A AGREGAÇÃO DE ESCOLAS E AGRUPAMENTOS E A POSSIBILIDADE DE INOVAÇÃO E MELHORIA

June 28, 2017 | Autor: João Salgueiro | Categoria: Actor Network Theory, Teoría de Sistemas Sociales, Liderança
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A AGREGAÇÃO DE ESCOLAS E AGRUPAMENTOS E A POSSIBILIDADE DE INOVAÇÃO E MELHORIA

João Esteves Salgueiro Agrupamento de Escolas Viseu Norte [email protected]

Resumo – Partindo de um quadro teórico assente na Teoria dos Sistemas Sociais de Niklas Luhmann, procura-se analisar a possibilidade de a criação de um novo sistema organizacional escolar poder traduzir o desenvolvimento de processos de inovação e melhoria. O foco de análise incide sobre os agrupamentos escolares, uma realidade que emergiu em finais da década de 1990 e que, desde 2010, tem vindo a complexificar-se, fruto da consolidação de uma política educativa que assume o propósito de agregar, numa unidade organizacional, a educação préescolar e a escolaridade obrigatória de 12 anos. Desta forma, a tradicional organização da Escola em estabelecimentos de ensino tende a desembocar na constituição de grandes organizações educativas, verticalizadas e arreigadas nas comunidades locais. Procura-se, assim, perspetivar a Escola como um sistema organizacional em interação com um ambiente complexo e multifacetado que, ao introduzir “irritações”, desencadeia na instituição as condições promotoras de uma clausura operativa ativadora de mecanismos autopoiéticos e de formas autorrecursivas autónomas e inovadoras. Palavras-Chave: teoria dos sistemas sociais, mecanismos autopoiéticos, stakeholders, redes, inovação e melhoria

Um esboço normativo da evolução da escola portuguesa Os processos de agregação que têm vindo a configurar novos sistemas organizacionais, popularizados pela expressão mega agrupamentos, emergiram em 2010 e consolidaram-se em 2012. Contudo, esta tendência já antes tinha tido os seus primeiros desenvolvimentos. A noção de agrupamento de escolas remonta à Lei de Bases do Sistema Educativo (LBSE, Lei n.º 46/86, de 14 de outubro), mas a configuração da ideia viria a ser desencadeada, sobretudo após a publicação do Desp. nº 27/97, de 2 de junho. O Dec.-Lei n.º115-A/98, de 4 de maio, que aprovou “o regime de autonomia, administração e gestão dos estabelecimentos da educação préescolar e dos ensinos básico e secundário”, viria a consolidar uma tendência que desembocou na “constituição de unidades administrativas de maior dimensão por agregação de agrupamentos de escolas e escolas não agrupadas” 1. Regulamentação posterior, o Dec. Reg. n.º 12/2000 de 29, de agosto e o Desp. n.º 13313/2003, de 8 de julho, viria a estabelecer os principais requisitos, antes da publicação do Dec.-Lei n.º 75/2008, de 22 de abril2. Entre as prerrogativas do “órgão de direção estratégica” contam-se a capacidade de eleger e destituir o diretor, que lhe tem de prestar contas. Este órgão veio reforçar a representação da comunidade educativa, alterando uma “lógica de gestão escolar colegial”, por uma forma de “gestão unipessoal”, centrada na estrutura organizacional do diretor. O contexto do alargamento da escolaridade obrigatória até ao 12.º ano fez com que a 1 Desp. n.º 12955/2010, de 11 de agosto. 2 A que se seguiria a Port. n.º 1181/2010, de 16 de novembro.

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questão da agregação se viesse a colocar de forma mais veemente. Inicialmente com a Lei n.º 85/2009, de 27 de agosto, depois a Resolução do Conselho de Ministros n.º 44/2010, de 14 de junho e o Desp. n.º 12955/2010, de 11 de agosto. Com a chegada ao poder do atual governo, deu-se um novo ímpeto no discurso do aprofundamento da autonomia e da descentralização de competências, ao mesmo tempo que a nova realidade é apresentada como uma inovação. A ideia de agregação sobrepõe-se ao termo agrupamento, passando as novas organizações escolares a ser apelidadas de mega agrupamentos. Esta política de “territorialização da Educação” viria a ser consolidada com o Dec.- Lei n.º 137/2012, de 2 de julho, afirmando-se a vontade do governo de “dotar o ordenamento jurídico português de normas que garantam e promovam o reforço progressivo da autonomia e a maior flexibilização organizacional e pedagógica das escolas, (…)”. Deste modo, pretende-se contribuir para a “reestruturação da rede escolar, a consolidação e alargamento da rede de escolas com contratos de autonomia”3; o reforço do poder local e da participação da comunidade nas questões educativas.

