A ADULTIZAÇÃO DA INFÂNCIA NA PUBLICIDADE TELEVISIVA DOS ANOS 90: A EMERGÊNCIA DE UM NOVO PARADIGMA IDENTITÁRIO NA SOCIEDADE MODERNA

June 3, 2017 | Autor: Milena Pereira | Categoria: Publicidade, Infancy, Consumo, Publicidade Infantil, Infancia, Televisão
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UFF- UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

A ADULTIZAÇÃO DA INFÂNCIA NA PUBLICIDADE TELEVISIVA DOS ANOS 90: A EMERGÊNCIA DE UM NOVO PARADIGMA IDENTITÁRIO NA SOCIEDADE MODERNA

MILENA GOMES COUTINHO PEREIRA

Rio de Janeiro 2014 0

UFF- UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

A ADULTIZAÇÃO DA INFÂNCIA NA PUBLICIDADE TELEVISIVA DOS ANOS 90: A EMERGÊNCIA DE UM NOVO PARADIGMA IDENTITÁRIO NA SOCIEDADE MODERNA

Milena Gomes Coutinho Pereira

Trabalho de conclusão de curso apresentado à Universidade Federal Fluminense como requisito final para a obtenção do grau Bacharel em Estudos de Mídia.

ORIENTADOR(A): Profª. Drª. Ana Lucia Enne

Rio de Janeiro 2014

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MILENA GOMES COUTINHO PEREIRA

A ADULTIZAÇÃO DA INFÂNCIA NA PUBLICIDADE TELEVISIVA DOS ANOS 90: A EMERGÊNCIA DE UM NOVO PARADIGMA IDENTITÁRIO NA SOCIEDADE MODERNA

Trabalho de conclusão de curso apresentado à Universidade Federal Fluminense como requisito final para a obtenção do grau Bacharel em Estudos de Mídia.

Aprovada em 7 de janeiro de 2014.

BANCA EXAMINADORA

Profª. Drª. Ana Lucia Anne UFF- Universidade Federal Fluminense

Profº. Drº. Kleber Mendonça UFF- Universidade Federal Fluminense

Profª. MSc. Patrícia Matos UFF- Universidade Federal Fluminense 2

AGRADECIMENTOS

À minha orientadora Ana Lucia Enne, que me deu todo apoio e incentivo necessários para que este trabalho monográfico pudesse florescer a ponto de se tornar, inclusive, um dos projetos de mestrado aprovados pelo PPGCOM UFF; à banca examinadora, pela disponibilidade e interesse em avaliar o presente trabalho; e aos demais professores do curso de Estudos de Mídia, fundamentais para que eu desenvolvesse ao longo da graduação o olhar crítico e reflexivo necessários ao desenvolvimento de um trabalho autoral.

Dentre os professores, faço um agradecimento especial ao Profº. Drº. Viktor Chagas, com quem tive o prazer de trabalhar diretamente no desenvolvimento de pesquisa científica na Universidade. Gostaria de agradecer também às professoras importantes que tive na graduação em Pedagogia na UERJ-FFP, Profª. Drª. Glaucia Guimarães e Profª. Drª. Jacqueline Morais, grandes responsáveis pelo meu interesse em pesquisar mais profundamente a infância.

Agradeço a Deus, aos meus pais, Sonia e Marcos, pela total dedicação acima de qualquer circunstância, e por serem sempre tão presentes, me apoiarem e incentivarem em todos os momentos; a vocês, meu amor e todas as minhas conquistas. Aos familiares Kiko, Pablo, Priscilla, Sergio, Fatima, Rita, Marcelo, Cynthia, Marília, Neide, e aos pequenos Arthur e Léo, responsáveis por tudo que sou e valorizo. Ao meu namorado Rodrigo Simon, por todo companheirismo e torcida; e aos queridos amigos da faculdade, do ENECOM e da vida, pelo estímulo e por tantos bons momentos. A todos vocês, minha gratidão e carinho!

Milena Gomes Coutinho Pereira

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RESUMO

Este trabalho monográfico buscou analisar os anúncios publicitários da televisão dos anos 90 que se destinam ao público adulto mas que fazem uso da imagem da criança. Diante de um cenário capitalista e globalizado, onde o núcleo familiar cada vez se vê mais diluído em meio às demandas do capital, emerge de um lado a figura de uma criança cada vez mais “autossuficiente” e “esperta”, e de outro, um adulto mais infantilizado e resistente à ideia de envelhecer. Frente a esse novo paradoxo, a proposta desta pesquisa foi compreender como a publicidade e o infoentretenimento (KELLNER, 2006) atravessam e contribuem na construção de outras linguagens e discursos presentes na sociedade. Para além, objetivou-se entender como os anúncios televisivos produzidos na década de 90 representam, através de sua construção narrativa, a ideia de infância em propagandas voltadas para um público-alvo que não o infantil, e de que forma tal conteúdo midiático afeta a construção da identidade e das consequentes práticas sociais tanto do adulto quanto da criança. Dessa forma, buscou-se esclarecer como essas identidades, fortemente atravessadas pelo discurso midiático e mercadológico, influenciaram o desenvolvimento de uma nova configuração de poder na família e na sociedade. Palavras-chave: publicidade, televisão, identidade, consumo, infância.

ABSTRACT

This monographic work intends to analyze advertisements pieces from the 90s television that are meant to the adult audience but use children images. Before a capitalist and globalized scenario, where the family core is increasely diluted amidst the demands of the capital, in one side emerges a child figure ever more “self-sufficient” and “smart”, and on the other, a more infantilized and unwilling to grow adult. Facing this new paradox, the proposition of this research is to understand how advertising and infoentertainment (KELLNER, 2006) cross and contribute to the construction of other languages and messages present in society. Furthermore, it was an objective to understand how TV ads made in the 90s represented, through its narrative construction, the idea of infancy in ads targeted to an audience other than the infants, and in which way said midiatic content affected the identity construction and the consequential social practices, both in adults and children. This way, it was sought to clarify how these identities, strongly marked by the midiatic and marketing speech, influenced the development of a new configuration of power in family and society.

Keywords: advertising, television, identity, consumption, childhood. 4

SUMÁRIO

Introdução........................................................................................................................6 Capítulo I: A construção e representação da Infância e sua relação com a Mídia.........13

Capítulo II: Os anos 90 e a emergência de um novo paradigma identitário..................27

Capítulo III: Propagandas televisivas dos anos 90: crianças falam ao público adulto.............................................................................................................................38

Conclusão......................................................................................................................59

Bibliografia....................................................................................................................62

Lista de propagandas analisadas (por ordem cronológica)............................................66 Anexo 1.........................................................................................................................67

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1. Introdução

Somos a todo instante envolvidos pelos produtos midiáticos. Vivemos em meio à “Idade Mídia” (MELO; TOSTA, 2008) tamanha onipresença dos artefatos tecnológicos em nosso cotidiano. Muniz Sodré (2008) define esta nova fase como sendo o “quarto bios” – ou o “bios midiático” –, uma nova forma de vida caracterizada pela mídia como ambiência. Refigurado pela ideologia norte-americana de tecnologia e mercado – que muito se adéqua à lógica neoliberal vigente – o bios midiático reconfigura as relações sociais e faz emergir novas percepções e cognições acerca dos discursos e práticas,

inaugurando

assim uma

nova

forma de cultura na

contemporaneidade. Cada vez mais as crianças têm sido envolvidas por esta ambiência midiática. Segundo pesquisa do Ibope (2012a), nos “últimos seis meses, o número de internautas de 2 a 11 anos de idade cresceu 15%. O valor é mais que o dobro do aumento registrado em toda a internet domiciliar no Brasil, que foi de 7% no mesmo período.” Em outra pesquisa do mesmo órgão (2012b), 55% de mães e gestantes apontaram que usam a televisão como ferramenta de aprendizado. Este número sobe para 65%, entre pessoas das classes mais altas (A/B). Tais dados revelam que tem aumentado o número de crianças participantes do processo midiático e que tal participação vem acontecendo cada vez mais precocemente. Embora haja programas voltados para a infância, incontáveis comerciais de brinquedos e acessórios infantis, tem sido cada vez mais comum nos depararmos com a imagem da criança na publicidade voltada a outro público-alvo: o adulto. Um grande número de anúncios de banco, carro, celular e outros tantos produtos não-infantis têm sido estrelados por crianças. Na programação televisiva, a publicidade tem feito uso frequente da imagem da criança em seus anúncios, mesmo quando os produtos não são destinados a ela. Cada vez mais presente em todas as fases do crescimento infantil, a mídia e, em especial o “martelo propagandístico” (SODRÉ, 1984, pág.73), tem sido decisiva no desenvolvimento da criança e de sua prática consumista. As crianças compõem o segmento mais significativo de espectadores de televisão. [...] São, portanto, os membros mais jovens de nossa 6

sociedade que se relacionam de modo mais intenso e extenso com a produção audiovisual realizada para cinema e televisão, o que provavelmente tem relação com o fato de, no Brasil, o tempo de permanência na escola ainda ser inferior ao desejável e onde atividades culturais e esportivas são, em geral, restritas a classes de maior poder aquisitivo. Desse modo, milhões de crianças brasileiras ficam sozinhas em casa durante o dia, aguardando que os pais retornem do trabalho. (DUARTE, 2008.pág.18)

A lógica da identificação comumente norteava a publicidade; reconhecer-se na propaganda parecia ser fundamental para tocar o indivíduo e fazê-lo desejar o produto exibido, porém, a nova tendência que vem emergindo indica que este cenário pode estar sofrendo mudanças. Com a criança atuando enquanto interlocutora do processo publicitário, uma nova posição de sujeitos é sugerida, em consequência, seus papéis sociais também são alterados. Tendo em vista que o poder de compra não pertence à criança, mas ao adulto, faz-se necessário analisar o motivo da mensagem gerada pela publicidade utilizar-se e remeter-se não ao seu real público consumidor, mas a um que até então não seria o alvo principal. Através da análise de propagandas de produtos adultos, que tenham a criança como interlocutora central, o presente trabalho monográfico se propõe a refletir acerca desta nova tendência de produção publicitária e seus reflexos na formação social da infância e da família através do consumo. Partindo do pressuposto de que a televisão é um espaço onde relações de poder são constantemente entrelaçadas, entende-se que os produtos veiculados por tal meio tornam-se objetos de pesquisa relevantes para o entendimento da dinâmica cultural de produção e consumo de bens e práticas cotidianas da/na contemporaneidade. Como Fischer diz: “Tornar a TV objeto de estudo significa adentrar esse mundo da produção de significações, através do estudo de uma linguagem específica, da análise de um meio de comunicação que se tornou para nós, especialmente para nós, brasileiros, absolutamente imprescindível, em termos de lazer e informação. [...] Ou seja, aprender a lidar com esses artefatos da nossa cultura, investigando a complexidade dos textos, sonoridade, imagens, cores, movimentos que nos chegam cotidianamente através da TV, é também aprender a lidar com um jogo de forças políticas e sociais que ali encontram espaço privilegiado de expressão.” (2006, p. 51 e 52)

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Marshall McLuhan (2007, pág.350) afirmou que “A TV não funciona como pano de fundo. Ela envolve. É preciso estar com ela.”; a sinestesia causada pela televisão cativa o telespectador e o cerca ao ponto de torná-lo ativamente participante. O sujeito que assiste a TV dialoga com ela, embora a primeira vista possa parecer tratar-se de uma relação monológica, afinal, segundo Mikhail Bakhtin (2011, pág.271), “a compreensão passiva do significado do discurso ouvido é apenas um momento abstrato da compreensão ativamente responsiva real e plena, que se atualiza na subsequente resposta em voz alta.”. A mensagem transmitida pela TV é contribuinte dos discursos sociais tanto quanto é formada por eles. Estes discursos são respondidos/reconhecidos também em práticas, em comportamentos sociais, o que faz com que cada vez mais haja uma imbricação entre vida real e ficção. Segundo Fisher (2006, pág.20), “[...] a separação entre a chamada 'vida real' e a 'vida na TV' parece cada vez mais diluir-se, esfumaçar-se. Uma invade a outra [...].”. Todos os discursos da grade televisiva contribuem para este diálogo, esta fusão, todavia, a publicidade merece uma atenção redobrada. Pelo fato de caminhar paralela à lógica neoliberal de mercado e consumo, tão marcante do nosso tempo, e utilizar discursos bastante imperativos sobre o que e como o sujeito deve querer/comprar/ser, analisar as propagandas passa a ser uma forma de compreender como se dá culturalmente o processo de desejo e consumo – de bens, práticas, posições, identidades – na estrutura social. Em uma sociedade onde o poder circula e alimenta verdades produzidas, Michel Foucault (1979) reforça a importância de problematizar a ideia de naturalidade. Para ele, é de suma importância direcionar uma análise crítica às práticas consideradas “naturais”, fazer uma genealogia capaz de desvelar os processos de constituição de saberes, discursos e valores. Segundo Foucault (1979, pág.19) “[...] fazer a genealogia dos valores, da moral, do ascetismo, do conhecimento não será, portanto, partir em busca de sua ‘origem’, [...] será, ao contrário, se demorar nas meticulosidades e nos acasos dos começos [...].”. Esta ideia é fundamental na presente pesquisa, afinal, a veiculação de imagens de crianças em propagandas voltadas para o público consumidor adulto não deve ser encarada como 8

uma produção natural e, por isso, precisa ser problematizada e analisada cuidadosamente de forma alinhada com os acontecimentos sócio-histórico-culturais. Partindo do pressuposto que “a análise do discurso procura descrever, explicar e avaliar criticamente os processos de produção, circulação e consumo dos sentidos vinculados àqueles produtos na sociedade” (PINTO; 2002, pág.11), pretendo adotar tal tipo de análise como proposta metodológica norteadora deste trabalho monográfico. Pelo fato de a pesquisa basear-se essencialmente em discursos midiáticos veiculados pela publicidade televisiva – e considerando que tais discursos são produtos culturais constituídos socialmente de maneira polifônica (BAKHTIN, 2011), ou seja, formados por uma heterogeneidade de vozes agregadas em uma única voz social –, fazse de fundamental importância a utilização da análise do discurso enquanto método que possibilita observar e esmiuçar as vozes constituintes desse tipo de produto. Objetiva-se, assim, observar e “quebrar” essas vozes através de uma análise capaz de ver além; capaz de compreender, de forma um pouco mais aprofundada e menos homogênea, sua estrutura constituinte. Faz-se necessário observar o discurso televisivo publicitário e refletir sobre seus aspectos construídos, desde a linguagem até os efeitos visuais, sendo tudo isso entendido enquanto elementos comunicacionais. A análise do discurso, nesse caso, contribui para que se destine um olhar mais crítico sobre a produção audiovisual em questão. Tal metodologia contribui não apenas para a identificação de estruturas e categorias de discurso, como também para a construção de uma compreensão ressignificada do mesmo. Como diz Deleuze (2010), “não buscaríamos origens mesmo perdidas ou rasuradas, mas pegaríamos as coisas onde elas crescem, pelo meio: rachar as coisas, rachar as palavras.” (p.113). Correndo em paralelo, e de forma imbricada com a análise do discurso, pretendo desenvolver uma pesquisa histórica fundamentada em teóricos das áreas de ciências humanas e sociais, mais especificamente dos campos da educação, história, comunicação, filosofia e sociologia. O objetivo de unir autores de tais áreas é buscar, através de um entrecruzamento de conceitos e saberes afins, compreender um pouco melhor a construção histórica do conceito de infância, de adulto, e a possível interseção de ambos diante do cenário sócio-histórico-cultural vigente na década de 90 e que, de certa forma, ainda se reflete nos dias de hoje. 9

