A afinação cromática pitagórica, a comma pitagórica e a medição por cents

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A afinação cromática pitagórica, a comma pitagórica e a medição por cents Texto por Igor S. Livramento1 Como notado no último texto2, construir-se-á aqui a afinação cromática pitagórica de 12 tons a partir da repetida iteração do intervalo de quinta justa, isto é, a relação entre frequências 3:2. #01 – Construção da afinação Retomemos o que fora explicitado anteriormente: Pitágoras tomou a quinta justa (3/2) como base para sua escala diatônica, uma vez que era o intervalo mais consonante disponível na gama. Pois bem, sigamos mais uma vez o mestre grego e desenvolvamos uma afinação cromática composta de 12 tons a partir da repetida iteração da 3/2. Desta vez, para facilitar a notação e por uma questão de variedade, comecemos em D (f1 ≈ 291 Hz). Como antes, as quintas justas, isto é, as potências de 3/2 (ou seja, as formas: 3/2n) estão divididas por potências de 2 (o mesmo que multiplicadas por potências de 1/2, uma vez que 2 -n = (1/2)n) para ficarem dentro da gama, bem como as quartas justas, ou seja, as inversões de 3/2 (ou seja, (3/2)-n = (2/3)n) estão multiplicadas por potências de 2 para estarem na gama. Assim, lembramos que as razões entre frequências de tipo a/b fazem parte da gama quando f1 < a/b < 2×f1 e podemos perceber pela Tabela 01 (abaixo) que a/b sempre fará parte da gama se: b < a < 2b. Tabela 01

1

Nota

Intervalo

Relações entre frequências

Ab

Quinta diminutaa

2 6 1024 × 𝑓1 ( ) × 24 = 3 729

Eb

Segunda menor

2 5 256 × 𝑓1 ( ) × 23 = 3 243

Bb

Sexta menor

2 4 128 × 𝑓1 ( ) × 23 = 3 81

F

Terça menor

2 3 32 × 𝑓1 ( ) × 22 = 3 27

C

Sétima menor

G

Quarta justa

D

Fundamental, uníssono

2 2 16 × 𝑓1 ( ) × 22 = 3 9 2 4 × 2 = × 𝑓1 3 3 1 = 𝑓1 1

Graduando do curso de Letras-Português da Universidade Federal de Santa Catarina. A afinação pitagórica, do presente autor, disponível em: , acesso em 31 de janeiro de 2016. 2

A

Quinta justa

3 × 𝑓1 2

E

Segunda maior

3 2 9 ( ) × 2−1 = × 𝑓1 2 8

B

Sexta maior

3 3 27 × 𝑓1 ( ) × 2−1 = 2 16

F#

Terça maior

3 4 81 × 𝑓1 ( ) × 2−2 = 2 64

C#

Sétima maior

3 5 243 × 𝑓1 ( ) × 2−2 = 2 128

G#

Quarta aumentadaa

3 6 729 × 𝑓1 ( ) × 2−3 = 2 512

#01a – A diferença entre A4 (quarta aumentada) e d5 (quinta diminuta) Como se pode ver na Tabela 01, temos dois intervalos marcados com ‘a’ sobrescrito, os intervalos de quarta aumentada (A4) e quinta diminuta (d5). Em nossa afinação ocidental contemporânea de 12 tons equidistantes por oitava3 esses intervalos são tidos como equivalentes, todavia, aqui, as razões entre frequências se mostram diferentes e, de fato, tratamse de tons diferentes. Mas qual desses tons escolhera Pitágoras? Dos dois o maior fora escolhido, G#, ignorando-se a d5 e valorizando a A4.Por uma questão de importância histórica e curiosidade, vejamos qual a relação entre frequências desses tons diferentes que, para nós, hoje, são enarmônicos4:

729 12 512 = (729) × ( 729 ) = 531441 = 3 = 1,0136432647705078125. 1024 512 1024 524288 219 729 A esse intervalo (312/219) chamamos comma pitagórica5. Uma comma é um intervalo bastante pequeno que surge quando se trabalha com afinações e, em geral, possui um caráter indesejado por produzir dissonâncias notórias. Apesar de ser ≈ 0,01 Hz – poder-se-ia cogitar ser diferença pequeníssima – não se trata de diferença que escape ao ouvido. Aqui é preciso levar em consideração a audição humana, não apenas as relações entre frequências, todavia, para que possamos falar das proporções da audição, precisaremos introduzir uma medida que condiga com a percepção humana. A essa medida chamamos cents.

3

Cf. Explicação geral da afinação padrão ocidental atual composta de 12 tons equidistantes, do presente autor, disponível em: , acesso em 31 de janeiro de 2016. 4 De maneira simples: tons nomeados diferentemente que são tomados como equivalentes. 5 Utiliza-se a nomenclatura comma – não coma – para acordar o proposto às fontes anglófonas trabalhadas.