Elementos para a construção de um quadro teórico de análise No contexto de uma mundividência, que já foi caraterizada como correspondendo a uma sociedade de risco (Beck, 1998; Luhmann, 1997a; 2006), marcada pela complexidade e pela contingência (Luhmann, 1997a, 1998, 2006), a escola, enquanto sistema organizacional, também não fica imune às mudanças aceleradas que se dão fora dela (Formosinho, 2002; Luhmann, 2002b). Assim, num quadro social e organizacional contingente e de risco, são necessárias outras teorias que possibilitem uma melhor compreensão de uma realidade social e organizacional mais complexa. A Teoria dos Sistemas Sociais, criada por Niklas Luhmann, poderá constituir um sustentáculo catalisador de novas perspetivas sobre a sociedade e a educação. Esta teoria permitenos perspetivar a Escola como um sistema organizacional complexo, em interação com um ambiente também ele complexo e multifacetado que, ao introduzir “irritações”, desencadeia condições promotoras de processos de clausura operativa ativadora de mecanismos autopoiéticos capazes de produzir estruturas autorrecursivas e regeneradoras. Seguindo as recomendações de Luhmann (1998, p. 35), também nós procuramos ultrapassar um certo défice teórico para a compreensão dos fenómenos sociais e proporcionar algum contributo para melhorar a descrição do campo educacional (Luhmann, 1991a, 1991b, 1997a, 2006). A Escola, ao configurar-se num mega agrupamento, congrega em si uma maior incerteza e contingência, dificultando a captação da complexidade interna do sistema e das suas interações com o ambiente; tanto mais que se vai constituindo como uma organização produtora e gestora do seu próprio conhecimento (López Yáñez, 2005). Importa, pois, fazer um breve percurso conceptual pelos elementos fundamentais da teoria dos sistemas sociais de Luhmann, procurando depois estabelecer algumas das possíveis inter-relações com outras teorias. O termo sistema terá surgido apenas por volta de 1600, mas o pensamento sistémico constitui uma tradição transmitida desde a Antiguidade (Luhmann, 1991a, p. 20), falando-se, então, em 3

Os primeiros contratos de autonomia foram regulamentados pela Port. n.º 1260/07, de 26 de setembro.

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totalidades constituídas por partes. O problema, como ressalta Luhmann, é que a totalidade deveria ser pensada duplamente: como unidade (Einheit) e como totalidade (Gesamtheit) das partes, que são mais do que a sua soma. Como sustenta Luhmann (1991b), a diferença tradicional foi substituída pela distinção entre sistema e ambiente, tendo-se reformulado como teoria de diferenciação do sistema e incorporado no novo paradigma. O sistema total utiliza-se a si mesmo como ambiente dos seus sistemas parciais, alcançando um grau mais elevado de improbabilidade. Desta maneira, um sistema diferenciado não consta de um determinado número de partes e de relações entre elas, mas de uma maior ou menor quantidade de diferenças operativas utilizáveis entre sistema e ambiente (pp. 3132). Neste processo de reconfiguração, o contributo de Ludwig Von Bertalanfy, sendo importante, comporta em si algumas limitações. Ao diferenciar sistemas abertos e sistemas fechados, remete estes para uma aceção de caos e limite, ocupando-se apenas daqueles (Luhmann, 1991a, p. 31). Afastando-se desta distinção, Luhmann centra a sua atenção na questão de saber “como a clausura pode produzir abertura”, desenvolvendo uma teoria mais complexa – que permitiu a introdução de auto-descrições, auto-observações e auto-simplificações e a distinção da diferença a partir de um observador (Luhmann, 1991a). Sistemas

I Sistemas Autopoiéticos

Sistemas Allopoiéticos

II Máquinas [Técnicos

Organismos [Seres vivos]

Sistemas Sociais [sentido]

Sistemas psíquicos [sentido]

