A adoção de filho do cônjuge ou unido de facto do mesmo sexo – o direito vigente à luz dos princípios constitucionais

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A ADOÇÃO DE FILHO DO CÔNJUGE OU UNIDO DE FACTO DO MESMO SEXO — O DIREITO VIGENTE À LUZ DOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS ANA RITA GIL Assessora do Gabinete dos Juízes do Tribunal Constitucional Sumário: Pretende-se neste artigo analisar a atual proibição de adoção de filho de cônjuge ou de unido de facto do mesmo sexo à luz dos princípios constitucionais. Para tal, procurar-se-á analisar os fundamentos do instituto da adoção, a sua consagração constitucional, e a solução legal atualmente em vigor, à luz dos princípios constitucionais e do direito e jurisprudências internacionais recentes.

1. A ADOÇÃO DE FILHO DO CÔNJUGE: FINALIDADE DO INSTITUTO, EVOLUÇÃO HISTÓRICA E DISCIPLINA LEGAL EM VIGOR 1.1. Finalidade do instituto A adoção do filho do cônjuge tem sido um instituto reconhecido e até favorecido, como forma de conferir efeitos jurídicos à ligação entretecida entre uma criança e o seu padrasto ou madrasta. Com este instituto, o Direito reconhece — e assim estabelece juridicamente —, uma relação familiar entre o filho de uma pessoa e o seu cônjuge. Pelos efeitos da adoção plena, essas duas pessoas (a criança e a madrasta ou padrasto) passam então a estar unidas pelo vínculo da parentalidade. Esse é o efeito da adoção plena. A adoção é definida no artigo 1586.º do Código Civil (CC) como «o vínculo que, à semelhança da filiação natural, mas independentemente dos laços de sangue, se estabelece legalmente entre duas pessoas». Como referem FRANCISCO PEREIRA COELHO e GUILHERME DE OLIVEIRA, «por oposição ao parentesco natural, que é o verdadeiro parentesco, a adoção é assim um parentesco legal, criado à semelhança daquele» (1). Pela adoção plena o adotado adquire a situação de filho do adotante,

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Curso de Direito da Família, vol. I, Coimbra Editora, 2001, p. 46. Coimbra Editora ®

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extinguindo-se, em princípio, as relações de família entre o adotado e os seus ascendentes naturais (artigo 1986.º, n.º 1 CC). No caso de adoção do filho do cônjuge este corte não é levado a cabo em relação ao progenitor e sua família. A adoção cria uma relação de família que atribui aos pais adotivos o exercício das responsabilidades parentais, garantindo à criança e ao adotante a realização afetiva própria da filiação. Como filho do adotante, o adotado é titular de todos os direitos reconhecidos por lei aos filhos, a nível sucessório, de alimentos, de exercício das responsabilidades parentais, e ainda de impedimentos matrimoniais. O adotado adquire o apelido dos pais adotivos, bem como a nacionalidade portuguesa, no caso de menores estrangeiros (artigos 1988.º do CC e artigo 5.º da Lei da Nacionalidade (2)). A adoção plena é irrevogável (artigo 1989.º), tal como a relação de maternidade ou paternidade (3). A adoção é, assim, uma fonte de relações familiares que cria, ao lado da filiação, a relação de parentesco. Mas «não quer isso dizer, porém, que se trate de uma ficção da lei. O que acontece é que a adoção assenta em outra verdade, uma verdade afetiva e sociológica, distinta da verdade biológica em que se funda o parentesco» (4). 1.2. Breve evolução histórica A codificação do instituto da adoção, incluindo a possibilidade de adoção de filho do cônjuge, foi feita em Portugal com o Código Civil de 1966, nos artigos 1973.º e seg., após Pires de Lima ter apresentado um projeto de regulação da adoção em 1945, no âmbito de um movimento legislativo europeu impulsionado pela existência de um grande número de órfãos em resultado da I Grande Guerra. A adoção deixou então de estar centrada no interesse da pessoa do adotante, em que se procurava sobretudo a perpetuação da família e a transmissão do nome e do património, como sucedia nas legislações antigas, para passar a visar a satisfação do interesse do adotado no ingresso num meio familiar semelhante ao de uma família baseada na filiação biológica (5). O Código Civil, por influência francesa, previa dois tipos de adoção — a adoção restrita e a adoção plena. O instituto

Lei Orgânica n.º 2/2006, de 17 de abril. Apenas em casos muito excecionais pode a sentença de adoção ser revista (artigo 1990.º do CC), todos eles ligados a falta ou vício do consentimento. Ainda assim, a revisão não será concedida quando a isso se opuserem os interesses do adotado. (4) FRANCISCO PEREIRA COELHO e GUILHERME DE OLIVEIRA, op. cit., p. 46. (5) Note-se que, no panorama internacional, já se havia afirmado que a consideração fundamental a que se devia atender ao promulgar-se leis deveria ser o interesse superior da criança. Assim o afirmava, embora sem carácter vinculativo, o Princípio 2.º da Declaração sobre os Direitos da Criança das Nações Unidas, de 20 de novembro de 1959. (2) (3)

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sofreu várias alterações legislativas — com os Decreto-lei n.º 496/77, de 25 de novembro, n.º 185/93, de 22 de maio, n.º 120/98, de 8 de maio, e, finalmente, a Lei n.º 31/2003, de 22 de agosto, que plasmou expressamente o princípio do superior interesse da criança como fim último do instituto e critério-guia de decisão. Estas sucessivas reformas alteraram os requisitos respeitantes aos adotantes e aos adoptandos, os procedimentos, e sobretudo o espírito do instituto, que foi sendo paulatinamente mais centrado no interesse superior da criança. Denota-se ainda, ao longo desta evolução, uma tendência no sentido de se flexibilizarem os requisitos da capacidade para adotar, com a redução paulatina de limites etários ou de mínimo de convivência conjugal, bem como com a previsão da possibilidade de adoção singular (6). No que toca à adoção de filhos de cônjuge, a lei tem vindo, ao longo do tempo, a prever requisitos mais flexíveis para este tipo de adoção do que para a adoção conjunta, «ex nihilo», de criança que não possua vínculo de parentalidade com nenhum dos candidatos. Esse é o caso, desde logo, dos limites etários máximos para se adotar que, desde a reforma legislativa de 1993, foram eliminados para a adoção de filho de cônjuge (artigo 1979.º, n.º 5 do CC). Entretanto, a noção jurídica de família do sistema jurídico português evoluiu rapidamente. Em 1999, foi adotada a lei que veio garantir o reconhecimento de efeitos jurídicos às uniões de facto com duração superior a dois anos (Lei n.º 135/99, de 28 de agosto). Essa lei veio reconhecer às pessoas de sexo diferente que vivessem em união de facto, o direito de adotarem em condições análogas às das pessoas unidas pelo casamento. Mais tarde, a Lei n.º 7/2001 veio tutelar e reconhecer efeitos jurídicos também às uniões de facto de pessoas do mesmo sexo. No entanto, o direito de adoção permaneceu reservado apenas para os unidos de facto de sexo diferente (artigo 7.º). Em 2010, foi aprovada a Lei n.º 9/2010, de 31 de maio, que veio permitir o casamento civil entre pessoas do mesmo sexo. Esta Lei contém uma referência expressa à capacidade para adotar, referindo, no n.º 1 do artigo 3.º, que as «alterações introduzidas pela presente lei não implicam a admissibilidade legal da adoção, em qualquer das suas modalidades, por pessoas casadas com cônjuges do mesmo sexo». Reforçando esta ideia, o n.º 2 da mesma norma sublinha que «nenhuma disposição legal em matéria de adoção pode ser interpretada em sentido contrário ao disposto no número anterior». Esta lei veio, assim, prever a possibilidade de pessoas do mesmo sexo poderem contrair casamento, tal como definido na lei civil, e que por isso, produz todos os efeitos reconhecidos pela lei civil a esse instituto. À exceção de um único: a possibilidade de adoção — seja ela adoção

Essa possibilidade foi inserida com a reforma legislativa de 1977, que veio permitir a adoção singular por pessoa com mais de trinta e cinco anos de idade. (6)

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conjunta, seja ainda adoção do filho do cônjuge. A lei que veio prever o casamento de pessoas do mesmo sexo consagrou, assim, a mesma solução legal que a prevista para as uniões de facto entre pessoas do mesmo sexo. Assim, a flexibilização dos requisitos referentes à capacidade para adotar, de que foi testemunha a evolução legislativa do instituto da adoção, «não foi porém desenvolvida pelo legislador ao ponto de acompanhar a proteção jurídica que foi sendo concedida às uniões de pessoas do mesmo sexo — seja uma união de facto ou uma união conjugal, neste último caso desde 2010» (Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 176/2014, de 19/02/2014 (7)). 1.3. Disciplina legal em vigor A possibilidade de adoção de filho do cônjuge é independente do meio pelo qual o «progenitor originário» adquiriu a parentalidade — ele pode ser progenitor biológico ou, por seu turno, ter também adotado a criança. Em qualquer dos casos, e face aos efeitos da adoção plena, trata-se de um filho, pelo que o cônjuge do progenitor pode ter acesso à possibilidade de o adotar. Tem-se designado esta forma de adoção como «coadoção». No entanto, e como foi já referido pelo Tribunal Constitucional, «a definição de coadoção não resulta da lei, até porque se exclui a possibilidade de em relação ao mesmo adotado coexistirem duas relações de paternidade ou maternidade adotiva (artigo 1975.º)» (Acórdão n.º 176/14). De facto, o termo coadoção parece remeter para a ideia de uma adoção que vigora de forma simultânea com mais de uma relação de paternidade ou maternidade. Essa é, porém, uma possibilidade que não é reconhecida na lei portuguesa, já que o cônjuge apenas pode adotar filho do outro membro do casal se a criança não tiver, à data, uma relação de parentalidade estabelecida com o outro progenitor. Outros países europeus reconhecem a possibilidade de adoção do filho do cônjuge mesmo nos casos em que uma relação de filiação com o outro progenitor está estabelecida e este se encontra vivo. Essa é a solução da Áustria, por exemplo. Trata-se de uma solução de adoção simultânea e co-existente com outra relação de filiação, em que a criança pode, assim, ter três ou mesmo quatro pais: dois biológicos e dois adotivos. É uma forma de se reconhecer efeitos jurídicos às relações entretecidas entre a criança e madrasta ou padrasto, mesmo quando o outro progenitor é ainda vivo. Não é essa, porém a solução da lei portuguesa, que apenas permite semelhante adoção nos casos em que a criança apenas possui um vínculo de parentalidade com um progenitor, por morte ou desconhecimento do outro.