Como recorte temporal para a monografia, optei por analisar a década de 90. Essa, que marcou a mudança do século XX para o XXI e sagrou o boom dos computadores pessoais e da popularização da internet, cunhou uma transição histórica da qual herdamos muitos traços, pensares e práticas que nos acompanham até hoje. Assim, trata-se de um período que não apenas constituiu nosso passado, mas que continua se fazendo presente. Os anos 90 viram a consagração da globalização e do capitalismo – muito por conta da internet. Também foi em tal década que se deu o lançamento no mercado de videogames como PlayStation, SuperNitendo e Mega Drive – que contribuíram, de certa forma, para a instauração de um entretenimento menos dividido por faixa etária, tendo em vista que tais consoles atingiram com força um público híbrido, formado, para além de geração, tanto por crianças quanto por adultos. No Brasil, tal década foi bastante marcante na TV especialmente para o público infantil, que ganhou uma grade recheada de opções como os programas “Show da Xuxa”, “TV Colosso”, “Castelo Rá-tim-bum”, “Chiquititas”, “Família Dinossauro”, “Disney Cruj”, sem falar do não tão infantil, mas nem por isso menos adorado pelas crianças, “Os Trapalhões”, e tantos outros. Fora os programas, muitos desenhos animados também invadiram a telinha nos anos 90 e fizeram grande sucesso, como “Thundercats”, “Caverna do Dragão”, “Smurfs”, “He-Man”, “She-Ra”, “Cavalo de Fogo”, “X-Men”, “Cavaleiros do Zodíaco”, “Pokémon”, “Tartarugas Ninja”, “Os Simpsons”, e muito mais. Diante desse cenário é possível perceber como a criança da década de 90 aos poucos foi tendo um lugar de destaque na mídia, e consequentemente, no mercado, já que esse último se apropriou de todo esse envoltório e lotou as lojas e supermercados de produtos derivados de toda essa programação. Bonecos, roupas, acessórios, material escolar, indústria alimentícia, entre tantos outros itens seduziam as crianças, que, sem poder de compra, remetiam seus desejos aos pais. A partir dessa nova “importância” social descrita acima, a imagem da criança passou a não mais se restringir aos seus produtos etários. Atores e atrizes mirins passaram a estrelar também anúncios de produtos considerados fora de sua faixa de interesse. 10

Na presente pesquisa notei que houve nos anos 90 uma produção grande de anúncios publicitários para a televisão de banco, companhias aéreas, carros, empresas de telefonia etc. que, até onde se entende, não possuem produtos que se destinem ao público infantil. Para entender melhor como se deu esse processo, busquei fazer desde a conceituação histórica até a análise dos discursos publicitários televisivos propriamente, resultando em uma divisão da monografia em três capítulos, além da introdução e conclusão. No primeiro capítulo, com o auxílio central do historiador Pierre Ariès e de seus estudos acerca da história da infância e da família, procurei contextualizar historicamente de onde surgiu e como se deu a mudança do/no conceito de infância, bem como a forma como se construiu e se ressignificou, ao longo do tempo, a imagem da criança no seio familiar e na sociedade em geral. Em diálogo com esse processo, procurei relacionar a história da infância com a história da mídia, tendo como autoreschave para esse desenvolvimento teórico, Asa Briggs, Peter Burke e John Thompson. No capítulo dois me aprofundei mais sobre a questão do paradigma identitário da modernidade e sobre o adulto infantilizado e a criança adultizada. Falei sobre a crise de identidade, fruto do excesso de flexibilidade e multiplicidade de escolhas oferecidas no final do século XX; passei por uma análise do bem de consumo enquanto forma de comunicação; além de discutir sobre a relação entre consumo, cultura e identidade em tempos de infoentretenimento. Douglas Kellner, Gilles Lipovetsky, KathrynWoodwart, Mary Douglas e Baron Isherwood, e Stuart Hall foram meus referenciais principais nesta análise. Já no terceiro capítulo, apresentei uma seleção de propagandas dos anos 90 de produtos e serviços considerados adultos, mas com crianças como protagonistas. Anúncios de várias áreas foram contemplados, como alimentos, carros, empresas de telecomunicações, bancos, entre outras. Como discussão teórica, visando alinhar o que foi desenvolvido ao longo do trabalho monográfico com as propagandas – entendidas enquanto material prático -, resgatei alguns conceitos e ideias e usei-os junto aos anúncios como forma de exemplificar tudo que fora introduzido e refletido anteriormente. E, por fim, no capítulo de conclusão, fiz um esforço para alinhar tudo que foi trabalhado ao longo da monografia em forma de uma reflexão mais ampla sobre as 11

diversas percepções desenvolvidas. Objetivei então, nesta etapa final, lançar um olhar mais panorâmico sobre o paradigma da adultização da infância e infantilização do adulto com fins de associar os pequenos entendimentos construídos, desconstruídos e reconstruídos na presente pesquisa.

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Capítulo I: A construção e representação da Infância e sua relação com a Mídia

No mundo neoliberal onde a lógica do mercado é norteadora, a tecnologia permeia as relações, e a velocidade e fluidez dos processos e conexões fazem da globalização uma tendência irreversível, os sujeitos contemporâneos seguem o fluxo do mundo e se apegam aos valores capitalistas, dedicando-se fortemente ao trabalho e à progressão financeira. Diante deste cenário, a relação familiar foi reconfigurada. Se antes dedicar-se a vida inteira a uma única empresa contribuía para certa tranquilidade familiar, na contemporaneidade a instabilidade do mundo fez aumentar a insegurança com o emprego. Tornou-se necessário, então, trabalhar mais e de forma ainda mais intensa, investir em constantes qualificações (vide a rápida obsolescência das formações e as mutantes necessidades do mercado), e por isso, abrir mão de algumas coisas pessoais em prol do sucesso profissional. Segundo Richard Sennett (2006), “a cultura que vem emergindo exerce sobre os indivíduos uma enorme pressão para que não percam oportunidades.” (pág.179). A nova dinâmica social contemporânea contribuiu para que as famílias reorganizassem seus laços e reformulassem sua rotina. Dois importantes fatores contribuíram especialmente para a reestruturação familiar: (1) com os pais atuando ativamente no mercado de trabalho, os filhos passaram a conviver muito menos na companhia dos mesmos; (2) o medo da violência urbana colaborou para que os pais restringissem as crianças ao espaço domiciliar em detrimento do aproveitamento do espaço público, hoje temido. Diante destas mudanças as crianças passaram a ficar muito mais tempo em casa na companhia dos meios tecnológicos, mais massivamente, da televisão. [Há] uma demanda muito grande de crianças que passam boa parte de seu tempo diário em frente à televisão. Essa condição urbana de enclausuramento doméstico favorece outra inserção que não aquela do espaço urbano, devido à abrangência de telespectadores infantis que atinge. É a inserção em outras redes simbólicas de subordinação 13

cultural que se dá por meio do ato de assistir à televisão. (SILVEIRA, p.4)

A TV passou a ser a companheira diária da criança, aquela que diverte, ocupa e educa em tempo integral. Os pais, por sua vez, procuraram suprir suas ausências oferecendo bens de consumo em quantidade e valor cada vez maiores, por vezes maiores do que as condições permitem. Este cenário culminou, por fim, no desenvolvimento de um novo perfil da infância em que a criança aparece como o novo "reizinho do lar" (GUIMARÃES; PEREIRA, 2009), ou seja, como a figura central da família contemporânea. Como vivenciamos tal realidade atualmente, a sensação que dá é a de que a criança sempre ocupou esse papel de protagonista na família e na sociedade, todavia, faz-se necessário entender o conceito de infância como uma construção social. Não houve um único sentido fechado e mantido ao longo dos anos, muito pelo contrário, foram muitas as transformações sócio-culturais que contribuíram na maneira de entender e representar a infância, desde os tempos mais remotos até a concepção atual. Sobre isso, Lúcia Rabello de Castro nos diz que “re-construir historicamente a infância significa buscar, dentro de cada formação social, a configuração prevalente de significados atribuídos à infância, articulando-os ao leque de representações (...) no imaginário social” (1998, p.16). Partindo desse pressuposto, entende-se que para analisar o conceito de criança de um determinado período, é imprescindível que se pesquise também o cenário social e a dinâmica cultural vigente na época, tendo em vista que todo o meio e as condições históricas contribuem significativamente na construção do conceito de infância e suas significações. Phillipe Ariès (1981) nos lembra que houve toda uma construção histórica em torno da ideia do que é ser criança e de qual seria seu papel na sociedade e na família. Na Idade Média – que durou entre os séculos V e XV-, por exemplo, ainda não havia a concepção de infância, muito menos existia um sentimento sobre a criança ou qualquer percepção sobre as diferenças entre ela e o adulto. Até mesmo o afeto era envolto de uma consciência diferente. Já que a infância “não existia” e, portanto, não havia um sentimento próprio para ela, o afeto destinado a ela era o mesmo que um adulto recebia; algo inimaginável na sociedade moderna. 14

Isso ocorria porque na era medieval havia um alto número de mortalidade infantil e, portanto, a própria afeição era desencorajada socialmente até uma certa idade justamente porque ninguém sabia se aquela criança sobreviveria ou não. Logo, “assim que a criança superava esse período de alto nível de mortalidade, em que sua sobrevivência era improvável, ela se confundia com os adultos.” (ARIÈS, 1981, p.100). Confundir-se com o adulto, nesse caso, significava agir como tal. Não havia, na Idade Média, essa noção de passagem, de transição da infância para a vida adulta. Segundo Ariès, “a ideia de infância estava ligada a ideia de dependência. (...) Só se saía da infância ao sair da dependência, ou, ao menos, dos graus mais baixos da dependência.” (1981, p.11). Assim, logo que a criança desenvolvesse a capacidade mínima para ser autônoma – ou seja, deixasse de ser amamentada-, ela automaticamente tornava-se um adulto. Nessa época, o desenvolvimento humano obedecia a um único ínterim, o que levava a criança a estar em par de igualdade com o adulto, a ser vista como uma espécie de adulto em miniatura. As roupas da criança e do adulto eram as mesmas, e eles já trabalhavam juntos e se divertiam com os mesmos jogos e atividades. Por mais que pareça algo absurdo nos dias de hoje, cabe reforçar que na Idade Média, por conta de toda precariedade da época - marcada por fome, falta de higiene, epidemias e doenças em geral -, a expectativa de vida era bastante curta. Assim, não havia essa preocupação com a transição de fases justamente porque a longevidade era algo extremamente raro. A vida era a continuidade inevitável, cíclica, uma continuidade inscrita na ordem geral e abstrata das coisas, mais do que na experiência real, pois poucos homens tinham o privilégio de percorrer todas as idades da vida naquelas épocas de grande mortalidade. (ARIÈS, 1981, p. 39).

Logo no século XVI, seguinte a essa fase, o quadro mudou um pouco, e iniciou-se a “paparicação”, ou seja, emergiu um novo sentimento de infância na qual a criança era vista como um ser ingênuo e gracioso. Embora se diga que as mães e amas já nutriam há tempos esse tipo de carinho pela criança, foi apenas nessa época que tais sentimentos puderam ser expressos às claras. 15

Nesse período, “as pessoas não hesitariam mais em admitir o poder provocado pelas maneiras das crianças pequenas, o prazer que sentiam em ‘paparicá-las’.” (ARIÈS, 1981, p.101). Importante ressaltar que a paparicação passou a ser uma prática feita em todos os meios, independentemente de classe. Ela se dava tanto nas famílias reais, abastadas, quanto nas classes populares, no povo, o que revela a horizontalidade e aderência dessa nova prática na sociedade. A ideia de que a criança deve ser tratada com doçura partiu também dessa época. Acreditava-se que as demonstrações de ternura conquistavam os pequenos, e que, com afeto, seria mais fácil aproximar-se dela e transformá-la em um adulto honrado. Assim, a mescla entre doçura e razão passou a ser valorizada. Entendia-se que o equilíbrio entre essas ações na infância era o segredo da construção de um “bom adulto”. Para além da doçura, as carícias e os presentes também passaram a ser bem aceitos socialmente enquanto forma de incentivar a boa educação. Já no final do século XVI e início do XVII começa a surgir uma preocupação em conhecer melhor a criança. É nessa época que são feitas as primeiras observações acerca da psicologia infantil na tentativa de compreender mais a infância e, com isso, poder propor um modelo de educação mais aprimorado e condizente, embora ainda pautado na razão e no desejo de fazer das crianças futuros adultos de honra. É entre os moralistas e os educadores do século XVII que vemos formar-se esse outro sentimento de infância (...) que inspirou toda a educação até o século XX (...).O apego à infância e à sua particularidade não se exprimia mais por meio da distração e da brincadeira, mas por meio do interesse psicológico e da preocupação moral. (ARIÈS, 1981, p.104).