III Interações

Organizações

Sociedades

Fig. 1 – Níveis e tipologias de sistemas de Luhmann Na sua Teoria Geral Sistémica, representada em traços gerais na fig. 1, Luhmann concebe um primeiro nível aglutinador que corresponde à Sociedade, depois desdobrado nos quatro grandes sistemas, o sistema como Máquina4, que funciona em circuito fechado, técnico, que corresponde a uma dimensão de tipo especialista e que introduz ou comunica os dados ao sistema. Este tipo de sistema poderá corresponder a um tipo de mudança orientada do centro para a periferia e que foi já caraterizada como mudança decretada (Barroso, 1996), adequando-se a um tipo de regulação coercitiva (Justino e Batista, 2013) e que corresponde ao que Formosinho (1989), na sua já clássica distinção, fazia equivaler à ideia de Escola como Serviço Local de Estado. Os principais tipos de sistemas, organismos, sistemas sociais e sistemas psíquicos, consubstanciam-se num único princípio condutor de toda a inter-relação entre sistema/ambiente-diferença e autopoiesis

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Os sistemas podem tornar-se allopoiéticos [do grego allo, “diferente”, e poiein, “criar”, “construir”] quando não

se conseguem reproduzir a si próprios. Não têm autonomia. Ao contrário, os sistemas autopoiéticos recorrem ao ambiente para reproduzirem parte dos seus elementos funcionais e códigos de funcionamento (Neves, 2005).

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(Berghaus, 2011, p. 38). Os sistemas, assim considerados, definem-se pelas operações que produzem e reproduzem e a unidade de cada um corresponde à unidade da operação constituinte (Luhmann, 1995, p. 26). Seguindo Luhmann (1995), em cada um dos sistemas operacionais realizam-se dois aspetos conjuntos e interrelacionados. Um primeiro, diz respeito às operações que produzem, fazendo emergir uma diferença entre sistema e ambiente, em que as operações conectáveis compõem o sistema e, o que é excluído, o ambiente do sistema. As operações produzem, assim, uma forma com dois lados, um lado interior – o sistema – e um lado exterior – o ambiente. Um segundo aspeto reporta-se à própria operação. O sistema coloca-se num determinado (exclusivo) estado histórico que se torna o ponto de partida necessário para a continuidade de qualquer operação subsequente. Com a mesma operação, o sistema gera as estruturas e fixa as condições necessárias para a sua conectividade. A unidade do modo de funcionamento dessa relação garante a continuidade e a auto-reprodução (autopoiesis) do sistema (Luhmann, 1995, p. 27)5. Para Luhmann, “os elementos sobre os quais se levantam os sistemas autopoiéticos (…) não têm existência independente (…). (…) são produzidos pelo sistema e precisamente pelo facto de se utilizarem como distinções, são diferenças que no sistema fazem uma diferença. (…) são unidades de uso para produzir novas unidades de uso – para as quais não existe nenhuma correspondência no ambiente” (Luhmann, 2006, p. 45; 1997a).6 O sistema é autónomo, não só no plano estrutural, mas também no plano operativo, podendo constituir operações próprias, estabelecer ligações com essas mesmas operações e antecipar operações ulteriores do próprio sistema. No entanto, para Luhmann, os sistemas sociais não são compostos por pessoas, mas por comunicações, desenvolvendo operações específicas no âmbito de um processo orientado para a diferença Medium / Forma (Medium/ Form) (Luhmann, 1997a, p. 59). A comunicação é absolutamente central, processando-se no contexto de uma síntese composta por uma combinação de três seleções: informação (Information); emissão (Mitteilung) e compreensão (Verstehen) (Luhmann, 1997a, p. 72). Cada informação, emissão ou compreensão implica uma seleção a partir de diferentes possibilidades, sendo, por isso, contingente7. Porém, como salienta também Luhmann (1991b), o êxito da comunicação deve parecer extremamente improvável, considerando que é improvável que ego (recetor) entenda alter (emissor), dada a separação e individualização dos seus corpos e consciências e considerando que o sentido da comunicação apenas pode ser compreendido ligado ao contexto. Contudo, as improbabilidades do processo comunicacional e a maneira como se superam e transformam em possibilidades vêm

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A noção de “autopoiese” foi introduzida em 1971, pelos biólogos chilenos Maturana e Varela (1998), para

designar a organização de um sistema vivo mínimo. Segundo Varela (1992), um sistema autopoiético “é aquele que continuamente produz os componentes que o especificam, no momento em que o realizam (ao sistema) como unidade concreta no espaço e no tempo, tornando possível a própria rede de produção de componentes”. 6

Tradução livre que será, por nós, efetuada no caso de citações noutras línguas.