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Publicado no Diário da República, I.ª Série, n.º 44, de 04/03/2014, pp. 1701 e ss. Coimbra Editora ®

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Como se viu, este tipo de adoção é permitido à pessoa que seja unida, por casamento ou por união de facto, com pessoa de sexo diferente. Aos casais do mesmo sexo é vedada quer a adoção conjunta, quer ainda a adoção de filho do cônjuge ou do unido de facto. Foram já várias as iniciativas legislativas no sentido de se consagrar essa possibilidade (8). Nos últimos tempos, o debate no seio na sociedade civil portuguesa ganhou novo fôlego com a discussão feita em torno de um projeto de lei do Partido Socialista (9), sobre a qual incidiu uma proposta de referendo sobre o assunto, não tida como constitucionalmente admissível por parte do Tribunal Constitucional (10). O projeto de lei foi depois chumbado no Parlamento em março de 2014, pelo que se mantém a impossibilidade legal de adoção de filho de cônjuge ou unido de facto do mesmo sexo. Assim, importa refletir sobre a solução atualmente em vigor, em especial no que toca à proteção constitucional do instituto da adoção, tendo também em conta os instrumentos internacionais de proteção dos direitos humanos. Mas comecemos por nos debruçar sobre os regimes legais em vigor em outros países europeus. 2. SOLUÇÕES LEGAIS EM VIGOR NOUTRAS ORDENS JURÍDICAS EUROPEIAS A adoção por casais de pessoas do mesmo sexo — seja «adoção conjunta» seja adoção do filho do cônjuge ou unido de facto — é hoje permitida em vários países da Europa. A Holanda foi o primeiro país a prever a adoção conjunta por casais de pessoas do mesmo sexo, ou de filho de cônjuge ou unido de facto do mesmo sexo, desde que estes vivam em conjunto há pelo menos três anos. Essa possibilidade foi introduzida pela Lei de 21 de dezembro de 2000, que entrou em vigor em 1 de abril de 2001, embora apenas abrangesse crianças de nacionalidade holandesa. Em 2005, essa possibilidade foi alargada de forma a poder abranger também crianças estrangeiras. Por seu turno, na Suécia, a Lei de 6 de junho de 2002 veio permitir quer a adoção conjunta, quer a adoção do filho do côjuge por parte de pessoas do mesmo sexo casadas. Em Espanha, a Lei 13/2005, veio permitir o

(8) Assim, o Projeto de Lei n.º 46/VIII de 13/12/1999, o Projeto de Lei n.º 275/IX, de 23/04/2003, o Projeto n.º 126/XII, de 22 de dezembro de 2011, todos apresentados pelo Bloco de Esquerda. (9) Projeto de Lei 278/XII, apresentado em 25/07/2012. (10) Acórdão n.º 176/2014, cit.

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casamento entre pessoas do mesmo sexo, que produziria todos os efeitos do casamento — incluindo, também, a possibilidade de adoção. Já na Bélgica a adoção por casais de pessoas do mesmo sexo foi permitida três anos após a institucionalização do casamento entre pessoas do mesmo sexo, através da Lei 21 de abril de 2006. Na Noruega, o Parlamento aprovou a 11 de junho de 2008 uma lei que prevê o casamento entre pessoas do mesmo sexo, pressupondo, tal como a lei espanhola, a total produção dos efeitos do casamento, incluindo a possibilidade de adoção. No Reino Unido é possível a adoção conjunta e co-adoção homoparental, mas apenas em certas jurisdições — na Inglaterra e País de Gales (desde 30 de dezembro de 2005), e na Escócia (desde 28 de setembro de 2009). Por seu turno, muito recentemente, o Parlamento francês aprovou em 12 de fevereiro de 2013 o casamento e a adoção por casais do mesmo sexo. Alguns dos países da Europa que não preveem a figura do casamento entre pessoas do mesmo sexo, mas concedem proteção jurídica às uniões civis de pessoas do mesmo sexo, prevendo a possibilidade de adoção de filho do parceiro. Assim acontece na Dinamarca, desde 1999, na Alemanha, desde 2005, e na Islândia, desde 2006. Assim, são já vários os países da Europa que consagram a possibilidade de adoção de filho de cônjuge ou unido de facto do mesmo sexo. 3. ENQUADRAMENTO CONSTITUCIONAL DO INSTITUTO DA ADOÇÃO A não previsão, por parte da nossa lei, da possibilidade de adoção de filho de cônjuge ou unido de facto do mesmo sexo tem sido muitas vezes encarada através de uma suposta violação do princípio da igualdade, na vertente da proibição da discriminação, em função da orientação sexual (artigo 13.º, n.º 2, in fine da Constituição da República Portuguesa — CRP). Por outro lado, essa questão tem sido muitas vezes tratada em conjunto com a possibilidade de adoção conjunta por parte de casais do mesmo sexo. Em ambas estaria em causa, apenas e tão só, a violação do princípio da igualdade, por comparação à possibilidade que os casais de sexo diferente têm de aceder à adoção. Trata-se, na nossa opinião, de uma forma equívoca de ver o problema. A busca de respostas constitucionais à questão da adoção de filho de cônjuge ou unido de facto do mesmo sexo passa pela convocação de vários preceitos da nossa Constituição, ou de princípios nela ínsitos. A questão deve ser enquadrada no direito a constituir família, na garantia institucional da adoção, na garantia do superior interesse da criança e, também, no princípio da proibição da discriminação em função da orientação sexual. Importa, por fim, à luz do artigo 16.º, n.º 1 da Constituição, atentar de que forma têm os instrumentos internacionais de Coimbra Editora ®

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proteção dos Direitos Humanos contribuído para desenvolver os direitos fundamentais aqui convocáveis. 3.1. O Direito a constituir família a) «Direito à adoção» à luz do artigo 36.º da CRP O artigo 36.º, n.º 1 da Constituição consagra o direito a constituir família e de contrair casamento, em condições de plena igualdade. Ultrapassada a conceção de CASTRO MENDES, no sentido de que os dois direitos se reconduziam a um só (11), é hoje aceite de forma pacífica que esta norma consagra dois direitos distintos, demonstrando-se que, ao lado da família conjugal, fundada no casamento, visou-se ainda proteger constitucionalmente outras relações familiares (12). O Tribunal Constitucional deu acolhimento a essa ideia, em especial no Acórdão n.º 690/98, de 15/12/98 (13), onde afirmou que «a distinção constitucional entre família, por um lado, e matrimónio por outro, referida no artigo 37.º, n.º 1, e ainda entre aquela e os conceitos de paternidade e maternidade, operada nos artigos 67.º e 68.º, em nada dificulta, antes parece espelhar um entendimento e reconhecimento da família como uma realidade mais ampla do que aquela que resulta do casamento, que pode ser denominada de família conjugal». Assim, o Tribunal Constitucional tem admitido o reconhecimento constitucional expresso de «duas realidades complementares: por um lado, o conjunto nuclear formado pelos cônjuges e descendentes, e, por outro, o conjunto resultante das ligações familiares dos próprios cônjuges — e na primeira linha dos quais se inserirão os ascendentes destes». Este entendimento foi seguido nos acórdãos relativos à proteção das uniões de facto, considerando o Tribunal Constitucional que o direito a escolher viver em união de facto tem assento na Constituição (Acórdão n.º 275/2002, de 19/06/02, e o Acórdão n.º 651/2009, de 15/12/09). Para JORGE MIRANDA e RUI MEDEIROS, com a proteção constitucional da família com este conceito mais alargado visa-se em especial dar proteção à família constituída por pais e filhos, o que inclui «um direito fundamental à constituição de uma relação jurídica de adoção» (14). No entanto, não tem sido este o entendimento do Tribunal Constitucional, que tem sido relutante a afirmar que o direito

«Família e Casamento», in Estudos sobre a Constituição, vol. I, 1977, p. 372. FRANCISCO PEREIRA COELHO e GUILHERME DE OLIVEIRA, op. cit., p. 163. (13) Todos os Acórdãos do Tribunal Constitucional citados estão disponíveis para consulta no site http://www.tribunalconstitucional.pt/Tribunal Constitucional/acordaos/. (14) Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, Coimbra Editora, 2005, p. 400. (11)