#02 – A comma pitagórica e o problema da afinação; a medição em cents A medição em cents não é invenção recente, na verdade fora concebida por volta dos anos 1830 e já era utilizada extensivamente em 1875. Sua história, todavia, não nos interessa aqui. A audição humana percebe algumas frequências como repetições de outras – trata-se claramente do que conhecemos no meio musical por oitavas. Como exposto anteriormente6, essas oitavas formam uma progressão geométrica de razão 2 e termo inicial uma nota qualquer de frequência7 f1. Assim deve ser fácil perceber que a audição humana possui resposta logarítmica8 aos intervalos musicais, não aritmética, como as relações entre frequências poderiam sugerir. Para representar os intervalos musicais (distâncias entre frequências) como percebidos pela audição humana, a medida em cents foi definida como tendo por unidade 1/100 de um semitom da afinação de 12 tons equidistantes por oitava. Isto nos diz que: a) mover-se uma tecla (ou uma casa do violão), isto é, um semitom (ex.: de C a C#), nos faz andar 100 cents, bem como; b) ir de C a C’ (uma oitava acima ou abaixo) cobre uma distância de 1200 cents. Daí deduzimos que a medida geral para qualquer intervalo musical em cents é:

𝑓2 𝛼 = 1200 × log 2 ( ). 𝑓1 Sabendo que a medida em cents representa em boa qualidade a audição humana para intervalos musicais e sabendo que o limiar humano para diferença9 é aprox. de 1 a 5 cents, podemos medir a comma pitagórica em cents e descobrir se ela reside dentro desse intervalo imperceptível ou não. Vejamos, então:

531441 312 1200 × log 2 ( ) = 1200 × log 2 ( 19 ) = 23,460010385 … ≈ 23,46 𝑐𝑒𝑛𝑡𝑠. 524288 2 Ao contrário do esperado na sessão anterior, a diferença (de aproximadamente 0,1364 Hz de uma frequência à outra) é quase 5 vezes o limite do limiar humano de distinção entre notas (frequências). Com os cents em nosso aparato teórico, podemos medir intervalos com muito mais precisão e qualidade, de tal modo que refaremos a Tabela 01, agora em ordem intervalar crescente10, e mediremos as distâncias em relação à afinação ocidental atual de 12 tons equidistantes por oitava. Senão vejamos:

6

Cf. nota 3. Aqui se mantém a utilização de f1 e não f0 como se esperaria em contextos matemáticos mais estritos apenas para preservar a linguagem de textos anteriores e das Tabelas utilizadas neles. 8 Mais especificamente uma resposta de log q, leia-se: logaritmo de base 2 de um número qualquer q. 2 9 Utiliza-se aqui uma aproximação ampla, alguns estudos apontam que a audição atenta pode restringir a um intervalo de apenas 1 a 3 cents. 10 Em relação à fundamental (uníssono). 7

Tabela 02

11

Nota

Intervalo

Rel. entre freq.

Cents

Dif. 12-equi11

D

Fundamental, uníssono

1 = 𝑓1 1

= 00,00

00,00

Eb

Segunda menor

2 5 256 × 𝑓1 ( ) × 23 = 3 243

≈ 90,22

+ 09,78

E

Segunda maior

3 2 9 ( ) × 2−1 = × 𝑓1 2 8

≈ 203,91

- 03,91

F

Terça menor

2 3 32 × 𝑓1 ( ) × 22 = 3 27

≈ 294,13

+ 05,87

F#

Terça maior

≈ 407,82

- 07,82

G

Quarta justa

3 4 81 × 𝑓1 ( ) × 2−2 = 2 64 2 4 × 2 = × 𝑓1 3 3

≈ 498,04

+ 01,96

Ab

Quinta diminuta

2 6 1024 × 𝑓1 ( ) × 24 = 3 729

≈ 588,27

+ 11,73

G#

Quarta aumentada

≈ 611,73

- 11,73

A

Quinta justa

3 6 729 × 𝑓1 ( ) × 2−3 = 2 512 3 × 𝑓1 2

≈ 701,95

- 01,95

Bb

Sexta menor

2 4 128 × 𝑓1 ( ) × 23 = 3 81

≈ 792,18

+ 07,82

B

Sexta maior

3 3 27 × 𝑓1 ( ) × 2−1 = 2 16

≈ 905,86

- 05,86

C

Sétima menor

2 2 16 × 𝑓1 ( ) × 22 = 3 9

≈ 996,09

+ 03,91

C#

Sétima maior

D’

Oitava

≈ 1109,77 3 5 243 −2 × 𝑓1 ( ) ×2 = 2 128 = 1200,00 2 = 2 × 𝑓1 1

- 09,77

00,00

Chamamos 12-equi à afinação ocidental de 12 tons equidistantes por oitava. A diferença aqui é medida a partir de 12-equi, portanto, o sinal “+” significa que o intervalo de mesmo nome fornecido em 12-equi é x cents mais agudo que o pitagórico, o sinal “-“ representa um intervalo mais grave em 12-equi que seu relativo pitagórico.