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Para Luhmann contingência refere-se à ideia de imprevisibilidade e risco e traduz a possibilidade de haver

outra escolha ou seleção.

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regularizar a construção dos sistemas sociais (Luhmann, 1991b). Estas constituem um processo de ordenação social, em grupos ou em organizações e desenvolvem-se através de uma dupla contingência (Luhmann, 1991a)8. Esta delimita o sentido da comunicação, num processo em que medium e forma atuam como “condutores de probabilidades” (Luhmann, 1997b, p. 190). Com efeito, como sublinha Luhmann (1995), Medium9 constitui a “ordenação de possibilidades” (p.15) e deve ser sempre pensado em ligação com Forma (Berghaus, 2011, p. 112). Os Medium são constituídos por elementos debilmente acoplados, enquanto Forma corresponde aos mesmos elementos juntos e rigidamente acoplados. Nesta diferenciação, os Medium regeneram-se a si próprios, pois criam formas e dissolvem-nas novamente (Berghaus, 2011, p. 305). A Sociedade é constituída por comunicação, códigos comunicáveis e não por homens, comunicando não consigo mesma mas com o ambiente e com outros sistemas sociais ou psíquicos10. A possibilidade de desenvolvimento de processos comunicativos ocorre através de mecanismos de acoplamento estrutural (strukturelle kopplung)11 (Luhmann, 1997a, 2006), por intermédio dos quais o sistema limita o leque de possíveis estruturas para realizar a sua autopoiese. Cada sistema adapta-se ao respetivo ambiente, mantendo dentro de si próprio uma dada margem de manobra que lhe concede autonomia (Luhmann, 1997a, pp.100-101). A figura seguinte (fig. 2) ilustra um processo autopoiético, assente num mecanismo de acoplamento estrutural e que poderá ser aplicado à ideia de Escola como Sistema Autopoiético.

Fig. 2. Diferenciação sistema / ambiente Para Luhmann, as organizações não se diferenciam da sociedade, nem dos âmbitos societais, não se conceptualizando como um sistema de tipo próprio (1997b, p. 4). Tal como a sociedade, as operações nas organizações orientam-se para a diferenciação entre sistema e ambiente e reproduzem-se de forma autopoiética, fazendo com que as identidades das organizações sejam construídas mediante seleções ininterruptas de decisões (Entscheidungen).

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A dupla contingência traduz uma dupla imprevisibilidade na observação mútua significativa de sistemas

operacionais. Ocorre quando duas instâncias têm o propósito de processar informação entre si, conduzindo à ordenação social e à formação de um sistema. 9

Como sublinha Luhmann (2006), o médium fundamental da comunicação é a linguagem (pp. 157 e ss).

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Enquanto os sistemas sociais alcançam a sua autorreferenciação e fechamento recursivo através da

comunicação, os sistemas psíquicos, em que se encontra o homem, fazem-no mediante consciência (Luhmann, 1991b, p. 97). 11

O acoplamento estrutural traduz o processo pelo qual um sistema utiliza as estruturas de funcionamento de

outro sistema, os seus elementos, para fazer operar os seus próprios processos comunicativos.