Coincidentemente, foi também no século XVI que houve a explosão de publicações de livros decorrente da invenção da prensa gráfica, criada por Gutemberg. Ou seja, o “boom” de lançamento dos impressos aconteceu no mesmo período em que se intensificaram os estudos e a necessidade de produzir anotações, imagens e textos sobre e para a criança. Segundo Asa Briggs e Peter Burke (2006), “no Início da Idade Média, o problema havia sido a falta de livros, a escassez. No século XVI foi o oposto (...). Era um oceano no qual os leitores tinham de navegar, ou uma enchente de material impresso em que era 16

difícil não se afogar.” (p.27). Diante disso, pode-se deduzir que “a falta de alfabetização, do conceito de educação (...) foi a razão pela qual o conceito de infância não existiu no mundo medieval.” (MÉLO; IVASHITA; RODRIGUES, 2009, p311.) Quando o crescente número de estudos sobre a criança somou-se à prensa gráfica, então um recurso inovador capaz de produzir e propagar materiais de forma infinitamente mais simples e abrangente do que o trabalho manual exigia antes, houve a culminação de um frutífero encontro de oportunidades. Afinal, “os impressos eram relativamente baratos de se fazer e transportar, permitindo que o trabalho (...) alcançasse rapidamente um número elevado de pessoas.” (BRIGGS; BURKE, 2006, p.45). Dessa forma, nota-se que a percepção da infância em muito se relacionou com o advento da impressão gráfica. Se por um lado havia um grande interesse em conhecer melhor a criança, por outro havia todo um dispositivo tecnológico que possibilitava a publicação e a disseminação de ideias, teorias, registros, bem como a produção de cartilhas e livros didáticos específicos para esse personagem social que vinha adquirindo progressiva importância: a criança. Entre os séculos XVI e XVII, Ariès nos diz que houve a manifestação de interesse e gosto sobre os hábitos e palavreado das crianças pequenas. Segundo ele, “os adultos interessaram-se também em registrar as expressões das crianças e empregar seu vocabulário, ou seja, o vocabulário utilizado pelas amas quando estas lhes falavam” (1981.p.28). O reconhecimento da linguagem infantil colaborou para a reafirmação das especificidades da criança. Foi aí que ela passou a receber os nomes de “bambins”, “pitchouns” e “fanfans”, no caso francês analisado por Ariès, nomes estes que tiveram uma enorme importância na construção histórica da infância por delimitarem um marco etário e servirem enquanto forma de reconhecimento da diferenciação entre a criança e o adulto. Também nesse período, os retratos das crianças sozinhas se tornaram cada vez mais numerosos e corriqueiros. Mesmo quando em família, a criança passou a ocupar o lugar central na fotografia, o que é algo bastante representativo, já que ao colocá-la em 17

destaque na foto, explicita-se o novo lugar que ela passara a ocupar também no núcleo familiar e na sociedade: o centro. De forma geral, no século XVII, “o grande acontecimento foi (...) o reaparecimento no início dos tempos modernos da preocupação com a educação.” (ARIÈS, 1981, p.194). Foi nessa época que começou a moralização social, onde a religião reconheceu a importância da educação e, com isso, transformou as ordens religiosas em locais de ensino; lembrando que “seu ensino não se dirigia mais a adultos, (...), era essencialmente reservado às crianças e aos jovens.” (ARIÈS, 1981, p.194). Nessa fase, amadureceu-se a concepção de que era preciso submeter à criança a uma espécie de “quarentena” antes de integrá-la aos adultos. Notou-se, assim, que ela não estava pronta para a vida madura se não passasse por um período de preparação. Se na Idade Média ignorava-se a ideia de transição, agora se respeitava esse período como sendo algo importante para o desenvolvimento da criança. Mais do que direcionar-se a educação infantil, a literatura trabalhada nos âmbitos religiosos promovia também uma certa pedagogização dos pais, tendo em vista que enfocava principalmente a importância dos mesmos enquanto guardiões espirituais das crianças. Com essa nova preocupação social que incumbia ao pai a responsabilidade pela criança, a ideia de família também foi reformulada. Sobre isso, Ariès diz que “a família deixou de ser apenas uma instituição do direito privado para a transmissão dos bens e do nome, e assumiu uma função moral e espiritual, passando a formar os corpos e alma.” (1981, p.194). Nesse momento, iniciouse o sentimento moderno de família. Em consequência, e ainda no século XVII, para além de assentir o período de transição de fases, passou-se também a não mais desejar que as crianças se misturassem com os adultos. Essa necessidade surgiu tanto por haver um maior entendimento social acerca das especificidades da infância, como também, em muitos casos, por medo de torná-las excessivamente mimadas e mal-educadas, especialmente na mesa durante as refeições, que era um ambiente onde a ordem deveria imperar.

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Também em tal século houve um aumento considerável do número de instituições escolares, ainda por reflexo da progressiva - e já valorizada socialmente - preocupação dos pais com a questão educacional. Os moralistas da época enfatizavam bastante a importância do papel dos pais enquanto formadores e, portanto, discriminavam a ideia de pais como genitores que simplesmente põem a criança no mundo. Assim, como o papel social dos pais foi transformado, a sociedade também teve de se transformar para acompanhar essa nova exigência social; foi então que emergiu uma nova ideia de colégio. Ao longo dos séculos a escola passou por muitas transformações. No século XIII, os colégios não eram locais onde se ensinavam, eles funcionavam apenas como abrigos financiados por doadores para estudantes pobres; já no século XIV a proposta era outra, e houve uma crescente repugnância contra a ideia de manter todos os alunos juntos. Assim, o século XIV inaugurou o que seria o início da divisão dos alunos em turmas separadas para criança e jovem; e com a mudança veio a necessidade do uso da disciplina como forma de educar. A família e a escola retiraram juntas a criança da sociedade dos adultos. A escola confinou uma infância outrora livre em um regime disciplinar cada vez mais rigoroso (...). A solicitude da família, da Igreja, dos moralistas e dos administradores privou a criança da liberdade de que ela gozava entre os adultos. (ARIÈS, 1981, p.195)

No século XV e XVI, e os colégios tornaram-se instituições de ensino essenciais para a sociedade. Nesse período, houve uma ampliação do recrutamento, ou seja, leigos, nobres e burgueses engrossaram o número de estudantes. A divisão por grupos e a adoção de professores diferentes, bem como a separação por classes e salas de aula também começou a ser implementada. Dessa forma pode-se organizar um pouco melhor a diferenciação do público escolar, coisa que não acontecia nos séculos anteriores. Como Ariès diz, “essa divisão das classes indicava portanto uma conscientização da particularidade da infância ou da juventude, e do sentimento de que no interior dessa infância ou dessa juventude existiam várias categorias.” (1981, p.112)

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Do século XVI até o XVII, porém, a divisão das classes não tinha o objetivo estrito de separar por idade. A ideia era, na verdade, separar os sujeitos por grau, sendo então as turmas da época muito pouco homogêneas. Com o tempo, porém - só no século XIX-, é que houve uma necessidade de separar os estudantes por faixa etária a fim de que houvesse um equilíbrio maior. No século XVIII a criança já ocupava um lugar importante no seio familiar e na sociedade. Segundo Ariès, “tudo o que se referia às crianças e à família tornara-se um assunto sério e digno de atenção. (...) A criança havia assumido um lugar central dentro da família” (1981, p.105). Era preciso, então, dar-lhe carinho, zelar pela sua saúde e educação, cercá-la de todo cuidado possível. Cada vez mais esse papel cabia ao adulto, representado na figura dos pais ou do mestre. Sobre esse último, Ariès comenta: Sua missão não consistia apenas em transmitir, como mais velhos diante de companheiros mais jovens, os elementos de um conhecimento; eles deviam, além disso, e em primeiro lugar, formar os espíritos, inculcar verdades, educar tanto quanto instruir. (1981, p.117)

De fato, a idéia de formação - no sentido de processo de dar forma a algo ainda amórfico- da criança caracterizou fortemente toda evolução do colégio. Acompanhado a ela, a definição de regras e de disciplina se tornaram importantes norteadores dessa lógica escolar, tendo em vista que as alterações ao longo do tempo se deram muito por conta do papel/função da instituição de enquadrar e vigiar os sujeitos - papel este que se mantém até os dias de hoje. O objetivo da disciplina, então, era incitar na criança o desenvolvimento de uma responsabilidade adulta, repleta de deveres. No geral, como pudemos notar, ao longo dos séculos, e paralelo às mudanças do colégio, foram muitas as transformações do conceito de infância e, consequentemente, do papel do adulto em relação a ela. Mudanças foram acontecendo no decorrer dos séculos XVI, XVII, XVIII e XIX, de modo a tornar visível a diferença entre crianças e adultos. O vestuário e a linguagem de crianças e adultos começaram a se diferenciar, livros referentes à pediatria infantil foram publicados, a literatura se desenvolveu, lançaram-se livros escolares seriados e organizaram-se as classes escolares de acordo com a idade cronológica das crianças, formando assim, a idéia da existência de seus estágios e da estrutura do desenvolvimento infantil, entre outras.(MÉLO; IVASHITA; RODRIGUES 2009, p.313.) 20

Com isso, ao longo dos séculos, nota-se que houve um deslocamento da percepção social sobre a criança. Se antes ela era vista enquanto um adulto não formado, do século XVIII em diante, a infância passou a ser entendida como uma espécie de etapa biológica que merecia ser respeitada em suas particularidades; “ser criança” – tanto biologicamente quanto culturalmente - parecia ser um direito inato. Nos últimos anos do século XVIII, então, diante de uma distinção cada vez mais abismal entre crianças e adultos, outro ponto reforçou a diferença entre eles: o acesso à informação. Nesse período, a idade adulta tornou-se uma espécie de conquista que necessitava passar pela educação, pelo letramento. Dessa forma, o acesso aos códigos lingüísticos transformou-se em um marco de passagem da infância para o mundo adulto. O adulto tornou-se o sujeito detentor da informação, enquanto a criança era vista como um ser que precisava instruir-se para civilizar-se. Era necessário prepará-la. Então, para que, um dia, tivesse condições de acessar tal conhecimento e participar do mundo maduro. Associada a acontecimentos de fundo econômico e social, a origem da literatura para crianças ocorre no século XVIII, período em que a Revolução Industrial é deflagrada. Determinando o crescimento político e financeiro das cidades, (...), a burguesia se afirma como classe social urbana, incentivando a consolidação de instituições que a ajudem a atingir as metas desejadas. Entre essas instituições, destacam-se a família e a escola. (ALBINO, S/D, p.02)

Diante disso, passou a ser importante apresentar as letras e o conhecimento sobre o mundo à criança através de uma linguagem acessível a ela: a forma lúdica. Os livros infantis surgiram nesta época com o propósito de ensinar comportamentos e condutas morais através de histórias repletas de fantasia. No início do século XIX, os irmãos Grimm e Hans Christian Andersen tornaramescritores famosos pelas suas publicações de livros de fábulas e histórias infantis. Suas obras contribuíram fortemente para o processo de legitimação da importância social da literatura infantil também em grande parte do século XX. Há de se comentar, entretanto, que ambos foram precedidos pelos escritores franceses Jean de La Fontaine e Charles Perrault. O primeiro fazia fábulas desde o 21

século XVII; e o segundo, considerado o “Pai da literatura infantil”, foi o precursor dos contos de fadas. No século de XVII, Perrault apresentou, em formato mais literário, histórias que até hoje são recontadas às crianças, como é o caso de Chapeuzinho Vermelho, A Bela Adormecida, Cinderella, O Gato de botas, entre tantas outras famosas. Apesar de parecer uma novidade do século XIX, vale lembrar que a ideia de educar os pequenos com histórias fantásticas veio de muito antes. Há correntes que afirmam que a origem das fábulas se deve aos gregos de VI a.C; outros remetem seu início ao século XVII a.C, na Suméria. Ainda que a data e local de seu surgimento ainda sejam informações nebulosas, é fato que, nestes períodos, a tradição da narrativa oral era muito forte, portanto, o grande marco da passagem do século XIX para o XX foi a proliferação do registro escrito desses contos, outrora conhecidos apenas pela oralidade. A possibilidade de ter a versão impressa das histórias foi primordial para o surgimento e a propagação da literatura infantil na sociedade. Eis então o motivo da grande importância da produção gráfica de/para a infância. Os livros impressos, somados à emergência das instituições escolares e da consequente pressão social que obriga e legitima a presença da criança no colégio, contribuíram significativamente para que houvesse a construção de uma nova infância no século XX. Pode-se dizer que as obras gráficas, para além de delimitar e legitimar divisões etárias – tanto da criança para o adulto, quanto das várias fases constituintes da própria infância - se tornaram fundamentais para “lapidar” mais especificamente cada etapa de formação da criança. Muito do propósito disso era fazer com que a passagem da infância à vida adulta – ainda que pautada em valores disciplinatórios - fosse algo mais leve e lúdico do que a Idade Média oferecia. No século XX, porém, este quadro sofre mudanças. Se ao longo dos séculos o letramento era algo imprescindível para a formação da criança e para a transição dela ao mundo adulto, no século XX em diante - com o desenvolvimento de uma sociedade progressivamente midiatizada - essa necessidade deixa de ser primordial. 22

Acontece que no final do século XIX houve o início do uso da energia elétrica na comunicação. Nesse período, começou a ser utilizado o telégrafo e os sistemas eletromagnéticos. Posteriormente, a transmissão eletromagnética foi adaptada para transmitir a fala também, o que contribuiu para que houvesse a criação dos sistemas de telefonia. Depois disso, e já no século XX, desenvolveu-se a transmissão da fala por ondas eletromagnéticas, o rádio (em 1920) e, por fim, a televisão (em 1940). (...) o desenvolvimento de novos meios de comunicação não consiste simplesmente na instituição de novas redes de transmissão de informação entre indivíduos cujas relações sociais básicas permanecem intactas. Mais do que isso, o desenvolvimento dos meios de comunicação cria novas formas de ação e de interação e novos tipos de relacionamentos sociais – formas que são bastante diferentes das que tinham prevalecido durante a maior parte da história humana. Ela faz surgir uma complexa reorganização de padrões de interação humana através do espaço e do tempo. (THOMPSON, 2013, P.119)

Uma das mudanças sociais derivadas dessa onipresença da mídia foi a horizontalização do acesso ao código, ou seja, através disso houve uma maior democratização de conhecimentos, já que tanto pessoas letradas quanto não-letradas puderam compreender as mensagens emitidas e interagir com elas. Os novos meios de comunicação instauraram, dessa forma, uma reconfiguração social bastante significativa não apenas no que compete à tecnologia, mas também no que se refere a todos os reflexos dela na dinâmica sócio-cultural vigente. Com a televisão, a base dessa hierarquia de informações se desmanchou, pois as informações e os entretenimentos estão disponíveis para todos. Afinal, assistir televisão não requer uma preparação de habilidades para compreendê-las; não é necessário, por exemplo, que as crianças vão para a escola aprender a entender a televisão. (MÉLO; IVASHITA; RODRIGUES, 2009, p.314)

Por isso, a televisão e os códigos audiovisuais em geral passaram a ser acessíveis tanto a adultos quanto a crianças. Dessa forma, no decorrer do século XX em diante, ambos passaram a compartilhar de uma mesma linguagem. “As fronteiras que separavam um universo do outro, tão bem demarcadas pela prensa tipográfica, estariam desaparecendo e constata-se uma proximidade entre o mundo das crianças e dos adultos.” (MÉLO; IVASHITA; RODRIGUES, 2009, p.314).

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Como fora mencionado, tal proximidade, por sua vez, não se limita apenas ao simples acesso ao meio tecnológico enquanto ferramenta, mas sim a algo mais amplo, ou seja, ao mundo de significados evocado pelo meio. No caso, a linguagem midiática promove a quebra de fronteiras que antes delimitavam quem estava apto ou não a acessar um determinado conhecimento, todavia, isso não é algo bom de todo, já que uma nova crise emerge desta situação. Com mudanças tão significativas como as que foram ditas, no século XX, instaura-se uma crise social, e por consequência, uma crise educacional também, haja vista que a escola não acompanhou tais mudanças: “[A] incapacidade da escola encontra-se no fato de ela estar alicerçada na escrita, que é o âmbito da palavra e da demora, aspectos tão diversos da cultura do tempo real, da cultura e da mídia.” (SILVEIRA, 2000, p.6). Para Foucault (1979), o século XX presenciou o apogeu da crise da sociedade disciplinar, ou seja, a crise das instituições de confinamento que objetivavam, em algum nível, disciplinar corpos e espíritos, entre elas, a escola. Uma série de razões fez a escola passar por tal crise, entretanto, não se adequar à nova demanda social e ignorar que a lógica da disciplina não funcionava mais podem ter sido fatores cruciais para o agravamento do quadro. Não bastassem tais problemas, vieram as novas tecnologias para complicar ainda mais a situação da escola. As novas tecnologias, por sua vez, sugeriram uma nova forma de linguagem e de educação. Mais acessível, menos exclusiva e com um ritmo diferente, a tecnologia fez com que o método escolar - o mesmo usado há séculos - parecesse bastante ultrapassado. As novas tecnologias, o consumo e a influência da mídia marcam, modelam e constroem as subjetividades contemporâneas. Se por um lado, os adultos romperam com a rigidez da educação à qual foram submetidos, por outro, na tentativa de se adaptarem ao mundo atual, sentem-se por vezes inseguros quanto à forma de agir com os filhos, apresentando dificuldades em lidar com conflitos. (CAMPOS; SOUZA, 2003, p.9)

Como a citação esclarece, nota-se que o surgimento da tecnologia fez com que houvesse uma mudança significativa tanto na educação quanto na relação da criança 24

com os pais e com o mundo propriamente. A criança do século XX passou a ver menos sentido na escola, já que ela estava à mercê de um universo de informações muito maior e dinâmico em que seu conhecimento era muito mais valorizado. Com tal mudança, a criança parecia cada vez mais abrir mão de ser um aluno (do latim, alumnus, sem luz), para ser alguém de participação social equiparada a de um adulto, ativo e participante do mundo –, já que ela não precisava mais dominar códigos linguísticos para saber tanto quanto ele. Inaugurou-se com isso, então, um novo tipo de comunicação, capaz de atingir e igualar um maior número de pessoas por dissolver qualquer barreira de acesso antes imposta pelo código gráfico. Diante disso, pode-se dizer que a televisão promove uma espécie de acesso democrático ao seu conteúdo, tendo em vista que todos, independentemente da idade ou nível escolar, podem dialogar com seu conteúdo, sem que para isso possua um critério a priori. (...) a televisão destrói a linha divisória entre infância e idade adulta de três maneiras, todas relacionadas à sua acessibilidade indiferenciada: primeiro, porque não requer treinamento para aprender sua forma; segundo porque não faz exigências complexas nem à mente nem ao comportamento, e terceiro porque não segrega seu público [...]. O novo ambiente midiático que está surgindo fornece a todos, simultaneamente, a mesma informação. (POSTMAN, 1999, p.94).