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do adotando a constituir família deriva do artigo 36.º, n.º 1. Tem-se dito que a adoção recebe acolhimento autónomo no n.º 7 do artigo 36.º, que protege o instituto da adoção. De facto, por duas vezes o Tribunal Constitucional pronunciou-se sobre os requisitos para a adoção, fazendo-o sempre à luz do n.º 7 do artigo 36.º, e não do n.º 1 dessa norma (Acórdão n.º 320/00, de 21/06/2000 e Acórdão n.º 551/03, de 12/11/2003). Em especial, no Acórdão n.º 551/03, o Tribunal Constitucional, apreciando a norma do artigo 1980.º do Código Civil, na interpretação segundo a qual o requisito da menoridade deve existir no momento da propositura da ação de adoção, afirmou que o direito do adotando a constituir família não derivava do artigo 36.º, n.º 1, da Constituição. Aí escreveu-se: «não pode, porém, concordar-se com a conclusão de que a exigência legal em questão importa uma restrição a esse direito de constituir família. Antes de mais, pode duvidar-se de que, no âmbito de proteção deste direito, previsto no n.º 1 do artigo 36.º da Constituição, se enquadre também a constituição do vínculo familiar resultante da adoção». Sublinha-se: «a adoção foi prevista autonomamente, pelo legislador constitucional, no n.º 7 do artigo 36.º (…). Neste artigo 36.º, n.º 7, da Constituição impõe autonomamente a disciplina legislativa da adoção, e remete a regulamentação e proteção deste instituto para os “termos da lei”, parecendo, pois, com esta “garantia institucional”, pressupor que não estará em causa propriamente o direito à constituição de família nos termos do n.º 1, mas, antes, o estabelecimento de um vínculo semelhante ao da filiação. A constituição do vínculo da adoção inclui-se, pois (…) na hipótese do n.º 7 do artigo 36.º da Constituição, e não na do seu n.º 1». CARLA AMADO GOMES considera que esta jurisprudência do Tribunal Constitucional «não deve identificar-se com um menor intuito garantístico, mas antes como uma intenção de ponderação de interesses distinta da que está em causa na constituição de família, quer através do casamento ou da união de facto, entre duas pessoas adultas que manifestam uma vontade presumivelmente esclarecida da intenção de vivência comum» (15). Já JORGE MIRANDA e RUI MEDEIROS criticam esta jurisprudência, referindo o facto de a adoção ser fonte de relação familiar, e que a consagração do direito de constituir família em termos que incluam a família adotiva não é minimamente contrariada pela expressa autonomização de um preceito referente especificamente à adoção (16). Consideram, aliás que «o Estado deve, no interesse dos filhos, e do seu direito a constituírem família, favorecer a integração dos filhos numa nova família através concretamente do instituto

«Filiação, Adoção e Proteção de Menores — Quadro Constitucional e Notas de Jurisprudência», Revista de Ciências Eempresariais e Jurídicas, n.º 13, 2008 — separata, p. 43 (16) Cfr. op. cit., p. 424. (15)

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da adoção». Também nós estamos, neste ponto, de acordo com o propugnado por estes autores. Neste sentido, não podemos deixar de sublinhar que o n.º 1 do artigo 36.º consagra um direito fundamental, e, por isso, uma posição subjetiva, enquanto o n.º 7 do mesmo preceito consagra uma garantia institucional, i.e., como se verá mais à frente, uma garantia objetiva da manutenção e configuração essencial do próprio instituto da adoção. A jurisprudência mais recente do Tribunal Constitucional aponta precisamente no sentido de que «é possível conceber os direitos fundamentais como apresentando um “lado” jurídico individual, enquanto garantem aos seus titulares um direito subjetivo público, e um “lado” institucional objetivo, enquanto garantias constitucionais de âmbitos de vida juridicamente ordenados e conformados» (nesse sentido, o Acórdão n.º 121/2010, de 08/04/2010, que se pronunciou sobre o casamento civil entre pessoas do mesmo sexo). Por seu turno, o recente Acórdão n.º 176/14, que analisou da constitucionalidade e legalidade da proposta de referendo sobre a adoção e «coadoção» por parte de casais do mesmo sexo, referiu que «apesar da adoção constituir um “vínculo semelhante ao da filiação”, pode questionar-se também se não estará abrangida no âmbito de proteção do n.º 1 do artigo 36.º da CRP». Citando a doutrina que defende a integração da «adoção» no n.º 1 do artigo 36.º, referente ao «direito a constituir família», o Tribunal Constitucional deixou assim a porta aberta para a construção de um direito fundamental à adoção. De qualquer forma, esse direito terá de ser densificado e compreendido por referência aos demais preceitos constitucionais, pelo que deve ser entendido como um direito fortemente condicionado aos fins últimos que o instituto da adoção visa prosseguir. Assim, o seu conteúdo deverá ser preenchido primacialmente como um «direito da criança a ser adotada», e só secundariamente como um «direito a adotar». Nesta última vertente, como direito de potenciais adotantes, deverá, quando muito, ser visto como um direito de aceder à possibilidade de adotar, em geral, não estando o legislador impedido de estabelecer requisitos que condicionem tal acesso, desde que respeitados os demais princípios constitucionais convocáveis. b) «Direito à adoção» nos instrumentos internacionais de proteção dos direitos humanos Neste ponto, e por força do artigo 16.º, n.º 1 da Constituição, importa atentar na proteção conferida pelos instrumentos internacionais de proteção dos direitos humanos. O artigo 8.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (CEDH) garante a qualquer pessoa o direito ao respeito pela vida familiar. O Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH) não tem definido o que constitui a «vida familiar» para esses efeitos, adotando «o critério da efetividade dos laços Coimbra Editora ®

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interpessoais para aferir a existência de “vida familiar”» (17). De facto, o TEDH tem entendido que, para efeitos de aplicação do citado artigo 8.º, a noção de família poderá abranger não apenas os laços familiares de jure, mas também os laços familiares de facto (18). Para o efeito, tem em consideração vários fatores, como a existência de coabitação ou de dependência financeira. No que respeita, em especial, às chamadas famílias recombinadas, o TEDH pronunciou-se a favor da existência de vida familiar entre a criança e o homem que, não obstante não ser o seu pai natural, coabitava com a mãe do menor (Acórdão K. e T. vs. Finlândia, de 12 de julho de 2001 (19)). O TEDH afirmou ainda que a noção de vida familiar integra as relações entre adotante e adotado (assim, o Acórdão Pini, Bertani e outros vs. Roménia, de 22 de junho de 2004). Particularmente interessante é ainda o Acórdão Söderbäck vs. Suécia, de 28 de outubro de 1998, em que o TEDH, tendo em consideração a relação estabelecida entre o pai adotante e o adotado — filho da mulher —, de quem o primeiro cuidava, como pai, desde tenra idade, prevalecia sobre os laços de filiação existentes entre a criança e o pai biológico. Particularmente relevante neste caso foi o facto de se ter dado relevância à vida familiar efetivamente existente entre a criança e o pai adotante mesmo antes de se formalizarem os laços de adoção (20). No entanto, o TEDH, e em sentido semelhante ao da jurisprudência do Tribunal Constitucional, considera que o direito à vida familiar, previsto no artigo 8.º da CEDH, pressupõe a existência de uma família, não protegendo o simples desejo de a formar, e por isso, não protege, a priori, «um direito a adotar». Isso não o impediu, como se verá mais à frente, através da proteção de outros direitos garantidos pela Convenção, de conceder uma proteção indireta a tal pretensão. Também o artigo 9.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia prevê, como dois direitos autónomos, o direito a casar e o direito a constituir família. As anotações relativas à Carta, elaboradas pelo Praesidium da Convenção que a redigiu (21), esclarecem que o artigo 9.º terá pretendido abranger os casos em que as legislações reconhecem outras formas de constituir

(17) SUSANA ALMEIDA, O Respeito pela Vida (Privada e) Familiar na Jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem: a Tutela das Novas Formas de Família, Coimbra Editora, 2008, pág. 68 e s. (18) SUSANA ALMEIDA, «A Parentalidade Sócio-Afetiva e a ponderação entre o “critério sócio-afetivo” e o “critério biológico” no Tribunal de Estrasburgo», in Parentalidade sócio-afetiva: Portugal e Brasil, Susana Almeida, Zamira de Assis, Coleção SPEED, Almedina, Coimbra, 2012, p. 12. (19) Todos os Acórdãos do TEDH citados podem ser consultados no site http://hudoc.echr. coe.int/. (20) Para mais detalhes, v. SUSANA ALMEIDA, op. ult. cit., p. 80. (21) Publicadas no Jornal Oficial da União Europeia de 14 de dezembro de 2007.