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Neste contexto, as organizações são interpretadas numa estreita articulação com a decisão e não como pretensão de racionalidade imediata. Esta perspetiva, aplicada à Escola, ultrapassa uma abordagem de sistema aberto que muitas vezes tem sido objeto de investigação em Portugal, como, por exemplo tem vindo a ser configurado na imagem de “escola como comunidade educativa” (Formosinho, 1989), ou através da dualidade que enfatiza uma abordagem de “autonomia construída” face a uma ideia de “autonomia decretada” (Barroso, 1996). Quer num caso quer noutro, sobrepõe-se um tipo de “regulação induzida” (Justino e Batista, 2013) que deixa a Escola ao dispor da comunidade e dos respetivos stakeholders. Este tem sido, quanto a nós, o paradoxo da autonomia que tem vindo a alimentar grande parte do discurso das políticas educativas dos últimos vinte e cinco em Portugal. No quadro destas ideias, impõe-se uma análise da possibilidade de mostrar um outro horizonte de sentido construído na Escola, implicando os processos de tecelagem dos actantes num contexto de um fechamento recursivo e autorreferencial sustentado por mecanismo autopoiéticos. Recorrendo a Brown (1969), a perspetiva de Luhmann passa pelo estabelecimento de uma diferenciação entre o lado em que se encontra o observador e o lado não observado, centrando-se aquele no espaço marcado, a linha de fronteira de uma diferença e que força o observador à tomada de decisão por um dos lados. Acentua, contudo, a importância do cruzamento de limites, considerando-o criativo e não uma mera repetição identitária. Para Luhmann, um processo de diferenciação não se pode identificar a si próprio, mas fá-lo em referência a um código binário que permite uma criação fértil possibilitado pelo cruzamento da fronteira (1997a, p. 61). As operações organizacionais usam as referências do ambiente apenas na proporção dos seus próprios códigos e programas, fazendo com que as identidades das organizações sejam construídas mediante seleções ininterruptas de decisões. Neste contexto, as organizações são interpretadas numa estreita articulação com a decisão (Luhman, 2000). Esta, por sua vez, não pode ser entendida como um processo de reflexão que serve de preparação de uma ação, tendo em vista a execução. Decidir significa escolher entre alternativas, “convertendo a incerteza em risco” (Luhmann, 1997b, p. 10). Nos termos de Luhmann (2002a), as decisões diferenciam-se das ações por um ponto distinto de relação da sua identificação e porque têm uma forma diferente de enfrentar a contingência. Como sublinha Luhmann, “o que atua como unidade da decisão (…) é (…) a relação ajustada entre alternativas. A identidade de um ato de decisão não se perfila, consequentemente, apenas na alternativa eleita, mas também contra o horizonte de outras possibilidades entre as quais aquela foi escolhida (1997b, p. 11). Mas as decisões, para preservarem a sua continuidade, precisam de ser transformadas em estruturas que servem como premissas – ou pré-requisitos – para outras decisões. Como salienta Kühl (2010, p. 4), citando Luhmann (1998), as premissas de decisão constituem "uma restrição da regulação do trabalho, quando numa organização se comunica, marcha [trabalha], faz registos [formais], ou governa. É estabelecida uma posição hierárquica que determina quem – com quem – pode oficialmente falar e quem não pode” (p.4). As estruturas têm a função de “condições prévias” que limitam questionamentos na respetiva aplicação (Luhmann,1997b), através das quais as

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organizações protegem as suas “bases internas de segurança e, simultaneamente, afirmam a sua autonomia relativamente ao ambiente. Tal só pode acontecer se se apoiarem em “certezas autoproduzidas”, tomando em conta a documentação formal e escrita das decisões adotadas (Luhmann, 1997b, p. 63). Este quadro conceptual cria as condições que nos possibilitam uma análise da escola agregada, entendida como um sistema organizacional complexo que toma decisões em interação com um ambiente também complexo e multifacetado e que introduz no sistema “irritações” que são vistas como potenciadoras de criatividade sistémica.Tanto mais que, de acordo com Luhmann (1997b), as decisões surgem muito ligadas à inovação (innovation). Criando as condições de autoestabelecimento, a inovação constitui um "processo de decisão contra indutivo, um processo de decisão que decide diferente do que era esperado, mudando, assim, as expectativas"” (p. 89)12.Sendo uma mudança de estrutura, a inovação não é uma renúncia sem reposição e redução de aprendizagem organizacional, como também não é uma mudança de programa, uma reforma13, uma simples invenção ou melhoria. Do mesmo modo, a institucionalização ou normalização das inovações não implica, necessariamente, a criação de papéis, expressamente, para esse fim. Para Luhmann (1997b),"a inovação só é possível quando os processos de decisão são considerados alternativas viáveis. Em Processos decisão cooperativos altamente diferenciados, que requerem que uma reorganização (mais ou menos) simultânea de alternativas numa infinidade de situações decisão que são determinadas sobre soluções que até agora têm sido preferidas, mas não nas que ainda não foram eleitas”(p. 91). Ficam assim traçadas as linhas conceptuais que configuram as linhas mestras do nosso quadro teórico, a partir das quais pretendemos estabelecer conexões com a teoria de rede, a teoria do Ator Rede, a teoria dos stakeholders e com questões de liderança. Quanto à relação entre a teoria dos sistemas sociais e a teoria de rede, emerge como uma linha de pesquisa mais produtiva aquela que procura relacionar a rede social com a comunicação (Fuhse, 2011). Este autor sugere uma díade comunicativa no contexto da dupla contingência ou mesmo uma tríade, tendo como referência a possibilidade de uma múltipla contingência (White,1999). Antevemos, assim, as vantagens que a abstração teórica nos concede, por exemplo, para estabelecermos inter-relações entre diferentes âmbitos conceptuais, permitindo-nos aprofundar e diversificar a análise de processos organizacionais mais complexos. Neste contexto, também a Teoria do Ator-Rede (Actor Network Theory – ANT)14 constitui uma opção conceptual enriquecedora. Articulando-se com a teoria dos stakeholders, acentua não só a ideia de rede, mas também das partes interessadas que a constituem. Segundo Freeman (1984), os stakeholders reportam-se a todos os que são afetados pelas decisões e ações e que têm poder para influenciar