Nesse cenário, nota-se que o meio televisivo, justamente por possuir uma linguagem capaz de aproximar crianças e adultos, vem promovendo cada vez mais uma produção hibridizada, que supostamente objetiva atingir ambos os públicos. Distinguir o que de sua programação destina-se a um ou a outro espectador vem se tornando uma tarefa cada vez fica mais árdua. Na grade da TV, as propagandas em especial, têm promovido uma imbricação cada vez maior de características e comportamentos culturalmente associadas (os) ao adulto e a criança separadamente. Comumente se depara com anúncios em que o adulto aprende com a criança, e não o contrário. Na década de 90, grande parte das propagandas televisivas representava a infância com uma aura de sabedoria, enquanto o adulto parecia embevecido com toda essa precoce “inteligência” e “perspicácia”. 25

Antes a lógica da identificação comumente norteava a publicidade, e reconhecerse nela parecia ser fundamental para alcançar o indivíduo e fazê-lo desejar o produto exibido. Os modelos de propaganda utilizados objetivavam justamente: Criar intimidade com os consumidores, de forma que eles se vejam refletidos nas imagens propostas. Dessa forma, a propaganda, presente nos lugares mais secretos de nossas vidas, ao propor que o consumidor se identifique com a marca/logo, também propõe uma identificação com determinados modelos que reforçam “identidades”. (BELELI, 2007, p.194)

Todavia, agora, uma nova tendência vem emergindo e a ideia do reconhecimento parece estar abrindo lugar para uma nova forma de apelo ao consumo. As mudanças encontradas na publicidade televisiva, porém, revelam um movimento muito maior que vem se constituindo no corpo social. Aparentemente, não é apenas a representação midiática do adulto e da criança que está passando por transformações, mas a própria construção de identidade e papeis dos mesmos na sociedade como um todo, como discutiremos no próximo capítulo.

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Capítulo II: Os anos 90 e a emergência de um novo paradigma identitário Os anos 90 marcam uma importante passagem histórica e social, afinal, trata-se justamente da década limiar entre o século XX e XXI. Mais do que uma simples transição temporal, o período promove uma mudança significativa na sociedade como um todo, incluindo alterações no espaço, nas relações e na identidade dos indivíduos. Um tipo diferente de mudança estrutural está transformando as sociedades modernas no final do século XX. Isso está fragmentando as paisagens culturais de classe, gênero, sexualidade, etnia, raça e nacionalidade, que no passado, nos tinham fornecido sólidas localizações como indivíduos sociais. Estas transformações estão também mudando nossas identidades pessoais, abalando a ideia que temos de nós próprios como sujeitos integrados. (HALL,2011, p.9)

Segundo Stuart Hall, todas essas mudanças no cenário social moderno caracterizam uma descentração do indivíduo, tanto no que se refere ao lugar do mesmo na sociedade quanto em relação a ele próprio, internamente. Responsável pela fragmentação das identidades modernas, este deslocamento seria o motivo da crise identitária atual. Embora a palavra “crise” soe como algo negativo, isso não é necessariamente ruim; afinal, é muito por razão dela que vem emergindo novas possibilidades de articulações sociais - menos engessadas que os períodos anteriores -, e derivadas da produção de novos sujeitos descentrados. Diante disso, se antes o sujeito possuía uma identidade estável, com a modernidade ele se viu frente a um leque de opções possíveis, ainda que nem sempre harmônicas entre si. A falta de coerência entre tantas identidades gera um conflito interno que, por sua vez, se reflete no comportamento do sujeito em atuações sócias ressignificadas. Sendo as sociedades modernas entendidas, então, enquanto sociedades de mudança constante e rápida, a identidade dos sujeitos também passa a acompanhar este fluxo. As sociedades da modernidade tardia, argumenta ele [Esnest Laclau], são caracterizadas pela ‘diferença’; elas são atravessadas por diferentes divisões e antagonismos sociais que produzem uma variedade de diferentes ‘posições de sujeito’ – isto é, identidades – para os indivíduos. (HALL, 2011, p.18) 27

No final do período moderno, compreende-se que a identidade é algo construído, e não algo que nasce com o sujeito. Esta noção permite que o indivíduo se crie (e recrie) de forma muito mais plural e flexível. “Assim, em vez de falar da identidade como uma coisa acabada, deveríamos falar de identificação [sic], e vê-la como um processo em andamento.”, esclarece Hall (2011, p.39). A lógica de identificação já é algo utilizado há tempos pelas mídias, em especial, pelas propagandas. A publicidade desenvolve suas narrativas comerciais fazendo uso de imagens ou estilos de vida que toquem o telespectador/consumidor a ponto de ele identificar-se em algum grau com o que é representado no anúncio. Quando o consumidor se familiariza com algum perfil ou circunstância exposto(a) na propaganda, aquilo faz sentido para ele e, portanto, adquirir o produto/serviço anunciado passa a ser uma prática mais natural, já que é coerente com o estilo de vida que ele tem – ou desejaria ter. Os estilos de vida constituem, em resumo, uma forma por intermédio da qual o pluralismo da identidade pós-moderna é administrado pelos indivíduos e organizado (e explorado) pelo comércio. Para os sujeitos que não podem mais se apoiar na estabilidade oferecida pelos modos de vida tradicionais, comunitários, o estilo de vida funciona, inegavelmente, como uma (precária) âncora identitária. (FREIRE, 2003, p.74)

Assumir-se pertencente a um (ou vários) estilos de vida, acaba sendo uma tentativa de enquadrar-se minimamente em algo que confira ao indivíduo algum tipo de identificação. A identidade, dessa forma, revela-se uma “falta de inteireza que é ‘preenchida’ a partir do nosso[sic] exterior, pelas formas através das quais nós imaginamos ser vistos por outros [sic].” (HALL, 2011, p.39) Com o capitalismo sendo um sistema já consagrado nos anos 90, inevitavelmente a busca por referenciais externos em prol da estruturação de uma consciência interna do sujeito – refletida na identidade – se dava pelo consumo. Como Kathryn Woodward lembra, “existe uma associação entre a identidade da pessoa e as coisas que uma pessoa usa. (...) Assim, a construção da identidade é tanto simbólica quanto social.” (2000, p.10).

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Segundo Woodward, o social e o simbólico são processos diferentes, embora complementares. “A marcação simbólica é o meio pelo qual damos sentido a práticas e a relações sociais.” (2011, p.14), explica. Sobre isso, de acordo com Mary Douglas e Baron Isherwood, “os bens são neutros, seus usos são sociais; podem ser usados como cercas ou como pontes.” ( 2013, p.30). Assim, embora os bens consumidos sejam simbólicos, o uso social deles é que confere sentido a determinadas práticas. Por exemplo, comprar uma blusa preta pode ser algo neutro; por outro lado, a forma como for usá-la revela o simbolismo e o sentido social daquele bem: vesti-la em uma festa pode ser associado à elegância, vesti-la em um velório relaciona-se a luto etc. “É por meio dos significados produzidos pelas representações que damos sentido à nossa experiência e àquilo que somos”, diz Woodward. O consumo, assim, contribui nas relações entre indivíduos e grupos bem como na significação de práticas sociais. Quando o sujeito consome, ele busca que o grupo ao qual pertence reconheça no bem adquirido uma marca de sua identidade. Reveladoras, as relações de consumo são, então, relações sociais. Quando se diz que a função essencial da linguagem é sua capacidade para a poesia, devemos supor que a função essencial do consumo é sua capacidade de dar sentido. Esqueçamos a ideia da irracionalidade do consumidor. Esqueçamos que as mercadorias são boas para comer, vestir e abrigar; esqueçamos sua utilidade e tentemos em seu lugar a noção de que as mercadorias são boas para pensar: tratêmo-las como um meio não verbal para a faculdade humana de criar. (DOUGLAS; ISHERWOORD, 2013, p.106)

Como a sociedade do final do século XX estimula a criação de identidades mais flexíveis, consumir bens para fazer-se reconhecer pertencente a determinado grupo/tempo/espaço acaba sendo uma prática intensa, afinal, um mesmo sujeito pode pertencer a grupos diferentes, pode circular por espaços diferentes etc. Para dar conta de tantas identidades em tantas circunstâncias distintas – e considerando ainda a efemeridade característica da modernidade -, o sujeito tende a consumir intensamente. Quanto mais a vida social se torna mediada pelo mercado global de estilos, lugares e imagens, pelas viagens internacionais, pelas imagens da mídia e pelos sistemas de comunicação globalmente interligados, mais as identidades [sic] se tornam desvinculadas – desalojadas – de 29

tempos, lugares, histórias e tradições específicos e parecem ‘flutuar livremente’. Somos confrontados por uma gama de diferentes identidades (cada qual nos fazendo apelos, ou melhor, fazendo apelos a diferentes partes de nós), dentre as quais parece possível fazer uma escolha. Foi a difusão do consumismo, seja como realidade, seja como sonho, que contribuiu para esse efeito de ‘supermercado cultural’. (HALL, 2011, p.75)

Esse “supermercado”, que Stuart Hall comenta, supõe que todo tipo de identidade está alcançável pelo consumo. É possível – e cada vez mais necessário - ter para ser, ou parecer ser. Sobre isso, Gilles Lipovetsky (2007) reforça a importância do mercado em nosso tempo e diz que vivemos na sociedade de hiperconsumo, ou seja, em uma época onde o consumidor assume o papel central, e na qual "o imperativo é mercantilizar todas as experiências em todo lugar, a toda hora e em qualquer idade (...)." (p.13). Para Lipovetsky, a sociedade do hiperconsumo seria caracterizada pela centralidade do consumidor. Segundo ele, o triunfo do capitalismo acaba suplantando o poder do Estado em prol do poder do mercado, e este novo cenário social contribui para que se construa um ethos consumista e conseqüente, um novo tipo de sujeito. Este novo sujeito, o hiperconsumidor, não deseja apenas consumir materialmente; ele deseja consumir sensações, experiências. Um Homo consumericus [sic] de terceiro tipo vem à luz, uma espécie de turbo-consumidor desajustado, instável e flexível, amplamente liberto das antigas culturas de classe, imprevisível em seus gostos e em suas compras. De um consumidor sujeito às coerções sociais da posição, passou-se a um hiperconsumidor à espreita de experiências emocionais e de maior bem-estar, de qualidade de vida e de saúde, de marcas e de autenticidade, de imediatismo e de comunicação. (LIPOVETSKY, 2007, p.14)

Nesta nova sociedade, apesar de vender-se a ideia de felicidade a todo momento e a qualquer custo, os sujeitos – de todas as faixas etárias, já que “nenhuma categoria de idade escapa às estratégias de segmentação do marketing” (2007, p.14) – são cada vez mais inseguros, depressivos, frustrados; estas contradições, segundo Lipovetsky, configurariam a chamada “felicidade paradoxal” vigente. Porém, ainda que consumir não garanta a felicidade idealizada, tal prática, segundo o autor, não deixa de ser uma fonte de realização para o sujeito moderno, que, 30

embora em uma escala instável de altos e baixos, de otimismo e pessimismo, faz uso do consumo para se tornar um “colecionador de experiências” (LIPOVETSKY, 2007). O consumo, assim, passa a ser uma maneira de expressar-se. O sujeito consome para quebrar uma rotina, para sentir algo novo, para poder ser quem quiser. Consumir torna-se uma forma de comunicação, uma maneira de revelar algo sobre si – personalidade, desejos, intenções – e também, uma forma de recompensa - um prazer em forma de distração, um prazer de reinventar-se. É preciso interpretar o apetite consumista como uma maneira, decerto banal, mas mais ou menos bem-sucedida, de conjurar a fossilização do cotidiano, de escapar à perpetuação do mesmo pela busca de pequenas novidades vividas. Através do ato do consumo, é a rejeição de uma certa rotina e da coisificação do eu que se exprime. O hiperconsumo é a mobilização da banalidade mercantil, com vista à intensidade vivida e à vibração emocional. (LIPOVETSKY, 2007, p.69)

Este mesmo desejo de evitar a fossilização, dita por Lipotesky, vai além do cotidiano. O sujeito do fim do século XX - e do século XXI também - não deseja nada que lembre um estado fóssil. Nada que soa como fixo, como antigo, como retrógrado, ultrapassado, atrai a esmagadora maioria dos indivíduos modernos. Experiências novas, roupas novas que acompanhem a tendência, lançamentos do mercado, tudo que remeta ao novo tende a ser valorizado. Além do ter coisas novas, o sujeito quer ser jovem. Preocupações com o corpo, e com tudo que se refere à estética são questões altamente presentes na vida do indivíduo moderno; a busca pelo estado de jovialidade igualmente acompanha esta preocupação. Instaura-se socialmente o sonho da juventude eterna e, neste cenário, rejuvenescer passa a ser uma meta tanto física quanto espiritual. Como Lipovetsky diz, “se os velhos querem parecer jovens, os jovens adultos ‘recusam-se’ a crescer: (...) parecem querer viver no eterno prolongamento de sua infância ou de sua adolescência.” (2007, p.71). Com a emergência destas novas necessidades do sujeito moderno, o mercado teve de se adequar. Entretenimento, moda, e tantos outros ramos mercadológicos investiram na disponibilização de produtos que oferecessem ao consumidor a sensação de jovialidade. “Por meio da ‘entretenimentização’ da economia, a TV, os filmes, os 31

parques temáticos, os videogames, os cassinos, etc, se tornam os maiores setores da economia nacional”, afirma Douglas Kellner (2006, p.6). No campo do entretenimento, pode-se destacar o boom nos anos 90 das chamadas “festas goonies”, ou “festas ploc”, cuja característica principal é promover uma espécie de triunfo ao saudosismo. Com músicas famosas da década de 80, presença de artistas de sucesso da época, produtos típicos do período homenageado etc, essas festas tornaram-se a própria celebração do desejo de reviver um tempo que não volta mais.