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família além do casamento. Para CARLOS PAMPLONA CORTE REAL e JOSÉ SILVA PEREIRA, estará abrangido no conceito de família uma relação com «virtual ou efetiva perdurabilidade, que sublinha o carácter presumivelmente afetivo que lhe é inerente — ainda que o facto gerador seja vário, podendo ir, v. g., de uma relação biológica a uma sentença judicial constituinte de um vínculo adotivo» (22). No entanto, o comentário do Praesidium afirmou que o direito a adotar uma criança não está, em si, contido no artigo 9.º da Carta, admitindo, no entanto, que o direito a constituir família possa ser interpretado como incluindo a obrigação para um Estado de admitir procedimentos adotivos por parte de casais que não podem ter filhos. 3.2. A garantia institucional da adoção A partir de 1982, a Constituição passou a fazer referência expressa à adoção no n.º 7 do artigo 36.º, que dispunha que «a adoção é regulada e protegida nos termos da lei». A Revisão de 1997 alterou a redação deste número que passou a dispor que a adoção «é regulada e protegida nos termos da lei, a qual deve estabelecer formas céleres para a respetiva tramitação». A Constituição impõe assim ao legislador a obrigação de prever o instituto da adoção. Trata-se de uma garantia institucional, o que significa que o legislador ordinário não pode suprimir o instituto do ordenamento jurídico, nem descaracterizá-lo no que tange aos seus elementos essenciais, i.e., enquanto instituto jurídico destinado a criar um vínculo legal semelhante ao da filiação biológica. Nos Acórdãos n.os 359/2009, de 09/07/2009 e n.º 121/2010, de 08/04/2010, o Tribunal Constitucional debruçou-se detalhadamente sobre se o casamento entre pessoas do mesmo sexo configurava uma descaracterização do instituto do casamento, tal como o mesmo se encontrava protegido constitucionalmente. O Tribunal Constitucional entendeu, em ambos os arestos, que o conceito constitucionalmente protegido de casamento é um conceito aberto, que admite não só diversas conformações legislativas, mas também diversas conceções políticas, éticas ou sociais, sendo confiada ao legislador ordinário a tarefa de, em cada momento histórico, apreender e verter no ordenamento jurídico aquilo que nesse momento corresponda às conceções dominantes. Ao legislador apenas é vedado desvirtuar a garantia institucional do casamento. Ora, considerou-se que, se o estabelecimento de uma comunhão de vida entre duas pessoas é elemento estruturante do conceito de

«Direito de contrair casamento e de constituir família», in AA.VV., Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia Comentada, Alessandra Silveira, Mariana Canotilho (coord.), Almedina, 2013, p. 132. (22)

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casamento, já o mesmo não se poderia dizer da diversidade sexual das pessoas que compõem o mesmo. Nesse sentido, são ilustrativas as palavras de JOÃO CURA MARIANO: «na verdade, a comunhão de vida entre duas pessoas, caracterizada pela partilha e entreajuda, num percurso de vida comum juridicamente disciplinado, com carácter tendencialmente perpétuo, também está naturalmente ao alcance de duas pessoas do mesmo sexo que assim queiram vincular-se, uma para com a outra e perante o Estado, e serem como tal reconhecidas pela comunidade» (23). No que toca à adoção, é também vedado ao legislador descaracterizar o instituto. No entanto, tal como se afirmou no Acórdão n.º 121/2010, não se pode, a partir de um pensamento institucionalístico, inverter-se o sentido da garantia, impondo-se a conservação do instituto, tal como ele existe, contra ações do legislador que não colidam com a determinação do núcleo essencial do mesmo. Assim, ao legislador é possível alterar o instituto da adoção, nomeadamente para acompanhar determinadas evoluções sociais, desde que os fins ou bens jurídicos individuais e comunitários a que o mesmo se encontra constitucionalmente adstrito não sofram compressão no seu núcleo essencial de realização. Ora, neste ponto incumbe referir que o «núcleo essencial» do instituto da adoção será constituído pelo estabelecimento de vínculos semelhantes ao da filiação, no respeito pela prossecução do superior interesse da criança, que, como tal, deve integrar o esse mesmo núcleo. Nas áreas que extravasem esse núcleo, é possível conformar o instituto, nomeadamente estabelecendo requisitos no que toca à capacidade para adotar. JORGE MIRANDA e RUI MEDEIROS referem que «o legislador ordinário dispõe de uma ampla margem de liberdade neste domínio, podendo, designadamente (…) excluir a adoção por uniões de facto do mesmo sexo» (24). Essa liberdade de conformação tem, porém, de respeitar os demais princípios constitucionais. Ora, neste contexto há que começar por referir que, no nosso entender, a adoção de filho de cônjuge ou de unido de facto do mesmo sexo não descaracteriza o «núcleo essencial» do instituto da adoção, garantido pelo n.º 7 do artigo 36.º da CRP. De facto, o intuito de se estabelecer uma relação jurídica que produza vínculos semelhantes ao da filiação é independente da orientação sexual dos adotantes. Aliás, uma relação semelhante à filiação poderá até já existir, nesses mesmos casos. Resta saber se ele é ou não conforme ao interesse superior da criança adoptanda.

«O Direito da Família na Jurisprudência do Tribunal Constitucional Português», in Julgar, Set-Dez. 2013, p. 36. (24) Op. cit., p. 423. (23)

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3.3. O superior interesse da criança a) Sentido e consagração do princípio O superior interesse da criança foi definido pelo Acórdão n.º 176/14 do Tribunal Constitucional com «um imperativo que exige que se conceda ao adotando uma adequada inserção familiar que lhe proporcione um desenvolvimento físico, intelectual e moral, acrescido de uma razoável expectativa de felicidade pessoal». O superior interesse da criança não recebe, enquanto tal, consagração constitucional expressa. No entanto, há que ter presente o princípio da proteção da infância, previsto no artigo 69.º da CRP, que atribui às crianças um direito à proteção da sociedade e do Estado, com vista ao seu desenvolvimento integral. Por seu turno, o n.º 2 do mesmo artigo estipula que é dever do Estado proteger as crianças, em especial as órfãs, abandonadas ou por qualquer forma privadas de um ambiente familiar normal. A leitura da garantia institucional da adoção à luz do Direito Internacional impõe a consideração de que a adoção só pode ter como fim o superior interesse da criança. É essa a exigência da Convenção sobre os Direitos da Criança, que determina que todas as medidas legislativas, judiciais e administrativas devem ter em conta, como preocupação primacial, o interesse superior da criança. O artigo 21.º da Convenção impõe especificamente que esse interesse deve ser tido pelos Estados-parte como consideração primordial na efetivação, regulação e execução do instituto da adoção. Também nesta ordem de ideias, o TEDH afirmou que o intuito do instituto da adoção é o de «dar uma família a uma criança e não uma criança a uma família» (Acórdão Fretté vs. França, de 26/02/2002). Por seu turno, também o artigo 24.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia estabelece, no n.º 1, que as crianças têm direito à proteção e aos cuidados necessários ao seu bem-estar, e, no n.º 2, que «todos os atos relativos às crianças, quer praticados por entidades públicas, quer por instituições privadas, terão primacialmente em conta o interesse superior da criança». A Carta adotou assim a «perspetiva dos direitos da criança centrada na própria criança ao erigir como critério orientador fundamental o melhor interesse da criança relativamente a todas as decisões e atos que lhe digam respeito» (25). Também para este instrumento, pois, o superior

ROSA CÂNDIDO MARTINS, «Direitos das Crianças», in AA.VV., Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia Comentada, Alessandra Silveira, Mariana Canotilho (coord.), Almedina, 2013, p. 305. (25)

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interesse da criança é a consideração primordial relativamente a todas as decisões e ações, juridicamente relevantes ou apenas factuais, levadas a cabo por entidades públicas, instituições privadas, tribunais, órgãos legislativos ou autoridades administrativas. Por fim, Portugal assinou, embora ainda não tenha ratificado, a Convenção Europeia em matéria de Adoção de Crianças revista, e aberta para assinaturas em 27 de novembro de 2008. Nos termos do artigo 4.º da referida Convenção, a autoridade competente apenas deve autorizar a adoção se a mesma se destinar ao melhor interesse da criança, devendo dar-se especial relevância à existência de um lar estável e harmonioso. Em obediência a estes princípios, o legislador configurou o instituto da adoção como encontrando a sua justificação última na prossecução do superior interesse da criança. Assim, nos termos do artigo n.º 1974 do CC: «A adoção visa realizar o superior interesse da criança e será decretada quando apresente reais vantagens para o adotando (…)». A consagração deste princípio na lei, desde 2003, «tem um importante valor simbólico suscetível de fornecer orientações concretas ao intérprete e de o vincular uma conceção da adoção como instituto centrado nos interesses da criança e no seu direito a ter uma família» (26). O superior interesse da criança constitui, por força da leitura dos preceitos constitucionais à luz dos instrumentos internacionais de proteção dos direitos humanos, uma exigência integradora do núcleo da garantia institucional da adoção. É o fim da adoção, o seu justificativo último. Não é uma simples opção legislativa, pelo que qualquer modificação no regime da adoção terá de deixar incólume este elemento. Assim sendo, apenas se poderá permitir uma alteração nos requisitos da capacidade para adotar se não se colocar em causa o superior interesse da criança adoptanda. b) Adoção por casais do mesmo sexo e superior interesse da criança Tem-se reconhecido não ser tarefa fácil determinar o conteúdo do melhor interesse da criança. Essa é uma tarefa que, em princípio, apenas é possível levar a cabo em concreto. No entanto, e apesar da proliferação de estudos sobre o assunto, parece ser alheia à prossecução desse interesse a simples característica da orientação sexual dos candidatos à adoção. De facto, são vários os instrumentos internacionais que, defendendo que a adoção deve ter como fim último o melhor interesse da criança, se referem à possibilidade de adoção por casais do mesmo sexo. Assim, a Convenção Europeia em matéria de Adoção de Crianças revista

MARIA CLARA SOTTOMAYOR, «A Nova Lei da Adoção», in Direito e Justiça, vol. VIII, 2004, Tomo II, p. 242. (26)