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Para Luhmann, a intencionalidade não é decisiva para a mudança e inovação, uma vez que tal também

ocorre em situações de emergência, quando se adotam atividades secundárias ou se renuncia a atividades. 13

Como tem acontecido, por exemplo, no caso português, em que as reformas têm vindo a traduzir-se em

rotundos e repetidos fracassos. Como foi já sublinhado por Canário (1996), a mudança das práticas por decreto tende a “ignorar ou a reconfigurar as propostas que lhe são enviadas de ‘cima’” (p. 65). 14

Esta teoria é habitualmente associada a Bruno Latour, Michel Callon e John Law.

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os objetivos e os resultados, podendo mesmo implicar a possibilidade de serem selecionadas numa base ad-hoc. Este elemento introduz a faculdade de marginalização de grupos importantes, em resultado de ambiguidades ou perspetivas distorcidas que podem colocar em risco a viabilidade e o apoio ao processo, a longo prazo (Reed et al. 2009, pp. 1933-1934). Como sublinha Latour (2005), precisamos de redefinir o adjetivo social, indo ao encontro da ideia de uma situação estabilizada, um conjunto de laços que podem ser mobilizados para contarem para algum outro fenómeno, algo que é tecido em conjunto. Uma agregação do social que incorpora elementos heterogéneos, associando elementos humanos e não-humanos designados por Actantes. Esta teoria foi já usada, nomeadamente por Perillo (2008), para analisar a possibilidade de desenvolver práticas de liderança distribuída em contexto de fabricação e tecelagem social em rede.

Procedimentos metodológicos Procurando direcionar a investigação para o quadro teórico de análise exposto, situamo-nos em torno de uma questão central mais abrangente, desdobrando-a em cinco eixos de pesquisa. Questão de investigação: Análise de um mega agrupamento em termos de inovação e melhoria sistémica e organizacional em interação com os stakeholders da comunidade. Eixos de pesquisa: a) Visão de um mega agrupamento enquanto núcleo escolar inovador e de referência para a região; b) Dinâmicas organizacionais e interação com os stakeholders com impacto na melhoria organizacional; c) Estabelecimento de redes de comunicação – cooperação/tensão, sentidos, propósitos, resultados...d) O mega agrupamento (em análise) como sistema organizacional complexo em interação com um ambiente multifacetado; e) O sistema organizacional como produtor de mecanismos autopoiéticos e o papel das lideranças educativas; e) Perceção do lado mais informal da organização e da produção de significados e de elementos subjetivos e não planeados na construção do novo agrupamento. Partimos do pressuposto de que uma abordagem qualitativa ajusta-se melhor ao estudo que nos propomos desenvolver, uma análise detalhada e interpretativa de um contexto que engloba o sistema organizacional configurado num mega agrupamento, quer numa perspetiva diacrónica quer sincrónica e nas relações que ele estabelece com um ambiente multifacetado. Temos presente que o método qualitativo descreve os fenómenos por palavras em vez de números ou medidas, não tendo a preocupação de estudar os comportamentos, mas as intenções e situações configuradas nas ideias, na descoberta de significados e nas interações sociais, partindo da perspetiva dos implicados (Wiersma, 1995; Coutinho, 2011). Esta perspetiva enquadra-se no âmbito da abordagem de YIN (2009), para quem a essência de um estudo de caso fica melhor representada através da principal tendência entre todos os tipos de estudo de caso, que é a de procurar iluminar uma decisão – ou conjunto de decisões –, partindo do modo como foram implementadas e com que resultados. Temos presente a ideia de que qualquer estudo empírico parte de um problema, tendo por base uma “situação concreta e que comporta um fenómeno que pode ser descrito e compreendido segundo as significações atribuídas pelos participantes dos acontecimentos” (Fortin, 2009, p. 42). O que, de acordo com López Yáñez (2005), enfatiza a necessidade de se articularem as mudanças orientadas com as dinâmicas consubstanciais e intrínsecas que todas as organizações comportam