Convite de uma festa Ploc. Slogan: “Venha reviver os anos 80” (Fonte: agitogoiania.com.br)

Também nesta época, diversos filmes com temática jovem e infantil foram lançados. Muitos HQs estrelaram no cinema para alegrar aos adultos que queriam relembrar suas infâncias. Podemos citar como exemplos:Batman & Robin, As Tartarugas Ninjas, O Fantasma, Capitão América, O Máskara, Sabrina- a bruxa adolescente, Flash, entre muitos outros. Uma enorme lista de desenhos animados – que encantou crianças e adultos também foi lançada, como O Rei Leão, Toy Story, A Bela e a Fera, Alladin, Mulan, Pocahontas, Tarzan, O Corcunda de Notre Dame, 101 dálmatas etc...Isso sem contar os filmes estrelados por crianças e adolescentes, como As patricinhas de Beverly Hills,

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Esqueceram de mim (e todas as suas sequências), Os Batutinhas e Meu primeiro amor, por exemplo, que mostravam a esperteza e a alegria infantil e juvenil. Na TV, os Simpson faziam sucesso com públicos de todas as idades. No campo da moda, pode-se dizer que a década de 90 foi invadida pelas referências infantis, com roupas estampadas com personagens de desenhos animados, macacão jeans, mochilas e acessórios coloridos, como bonés e relógios. A febre dos patins, patinete e videogames, então diversões infantis, também alcançou os adultos nos anos 90. Diante deste vasto cenário de produtos, nota-se como ponto comum o enorme esforço do mercado em oferecer o maior número possível de opções em todos os ramos para conseguir realizar o desejo do adulto moderno: não envelhecer. Ao mesmo tempo em que os anos 90 consagravam o capitalismo e toda sua ânsia por trabalho e lucro, o adulto – estressado com tudo isso – e em crise com seu infinito leque de identidades possíveis tinha no consumo uma espécie de “válvula de escape” que lhe oferecia, através de uma série de produtos, o conforto de uma lembrança boa da infância e a promessa de que aquele tempo bom e com tão poucas preocupações poderia estar ao alcance dele. De um lado a Arcádia da mercadoria impele os indivíduos a responsabilizar-se por si, informar-se, tornar-se gestores adultos de sua vida. Do outro, ela funciona como um agente de 'infantilização' dos adultos. Uma das propensões do hiperconsumidor é menos para impor-se como 'gente grande' diante do outro que para voltar a ser 'pequeno'. (LIPOVETSKY, 2007, p.71)

Como grande parte dos adultos modernos têm contas a pagar e uma família para assumir, não é possível simplesmente abrir mão de tudo e voltar à infância; e esta é uma consciência tão concreta na modernidade quanto o desejo de que não o fosse. Com isso em mente, se por um lado o indivíduo moderno nutre o sonho de rejuvenescer de corpo e de espírito, por outro, ele visa chegar o mais próximo disso delegando mais responsabilidades para a criança. Alimentando a autonomia e a adultização da criança, ele a reconhece enquanto ser capaz de escolher o que comer, o que vestir, o que assistir, o que consumir em geral - tanto para ela quanto para toda família. Eis aí a crise do paradigma identitário dos anos 90, que se mantém e se intensifica até hoje: um adulto que quer reviver 33

tardiamente sua infância e adolescência, e uma criança que se vê tendo de amadurecer o quanto antes. Segundo Rita M. Ribes Pereira, “como desdobramento disso, temos um esvaziamento do lugar do adulto no que se refere às suas responsabilidades para com a criança, que, por sua vez, experimenta a controvertida aventura do “virar-se sozinho” (2002, pág.83). Assim, enquanto a criança assume uma postura mais independente e central na família tornando-se o novo "reizinho do lar" (GUIMARÃES; PEREIRA, 2009); o adulto – que deseja ter um estilo de vida menos esgotante - passa, assim, a "comprar para si ursinhos, usar camisetas Barbie, circular de patins ou patinetes, participar de reuniões sociais em que se cantam as canções dos programas de televisão de sua infância." (LIPOVETSKY, 2007, p.71). Como o adulto nutre este desejo por uma vida mais leve, ele incentiva que a autonomia da criança floresça mais precocemente para que ele próprio usufrua de uma certa jovialidade por mais tempo; assim, o adulto abdica de determinado poder no núcleo familiar e a criança, por sua vez, progressivamente e cada vez mais cedo, o ocupa. Ao contrário do que possa parecer em um primeiro momento, nem sempre estas posições sociais ocupadas por adultos e crianças são escolhas planejadas por cada indivíduo, muitas vezes elas acabam sendo fruto de uma consciência discursiva e coletiva da modernidade que ressoa no pensar e agir individual de cada sujeito constituinte da mesma. Como Kathryn Woodward diz, “as posições que assumimos e com as quais nos identificamos constituem nossas identidades. (...)” (2000, p.55), porém, ainda segundo ela, há também a ação do inconsciente. A ‘descoberta’ do inconsciente, de uma dimensão psíquica que funciona de acordo com suas próprias leis e com uma lógica muito diferente da lógica do pensamento consciente do sujeito racional, tem tido um considerável impacto sobre as teorias da identidade e da subjetividade. A ideia de um conflito entre os desejos da mente inconsciente e as demandas das forças sociais, tais como elas se expressam naquilo que Freud chamou de supereu, tem sido utilizada para explicar comportamentos irracionais e o investimento que os sujeitos podem ter em ações que podem ser vistas como inaceitáveis por outros, talvez até mesmo pelo eu consciente do sujeito. (WOORDWARD, 2000, p.62) 34

Assim, se por vezes o sujeito moderno opta por adotar um estilo de vida mais infantilizado, ou por delegar responsabilidades demais à criança, ele pode, ao mesmo tempo, se condenar por isso e viver em conflito por desejar conscientemente agir de um modo que vai contra a sua prática. Nem sempre a ação feita é a resposta coerente de uma reflexão anterior. Woodward lembra mais algumas dessas situações em que vamos contra nossos interesses racionais, como, por exemplo, quando nos apaixonamos por pessoas com as quais sabemos que não vai dar certo, ou gastamos um dinheiro que sabemos que nos fará falta. Estas análises psicanalíticas não são consenso, como a autora comenta, no entanto, o que nos vale de discussão desse campo é o quanto que os desejos conscientes e inconscientes podem interferir no processo de identificação do sujeito. É importante pensarmos sobre este ponto justamente porque a mídia, e a publicidade televisiva em especial, estrutura seus discursos (por textos, imagens, sons etc.) em prol de promover esta identificação com o sujeito para convencê-lo do consumo – de produtos, serviços ou identidades. Na verdade, a Comunicação de Massa não explicita o desejo de mandar em ninguém sob nenhum ponto de vista. Ela certamente pode convencer, enganar, mistificar, mentir, persuadir, convencer, iludir, engodar, seduzir e muitas outras qualificações quantas vezes atribuídas. Os adjetivos são legítimos, mas o fato é que essas qualidades não instauram propriamente uma ordem de comando, pois mandar mesmo, ordenar efetivamente, se ver obedecida é algo estranho – ou ao menos não é muito necessário – na experiência dentro da Indústria Cultural. A ideia de um poder exercido na dimensão interna da Comunicação de Massa é de difícil sustentação. Ela não precisa mandar, uma vez que pode convencer. (ROCHA, 2012, p. 174)

Tendo em vista o poder de convencimento da propaganda televisiva, nota-se a relevância de debruçar-se sobre seu conteúdo para identificar do que exatamente os anúncios querem convencer; para além do óbvio – a compra do produto exibido – acerca de que práticas, que comportamentos, e com que tipo de pensar eles querem persuadir o sujeito moderno.

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Nos anos 90 houve um grande número de anúncios publicitários televisivos de produtos que teoricamente seriam destinados ao público adultos, mas que, por causas ainda nebulosas, foram estrelados por crianças. Em tais anúncios, as crianças assumiam uma identidade mais amadurecida do que se espera em suas faixas de idade; elas tinham voz ativa e "adultizada", e ofereciam os produtos ao telespectador/consumidor com muita segurança e conhecimento de causa, ainda que, repito, não fossem produtos os quais elas poderiam usufruir diretamente, como contas no banco, postos de gasolina etc. Por outro lado, nestas mesmas propagandas, o adulto era retratado com um ar mais infantil, atuando na posição daquele que não apenas se curva frente à sabedoria dos pequenos, como também aprende com a esperteza deles e, quiçá, inveja-o em seu espírito jovial. Frente a este cenário, presume-se então que o segmento publicitário tenha percebido uma certar e organização de papéis na família e na sociedade e, identificando o visível desgaste do adulto com responsabilidades, tenha reparado, assim, a existência de um novo sujeito definidor do consumo na família: a criança. Partindo do pressuposto de que "tanto a comunicação quanto consumo são parte crucial do universo de experiências sociais no qual vivemos" (ROCHA; BARROS, 2001), faz-se de fundamental importância refletir mais criticamente acerca desses anúncios publicitários enquanto um tipo de produção midiática veiculador de discursos e poder. Vale ressaltar que a publicidade é capaz de revelar muito acerca da realidade cultural moderna, dado que a primeira é tanto fruto quanto formadora social, tanto estruturada quanto estruturante pelo/do meio social. Como Douglas Kellner diz, "o espetáculo da mídia está invadindo todos os campos da experiência, desde a economia e a cultura até a vida cotidiana, a política e a guerra." (2006, p.11). Para ele, o infoentretenimento seria a forma predominante de linguagem a perpassar todo o sistema midiático e social, como, por exemplo, o campo da moda, arquitetura, música, gastronomia, sexualidade, vídeos e jogos de computadores etc. “A cultura da mídia não aborda apenas os grandes momentos da vida comum, mas proporciona também material ainda mais farto para as fantasias e sonhos, modelando o pensamento, o comportamento e as identidades”, afirma Kellner (2006, p.5).

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Assim, diante de toda audiência que a televisão possui em um bios midiático caracterizado justamente pela onipresença dos meios comunicacionais e pelas relações estabelecidas entre meios e sujeitos, fazer uma leitura cuidadosa do conteúdo destes anúncios publicitários torna possível traçar um perfil do sujeito ao qual eles se endereçam para que este mesmo sujeito tenha um consumo – de bens ou identidade – mais consciente. Refletir sobre o discurso midiático, então, passa a ser uma forma de tentar compreender do que exatamente a publicidade espera que o sujeito se convença e para que. Sob a influência de uma cultura imagética multimídia, os espetáculos sedutores fascinam os ingênuos e a sociedade de consumo, envolvendo-os na semiótica de um mundo novo de entretenimento, informação e consumo, que influencia profundamente o pensamento e a ação. (KELLNER, 2006, p.5)

Todo esse cenário midiático e hiperconsumista (LIPOVETSKY, 2007) bem como o reflexo de ambos na estruturação social, faz com que entendamos os anos 90 como um período histórico de “crise”. Conforme vimos, o conflito do sujeito para consigo e para com as mudanças do mundo marcaram o período de divisão entre os séculos XX e XXI. Nessa época vivenciamos uma sociedade centrada no consumidor, no infoentretenimento, avidamente desejosa de experiências e sensações, extremamente pautada na mídia e nas tecnologias, bem como na incansável tentativa de ser eternamente jovem. Diante de tantas mudanças e instabilidades, o sujeito passou a desejar ter um estilo de vida mais leve e despreocupado, ou seja, um estilo mais infantil. Este mesmo desejo foi identificado pela mídia e pelo mercado, que então, passaram a oferecer ao adulto uma série de bens, serviços e programações capazes de fazer o adulto se aproximar deste novo objetivo de vida. Assim, crianças e elementos infantilizados começaram a fazer parte cada vez mais ativamente da estruturação social. Com isso, as crianças, por sua vez, se viram tendo que ocupar um lugar social nunca antes assumido por ela: o centro; tanto da família quanto mercado.

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Capítulo III: Propagandas televisivas dos anos 90: crianças falam ao público adulto Como foi dito anteriormente, nos anos 90 a criança passou a ocupar um lugar central na família e no mercado. Neste período, houve uma grande produção de campanhas publicitárias televisivas estreladas por crianças - e/ou com participação bastante ativa das mesmas – em anúncios de produtos voltados para o público adulto. Para exemplificar mais concretamente alguns pontos ponderados anteriormente, foram selecionadas dez propagandas para serem analisadas mais a fundo neste trabalho monográfico, sendo uma de cada ano da década dita. No entanto, como o número de anúncios encontrados com tais características foi expressivo, ao longo do capítulo serão citados outros exemplos que podem acrescentar valor ao estudo em questão. As propagandas que possuem crianças como personagem central do anúncio, e que, por isso, receberão mais atenção nesta pesquisa são: papel higiênico Personal (1990), açúcar União (1991), filmes e revelações Kodak (1992), Poupança Especial do banco Banespa (1993), margarina All Day (1994), gasolina Esso (1995), Poupança Especial do banco Bradesco (1996), carro Volkswagen (1997), celular Telesp (1998) e empresa de telefonia Embratel DDD (1999). Diante de tantos anúncios protagonizados por crianças nas últimas décadas, por vezes temos a sensação de que as publicidades adultas e infantis sempre caminharam juntas, no entanto, vale lembrar que a estruturação de tal realidade que hoje vemos foi um processo gradativo. A comunicação publicitária televisiva surgiu, no Brasil, em 19511, um ano após o surgimento da TV no país, e, no início, voltara-se apenas para o público adulto, entendido como consumidor e dono do poder de compra. Há de se ressaltar que, no entanto, em tal época, a televisão não tinha a mesma importância social de hoje, tendo em vista que o aparelho televisivo possuía um alto custo (quase o mesmo preço de um carro), e que, por isso, poucos lares no país possuíam tal meio de comunicação. Para se ter uma noção básica da diferença: nos anos

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Informação obtida na resenha “História da Publicidade”, de Jurema Brasil. Acessada 10/11/2013, em http://www.casperlibero.edu.br/noticias/index.php/2009/09/25/historia-da-publicidade,n=1564.html.

