento compulsório no caso Efavirenz: uma análise de law & economics. Anais do XVII Congresso Nacional do CONPEDI, realizado em Brasília, 2008, p. 6436 – 6451.) 73 Informações veiculadas pelo Ministério da Saúde, disponível em , acesso em 15/11/2012. 74 Informações veiculadas pelo Ministério da Saúde. Disponível em acesso em 15/11/2012.

Importante ater-se a um detalhe de referido Decreto - a definição de interesse público utilizado para autorizar essa restrição nos direitos de propriedade intelectual dos administrados: Consideram-se de interesse público os fatos relacionados, dentre outros, à saúde pública, à nutrição, à defesa do meio ambiente, bem como aqueles de primordial importância para o desenvolvimento tecnológico ou sócio-econômico do País. Como podemos ver, o conceito acima é tão esclarecedor quanto a inexistência de um conceito, tornando claro que ao administrador aplicador destas medidas recairá um grande ônus. Assim, atendendo ao iter designado pelo Decreto, o Ministro da Saúde emitiu a portaria 886 de 24/04/200775, momento em que paradigmas foram quebrados no direito administrativo brasileiro. Se estivéssemos em outros tempos, bastaria anunciar o interesse público sobre as patentes do Efavirenz para, nos termos definidos em Lei, proceder com o licenciamento compulsório, contudo, os tempos são outros. Além da nova forma de atuação da Administração Pública, observada ao longo do presente artigo, o alvo do poder de polícia do Estado nesse caso é um direito fundamental e, portanto, sua eficácia obrigou o poder público a tecer sólidos fundamentos para que tal licença compulsória fosse legitimamente aceita, mesmo que devidamente positivada. Na portaria referida foram tecidos diversos argumentos, dentre os quais destacamos:  O reconhecimento da saúde como direito humano fundamental, previsto em uma série de acordos internacionais do qual o Brasil faz parte e que foram recepcionados pelo ordenamento pátrio;  O reconhecimento da saúde como direito fundamental do ser humano previsto em nossa Constituição Federal;  O reconhecimento da propriedade industrial como direito fundamental previsto em nossa Constituição Federal, mas atrelada ao interesse social da nação;  O reconhecimento de que a propriedade intelectual é importante para incentivar a criação de novos medicamentos, mas que o efeito desses monopólios sobre os preços de remédios deve ser observado de perto, conforme declaração assinada pelos países membros da OMC em 14/11/2001;  O reconhecimento da obrigação estatal de fornecer acesso universal e gratuito a tratamentos de saúde, incluindo o dever de continuidade de fornecimento de remédios para pessoas infectadas pelo vírus HIV; 75

Disponível em acesso em 15/11/2012.

 A informação de que o medicamento Efavirenz é mundialmente reconhecido como um dos mais eficazes no tratamento antiretroviral do vírus HIV;  A informação de que o programa DST/AIDS do Brasil é mundialmente reconhecido por sua qualidade, seja pelo tratamento seja pela abrangência;  A informação de que o número de pacientes do programa está aumentando (200 mil em 2007) e, com o preço exercido hoje pelas titulares das patentes, seria economicamente inviável manter o programa da forma como é;  A informação de que o Ministério da Saúde buscou, pela via negocial, encontrar um acerto com os detentores dos direitos das patentes do Efavirenz;  O reconhecimento de que o procedimento de licenciamento compulsório por interesse público encontra-se devidamente positivado no direito interno; Publicados estes argumentos, bem como outros não contidos nesta portaria, mas sabidamente apresentados a Merck Sharp & Dohme na época, como o valor que referida empresa explorava com a Tailândia, muito discrepante com o valor do produto vendido ao governo brasileiro, o Ministério da Saúde declarou interesse público sobre as patentes do Efavirenz. Mesmo com essa declaração não houve o aceite de redução do preço pela titular dos direitos, resultando no Decreto Presidencial n. 6.108/07, determinando o licenciamento compulsórios das patentes em discussão, não-exclusivo, para fins públicos não comerciais (que é uma das condições) e até 2012, com possibilidade de prorrogação, mediante o pagamento de 1,5% do valor do medicamento fabricado para o titular das patentes76. Nesse sentido, parece-nos que este é um exemplo de como o a administração deve se portar em casos onde a restrição de direitos fundamentais deve ser realizada. Primeiramente destacamos as tentativas conciliatórias prévias à decretação do licenciamento compulsório, que sequer são previstas em lei como condição para obtenção deste. Em segundo lugar, merece citação a preocupação dos agentes públicos em bem fundamentar (motivação) o ato que declarou interesse público sobre as patentes em tela, mesmo que a Lei dissesse apenas