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prescreve no artigo 7.º que os Estados são livres para determinar se devem estender o âmbito de aplicação da Convenção aos casais do mesmo sexo, casados ou unidos de facto. Por seu turno, a Recomendação CM/Rec (2005) do Conselho de Ministros sobre medidas para combate à discriminação fundada na orientação sexual ou identidade de género, adotada em 31 de março de 2010, insta os Estados-membros a ter em conta que o melhor interesse da criança deve ser a consideração primária no que toca às decisões relativas à adoção, e que os Estados que preveem a possibilidade de adoção singular devem assegurar que a lei é aplicada sem discriminação baseada na orientação sexual ou na identidade de género. Como exemplo, a legislação holandesa, que foi a primeira a prever a adoção por casais do mesmo sexo, estipula como único parâmetro de referência para a concessão da adoção o interesse proeminente do menor adotando. Vários os estudos têm defendido que os argumentos que têm sido tradicionalmente avançados no sentido de que a adoção por casais de mesmo sexo é, a priori, contrária ao superior interesse da criança, não se demonstram já convincentes, face às rápidas evoluções que as estruturas familiares têm sofrido. Nesse contexto, tem-se defendido que carece de fundamento a ideia de que a criança adotada por casal do mesmo sexo pode ser estigmatizada. Refere-se, nesse seguimento que atualmente, e no meio escolar, as crianças são confrontadas com vários modelos familiares — famílias ditas «tradicionais», filhos de famílias monoparentais, divorciadas, ou mesmo «recombinadas», pelo que não existe já o paradigma da família-padrão composta por um núcleo rígido de pai e mãe biológicos, que leve a tratar com estranheza todos os que não se insiram nesse modelo (27). Dessa evolução, no sentido da pluralidade e diversidade de formas de família e conteúdos das relações familiares, dá-nos também conta JOÃO CURA MARIANO: «o aumento exponencial de divórcios trouxe consigo um número simultaneamente crescente de famílias monoparentais e de crianças que passaram a viver com os novos cônjuges ou companheiros dos seus pais. (…) A possibilidade de uma criança nascer e crescer no seio de famílias sem ter laços biológicos com ambos os pais ou, pelo menos, com um deles, aumentou consideravelmente. (…) O mundo global passou a favorecer o aumento das relações familiares multiculturais» e, finalmente, «assumiram-se casais do mesmo sexo» (28). Também o TEDH tem afirmado, no contexto das suas conceções da CEDH como «um instrumento vivo, que deve ser apreciado à luz das condições atuais», a necessidade de se ter em conta os desenvolvimentos e mudanças da sociedade, nomeadamente o facto de,

ALESSANDRO TAURINO, «Famiglie e genitorialità omosessuali. Quali costrutti contro il pregiudizio?», in Questione Giustizia, n.º 4, 2013, p. 116. (28) Op. cit., p. 28. (27)

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atualmente, não ser apenas um modelo de família que se encontra em vigor. Entre nós, é importante relembrar as alterações legislativas ocorridas em 2001, com o reconhecimento jurídico da união de facto de pessoas do mesmo sexo, e em 2010, com a institucionalização do casamento civil entre pessoas do mesmo sexo. Atendendo ao tempo entretanto decorrido, generalizou-se a aceitação desta forma de uniões. Por outro lado, e ainda como argumento desmistificador da «estigmatização» dos filhos de pessoas do mesmo sexo, podemos ainda referir a opinião de ISABELLE POIROT-MAZÈRES, no sentido de que todas as crianças pertencentes a minorias podem correr o risco de sofrer essa distinção, seja ela racial, étnica, de nacionalidade ou outra (29). Outros estudos têm ainda afastado outro argumento que se tem invocado para defender os malefícios, para os interesses da criança, provenientes da adoção por casais do mesmo sexo. Trata-se da ideia de que esses interesses reclamam que a criança seja educada tendo uma figura masculina e uma figura feminina de referência. Desmistifica-se este argumento referindo-se que, em várias realidades familiares atuais, uma das figuras não está presente. Esse é o caso das famílias monoparentais. Mas é ainda o caso de uma realidade sui generis que nossa lei possibilita — a da existência de núcleos familiares compostos por casais homossexuais e filhos menores. De facto, através da adoção singular ou da coabitação de crianças com um dos progenitores no seio de um casal homossexual, podem ser já várias as crianças que vivem num núcleo familiar desse tipo. Neste ponto, importa sublinhar que o próprio TEDH teve ocasião de analisar o argumento da «necessidade da figura masculina e feminina de referência» e de o rejeitar, no Acórdão E.B. vs. França, de 22/01/2008. O Tribunal fundou-se, precisamente, no desprendimento revelado pelo legislador francês quanto à indispensabilidade de uma complementaridade heterossexista dos papéis parentais, revelada pela admissão, tal como sucede entre nós, da figura da adoção singular. MARTA COSTA, relativiza o argumento em análise por outra via, referindo que «as crianças estão necessariamente inseridas numa sociedade, pelo que se deparam com os exemplos feminino e masculino todos os dias, não se podendo ter a ilusão de que os pais são os únicos agentes de socialização num mundo feito de redes de amigos, famílias alargadas e recompostas, modelos mediáticos, professores e colegas» (30). Ainda neste contexto, ISABELLE POIROT-MAZÈRES acrescenta que o menor adotado nasceu necessariamente de uma união heterossexual, pelo que, inconscientemente se

«De la Gay Pride…au Palais Royal — A propos des refus d’agrément à l’ adoption opposés aux homosexuels», in AJDA, n.º 5, 2002, p. 409. (30) «As Restrições à Capacidade de Adotar à Luz da Lei Fundamental», in AA.VV., Estudos em Homenagem ao Prof. Manuel Henrique Mesquita, Coimbra Editora, 2009, p. 535, p. 584. (29)

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inscreve numa filiação com uma figura masculina e feminina, como milhares de crianças que são criadas por apenas um dos progenitores (31). Rejeitam-se, por fim, os argumentos que podem fazer crer que um casal de pessoas do mesmo sexo terá menos aptidões para cuidar de uma criança. Trata-se de um juízo apriorístico e sem fundamento, e que violaria, desde logo, o princípio da proibição da discriminação em função da orientação sexual. Neste contexto, no caso Salgueiro da Silva Mouta vs. Portugal (32), o TEDH considerou que a homossexualidade não constituía, em si mesma, um indício suficiente para aferir da aptidão para o exercício das responsabilidades inerentes à parentalidade. O TEDH foi ainda mais longe, decidindo ser contrária à CEDH a privação dos direitos familiares de um pai apenas com base na sua orientação sexual e coabitação com um parceiro do mesmo sexo. O TEDH não considerou atendível a justificação dada pelo Tribunal da Relação de Lisboa no sentido de que não se podia sustentar que um ambiente familiar composto por pessoas de diferente sexo era, à partida, o mais são e adequado ao desenvolvimento moral, social e mental de uma criança, sobretudo no quadro do modelo dominante da sociedade portuguesa. Por fim, cabe referir vários estudos científicos, realizados por instituições de psicologia e psiquiatria infantil (33), que revelam que os filhos de casais do mesmo sexo não só não apresentam diferenças, ao longo do seu desenvolvimento, em relação aos filhos de casais de sexos diferentes, nem em termos de identidade, nem em termos de orientação sexual, afirmando pelo contrário que as crianças criadas por homossexuais apresentam o mesmo nível emocional, cognitivo, social e sexual que as crianças criadas por pais heterossexuais. Esses estudos demonstram, enfim, que o desenvolvimento — e, assim, o interesse da criança — não depende da orientação sexual dos pais, mas sim da existência de relações estáveis com adultos empenhados (nas palavras do estudo da Ordem dos Psicólogos Portuguesa, «parece haver convergência na comunidade científica sobre o facto de a configuração familiar (seja ela homoparental ou heteroparental) não ser um aspeto deter-

Op. cit., p. 408. V. ainda, no mesmo sentido, GEOFFREY WILLEMS, op. cit., p. 84. Acórdão de 21/12/1999. (33) Vejam-se os estudos da Ordem dos Psicólogos Portugueses, sobre «Relações Familiares e Desenvolvimento Infantil», de 2013, o parecer da Sociedade Portuguesa de Sexologia Clínica sobre a proposta de lei da co-adoção, de 2013, o parecer da Liga Americana da Proteção à Criança, disponível em https://www.cwla.org/, o parecer da Associação Médica Americana, disponível in http://www.ama-assn.org/ama, o parecer da Academia Americana de Pediatria, de 2010, disponível in http://www.aap.org/, o parecer da Associação Americana de Psiquiatria, de 2010, disponível in http://www.psych.org/, e o parecer da Associação Americana de Psicologia, de 2010, disponível in http://www.apa.org/. (31)

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minante para o desenvolvimento das crianças, mas sim a dinâmica relacional familiar. O fundamental é que o contexto familiar ofereça afeto e comunicação, seja sensível às necessidades da criança, viva de modo estável e impondo normas adequadas, no seio de relações harmoniosas. Se estas funções parentais forem cumpridas, a orientação sexual dos pais, em si mesma, não parece ser a variável mais relevante quando se tem de determinar o modo de construção do desenvolvimento psicológico das crianças» (34)). Esses estudos têm sido citados pela doutrina jurídica europeia para sustentar a defesa do reconhecimento jurídico da adoção por casais do mesmo sexo (35). 4. A PROIBIÇÃO DE DISCRIMINAÇÃO EM FUNÇÃO DA ORIENTAÇÃO SEXUAL O último princípio constitucional a ter em consideração no que toca à análise da adoção de filho do cônjuge ou unido de facto do mesmo sexo é o princípio da igualdade, previsto no n.º 2, in fine do artigo 13.º da CRP e que, desde a Lei Constitucional n.º 1/2004, proíbe as discriminações fundadas na orientação sexual. A «orientação sexual» tem sido definida, pelo Tribunal Constitucional como «a inclinação para a união com uma pessoa do mesmo sexo biológico ou genético» (36). O Tribunal Constitucional tem já vindo a desenvolver alguma jurisprudência sobre a proibição de discriminação baseada na orientação sexual. No que toca às uniões entre pessoas do mesmo sexo, no Acórdão n.º 359/09, de 09/07/2009, o Tribunal Constitucional considerou que a opção por um modelo de casamento baseado numa união estável e exclusiva entre duas pessoas de sexos diferentes cabia na margem de escolha do legislador, não se demonstrando violado o princípio da igualdade pela norma que não permitia o casamento entre pessoas do mesmo sexo. O já referido Acórdão n.º 121/2010, por seu turno, debruçou-se detalhadamente sobre a proteção constitucional contra a discriminação em função da orientação sexual, citando diversas e vastas referências feitas por organismos internacionais (37).