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50 havia apenas 11 mil televisores em todo país; já em 2011, segundo dados do Pnad2 (Pesquisa Nacional por Amostras de Domicílios), 96,9% das casas brasileiras possuíam o aparelho, e esse número conseguia, inclusive, ser maior do que o número de casas com geladeira, que totalizavam 95,8%. Foi nos anos 50, período do pós-guerra, que se consolidou a sociedade de consumo no país. Nessa época, houve uma grande produção de eletrodomésticos e veículos, além de uma série de outros bens. Para dar conta do consumo de toda essa produção, começaram a surgir algumas estratégias para intensificar o consumo, como a criação dos crediários, por exemplo, que visava facilitar a aquisição de bens e contribuir para o avanço da economia no país. Como a compra estava sendo estimulada, a publicidade, objetivando reforçar ainda mais a lógica do consumo, também passou a ser incentivada. Para que o crescimento do mercado publicitário pudesse ser feito de forma organizada foi preciso, então, criar algumas associações, como a Associação Brasileira de Propaganda (ABA), o Conselho Nacional de Imprensa (CNI) e a Associação Brasileira de Agência de Propaganda (ABAP), por exemplo. Apesar do “boom” de produção e propaganda dos/nos anos 50, foi somente entre as décadas de 70 e 80 que a publicidade brasileira começou a produzir ações - diretas e indiretas - direcionadas para um novo público alvo: o infantil. Antes disso, crianças apareciam basicamente em anúncios de itens alimentícios. Foi nos anos 90, porém, que houve um aumento considerável do leque de produtos estrelados por atores e atrizes mirins. De acordo com Inês Sampaio (2000), são quatro as principais razões que os publicitários consideram essenciais para se compreender a escolha de uma criança como estrela das produções midiáticas: 1) a criança ouve outra criança, ou seja, ela é particularmente sensível à interpelação de outra criança; 2) a criança tem um forte apelo emocional ou, (...), ela tem um ‘apelo mágico’ que emociona o adulto e o sensibiliza; 3) a criança pode contribuir para o rejuvenescimento

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Informação encontrada no Portal G1. Acessada em 10/11/2013, em: http://g1.globo.com/economia/noticia/2012/09/numero-de-casas-com-tv-supera-o-das-que-temgeladeira.html

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da marca; 4) a criança tem empatia com os anunciantes, favorecendo a aprovação dos comerciais. (SAMPAIO, 2000, p.152)

Conforme Sampaio esclarece, na década de 90 a lógica capitalista já identificava a importância da exibição infantil para o incentivo a prática do consumo. Assim, o uso da imagem da criança vinculava-se (e vincula-se até hoje) tanto para ser uma ponte mediadora de comunicação entre o produto e o consumidor final – entendido enquanto aquele que tem o poder efetivo de compra, no caso, o adulto -, quanto para revigorar a própria marca e fazê-la mais aceitável socialmente. Um bom exemplo deste último ponto é o caso da empresa de telefonia Oi, que, segundo dados de 2012 divulgados no Teleco e produzidos pela Anatel - Agência Nacional de Telecomunicações - foi, no primeiro trimestre daquele ano, a empresa de telefonia que mais recebeu reclamações 3. Neste mesmo período – no mês de maio, mais especificamente -, porém, a marca ficou em 2º lugar dentre as operadoras de telefonia fixa mais adoradas pelo público, de acordo com o ranking da pesquisa feita pela revista Consumidor Moderno4. Eis um paradoxo interessante: como, em um mesmo período, uma empresa consegue ser eleita a pior e, ao mesmo tempo, a mais querida pelo consumidor? A publicidade pode ser uma resposta. As propagandas da Oi Telefonia ficaram famosas por fazerem uso de crianças dizendo “oi” ao final de cada anúncio. No Fórum do Yahoo respostas5, alguns internautas opinaram sobre o assunto dizendo que a criança na campanha publicitária da empresa é algo “meigo, inocente, atrativo”; um internauta justificou o uso da imagem infantil dizendo que “as crianças são fofinhas e eles [Oi] ganham em publicidade por isso.”

3

http://www.teleco.com.br/qsmc_reclamacoes.asp http://consumidormoderno.uol.com.br/estudos-e-pesquisas/pesquisa-revela-as-marcas-mais-amadaspelo-consumidor-brasileiro 5 Ver anexo 1. 4

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Crianças em propaganda da Oi Telefonia – 2012

Diante de tais argumentos, a imagem das crianças na campanha publicitária pode ter contribuído para que a marca caísse no gosto do consumidor adulto, que, segundo os comentários feitos, reconhece o uso de crianças como algo que sensibiliza e comove o público. Da mesma forma, tal fato justifica uma consequente avaliação positiva da marca feita pelo consumidor, que, ainda que reconheça a fraca qualidade do serviço e engrosse o índice de reclamações contra a empresa, ainda assim se simpatiza com a forma com o qual é abordado na propaganda da marca. Em suma: a propaganda tem a capacidade de melhorar a relação do cliente com a marca; e usando imagens de criança em anúncios há indícios de que a melhora consegue ser ainda mais significativa. A partir da década de 80 já não se percebia mais a criança enquanto um ser desimportante para a economia, muito pelo contrário, notava-se nela um novo comprador, alguém já autônomo e pertencente a um rico e promissor campo a ser explorado pelo mercado; tanto com produtos para ela quanto usando a imagem dela para alcançar outros públicos. Dos anos 90 em diante - segundo José Júnior, Camila Fortaleza e Josemar Maciel - o status da criança passa a ser “de cliente que opina, exige e consome, não necessariamente dependente de um adulto. (...) A criança passou a ser um agrupamento coletivo que incorporou a cultura do consumo.” (2009, p.22). As crianças e os jovens de 4 a 17 anos assistem, em média, a 3,5 horas por dia de televisão, o que nos conduz a uma estimativa de pelo menos 40 minutos de propagandas assistidas (...). Tais comerciais fazem uso da infância para ofertar produtos às crianças, mas não somente isso, ela – a criança – também é posta como comediadora de um discurso dirigido ao adulto. Ou seja, além da propaganda dirigida exclusivamente à criança, a publicidade também se vale da empatia 41

que os adultos terão com uma peça publicitária protagonizada por crianças. De igual modo, as campanhas voltadas ao público adulto encontram lugar no imaginário de crianças. É, sem dúvida, uma aproximação do mundo da criança ao do adulto. (2009, p.29)

O fato de a criança passar muito tempo assistindo televisão – e muitas propagandas, por conta disso – favorece uma aproximação do mundo dela com o mundo adulto, já que a programação que ela vê é cada vez mais mista, contendo, tanto mensagens diretas para ela, quanto indiretas, e até diretas para os adultos, mas que ela igualmente assiste e, portanto, a afeta. Dessa forma, cada vez mais o conteúdo destinado ao público infantil se vê com margens menos definidas, em especial na televisão aberta, onde os canais não possuem programação destinada apenas a um único nicho de público, como há na TV por assinatura. Segundo Neil Postman (1999), a televisão contribui para a redução da distância entre a infância e a idade adulta. Na visão do autor, assim como a prensa gráfica criou e delimitou a categoria “infância”, a mídia eletrônica está fazendo com que a mesma desapareça. Para Cristiana de Campos e Solange Jobim e Souza, tais considerações de Postman se estendem à cultura ocidental contemporânea, uma vez que, nesse modelo de sociedade, cada vez mais nota-se traços de um amadurecimento precoce da criança no que se refere ao vestuário (cada vez mais próximo do vestuário adulto; e vice-versa), tipos de brincadeiras (a violência nos grandes centros urbanos impossibilitou as brincadeiras de rua e, por isso, houve um estímulo os jogos e videogames com temas cada vez mais adultos), e até mesmo no envolvimento dela com a criminalização e a inserção e preparação (envolvendo fazer diversos cursos com proposta profissional, como inglês, informática etc.) da criança cada vez mais cedo no mercado de trabalho.

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A nova moda é

A nova moda é mãe e filha se vestir igual. (Fonte: diariovirtualds.blogspot.com.br)

Tais autoras comentam sobre Portman dizendo que, para ele, paralelamente ao declínio da infância, está o adulto infantilizado. Este novo perfil de adulto se alimenta de forma pouco saudável e possui dificuldade em arcar com a responsabilidade de assumir uma família. Diante deste cenário, “os limites que separam crianças e adultos estão desaparecendo, pois as diferenças entre essas duas categorias não são enfatizadas.” (CAMPOS; SOUZA, 2003, p.3) Com a televisão, essas diferenças passaram a ser ainda menos evidentes, tendo em vista que ela é um meio de comunicação de massa que deseja justamente atingir o maior número de espectadores, incluindo, logicamente, as crianças. Mesmo com a regulação etária de algumas programações, a lógica da produção televisiva é justamente ser o menos específica possível para, assim, fazer jus ao poder massivo que possui. Desenhos animados exibidos à noite, fantoches infantis em programas de adulto, crianças em comerciais de carro, anúncios de materiais de limpeza com animações infantis; a sensação que dá é a de que a programação televisiva deseja ser cada vez mais híbrida no que se refere ao seu endereçamento de público. No entanto, a preocupação aqui é justamente não haver uma definição notória entre o que se destina ao público adulto e infantil. O alerta se dá pelo fato de a TV – incluindo as propagandas que ela exibe - ser mais do que um mero meio de entretenimento, mas ser também uma fonte cada vez mais onipresente de informação, educação, valores e comportamentos; assim como todos os programas que ela exibe. 43

[...] a mensagem publicitária tende a se tornar, simultaneamente, democrática e homogeneizadora. Assim, o adulto pode se projetar nas alegorias infantis, como já indicado por Postman (1999), e a criança pode almejar o lugar do adulto. (...) Desse modo, pode-se dizer que, no atual cenário, a infância vem perdendo seu lugar e que, cada vez mais, o pensamento mercadológico, evidenciado nas ações publicitárias, busca assegurar o lugar da criança como ‘unidade consumidora’. (JÚNIOR, FORTALEZA, MACIEL. 2009, p.33)

O desejo do mercado em ver a criança enquanto consumidora real é algo bastante reforçado em algumas propagandas. No anúncio do papel higiênico Personal 6 (1990), é possível notar esta nova ambição do mercado em ver a criança em uma atuação social realmente ativa e consumista. No anúncio, um bebê se depara com um problema – a falta de papel higiênico no banheiro – porém, ao invés de ele procurar ajuda de algum adulto (que seria o caminho natural de uma criança), ele simplesmente decide resolver a questão sozinho. Para dar fim ao seu problema, o bebê sai engatinhando pela casa, pela rua, por entre carros (inclusive mostra-se bastante “esperto” ao esconder-se sob um caminhão e superar o risco apresentado naquele momento). Ele engatinha por entre os adultos sem sequer ser notado, vai até o mercado (mais uma vez mostra sua “esperteza” ao pegar “carona” em um carrinho de compras, também sem ser visto por ninguém), e, enfim, consegue chegar até a pilha de papel higiênico Personal, onde celebra a conquista e mostra-se feliz em sua realização. Nesse momento, o narrador diz: “tem coisas que seu filho ainda não pode fazer sozinho, faça por ele. Personal.”. Todo o anúncio deixa claro que o bebê é autônomo o suficiente para resolver com sucesso seus desejos de consumo sem qualquer ajuda de um adulto. Porém, com a frase final dita pelo narrador, esta autonomia passa a ser questionada e soa como algo fantasioso. Entretanto, uma palavra dita põe em dúvida o excesso de fantasia da propaganda: o “ainda”. Quando o narrador diz que “seu filho ainda não pode fazer sozinho”, ele lembra que aquela atitude do bebê não é algo tão absurdo assim, já que em breve será real. Com isso, a mensagem soa em forma de um alerta aos pais: faça por ele enquanto você ainda

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Todas as propagandas analisadas estão listadas com os devidos links ma página 64, após a Bibliografia.

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tem esse poder, já que em pouco tempo ele será capaz de realizar tal façanha sozinho, sem precisar de você. Nota-se que a propaganda, ao enunciar tal mensagem, questiona inclusive um pouco a própria autoridade dos pais. Em tempos de pais muito envolvidos no trabalho e crianças assistindo TV o dia inteiro, é a televisão quem assume o papel educacional mais forte, substituindo a autoridade antes inquestionável dos pais e dos mestres. Assim, quando o anúncio faz o alerta aos pais, ele supõe que um filho que faz algo sozinho é um filho livre, ou seja, que não necessita mais de ajuda e nem de nenhuma figura autoritária – os pais - que faça nada por ele ou que o supervisione, então, os pais devem aproveitar enquanto ainda tem algum domínio sobre a criança. Essa mesma preocupação com a autoridade e com a própria constituição tradicional da família – que assim como o poder dos pais, também enfrentava crise nos anos 90 – é explicitada no comercial do açúcar União (1991). O episódio da campanha chama-se “O irmão do meio”, e traz como slogan a frase: “Família, uma união que sempre deu certo”. A propaganda representa uma cena familiar em que três irmãos brincam (e brigam) na disputa por quem vai jogar videogame (que, vale lembrar, foi lançado nos anos 90 e dá a ideia de diversão com brinquedos modernos) na sala da casa. Enquanto dois dos irmãos puxam o controle da mão do irmão do meio, a mãe prepara quitutes na cozinha. Em seguida, as crianças eufóricas saem da sala para abordar a mãe e pedir um dos bolinhos que ela está fazendo. A mãe, por sua vez, nega o pedido e dá um tapa na mão de uma das crianças, sinalizando que os bolinhos que eles podem comer estão na mesa. Nesse momento, o irmão do meio surge levando o prato inteiro e comendo-os sozinho. O narrador, por fim, fala que o problema de ser o tal irmão é ter que dividir suas coisas. Para finalizar, a voz de um dos filhos grita ao fundo “Manhê”, e fecha a cena com a imagem de um dedo de criança dentro do açúcar União.

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O anúncio de tal produto leva-nos a algumas reflexões. Primeiramente, o slogan central parece querer reaver os valores tradicionais da família como algo “que sempre deu certo”, embora, como foi dito, nesse período já fosse notória a crise das instituições sociais, incluindo a familiar. Assim, tal fala pode significar tanto uma tentativa de busca de tais valores em declínio, ou, até mesmo, uma negação da crise já instaurada socialmente. O tempo compartilhado entre pais e filhos é cada vez mais escasso: trabalha-se cada dia mais para o aumento do poder aquisitivo ( e consequentemente do consumo), e a mulher tem uma contribuição crescente na fatia produtiva da população, ficando bastante tempo fora de casa. Pais chegam tarde em casa, crianças atarefadas, refeições solitárias ou feitas fora do lar. A família se reúne cada vez menos para conversar sobre o cotidiano... Podemos identificar também como característica de nossa sociedade as múltiplas formas de conjugalidade: famílias monoparentais, descasamentos, recasamentos, assim como a crescente incidência de filhos únicos. Portanto, o perfil de família hoje difere do modelo tradicional de família (...). (CAMPOS e SOUZA, 2003, p.2)

Outro ponto que reforça o desejo de criação de uma imagem familiar tradicional é a própria disposição de cadeiras na cozinha. Ainda que existam quatro personagens em cena (mãe e três filhos), há cinco cadeiras, o que indica a presença de um possível pai que provavelmente está trabalhando enquanto a mãe cuida das crianças. Embora haja um grande esforço em mostrar como é boa uma família tradicional, há uma contradição. Ao mesmo tempo em que a propaganda tenta reconstruir a lógica de uma família unida e próspera, ela também explicita a dificuldade de construí-la, uma vez que, mesmo falando sobre união e exibindo uma família cheia e uma casa moderna, a crise não é escondida. A existência da crise se faz presente na dificuldade das crianças em dividir bens (videogame, bolinhos) e no próprio tapa dado pela mãe na mão do filho enquanto método de educação – já questionável nos anos 90. Nota-se, assim, que há um reforço de a mãe fazer com que seja respeitada sua imagem enquanto figura de autoridade naquele ambiente sem uma figura paterna presente. No final do anúncio, porém, mais duas situações revelam a instabilidade de mostrar uma família moderna teoricamente perfeita. Quando o filho grita “Manhê”, ele 46

aparenta querer a presença dela para mediar alguma situação, o que comprova seu poder de autoridade na família, porém, mais uma vez a autoridade é questionada quando, depois disso, um dos filhos põe o dedo dentro do pote de açúcar exibido, o que é entendido como mais uma transgressão na educação da criança, que não respeitou a fala da mãe. Nessa propaganda é curioso o fato de se deixar claro a presença ausente de uma figura paterna. De fato, alguns anúncios dos anos 90 reforçaram essa questão do pai enquanto homem trabalhador, bem sucedido, provedor do lar e fonte de exemplo para os filhos. A Kodak, marca de filmes fotográficos e revelações, lançou um comercial em 1992 que serve como um bom exemplo desta situação. O slogan do anúncio era: “Filmes Kodak: cada momento, um grande acontecimento”. Na propaganda, pai e filho, um ao lado do outro, em uma visão quase espelhada – e de fato há a sensação de estarem frente ao espelho, no caso, a câmera -, dão nó na gravata. Em alguns momentos a criança olha para o adulto para ver como ele faz e, então, o imita em seus gestos; em outros momentos, é o adulto quem olha para a criança em uma postura de supervisão. Nota-se na mão do pai, uma aliança, o que reforça a importância de uma mãe, um casamento e uma família estruturada de maneira tradicional. No final, o pai ainda endireita o nó feito pelo filho, e pousa ao seu lado segurando-o pelos ombros demonstrando orgulho pelo trabalho feito pela criança e com ajuda dele. O comportamento, a linguagem, as atitudes e os desejos e, até mesmo, a aparência física de adultos e crianças estão se tornando cada vez mais indistinguíveis. É visível a “adultização” das crianças, nos anúncios e no meio de comunicação visual, uma vez que elas são apresentadas ao público como se fossem adultos espertos e atraentes. (MÉLO; IVASHITA; RODRIGUES, 1999, p.315)