Parece não haver motivo real para Pitágoras escolher A4 sobre d5 quando comparamos com 12-equi e, de fato, a razão de Pitágoras era uma crença de seu tempo: frações com números relativamente pequenos são mais consonantes. Considerando que ambos os intervalos (A4 e d5) estão à mesma distância do trítono exato12, escolha-se o que mais aprouver à composição em questão. Outra maneira de se encontrar a comma pitagórica é pensar pelo círculo de quintas, vamos a ela. #03 – A comma pitagórica no círculo de quintas Se lembrarmos13 que m.d.c.(7, 12) = 1, sabemos que são coprimos e, portanto, suficientes iterações de 7 em mod12 no darão todos os números naturais entre 0 e 12, o que nada é dizer senão: se acrescentarmos quintas justas suficientes obteremos os 12 tons cromáticos. Como estamos trabalhando com a afinação cromática pitagórica, queremos que nossas quintas sejam exatamente 3/2 de f1. Portanto, ascenderemos 12 quintas justas, o que é próximo de ascender 7 oitavas, vejamos:

3 12 ( ) = 129,746337890625, 𝑒𝑛𝑞𝑢𝑎𝑛𝑡𝑜 27 = 128. 2 Novamente nos deparamos com uma diferença pequena nas relações entre frequências14. Mas qual o tamanho dessa diferença? Agora que sabemos utilizar os cents, não podemos nos deixar enganar pelo aspecto aritmético das relações entre frequências, precisamos medir.

3 12 (2) 312 531441 129,746337890625 = 19 = = = 1,0136432647705078125. 27 2 524288 128 Caímos novamente na comma pitagórica, como sabemos, não é uma diferença tão pequena, na verdade, é bastante audível. Mesmo com o resultado igual, pode não se convencer o leitor, mas basta medir os cents, o resultado continua igual:

1200 × log 2 (

129,746337890625 531441 ) = log 2 ( ) = 23,460010385 … 128 524288 𝑜𝑢 𝑠𝑒𝑗𝑎, ≈ 23,46 𝑐𝑒𝑛𝑡𝑠.

E como poderíamos fazer, então, para que 12 quintas justas fossem iguais a 7 oitavas? Podemos distribuir o erro igualmente ao longo das 12 quintas ascendentes, de tal modo que chegaríamos a 128 em vez de 129,7... e parece bastante lógico, um rápido cálculo em cents nos mostrará qual o erro em cents que devemos espalhar pela afinação:

23,4600103846 ≈ 1,95500086538 𝑐𝑒𝑛𝑡𝑠. 12 12

Se a oitava tem 1200 cents, o trítono exato possui 600 cents. primeira parte é apenas uma rememoração do que fora apresentado em Propriedades das escalas diatônicas, do presente autor, disponível em: , acesso em 01 de fevereiro de 2016. 14 Aqui temos o caso onde C# > D. 13 Esta

Ou seja, temos que reduzir as quintas justas (3/2) em 1,95500086538 cents para que 12 delas parem exatamente a 7 oitavas da fundamental, uma vez que vamos acumular uma quinta justa sobre a outra doze vezes. Meçamos isso em cents para ver o resultado de nosso esforço:

3 1200 × 𝑙𝑜𝑔2 ( ) ≈ 701,95500086538, 𝑝𝑜𝑟𝑡𝑎𝑛𝑡𝑜, 2 701,95500086538 − 1,95500086538 = 700 𝑐𝑒𝑛𝑡𝑠. No mínimo fascinante e surpreendente! Voltamos15 à afinação ocidental de 12 tons equidistantes por oitava por outro trajeto! Sabemos que voltamos ao lugar de partida, pois as quintas justas de 12-equi são realmente de 700 cents, veja-se:

1200 × log 2 (2

(

7 ) 12 )

12

= 1200 × log 2 √27 = 700 𝑐𝑒𝑛𝑡𝑠.

#04 – Espécie de conclusão Para além da maravilhosa medição em cents – a qual será usada deste texto adiante – é necessário perceber em quais aspectos nossa afinação contemporânea (12-equi) abarca a afinação cromática pitagórica. Um ponto que deve ser óbvio são as quartas e quintas justas: nossa afinação 12-equi possui um erro de apenas ≈ ±1,96 cents, muito menos que a audição humana é capaz de perceber. Outro erro consideravelmente pequeno está no par M2-m7 (segunda maior e sétima menor): ≈ ±3,91 cents. É suficiente para sermos gregos antigos ainda hoje? Certamente não, uma vez que não fazemos música puramente melódica16 e não tomamos a quinta justa – além da oitava, certamente – como único intervalo consonante e ponto de repouso. Por fim, o par m3-M6 está passando minimamente da fronteira de diferença, com um erro de ≈ ±5,86 cents.

15 16

Cf. nota 3. A música pitagórica focava apenas na melodia, impedindo harmonias (permitindo apenas oitavas simultâneas).

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