A AGITAÇÃO DE LER JOSÉ SARAMAGO (1922-2010)

June 3, 2017 | Autor: I. Carneiro de Sousa | Categoria: Literature, Portuguese Literature, Jose Saramago, Nobel Prize in Literature
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A Agitação de Ler José Saramago
(1922-2010)



Li o 'Ensaio sobre a Cegueira' (1995) na cama, altas horas da noite,
quase sem respirar. Terminei talvez pelas quatro horas da manhã. Não
consegui mais dormir. Passei as horas seguintes a tentar vislumbrar uma
qualquer réstea de luz no quarto escuro. Amedrontado. Aqui e ali, acendia o
candeeiro da mesinha de cabeceira para ter a certeza de que não estava
cego. Descobri a genialidade de José Saramago neste livro, na sua dramática
intriga e na sua forma absolutamente única de provocar, prender, segurar
contraditoriamente o leitor. Os livros anteriores de Saramago não me tinham
entusiasmado. Li arrastadamente o tão celebrado 'Memorial do Convento'
(1982) sem lhe achar especiais qualidades. Li o livro quase por obrigação
profissional, achando somente curiosa a tentativa de imitação do estro
barroco, mas ainda assim prefiro frequentar a verdadeira produção barroca
epocal do Padre António Vieira da 'História do Futuro' ou a do D. Francisco
Manuel de Melo das 'Cartas Familiares'. Não consegui sequer acabar de ler
'O Ano da Morte de Ricardo Reis' (1984) e a 'História do cerco de Lisboa'
(1989) revelou-se uma profunda desilusão literária que não me fez esquecer
a prosa singular da 'Crónica de D. João I' de Fernão Lopes. O 'Ensaio sobre
a Cegueira' marcou para sempre a minha profunda admiração por um escritor
absolutamente genial. Só depois deste livro, apreciei o 'Levantados do
Chão' (1980) e fui novamente obrigado a ler de um só fôlego 'Todos os
Nomes' (1997). Comprei 'A Caverna' (2001) e 'O Homem Duplicado' (2002), mas
não passei das primeiras páginas. Acabei por trocar os livros, como muitas
vezes fazia, junto de um livreiro meu amigo que foi tolerando com
benevolência as minhas reacções intempestivas para com as novidades
editoriais lançadas com favores mediáticos, muita gente, muitas
assinaturas, 'portos de honra', conversas de circunstância e generosas
dedicatórias: sempre me interroguei se as pessoas presentes nestes
lançamentos alguma vez viriam a ler essas obras assinadas e dedicadas pelo
seu autor!
Descobri tarde, já no debutar de 2000, a única obra de Saramago que
continuo diligentemente a reler, a revisitar e a redescobrir
continuadamente: a sua 'Viagem a Portugal' (1981). Um livro nas
encruzilhadas da literatura de viagens, do ensaio etno-histórico, da
reflexão ontológica, volume belíssimo na sua cuidada apresentação, nas suas
bem escolhidas fotografias e, sobretudo, de uma rara observação desses
pormenores que fazem a contradição irresolúvel do Ser português – se é que
tal coisa existe. Tudo o resto em Saramago não me interessa. Não tenho
qualquer interesse em seguir as suas opiniões políticas, a sua ideologia é
sobretudo a dele, as suas paixões e ódios são naturalmente os seus. Nunca
li, apenas folheei, os seus 'Cadernos de Lanzarote' e não acompanhei
nenhuma das chamadas polémicas que, da religião à guerra, das 'jangadas de
pedra' à própria ideia de Portugal, foram mobilizando Saramago e os seus
muitos críticos de que desconheço completamente os nomes e ainda menos os
pontos de vista – se é que verdadeiramente os têm. Para mim, autores e
livros têm um valor intrínseco. Independente de biografias, feitios,
génios, ideologias e livres ou encomendadas opiniões. Saramago é para mim
um escritor referencial apenas pelo sublime prazer da leitura de alguns dos
seus livros e pela agitada convocação da minha inteligência, emoções e
sentidos. Genial pela sua escrita e intrigas. Único nas suas histórias mais
bem conseguidas e finamente redigidas. É o que me chega... Não aprecio tudo
em Eça, Camões, Camilo ou Pessoa, apenas para referir esses autores que
foram sendo consagrados principalmente devido à sua estranha obrigatória
colocação em programas e exames do ensino secundário oficial. Como agora
acontece também com Saramago. Trata-se do pior favor que se pode oferecer a
um escritor maior: transformá-lo em resumos, fichas, selectas, chatérrimas
interpretações normativas mais exames nacionais em que a obra se vaza em
perguntas que se respondem não através da leitura, mas da compra de um
manual com pretensões didácticas controlado pela poderossíssima e
multimilionária máquina editorial dos chamados 'livros escolares'. Recordo-
me dos meus dois filhos mais velhos terem sido obrigados a ler Saramago no
final do secundário. Destestam-no. Em rigor, nunca o leram e perderam
provavelmente todo o prazer de algum dia virem a interessar-se pela sua
obra ou por algum dos livros recomendados pelo pai.
Acompanhei sem grande interesse as cerimónias, louvores, exornações e
algumas críticas que foram nestes últimos dias acompanhando a morte triste,
parece que serena, do único Prémio Nobel da Literatura português. Muito
menos me interessa seguir qualquer discussão ociosa e preconceituosa sobre
a 'portugalidade' ou 'patriotismo' de Saramago. Ainda se discutem estas
coisas? A sua obra basta-me. Melhor, os livros que gostei sinceramente, que
acho singulares e geniais, de um escritor que passou a ser também
referencial para mim. Se existe em Portugal um verdadeiro 'Panteão
Nacional', esse é o lugar de Saramago. Talvez para lhe agradecer a única
citação que, entre todas as suas escritas e declarações muitas, instalei na
minha memória: «Às vezes, a literatura parece-se com uma operação da Bolsa.
As cotizações sobem e descem e muitas vezes só dependem da promoção...»


Ivo Carneiro de Sousa (20 de Junho de 2010, dois dias depois do falecimento
de um dos maiores escritores de sempre em língua portuguesa)
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