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e cujo ritmo, sentido ou direção, são alterados pelas perturbações que são introduzidas, levando a que as mudanças planificadas que entram no sistema organizacional se entrelacem com as referidas dinâmicas e sejam por elas afetadas. Como técnicas de análise de dados, elegemos a análise de conteúdo e o método da análise crítica do discurso, podendo também recorrer “notas de campo” (Bogdan e Biklan, 1994, p. 150). Na esteira de Caria (2003), situamo-nos numa zona de fronteira, adequada, aliás, às perspetivas teóricas que fomos equacionando ao longo deste nosso projeto, sem a preocupação com identidades científico-disciplinares. Desta maneira, o nosso propósito é o de “’iluminar’ os saberes e as atitudes (tácitos e reais) da ciência social no seu contexto de ação” (p.11). Ao optarmos por esta via investigativa, procuramos, também nós, fazer “… coexistir a linguagem da experiência, de estar e pensar no trabalho de campo, com a linguagem da teoria, que permite objetivar e racionalizar o que ocorreu” (Caria, 2003, p. 10). A análise de conteúdo, de acordo com Bardin (1995) corresponde a um conjunto de técnicas de análise das comunicações, que utiliza procedimentos sistemáticos e objetivos de descrição do conteúdo das mensagens”. Ou seja, tal como o arqueólogo, o investigador trabalha com vestígios, documentos que pode descobrir ou suscitar e que constituem manifestações de estados, de dados e de fenómenos. Complementarmente, pretendemos aplicar a técnica da análise crítica do discurso (ACD) que, não constituindo um método uniforme de análise discursiva, “conceptualiza o sujeito como sendo construído e construtor de processos discursivos a partir da sua natureza ideológica; b) Valoriza o uso linguístico enquanto expressão de uma produção realizada em contextos sociais e culturais orientados por formas ideológicas e desigualdades sociais; c) Enfatiza o entendimento de visões do mundo diferenciadas, procurando analisar essas visões do mundo que estão subjacentes à constituição dos factos, dos acontecimentos, e, sobretudo, da agenciação no que se relaciona com a linguagem, o discurso, a ideologia e a sociedade; c) Valoriza o modo como o poder social, a dominância e a desigualdade são postos em prática, bem como o modo como são reproduzidas e se lhes resiste, pelo texto e pela fala, no contexto social e político; d) Tem o propósito de tomar uma posição explícita a favor da compreensão e exposição das desigualdades sociais e de resistência face a essas desigualdades; e) Analisa e revela o papel do discurso na (re) produção da dominação, seja o exercício do poder social por elites, instituições ou grupos que resulta em igualdade social, políticas, culturais e qualquer tipo de discriminação; f) Enfatiza a valorização das elites e formas de controlo exercido por determinados grupos sobre outros; g)Valoriza uma orientação multidisciplinar” (Pedro, 1997; Van Dijk, 2005). Enquadrando-se numa perspetiva ampla, diversa, multidisciplinar, a ACD orienta-se para problemas, constitui uma disciplina de cruzamentos com muitas outras disciplinas/áreas, cada uma delas com as suas teorias, instrumentos descritivos ou métodos de inquérito, interconectando-se com a abordagem teórica privilegiada.

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Consubstanciando-se num projeto de pesquisa de doutoramento já apresentado e aprovado através da Universidade Aberta15, este texto traduz já uma sistematização de pensamentos direcionados para a questão central de investigação e para os eixos de pesquisa antes enunciados.

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Working

Paper

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Sob a orientação da Professora Doutora Susana Henriques.

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