«Relações Familiares e Desenvolvimento Infantil», cit., p. 30. V., em particular, a já citada obra de ALESSANDRO TAURINO, p. 119-120. (36) Acórdão n.º 121/2010. (37) Assim, da Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa, — pioneira na defesa do tratamento jurídico dos homossexuais — a Resolução 756 (1981), de 1 de outubro de 1981, que convidou a Organização Mundial de Saúde a suprimir do seu catálogo de doenças a homossexualidade, e a Recomendação 924 (1981), da mesma data, que recomendou ao Comité de Ministros que, inter alia, exortasse os Estados-membros a assegurar que a guarda, o direito de visita, e o acolhimento em casa das crianças pelos pais não sejam limitadas devido à inclinação homossexual (34) (35)

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Por seu turno, os órgãos de controlo da CEDH têm desenvolvido ampla jurisprudência no sentido de sancionarem a discriminação em função da orientação sexual, que é abrangida pelo princípio da proibição da discriminação previsto no artigo 14.º da CEDH (38). O TEDH tem vindo inclusivamente a afirmar que a diferença de tratamento baseada na orientação sexual tem de ser fundada em razões particularmente fortes para justificar diferenças no que respeita aos direitos incluídos no artigo 8.º da CEDH (E.B. vs. França, cit.). Por outro lado, tem repetido que, no que toca a estabelecer distinções baseadas na orientação sexual, os Estados dispõem de uma margem de apreciação restrita. Especialmente digna de nota é a decisão do já citado acórdão Salgueiro da Silva Mouta vs. Portugal, em que o TEDH considerou que a negação de um tribunal português em conferir a custódia da filha a um pai homossexual, com fundamento nessa condição, violava os direitos à vida privada e familiar, bem como o princípio da igualdade e da não discriminação. No que toca à adoção por casais do mesmo sexo, inicialmente, este Tribunal não considerou que a proibição de adoção em função da orientação sexual violasse a CEDH. No caso Fretté vs. França (39), considerou que existia uma justificação para um tratamento diferenciado, no que toca à capacidade para a adoção, com base na orientação sexual, já que existiam então profundas divergências nas várias legislações europeias, na opinião pública e ainda na comunidade científica quanto às eventuais consequências resultantes da adoção de uma criança por uma pessoa homossexual. Por outro lado, considerou que os Estados dispunham de margem de apreciação nesta matéria, pelo que a diferenciação não violava o princípio da proporcionalidade. Esta posição foi alterada no já citado caso E.B. c. França. O TEDH considerou existir uma violação no exercício do direito de adoção singu-

de um deles, a Resolução do Parlamento Europeu, de 13 de março de 1984, relativa a discriminações sexuais no local de trabalho, e a Resolução sobre o respeito dos direitos humanos na Comunidade Europeia, em que o Parlamento Europeu exprimiu preocupação face a discriminações dirigidas contra pessoas pertencentes a uma minoria sexual. (38) Refiram-se apenas alguns exemplos. Nos casos Dudgeon v. Reino Unido (Acórdão de 22/10/1981), Norris v. Irlanda (Acórdão de 26/10/1988), Modinos v. Chipre (Acórdão de 22/04/1993), e A.D.T. v. Reino Unido (de 31/07/2000) o Tribunal considerou que a penalização de práticas homossexuais livremente consentidas entre adultos violava o direito à vida privada consagrado no artigo 8.º da CEDH e constituía uma violação do princípio da não discriminação previsto no artigo 14.º; nos casos L. e V. v. Áustria e S. e L. v. Áustria (ambos de 09/01/2003), reconheceu-se a falta de justificação objetiva e racional para a manutenção de uma idade superior relativa ao consentimento para atos homossexuais quando comparados a atos heterossexuais, considerando violadoras do artigo 14.º; no caso Karner c. Áustria (de 24/07/2003), o Tribunal sancionou a diferença de tratamento de casais homossexuais em relação ao arrendamento. (39) Acórdão de 26/02/2002. Coimbra Editora ®

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lar, expressamente garantido pela lei francesa, por ter sido negada tal possibilidade a uma candidata à adoção, pelo mero facto de a mesma viver com uma parceira do mesmo sexo. O TEDH considerou que a França havia violado o princípio da proibição da discriminação, previsto no artigo 14.º conjugado com o artigo 8.º da CEDH. No entanto, reiterou as considerações de que o direito à vida familiar, constante do artigo 8.º não protegia um direito a adotar. Esse direito poderia, porém, derivar do direito a estabelecer relações com outras pessoas e, por isso, ser protegido através do «direito à vida privada», previsto no mesmo artigo. No caso Gas e Dubois vs. França (40), o TEDH considerou, como já se referiu, que a comunidade de vida estabelecida entre duas mulheres e o filho biológico de uma delas, concebido por recurso aos métodos de procriação médica assistida constituía “vida familiar” para os efeitos do artigo 8.º da CEDH, tendo em conta a relação estável que se havia formado entre os três com o decurso do tempo. No entanto, de acordo com a lei francesa, apenas a mãe biológica podia ser considerada “mãe”, não sendo permitido à companheira desta adotar a criança. Mas, note-se, a lei francesa apenas permitia, em geral, a adoção do filho de cônjuge, e não do filho de unido de facto. Por isso, o TEDH considerou que não existia discriminação em função da orientação sexual, já que os unidos de facto de sexo diferente também não podiam, de acordo com a lei interna, ter acesso a este tipo de adoção. Acrescentou ainda que os Estados-parte não eram obrigados a garantir o casamento a pessoas do mesmo sexo, de forma a possibilitar aos homossexuais a possibilidade de adotarem o filho do cônjuge (41). O recente caso X e outros vs. Áustria (42) teve um desfecho diferente. Duas mulheres unidas de facto recorreram ao TEDH por não ter sido permitido a uma delas adotar o filho da companheira, que com ela vivia desde os cinco anos de idade. Neste caso, o tipo de adoção pretendido era garantido pela lei interna às pessoas de sexo diferente que vivessem em união de facto, mas já não às pessoas de mesmo sexo que vivessem nesse tipo de uniões. O TEDH considerou, assim, que neste caso já existia uma diferença de tratamento baseada na orientação sexual. Sublinhou, porém, que esta decisão não podia ser transposta acriticamente para os demais casos de adoção por casais de pessoas do mesmo sexo, uma vez que apenas estava em causa uma diferença de tratamento por se permitir a adoção de filho de unido de facto de sexo diferente e não se abrir essa possibilidade à adoção Acórdão de 31/08/2010. Para mais desenvolvimentos sobre este caso, v. GEOFFREY WILLEMS «La vie familiale des homosexuels au prisme des articles 8, 12, et 14 de la Convention européenne des droits de l’homme: mariage et conjugalité, parenté et parentalité» in Revue Trimestrielle des Droits de l’Homme, n.º 93, jan. 2013, pp. 65-95. (42) Acórdão de 19/02/2013, queixa n.º 19010/07. (40) (41)

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de filho de unido de facto do mesmo sexo. Assim, voltou a lembrar a jurisprudência firmada no caso E.B. vs. França, de acordo com a qual o artigo 8.º da CEDH, por si só, não garante o direito a adotar, mas, que, a partir do momento em que o Estado-parte cria semelhante direito, não o pode regular de forma discriminatória. Ainda no plano jusinternacional, importa ter presentes outros instrumentos que têm abordado a questão da adoção por casais do mesmo sexo. No seio do Conselho da Europa, veja-se a Recomendação CM/Rec (2010)5 do Conselho de Ministros, que insta os Estados a adotar medidas destinadas a combater a discriminação fundada na orientação sexual, incluindo a possibilidade de adoção singular. No contexto da União Europeia, merece especial destaque o artigo 21.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, que prevê expressamente o direito à não discriminação em função da orientação sexual. Por fim, reveste particular interesse a Resolução sobre o respeito dos Direitos do Homem na União Europeia (43), que incita os Estados-membros a adotarem políticas de equiparação entre uniões heterossexuais e homossexuais, designadamente, garantindo às famílias monoparentais, aos casais não unidos pelo matrimónio e aos do mesmo sexo, a igualdade de direitos relativamente aos casais e famílias tradicionais. 5. O REGIME LEGAL EM VIGOR À LUZ DOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS Face aos dados que fomos colhendo, pretendemos agora analisar de forma crítica a solução legal em vigor. Como se viu, a lei permite o casamento entre pessoas do mesmo sexo, e reconhece efeitos jurídicos às uniões de facto compostas por pessoas do mesmo sexo. No entanto, em nenhum dos casos é permitido o acesso à adoção por parte dos membros do casal — trate-se de adoção «conjunta», ou «ex nihilo», de criança com a qual nenhum dos membros do casal possui à partida qualquer vínculo, trate-se de adoção do filho do cônjuge ou unido de facto. Não obstante, permite-se a adoção singular, «ex nihilo» independentemente da orientação sexual do adoptante. A falta de possibilidade de adoção por parte dos casais do mesmo sexo tem sido debatida nos mais diversos fora, tradicionalmente sob o ponto de vista da proibição da discriminação em razão da orientação sexual dos membros dos referidos casais. Ora, o que aqui pretendemos demonstrar, face aos princípios atrás expostos, é que essa é uma forma redutora — e equívoca — de analisar o problema.