Pai e filho usam a mesma camisa, o que nos remete à ideia de que a criança é um adulto pequeno. A própria escolha do acessório “gravata” – que é igual para ambos nos diz muito sobre a ideia de formação da criança, que, como a propaganda mostra, não perde tempo brincando, mas sim, seguindo os passos do pai – aparentemente bem sucedido, vestido com roupa social – e preparando-se para um futuro próximo e desejosamente próspero. 47

Em 1993, essa mesma ideia de adultização da criança se repete no anúncio da Poupança Especial Banespa. A propaganda traz diversas crianças que, ao ouvirem do narrador uma série de palavras que são problemas adultos - prestação, vestibular, imposto de renda, reforma da casa, fim de férias e inflação -, expressam tristeza e choram. O narrador, por sua vez, finaliza dizendo: “Mas a Poupança Especial Banespa está crescendo junto com vocês. Poupança Especial Banespa, seu dinheiro crescendo todo dia.”. A propaganda associa a criança ao que seria uma série de problemas financeiros enfrentados no futuro e, com isso, sugere que ela, desde cedo, deve preparar-se para o “mundo adulto” que vem pela frente. Com a mensagem final, o anúncio reforça ainda a imagem da criança a de dinheiro que, como tal, cresce a cada dia mediante investimento feito pelos adultos – no caso, pelos pais. Tudo isso impõe à criança uma carga nada próxima da infância enquanto fase de diversão e leveza, pelo contrário, trata tal período da vida como uma preparação bastante racional para a fase adulta; bem como mostra a criança como sendo um projeto de futuro arquitetado pelo adulto. Sobre as palavras ditas no anúncio, se no passado havia “assunto de adulto” e “assunto de criança”, nos anos 90, como o comercial dá a entender, essa separação não possui o mesmo valor. Prepará-lo o quanto antes, familiarizá-lo com assuntos, termos e questões adultas, são ações incentivadas socialmente e consideradas necessárias para o amadurecimento da criança. A ideia era de que havia assuntos de adultos que não eram coerentes de serem discutidos perante crianças, sobretudo os referentes à sexualidade. Assim, foi-se desenvolvendo a ideia de que as crianças, em sua individualidade, necessitavam de proteção e cuidados, de escolarização, bem como precisavam estar a salvo dos segredos dos adultos. (MÉLO; IVASHITA; RODRIGUES, 1999, p.312)

Nos anos 90 a criança não apenas era incentivada a participar dos mesmos assuntos que os adultos (com poucas ressalvas), como também era valorizada quando fazia ações que até então eram características do adulto, como dominar línguas, usar eletrônicos e eletrodomésticos etc. Em 1994, uma propaganda da marca de margarina All Day expôs bem essa questão. O anúncio, considerado por muitos como um marco 48

da publicidade da década de 90, começa com uma criança ligando o rádio, que toca a canção “Happy Day”. Enquanto o menino canta a música alegremente, vai preparando o café da manhã. Coloca o suco na mesa, faz torradas e arruma xícaras. Nesse momento, os pais põem a cabeça pela porta para ver a cozinha e, ao notarem o filho preparando o café da manhã, se escondem para não serem notados. Depois, enquanto o menino passa a margarina na torrada, ele olha para a câmera e diz “Ok crianças, eu sei que vocês estão aí”, e então os pais ressurgem na porta da cozinha. Em seguida ele anuncia: “pode vir que está na mesa!”, e os pais entram e sentam com ele na mesa. Para finalizar, o narrador diz “All Days, chegou o seu dia de ser mais feliz.”. Toda a propaganda enfoca e valoriza a “esperteza” da criança e sua capacidade de dar conta do café da manhã sozinho. O menino protagonista é mostrado como o sonho de todo pai e mãe, e a mensagem final reforça essa ideia quando diz que um café oferecido daquela forma proporciona o dia do adulto ser feliz, ou seja, de ele não ter de se preocupar com nada, apenas aproveitar tudo que seu filho - dono de uma responsabilidade adulta – fez por eles. Filho este que inclusive já assume e aceita para si o papel adulto quando chama os próprios pais de “crianças”. Uma certa inversão de papéis também é proposta no comercial de 1995 da gasolina Esso. O anúncio começa com o narrador perguntando “Por que os consumidores recomendam Esso Maxi 2 Gasolina?”, e, então, logo a primeira imagem de “consumidor” que aparece respondendo é a de uma criança. O menino explica com desenvoltura e conhecimento todas as características e benefícios da tal gasolina. O pai, ao lado, diz ao final da fala da criança: “filho, você esqueceu de acrescentar...”, e complementa com mais um ponto. Por fim, o narrador termina o anúncio dizendo “Maxi gasolina, recomendada por quem sabe o que está falando”. Diante disso, deduz-se que quem sabe o que está falando é a criança, que aparece mais e parece saber mais sobre gasolina e carro do que o próprio pai, que é quem consome de fato tais produtos. 49

Se é a partir da racionalidade adulta que se estabelecem os contornos de uma infância, e se esta infância está carregada das expectativas do adulto frente a suas inquietações consigo mesmo, a infância é uma construção correspondente àquilo que o adulto espera para ele mesmo. (SILVEIRA, 2000, p.8)

Como Silveira diz, tal anúncio pode significar que aquela criança, na verdade, é o reflexo de uma expectativa do próprio adulto, ou seja, ela é aquilo que o próprio adulto gostaria de ser: jovem, leve, sem grandes preocupações, mas com um conhecimento maduro sobre as coisas; ou seja, um ser capaz de juntar os benefícios da infância e da vida adulta. Em 1996, a propaganda da Poupança Especial Bradesco também mostra a esperteza do filho sendo superior a do pai. O anúncio começa com pai e filho em frente ao computador e o menino dizendo “aperta aí pai”. O pai responde “saldo da conta, poupança ou cartão?”, e o filho responde “poupança”, com certa impaciência. Enquanto o pai seleciona a opção no computador, a mãe grita ao fundo “o jantar tá na mesa!”. O filho então se vira e responde, também com impaciência, “Pera aê mãe, já vai.”. Na medida em que o pai tenta selecionar corretamente a opção, o filho continua tentado ensiná-lo como fazer uma tarefa que soa como muito simples, mas que o pai é incapaz de compreender. Pouco depois a mãe aparece em cena e lembra que o jantar vai esfriar, mas o aviso dela nada adianta, e tanto pai quanto filho se mantém em frente ao computador. Por fim, o narrador fala sobre a Poupança Especial Bradesco e sobre o investimento feito pela empresa em tecnologia usando a frase: “para deixar seu dia mais fácil” (o que não faz sentido, porque o pai – que é quem efetivamente usaria o tal benefício - não parece nada a vontade com a nova tecnologia). Nesse momento, a mãe aperta um botão no teclado do computador e diz “quem manda nessa agência sou eu! Já para a mesa”. Então, os dois obedecem e o pai envolve o filho nos braços dizendo “falou, filhão”. Nota-se assim, que há no anúncio uma reorganização da estrutura tradicional de poder familiar. O fato de o filho ensinar ao pai evidencia a superioridade do primeiro em relação à tecnologia, o que acaba pondo o adulto em uma situação de menos poder se 50

comparado ao menino. Essa situação também reforça a relação cada vez mais natural entre crianças e tecnologia, algo que é visto como um desafio para os “ultrapassados” adultos. Como Dora Lilia Marín-Díaz afirma: “a relação crianças-novas tecnologias não é de submissão e obediência; pelo contrário, é muito participativa: as duas são da mesma geração. Tecnologia e infância conectam-se sem mediação alguma, sem educação, sem condições.” (2010, p.197). Por outro lado, a figura da mãe é a que invoca mais autoridade naquele núcleo, embora não seja uma autoridade tão legítima, já que sua ordem só fora obedecida quando ela optou por uma atitude mais radical: desligar o computador. Por fim, há o agradecimento do pai ao filho usando a palavra “falou”, que remete a uma certa informalidade e uma tentativa de aproximação de um linguajar mais jovem e mais próximo ao do menino. A questão da linguagem usada, mais uma vez dá ao menino um reconhecimento de importância e poder, já que é o pai que lhe agradece e que se adéqua – tanto na linguagem quanto no uso do computador - a ele, e não o contrário; ou seja, é o filho quem deve ser seguido pelo pai, e não o oposto. Todavia, isso revela uma nova crise. Sobre isso, conforme fora dito anteriormente, nota-se que nos anos 90 a infância deixa de ser uma categoria sinônima de inocência e passa a assumir um novo lugar social, ativo e pleno, que em nada se assemelha a noção de incompletude que a marcava na Idade Média; ou seja, a criança passa a ser uma consumidora, conectada, antenada e educadora dos próprios pais. No entanto, esse amadurecimento precoce gera uma dubiedade identitária. Ao mesmo tempo, a criança e o adolescente se encontram num lugar dúbio, pois são vistos ainda em sua incompletude – necessitam da escola para a aprendizagem legitimada pela sociedade e, paralelamente, encontram-se mais aptos que seus pais e professores para lidar com as novas tecnologias da vida cotidiana. (Rabello de Castro, 1998 in CAMPOS e SOUZA, 2003, p.5) Tal lugar dúbio é uma característica contemporânea. Tanto a criança se encontra nela, por não saber até que ponto é “incompleta” ou “completa”; quanto os próprios

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pais/adultos também, que querem voltar a ser crianças, mas que vivem em conflito interno por não poder deixar de assumir suas responsabilidades. Essa crise de identidade teve grande contribuição do próprio processo de midiatização e globalização, que materializou a ideia de que é possível, ao consumir produtos, ser quem quiser, de ser feliz da forma que escolher. O problema, porém, foi que nenhum dos dois ofereceu formas muito claras de lidar com os reflexos disso, ou seja, os dilemas pessoais e sociais de conviver em tantos entrelugares móveis e flexíveis, o que instaurou um paradoxo. Lipovetsky esclarece bem as mazelas da globalização e da sociedade do hiperconsumo: Nossas sociedades são cada vez mais ricas: apesar disso, um número crescente de pessoas vive na precariedade e precisa fazer economias em todos os itens de seu orçamento, tornandose a falta de dinheiro uma preocupação cada vez mais obsessiva. Somos cada vez mais bem cuidados, o que não impede que os indivíduos se tornem uma espécie de hipocondríacos crônicos. Os corpos são livres, a miséria sexual é persistente. As solicitações hedonísticas são onipresentes: as inquietudes, as decepções, as inseguranças sociais e pessoais aumentam. Aspectos que fazem da sociedade de hiperconsumo a civilização da felicidade paradoxal. (2007, p.17) Em 1997 a globalização foi assunto da propaganda do carro da Volkswagen. No anúncio, cinco crianças, sendo uma menina e quatro meninos, discutem e se vangloriam sobre a origem do carro de seus pais. Um dos meninos diz “o meu pai tem um carro alemão!”, o outro responde “e daí, bobão?! Minha mãe tem um carro espanhol!”, o terceiro comenta “o meu pai comprou um carro francês!”, o quarto fala “o meu tem um carro italiano” e, por fim, a menina responde: “O meu pai tem um carro italiano, francês, espanhol e alemão! E, olha! Chegou primeiro!”. Nesse momento, se aproxima um Volkswagen e ela entra no banco do carona. Enquanto os meninos se queixam, o narrador diz “Novo Classic, o carro made in the world”. O primeiro ponto a se ressaltar neste anúncio é a força da frase final, que não deixa dúvidas sobre o quão globalizado o carro é e o quão valorizado esse produto extremamente plural – sem origens fixas, tal qual a própria identidade móvel dos 52

sujeitos dos anos 90 - passa a ser. Sobre isso, como Lipovetsky lembra: “A era da globalização é menos moldada pelos processos de padronização e de homogeneização que pela explosão da diversidade, pelos imperativos da rapidez, pela dinâmica dos fluxos permanentes.” (2006, p.88) Outro ponto que merece destaque é que, embora esteja anunciando um carro, ou seja, um bem de consumo caro e que só pode ser adquirido por maiores de 18 anos devidamente habilitados para dirigí-lo, trata-se de um comercial que não exibe nenhum adulto ou jovem, apenas crianças com uma média de uns nove ou dez anos. Esse fato reforça a ideia de que a imagem infantil é utilizada pela publicidade também como forma de alcançar o adulto. Como Jacira Silveira afirma, “os comerciais valem-se da imagem da criança tanto para falar a um telespectador infantil como para interpelar o adulto.” (2000, p.10). Por fim, a própria lógica da propaganda é curiosa, já que nos mostra mais um ponto da sociedade de consumo: a compra por status. O que as crianças debatem não é a qualidade do carro propriamente, mas o status de cada um. Fica subentendido que o melhor carro é estrangeiro (sendo o globalizado ainda mais atraente, já que junta vários “estrangeiros” em um só), e que o valor que pesa mais é o valor de exibição de um produto, ou seja, seu valor social e simbólico. [...] consumo como algo biologicamente necessário, naturalmente inscrito e universalmente experimentado está num plano diferente do dilema que a cultura contemporânea experimenta para escolher marcas de carros, sabores de refrigerante, lojas de departamentos, estilos de roupas, telefones celulares, serviços bancários, restaurantes, geladeiras ou batons. É nesse plano que o consumo se torna uma questão cultural, simbólica, definidora de práticas sociais, modos de ser, diferenças e semelhanças. (DOUGLAS; ISHERWOOD, 2013, p.14)

Em 1998 os carros continuaram explorando bastante a imagem da criança. Como exemplo, podemos citar a propaganda da Ford e da Volkswagen mais uma vez; mas, para mostrar que outras áreas do mercado também fizeram uso da infância em seus anúncios, exemplifico tal questão com a propaganda da Telesp, operadora de telecomunicações de São Paulo que posteriormente tornou-se a marca Vivo.