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que dependeria de um decreto do executivo declarando o interesse público sobre determinada tecnologia e que, outrossim, a saúde seria um interesse público. A eficácia do direito fundamental de propriedade intelectual (ou o seu peso em um momento de ponderação de direitos e interesses) obrigou a administração a agir dessa maneira, com um grande ônus argumentativo para fazer valer o direito à saúde, que mesmo sendo também um direito fundamental, não eximiu os agentes públicos de tecerem relevantes argumentos para sustentar a atividade do poder de polícia administrativa. Não suficiente, ao promover o direito à saúde a administração também estava agindo de acordo com a carga mandamental do §1º do art. 5º da CF, não sendo omissa e buscando o melhor para os seus administrados. E por fim, note-se que o direito fundamental à propriedade intelectual teve seu núcleo essencial mantido neste procedimento de licenciamento compulsório. Diferente da ideia que o termo “quebra de patente” nos passa, o direito de patente (e da propriedade industrial) foi respeitado, pois seus titulares receberão uma justa remuneração pelo seu uso compulsório. Um dos objetivos da propriedade industrial, o incentivo ao desenvolvimento tecnológico, não me parece abalado pelas medidas adotadas no caso, assim como o direito do titular de receber uma recompensa pelo uso de seu invento por terceiros.

IV – Considerações finais

Ainda que nos pareça algo sintomático a defesa e promoção de direito fundamentais, tendo vista o atual sistema jurídico em que estamos inseridos, essa regra de “eficácia”, ou de aplicação imediata de referida gama de direitos, não é algo tão fácil assim de ser operado na prática. No âmbito do direito administrativo, que atualmente encontra-se num estado de superação de paradigmas, ainda pode nos parecer um pouco contraditório o Estado colocar interesses individuais acima do, até então, supremo interesse público. No entanto, mesmo este está mudando, abordando em seu seio a defesa e promoção dos direitos fundamentais. A tradicional atividade de poder de polícia administrativa, outrora sustentada pelas prerrogativas concedidas ao Estado, e limitada por algumas regras usualmente individuais, possui agora uma missão maior, tendo nos direitos fundamentais uma prerrogativa e também uma restrição. O interesse público pode, ainda, sobrepujar-se a direitos fundamentais, mas não basta mais a simples menção daquelas antigas prerrogativas do poder estatal para fazê-lo, cabendo ao administrador o dever de motivar solidamente seus atos quando resultarem em alguma restrição de garantias fundamentais.

A noção de predominância dos direitos fundamentais na atividade estatal é o novo mantra que deve praticar o agente público, haja vista a regra de aplicação imediata de referidos direitos. Exemplos da esperada atuação administrativa neste cenário existem, como visto no caso Efavirenz, mas ainda assim existe importante trabalho a ser realizado com os agentes públicos envolvidos nas relações jurídico-administrativas para o fortalecimento da ordem constitucional centrada na dignidade da pessoa humana, em especial quando a discricionariedade deles mostra-se ampla no caso concreto. É como disse Juarez Freitas: “A primazia efetiva dos princípios constitucionais na mente dos controladores e dos administradores é empreendimento cultural premente”77, ou, aproveitando a afirmação clarividente de Clèmerson Clève: “o trabalho pedagógico pode ser mais importante que as redefinições técnicas”78.

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