Resolução sobre o respeito dos Direitos do Homem na União Europeia, de 16/03/2000, pp. 344 e segs., pontos 56-57. (43)

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Em primeiro lugar, há que proceder a uma distinção entre as duas formas de adoção — a adoção conjunta, «ex nihilo», e a adoção de filho de cônjuge ou unido de facto, que é o escopo do nosso estudo. Com isso visamos apenas demonstrar que os princípios convocáveis revestem diferentes configurações nas duas situações, que por vezes têm sido erradamente tratadas como equivalentes. Depois, veremos de que forma os princípios constitucionais expostos podem ser convocáveis para uma análise da possibilidade de adoção de filho de cônjuge ou unido de facto do mesmo sexo. 5.1. A Adoção conjunta e a adoção de filho de cônjuge ou unido de facto: a diferente configuração dos princípios convocáveis A adoção conjunta, «ex nihilo» de uma criança, e a adoção de filho do cônjuge ou unido de facto, apesar de convocarem — ambas — os princípios constitucionais atrás expostos, fazem-no de forma não totalmente coincidente. Essa diferença foi sublinhada pelo Acórdão n.º 176/14 do Tribunal Constitucional, e tida como um dos motivos que levou ao chumbo da proposta de referendo aprovada pela resolução n.º 6-A/2014, da Assembleia da República, «sobre a possibilidade de coadoção pelo cônjuge ou unido de facto do mesmos sexo e sobre a possibilidade de adoção por casais do mesmo sexo, casados ou unidos de facto». O referendo propunha-se colocar aos eleitores portugueses duas questões: em primeiro lugar, se «concorda que o cônjuge ou unido de facto do mesmo sexo possa adotar o filho do seu cônjuge ou unido de facto» e, em segundo lugar, se «concorda com a adoção por casais, casados ou unidos de facto, do mesmo sexo». O Tribunal Constitucional considerou que a formulação simultânea das questões em causa poderia levar à falta de compreensão, por parte dos eleitores, dos valores que se manifestam em cada um dos quesitos, já que aos mesmos estavam subjacentes ponderações distintas. Nesse sentido, afirmou que «o valor pressuposto em cada um dos quesitos distingue-se em função da situação parental e familiar em que o adotando se pode encontrar no momento da adoção: enquanto na primeira pergunta a criança já vive numa família homoparental, na segunda não». De facto, em primeiro lugar, no caso da adoção de filho de cônjuge ou de unido de facto, visa-se estabelecer vínculos jurídicos entre uma criança e a pessoa com quem o seu progenitor tem um vínculo conjugal. «Trata-se, pois, de estabelecer um laço jurídico entre duas pessoas que têm vínculos jurídicos pré-existentes com uma terceira, i.e., de reconhecer efeitos jurídicos ao lado remanescente desta relação triangular — ao vínculo entre a criança e o outro membro do casal». Mas mais, e como o próprio Tribunal Constitucional adianta, podem ainda ser várias as situações em que a criança já criou relações familiares diretas e de facto com o companheiro ou cônjuge do progenitor. A criança pode já viver integrada de facto nesse núcleo familiar, tratando ambos os membros do casal Coimbra Editora ®

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como progenitores. Nestes casos, afirma-se no aresto, «a adoção visa o reconhecimento de efeitos jurídicos a uma relação que se foi estabelecendo de facto e que une diretamente a criança e o aspirante a adotante». Ora, essa é uma diferença decisiva, que leva a que os princípios constitucionais convocáveis não se apresentem com a mesma configuração perante uma e outra das formas de adoção, e revistam, no nosso entender, um peso acrescido no que toca à adoção de filho de cônjuge ou de unido de facto do mesmo sexo. a) O Direito a constituir família Em primeiro lugar, o «direito a constituir família» reveste contornos diferentes em ambas as situações. Como se viu, nem a Constituição nem a CEDH reconhecem um direito a adotar como decorrência do direito a constituir família. No entanto, já podem oferecer proteção no que toca a uma vida familiar pré-existente, ainda que de facto. Na adoção de filho de cônjuge ou unido de facto, visa-se, por um lado reconhecer efeitos jurídicos a uma ligação entre pessoas que já se encontram legalmente ligadas, ambas, a uma terceira — por um lado, pelo vínculo da filiação, por outro lado, pelo vínculo do casamento ou da união de facto. A isso acresce o facto de a criança e sua madrasta ou padrasto poderem já ter entretecido diretamente, com o decurso do tempo, vínculos afetivos e efetivos próprios da parentalidade, de forma a poder considerar-se que estabeleceram verdadeiras relações familiares, ainda que de facto. Ora, essas relações familiares não podem deixar de merecer uma proteção por parte do artigo 36.º da CRP, lido à luz da jurisprudência do TEDH sobre o artigo 8.º da CEDH, que, como vimos, abrange a vida familiar de facto. Neste seguimento, no Acórdão n.º 176/14, é citada jurisprudência do TEDH que teve em conta a inserção do adotando em núcleos familiares já existente de casais do mesmo sexo como fundamento para legitimar a adoção por esses casais. Digno de nota é, por exemplo, o já referido caso Gas e Dubois vs. França, em que o TEDH considerou que a comunidade de vida estabelecida entre duas mulheres e o filho biológico de uma delas, concebido por recurso aos métodos de procriação médica assistida constituía, “vida familiar” para os efeitos do artigo 8.º da CEDH, tendo em conta a relação estável que se havia formado entre os três com o decurso do tempo. Já um «direito a adotar» como direito a constituir uma família ex novo, em que a criança não tem qualquer relação com o casal, não é, como se viu, em princípio abrangida pelo artigo 36.º da CRP (Acórdãos n.os 320/00 e 551/03). Também o TEDH tem continuado a afirmar que o artigo 8.º da CEDH não abrange «o direito a adotar». O Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 176/14 deixou em aberto a possibilidade de a adoção estar abrangida pelo artigo 36.º, n.º 1 — posição que também nós, como atrás expusemos, perfilhamos, ainda que sob a perspetiva de um «direito a ser adotado». Mas, mesmo que se admita esse Coimbra Editora ®

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«direito a ser adotado», ainda assim, a adoção do filho do cônjuge ou parceiro recebe uma proteção inequívoca, e acrescida, sob a perspetiva do direito à família, em relação à adoção conjunta «ex nihilo», pois enquadra-se já no direito à proteção de uma família pré-existente. b) O superior interesse da criança Também a configuração do princípio do superior interesse da criança é diferente num e noutro caso. Se em geral não há razões para crer que a adoção por casais de pessoas do mesmo sexo possa, em si mesma, pôr em causa o interesse superior da criança, há que assinalar que, no que toca à adoção de filho do cônjuge ou unido de facto, esse princípio reveste um peso acrescido. De facto, a adoção do filho de cônjuge ou unido de facto, independentemente do sexo deste, poderá corresponder à melhor forma de salvaguardar o interesse superior da criança, já que através dela se atribuem efeitos jurídicos a uma relação de família já existente. Esta forma de adoção garantirá à criança e ao adotante a realização afetiva própria da filiação — e eventualmente correspondente à efetivamente em vigor —, bem como a estabilidade e a clareza do estatuto essenciais ao desenvolvimento da criança, à segurança jurídica e ao fortalecimento dos próprios vínculos afetivos já existentes. O cônjuge ou unido de facto do progenitor poderá ter o co-exercício das responsabilidades parentais, e assim intervir mais ativamente na educação da criança, quer a nível escolar, quer ainda em situações médicas. Pode ainda providenciar pela segurança vital da criança, já que a mesma poderá usufruir dos benefícios sociais de ambos os pais. E, finalmente, protegê-la em caso de morte do progenitor, ficando o pai ou mãe adotivo, que até então viveu em comunidade de vida com a criança, com as responsabilidades parentais, não correndo o risco de as mesmas serem atribuídas a quem tenha outra relação familiar com a criança, mas que não tenha tecido os laços de afetividade próprios de quem sempre agiu como pai ou mãe. Com a adoção, a relação entre a criança e o adotante passa a beneficiar da proteção constitucional, nos termos do n.º 5 do artigo 36.º O adotante passará a ter o direito e o dever de educação e manutenção do filho, e, nos termos do n.º 7 da mesma norma, o filho não poderá ser separado do mesmo (salvo quando este não cumpra os seus deveres fundamentais para com ele e sempre mediante decisão judicial). Assim, são vários os autores que defendem que a adoção de filho de cônjuge ou de unido de facto do mesmo sexo é a melhor forma de prosseguir o superior interesse da criança que viva no seio destas uniões (44).