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No anúncio, um bebê usando fraldas fala sobre o celular da Telesp. Ele diz: “carros evoluíram, computadores evoluíram, bebês evoluíram; e eu sou uma prova disso. Já estava na hora de celulares evoluírem também, como o Baby da Telesp Celular.”. Em seguida, o narrador fala sobre as características do aparelho e finaliza com o slogan “Baby, o celular inteligente da Telesp Celular”. O primeiro ponto que merece atenção é o próprio nome do produto ser Baby (bebê, em inglês); o segundo ponto é a criança, que não tem nem idade para falar, conversar de forma fluida e desenvolta. Certamente foi usado algum tipo de edição de imagem e dublagem para alcançar tal resultado, o que impressiona ainda mais, porque significa que houve um processo ainda menos natural do que pôr uma criança apresentando um produto que não se destina a ela. O slogan final reforça essa lógica ao fazer uso de uma frase que chama o celular de inteligente, fazendo referência então, tanto ao Baby (aparelho telefônico) quanto ao bebê; bebê este que inclusive assume sua “evolução” quando diz que ele próprio é uma prova disso. Segundo Marín-Díaz (2010), o que é chamado no anúncio de “evolução” seria, na verdade, um deslocamento, que diferentemente de um progresso, é um processo histórico e cultural. [...] a infância como noção está se deslocando. Contudo, tal ocorrência não se encontra associada à visão de progresso, desenvolvimento ou evolução, mas sim ao acontecimento de práticas concretas de adultos e crianças em contextos históricos específicos. (MARÍN-DÍAZ, 2010, p.198

De acordo com a autora, então, uma criança dos anos 90 que mexe bem no computador, por exemplo, não é mais evoluída do que fora uma criança dos anos 80 que brincava de bonecas. O que as diferencia, na verdade, é a condição histórica que contribuiu de alguma forma para que uma habilidade ou outra fosse mais ou menos estimulada. Não há porque se espantar com uma criança altamente hábil com tecnologia atualmente até porque as crianças são estimuladas a isso desde cedo, ou seja, ela é constantemente incentivada a usar algo que na década de 80 era muito menos acessível

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e familiar. Talvez uma criança de hoje não tenha a mesma habilidade em pular corda, por exemplo, pela mesma razão da falta de estímulo para isso. Também em 1998 uma propaganda da famosa rede de lanchonetes Mc Donald’s inovou o que vinha sendo exibido e fez outro tipo de inversão de papeis, agora com adultos no lugar das crianças. O curioso é que o comercial é sobre o mês das crianças, mas elas não aparecem concretamente em nenhum momento, embora os adultos as façam presentes em seus comportamentos tipicamente infantis. O narrador começa dizendo “outubro é o mês das crianças, mas só um mês é pouco”. Enquanto isso, várias imagens de adultos engravatados e vestidos de roupa social aparecem jogando nuggets para o alto, comendo e rindo com vários amigos, fazendo aviãozinho com o sorvete, colocando o canudo como bigode etc. Pouco depois o narrador diz: “o mês das crianças deveria ser como o Mc Donald’s: durar o ano inteiro. Os meninos e as meninas sabem muito bem. Mês das crianças o ano inteiro, só no Mc Donald’s.”. Chamando-os de “meninos e meninas” e expressando o desejo adulto de que a infância durasse para sempre, a propaganda é um exemplo forte das ambições presentes nos anos 90 (até hoje). Lévi-Strauss notava que o consumo moderno fazia dos americanos uma espécie de crianças sempre a espreita de novidades. A se observar os parques de lazer, os jogos de vídeo e televisuais, os produtos que parecem brinquedos, é forçoso reconhecer que a hipótese se confirma a cada dia. (...) Em uma escala mais ampla, nos parques de diversões os adultos têm prazer em brincar de ser a criança que foram. (LIPOVETSKY, 2006, p.71)

Como Lipovetsky afirmou lembrando Lévi-Strauss, há no adulto um desejo de novidade, um desejo de voltar à infância, e esse desejo foi muito bem captado no anúncio do Mc Donald’s. As imagens revelam aquilo que grande parte dos adultos gostariam de fazer mas que não o fazem no nível extremo porque uma certa conduta social os poda disso. Nos anos 90, um outro ramo que percebeu esta tendência do adulto querer ter, além de bens, comportamentos infantis, foi o de Buffet e casas de festas. Na última década surgiram diversos serviços especializados nessa nova prática: festa adulta com 55

temas infantis. Alguns sites e blogs7 comentaram sobre a tal moda, e um deles publicou: “Esses adultos, (...) descobriram que todos podemos ser crianças de novo, ou melhor, nunca deveríamos deixar de ser. Rir, brincar, dançar, pular faz parte da vida.” Virou mania entre os adultos comemorar aniversários com temas infantis. Pois é, muitos descobriram que podemos ser crianças de novo. É desenho animado, piscina de bolinhas, cama elástica, doces em copinhos, pipocas e brinquedos. Tudo para fazer de uma pequena comemoração, uma grande festa! (trecho tirado do site ChicSoueu). 8

A tendência das festas infantis para adultos foi só mais uma dentre tantas que surgiram e foram mencionadas anteriormente por fazerem parte da cultura do infoentretenimento. Este exemplo em especial enfatiza ainda mais o sonho do adulto ser criança e agir como tal, bem como reforça seu desejo de cada vez mais abrir mão de poderes, problemas e crises que o chateiam em prol de algo mais divertido e leve. Sobre isso, inclusive, em um outro trecho destacado do blog Criative-se, a autora menciona o benefício da leveza característica desse tipo de festa ao dizer: “A brincadeira de criança é a grande atividade lúdica que todos precisam para se distrair, ficando levinhos, levinhos.”. Diante de tal fato, nota-se que, para o adulto, quanto mais próximo de um bem estar infantil ele conseguir chegar, melhor. Para alcançar tal objetivo, porém, ele deseja abrir mão de uma série de aborrecimentos que envolvem poder e responsabilidade e é nesse cenário que, como já fora dito, o novo poder da criança se insere. Um exemplo desse novo poder infantil é a propaganda do serviço de DDD da empresa de telefonia Embratel, veiculada no último ano da década de 90, em 1999. Nela, três meninos gêmeos estrelaram o comercial. Vestidos com roupas coloridas, se apresentavam cada um como um “D” da sigla referente à Discagem Direta a Distância. Com voz desafinada e dançando de maneira engraçada, eles passam a imagem de serem irmãos agitados, bagunceiros, “levados”.

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Endereço do site: http://www.criativesse.com.br/blog/2010/04/aniversario-de-adultos-festainfantil.html#.UoeHZXDrxVA. Acessado em 16/11/2013. 8

Endereço do site: http://www.chicsoueu.com.br/Default.aspx?action=adulto&view=noticias&id=187. Acessado em 16/11/2013.

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Na música que cantam, os três, em coro, fazem pedidos associando o “DDD” ao “dê”, do verbo imperativo “dar”, o que invoca uma ordem. Ele dizem frases como: “DDD um beijo na sua mãe, DDD notícias para sua avó, DDD um susto no seu pai, DDD parabéns para sua tia, DDD um abraço no colega. DDD uma bronca no irmão, DDD lembranças para a sua prima (...)”, etc. Para finalizar, os irmãos dizem “DDD um alô, via Embratel, liga pô! Se não ligar, a gente vai continuar a cantar!”. Com essa frase final fica claro que os três sabem o quanto podem ser irritantes com a voz aguda, com a bagunça que fazem e com a insistência investida. Além disso, o fato de serem um trio faz a sensação de irritação parecer triplicada, ou seja, ser ainda pior. No entanto, por outro lado, eles são crianças, são carismáticos, e o jingle cola. Todo este combo incita a criança e o adulto a ouvirem o que eles têm a dizer; e o que eles dizem – ainda que de forma lúdica - soa como ordem, já que há uma ameaça no final que sugere algo como “ou você liga ou vamos continuar a te irritar.”. A questão da autoridade infantil no anúncio reforça uma característica estimulada na criança moderna: o desejo próprio. Nos anos 90, como vimos anteriormente, há um desejo social de fazer com que a criança seja autônoma, tome frente de suas opções, seja uma consumidora capaz de escolher e dizer o que ela quer, quando ela quer, de que marca quer etc. Por isso, ela é incentivada tanto a expressar seus desejos consumistas, quanto a sugerir de forma enfática que o adulto a siga em seu desejo, já que é ela quem assiste TV e, por isso, “sabe” o que “é bom e o que não é”. Em todas as propagandas analisadas anteriormente é possível notar a construção de um discurso publicitário centralizado na infância; afinal, como Jacira Silveira (2000) nos diz, “a cultura do consumo dá outro status à infância, pois é onde a criança é vista em seu tempo presente como consumidora, com desejos próprios ou rapidamente construídos.” (SILVEIRA, 2000, p.11). Seja revelando uma nova autoridade da criança ou incentivando a valorização de sua inteligência e autonomia; seja exibindo a imagem da criança como fins de reforçar valores da família, ou ainda como forma de lembrar aos adultos da existência da “criança que mora dentro deles”, os anúncios pesquisados revelam o quanto a 57

veiculação da imagem infantil nos dá pistas para um maior entendimento dos desejos, temores e da nova dinâmica familiar e social dos anos 90.

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Conclusão As propagandas da década de 90, analisadas no capítulo anterior, reforçam o quão central passou a ser a criança na sociedade moderna. E pensar que, como fora esclarecido por Phillipe Ariès, a “infância” é uma ideia construída, que passou por séculos de “não existência” até chegar ao atual lugar de importância no cenário social, cultural e econômico. Por conta desta nova importância da criança no final do século XX e todo o XXI - que, vale lembrar, são períodos extremamente marcados pela ambiência da mídia e seus discursos -, é imprescindível não ver as produções midiáticas que envolvem a infância como algo ingênuo ou aleatório, muito pelo contrário. Fazer uso da imagem da criança significa compreendê-la enquanto um elemento estratégico para a nova estruturação do mercado, bem como para o processo de reestruturação das identidades e das relações sociais modernas e pós-modernas. Como se evidenciou ao longo deste trabalho, o discurso midiático, além de onipresente - e também por isso -, tem poder; dessa forma, seja com fins de estimular o consumo, de dinamizar a imagem da marca, de propor um diálogo mais simpático com o adulto ou ainda de educar a criança para o consumo, ter a infância presente em anúncios para produtos que não se destinam a tal faixa etária parece ser, não à toa, uma tendência cada vez mais forte dos anos 90 em diante. Alimentar o embaçamento das fronteiras entre a infância e a fase adulta é algo que mexe com o poder, com a identidade e com os papéis sociais dos sujeitos, o que consequentemente promove uma desestrutura da sociedade; sociedade esta que, vale ressaltar, por séculos cunhou uma determinada organização de poder que não incluía a criança, e que, agora, pela primeira vez na história, se vê frente a uma certa relativização deste quadro. A emergência desse processo de adultização da infância e infantilização do adulto, ao relativizar uma série de valores e questões, contribui para o surgimento de muitos conflitos internos nos indivíduos, bem como de tensões mais amplas no âmbito das relações culturais e sociais. Estes conflitos e tensões revelam, na verdade, uma crise da sociedade moderna em geral.

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Analisar uma produção midiática – neste caso, as propagandas - de um determinado período histórico significa então adentrar um pouco mais profundamente nas crises, no pensar social e na subjetividade de uma época com fins de identificar e reconhecer traços característicos daquele período; tanto explícitos quanto implícitos. Assim, quando as propagandas televisivas dos anos 90 remontam cenas familiares e cotidianas, por exemplo, ou sugerem algumas características da criança ou do adulto, elas de certa forma nos mostram o que se aconselha/deseja/espera consumir enquanto atitude, enquanto comportamento, personalidade etc. Tudo isso é fundamental para desvelar tanto a realidade social presente quanto as ambições de tal período. Diante disso, entende-se que o discurso da mídia é poderoso na medida em que entre tantas coisas - vende em seus anúncios muito mais do que mercadorias, mas ideais, sonhos, desejos, inquietações, temores e incertezas sobre os sujeitos e suas relações. Em suma: a publicidade vende mais do que produtos e serviços, vende valores sociais. Como vimos nos anúncios, uma propaganda de papel higiênico vende mais do que tal mercadoria, vende um alerta aos pais sobre a autonomia precoce das crianças; um açúcar vende muito mais do que apenas um ingrediente, vende também um ideal de família tradicional que se deseja reestruturar em meio à crise social; um anúncio de filme de revelação, por sua vez, mostra que, por mais que os adultos queiram refutar ao máximo suas responsabilidades, eles vivem em conflito por também almejarem serem exemplos para os filhos; e assim por diante. Por vezes são detalhes ou gestos sutis, como uma expressão facial, uma roupa, um objeto no cenário ou uma música ao fundo que detém o que seria a “chave” para o entendimento maior acerca do que quer dizer aquela mensagem publicitária. Tudo que compõe o anúncio tem um propósito, tudo contribui para a construção de um determinado sentido para o produto e visa oferecer algum tipo de satisfação para uma ânsia consumista – material e imaterial – do espectador adulto e, cada vez mais, do infantil. Ao exibir a imagem da criança em anúncios de produtos adultos a publicidade reforça que, para o mercado, ambos sujeitos são consumidores - direta ou indiretamente -, e ambos participam ativamente do processo comunicacional que culmina no consumo propriamente, seja ele de produtos ou de valores. 60

Participar ativamente do processo não significa necessariamente efetuar a compra em si, mas ter algum tipo de importância/relevância na estruturação do consumo, significa contribuir de alguma forma para que o mecanismo do consumo aconteça; assim, entende-se que a criança tem um papel ativo no processo desde o momento em que sua imagem é veiculada como aposta de sensibilização, simpatia com o público etc, até o momento em que a mesma consome aquele anúncio em que ela própria é representada e repassa a mensagem aos pais, que são adultos com real poder de compra, por exemplo. Pensando que vivemos em uma sociedade extremamente marcada pela comercialização e pela mídia, quando a propaganda legitima a criança a falar sobre um produto adulto (e visando atingir o público adulto), de certa forma ela faz com que a sociedade dê uma nova importância a essa criança e a veja de fato como uma figura relevante para o mercado, para o consumo, para as relações e para a estruturação social como um todo.

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Lista de propagandas analisadas (por ordem cronológica): Papel Higiênico Personal -1990: http://www.youtube.com/watch?v=KwayTDhLp9c Açúcar União - 1991: http://www.youtube.com/watch?v=mF8mqm7gz_E&list=PL8743C6CFBF895AA8 Filmes e Revelações Kodak - 1992: http://www.youtube.com/watch?v=_P9wFYzaUH4 Poupança Especial Banespa - 1993: http://www.youtube.com/watch?v=biZxEc5TjSI Margarina All Days - 1994: http://www.youtube.com/watch?v=NV0utlgK23s Posto de gasolina ESSO (minuto 1:13 a 1:42) - 1995: http://www.youtube.com/watch?v=A2punaWODJQ Poupança Especial Bradesco (minuto 0:25 a 0:55) - 1996: http://www.youtube.com/watch?v=Yrfi0kvOEQc&list=FLEWWzKRjRMOqtDJqRyZA Gbg&index=9 Carro Volkswagen - 1997: http://www.youtube.com/watch?v=lawPow6dnUM&list=FLEWWzKRjRMOqtDJqRyZ AGbg&index=19 Baby da Telesp - 1998: http://www.youtube.com/watch?v=mLlsLqG75NU Mc Donald’s (mês das crianças) – 1998: http://www.youtube.com/watch?v=Egg9sofTVkE DDD Embratel - 1999: http://www.youtube.com/watch?v=t8v1P7gki8w&list=PL4750A8A59CF32D36

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ANEXO 1

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