GEOFFREY WILLEMS, op. cit., p. 93, ALESSANDRO TAURINO, op. cit., p. 123 e ss., JAVIER PEREDA GÁMEZ, «El cambio de las estruturas familiares y la modernización del Derecho de Fami(44)

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Ora, a proteção do superior interesse da criança não reveste a mesma configuração nos casos de adoção conjunta «ex nihilo». É certo que, como referiu o Tribunal Constitucional no Acórdão n.º 176/14, aí também estará necessariamente em causa o interesse da criança, mas «esse interesse não reveste aqui os mesmos contornos» que nos casos de adoção de filho do cônjuge ou unido de facto, traduzindo-se apenas, em geral, no interesse em ser adotado por quem lhe proporcione as condições adequadas para o seu desenvolvimento são e integração familiar, não relevando de uma ligação a um núcleo familiar específico. Assim, e como refere o Tribunal Constitucional no Acórdão n.º 176/14, nos casos de adoção de filho de cônjuge ou unido de facto, «o interesse da criança em ser adotada por aquela pessoa em concreto (a sua madrasta ou padrasto) pode ter um peso que não se manifesta com a mesma intensidade na segunda pergunta», referente às adoções conjuntas, «ex nihilo» de uma criança que não é filha de nenhum dos membros do casal». No que toca à possibilidade de casais de pessoas do mesmo sexo poderem aceder à adoção conjunta, «ex nihilo», ainda não existe, à partida uma criança cujo interesse reclame uma adoção por uma pessoa em concreto. Assim, nesse caso, estarão primacialmente em causa os interesses dos casais do mesmo sexo em poderem aceder à possibilidade de adotar crianças, e ainda não os interesses das crianças em serem adotadas por uma pessoa em concreto. c) O princípio da proibição da discriminação em razão da orientação sexual Também o princípio da proibição da discriminação em função da orientação sexual reveste contornos diferentes numa e noutra situação. No que toca à adoção de filho de cônjuge ou unido de facto do mesmo sexo, essa discriminação afeta a própria criança que, devido à orientação sexual dos seus cuidadores, não tem a possibilidade de ver a relação entretecida com um deles reconhecida juridicamente. Neste ponto pode convocar-se a recente jurisprudência do TEDH, que sancionou a diferença de tratamento estabelecida na lei austríaca (caso X e outros vs. Áustria). Essa lei, tal como a nossa, permitia a adoção de filho de unido de facto do sexo diferente, mas já não a adoção de filho de unido de facto do mesmo sexo. Nesse caso, o TEDH considerou que toda a família era vítima de discriminação em função da orientação sexual, já que a negação do vínculo jurídico da adoção afetava não só o candidato a adotante, mas ainda a criança, que, por força da simples orientação sexual da mãe e da unida de facto, ficava privada de ver a sua ligação

lia», in Matrimonio homossexual y adopción, Madrid, 2006, p. 205 e, na mesma obra, a contribuição de JUDITH SOLÉ RESINA, «Adopción y Parejas Homosexuales», pp. 209 e ss. Coimbra Editora ®

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efetiva e afetiva com esta última reconhecida juridicamente. Nesse sentido, o TEDH afirmou que orientação sexual dos adultos não podia ser um obstáculo a uma proteção adequada dos interesses da criança (45). Assim, no caso da adoção de filho de cônjuge ou unido de facto do mesmo sexo, a discriminação em função da orientação sexual afeta a própria criança, que já se encontra integrada num núcleo familiar composto por pessoas do mesmo sexo. Ora, também aqui os contornos da adoção conjunta, «ex nihilo» são diferentes, uma vez que não pré-existe uma relação familiar de facto entre a criança e o candidato à adoção. Neste ponto, um argumento da distinção em função da orientação sexual apenas é convocável em relação aos candidatos à adoção. Assim, será apenas sob a luz da proibição da discriminação dos próprios membros dos casais de uniões homossexuais que essa questão deverá ser analisada, escopo que ultrapassa os objetivos do presente estudo. 5.2. Análise da solução legal atualmente em vigor respeitante à adoção de filho de cônjuge ou unido de facto do mesmo sexo Como se viu, são vários os princípios constitucionais convocáveis para a análise da possibilidade de adoção de filho de cônjuge ou unido de facto do mesmo sexo. Uns revestem mais premência que outros na análise da questão. De qualquer forma, esta deverá ser sempre perspetivada em função do fim último que o instituto da adoção visa salvaguardar — a promoção do superior interesse da criança adoptanda. Neste ponto é fulcral atender à recente jurisprudência do TEDH no caso X e outros vs. Áustria, que centrou a análise do problema na perspetiva que é, para nós, a essencial. O TEDH perspetivou a impossibilidade de adoção de filho de cônjuge sob o ponto de vista da proibição da discriminação em função da orientação sexual, mas considerou que a vítima dessa discriminação era também a criança adoptanda. Assim, falar-se de discriminação dos aspirantes a adotantes em função da orientação sexual, é, no nosso entender, uma perspetiva redutora e descentrada de análise da diferença de tratamento vigente no que toca à adoção de filho do cônjuge ou unido de facto. Note-se ainda que, para o TEDH, foi determinante o facto de a lei austríaca, não obstante reconhecer efeitos jurídicos a ambas as uniões — do mesmo sexo e de sexo diferente —, excluir a possibilidade de adoção pelas primeiras. Ora, não podemos deixar de transpor este raciocínio para a análise da lei portuguesa atualmente em vigor, que adota a mesma solução. Também aqui não se reconhece a possibilidade de adoção de filho por certas uniões devido apenas à orientação sexual dos

(45)

Sobre este ponto, v. GEOFFREY WILLEMS, op. cit., p. 88. Coimbra Editora ®

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membros do casal. Esta distinção teria de ter um fundamento razoável para poder ser tida como justificada face ao n.º 2 do artigo 13.º da CRP. Tal fundamento teria de estar vinculado ao fim último do instituto da adoção: a realização do interesse superior da criança. Mas se assim é, não vemos como encontrar tal fundamento razoável de distinção. É que, no nosso entender, e como já demonstrámos, o interesse da criança que viva com o casal poderá reclamar a possibilidade de adoção. Assim, a solução legal atualmente em vigor não deixa de levantar problemas quer em relação ao n.º 2 artigo 13.º da CRP, quer ainda em relação à proteção das crianças contra todas as formas de discriminação, prevista no artigo 69.º da CRP. Por outro lado, essa solução legal é ainda difícil de se justificar face à possibilidade de adoção singular, independentemente da orientação sexual do adotante, prevista no n.º 2 do artigo 1797.º do CC. Neste ponto, são ilustrativas as palavras de CARLA AMADO GOMES, quando se questiona «que inegáveis vantagens tem a adoção por solteiros perante a adoção por casais homossexuais, a ponto de tornar a primeira lícita e a segunda impossível? Como justificar a indisponibilidade de um vínculo de filiação biológico entre um pai que se tornou homossexual e que enceta uma relação com outro homem (e vice-versa) com um filho de uma anterior relação heterossexual, e não a aceitar na filiação adotiva? Porquê negar a um casal homossexual estável a oportunidade de realização emocional, sua e de uma criança cuja relação familiar de base, estruturada em moldes tradicionais, fracassou?» (46). De facto, não deixa de ser pertinente questionar qual o valor legítimo que justifica a distinção entre estas duas situações, tendo em conta que a adoção, que visa o superior interesse do menor, possa ocorrer numa situação singular, mas já não numa situação destinada a integrar o menor num círculo familiar onde o mesmo já teceu relações afetivas e de proximidade. O TEDH criticou a mesma incoerência que existia na lei austríaca, que se alicerçava num idêntico conjunto de soluções normativas (caso X. vs. Áustria, cit.). Assim, a solução legal atualmente em vigor levanta várias questões face ao princípio da proibição da discriminação em função da orientação sexual, perspetivado sob o ponto de vista da criança, e ainda com os demais interesses constitucionais em presença, como o direito à família e à salvaguardo do interesse superior da criança. 6. CONCLUSÃO Após este breve excurso sobre os princípios constitucionais aos quais está vinculado o legislador no âmbito da regulação do instituto da adoção, lidos à luz

(46)

Cfr. op. cit., p. 48. Coimbra Editora ®

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dos instrumentos internacionais de proteção dos direitos humanos, estamos em condições de tecer algumas considerações sobre a solução atualmente em vigor em relação à adoção de filho de cônjuge ou de unido de facto do mesmo sexo. Como se viu, são já várias as ordens jurídicas europeias que preveem a adoção por casais do mesmo sexo. Em Portugal, essa impossibilidade tem sido, erradamente, perspetivada apenas sob o ponto de vista da discriminação em função da orientação sexual das pessoas que pretendem aceder à possibilidade de adotar. No entanto, como quisemos demonstrar, trata-se de uma forma equívoca e redutora de perspetivar o problema. Em primeiro lugar, a adoção de filho de cônjuge ou unido de facto convoca outros princípios constitucionais, como o direito à família, previsto no n.º 1 do artigo 36.º, bem como o superior interesse da criança. Por outro lado, a diferença de tratamento, no que toca à possibilidade de adoção, entre famílias hetero e homoparentais afeta a própria criança. Assim, contrariamente ao que tem sido invocado nos mais diversos fora, não está em causa apenas — e nem sequer primordialmente — a discriminação, em função da orientação sexual, dos membros do casal de pessoas do mesmo sexo. Essa será poderá ser a perspetiva de análise da questão da proibição de adoção conjunta, «ex nihilo», por parte desses casais, já que aí, como não pré-existem vínculos familiares, uma distinção em função da orientação sexual apenas afeta os candidatos a adotantes. Mas no que toca à adoção de filho de cônjuge ou unido de facto, os princípios constitucionais convocáveis são mais amplos. E é perante esses diversos princípios que a solução legal corrente tem de ser escrutinada.

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