A ÁGUA COMO ELEMENTO MOTIVADOR DO DIÁLOGO CIENTÍFICO

July 5, 2017 | Autor: Nubia Caramello | Categoria: Entre Ríos, Gestión Integrada Del Agua, Percepcion Ambiental
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Ata do XIX Seminário Acadêmico da APEC O Local, o Global e o Transnacional na Produçao Acadêmica Contemporânea Barcelona, Catalunha, Espanha 19 e 20 de junho de 2014

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Arte Visual: Sérgio André Rossi Diagramaçao: Rani Bortolotti

COMISSÃO EDITORIAL Elka Lima Hostensky Katucha Rodrigues Bento Leonardo Luigi Perotto

Nota dos editores: A presente publicação foi produzida a partir de contribuições individuais dos autores. Os editores não se responsabilizam por opiniões expressas e não se comprometem por qualquer erro ou omissão que se possa ter sido cometida.

APEC – Associação de Pesquisadores e Estudantes Brasileiros na Catalunha Web: www.apecbcn.org E-mail: [email protected] Passeig de Gràcia, 41 – 3ºC 08007 – Barcelona – Catalunha

COMITÊ ORGANIZADOR Coordenação do Seminário: Leonardo Luigi Perotto Coordenação de Mesas Redondas: Elisa Duarte, Katucha Rodrigues Bento, Leonardo Luigi Perotto, Pedro Rothstein Coordenação de Sessões de Comunicação: Adriana Ibiti, Emerson Cruz, Maria Carvalho Dantas, Mariane Abakerli, Pablo Blanco Castelos, Victoria Leiria Dantas, Colaboradores: Ilka Lima Honstensky Adriana Ibiti Mayra Alfay Rafaela Diógenes COMITÊ CIENTÍFICO: Aline Nunes Carla Diéguez Caroline Cotta de Mello Freitas Juzelia de Moraes Silveira Lilian Ucker Perotto

AGRADECIMENTOS Esta publicação, assim como a celebração do XIX Seminário Acadêmico da APEC 2014 foi possível graças às contribuições de todos os membros da APEC e instituições que participaram da organização deste evento, promovendo encontros e ideias. Agradecemos especialmente o Ministério de Relações Exteriores do Governo Federal Brasileiro, a Embaixada do Brasil em Madrid e o Consulado Brasileiro em Barcelona que possiblitaram a execução desta atividade financiando parte do evento. Agradecemos também toda comissão organizadora pela dedicação e trabalho voluntário, que fizeram com que o seminário se tornasse possível.

APOIO INSTITUCIONAL Ministério de Relações Exteriores do Governo Federal do Brasil Embaixada do Brasil em Madrid Consulado Brasileiro em Barcelona Pati Llimona

APRESENTAÇAO *carta do Leonardo Luigi Perotto – Presidente*

SUMÁRIO – ARTIGOS

DIÁLOGOS ENTRE OS FEMINISMOS PORTUGUÊS E BRASILEIRO DO INÍCIO DO SEC. XX.... 2 EDUCAÇÃO INTERCULTURAL INDÍGENA: UM ESTUDO COMPARADO ENTRE PROGRAMAS EDUCACIONAIS DE BRASIL, MÉXICO E BOLÍVIA ......................................................................... 16 SUSTENTABILIDADE NA MODA E O CONSUMO CONSCIENTE ................................................. 29 ELEMENTOS CULTURAIS BRASILEIROS APLICADOS EM ACESSÓRIOS FEMININOS ............ 40 A ÁGUA COMO ELEMENTO MOTIVADOR DO DIÁLOGO CIENTÍFICO INTERNACIONAL ......... 50 O QUE É O ECONÔMICO? A PERSPECTIVA DA ECONOMIA SOLIDÁRIA E DA ECONOMIA FEMINISTA......................................................................................................................................... 64 RIZOMA E COMUNICAÇÃO ANARCAFEMINISTA: DIÁLOGOS (IM)POSSÍVEIS ENTRE NORTE E SUL.................................................................................................................................................. 79 TENDÊNCIAS E DESAFIOS DA POLÍTICA DE FORMAÇÃO DE DOCENTES UNIVERSITÁRIOS/AS NO CONTEXTO DA TRANSNACIONALIZAÇÃO EDUCATIVA ................. 88 ESTUDANTE OU IMIGRANTE? RELATOS DA EXPERIÊNCIA MIGRATÓRIA BRASILEIRA NA ESPANHA......................................................................................................................................... 103 EL TEATRO DE SHAKESPEARE Y EL ESPACIO CONTEMPORÁNEO ...................................... 117 A TENDÊNCIA ARISTOTELIZANTE DAS ESCOLAS PLATÔNICAS: DOS RUMOS DA FILOSOFIA GREGA E O CRISTIANISMO ...................................................................................... 131 B-LEARNING NAS REDES SOCIAIS: ESTUDO DO SEU POTENCIAL NA INCLUSÃO DE ESTUDANTES SURDOS NO ENSINO SUPERIOR ....................................................................... 140 NOTAS SOBRE A DINÂMICA SÓCIO-ESPACIAL DA CITRICULTURA: BRASIL E ESPANHA NO COMÉRCIO MUNDIAL DE CÍTRICOS ............................................................................................ 151 AS FÁBRICAS DE CRIAÇÃO DE BARCELONA. UMA INICIATIVA CULTURAL INCIPIENTE E ELITISTA OU UMA POLÍTICA PÚBLICA INOVADORA COM AFÃ DE TRANSFORMAÇÃO SOCIAL?........................................................................................................................................... 166 HACIA UNA CONCEPCIÓN DIGITAL DEL PROYECTO DE ARQUITECTURA ........................... 180

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DIÁLOGOS ENTRE OS FEMINISMOS PORTUGUÊS E BRASILEIRO DO INÍCIO DO SEC. XX

Cláudia de Jesus Maia Universidade Estadual de Montes Claros (Unimontes), Bolsista CAPES; [email protected] Resumo: A pesquisa tem por objetivo discutir aspectos do feminismo no Brasil e em Portugal do início do século XX, por meio dos discursos e experiências de duas escritoras feministas: a portuguesa Ana de Castro Osório e a brasileira Júlia Lopes de Almeida. São seguidas duas linhas de investigação: a primeira diz respeito às representações de gênero construídas pelas autoras; a segunda persegue as representações de nação construídas por elas, buscando verificar como os discursos, sobre mulheres/gênero e nação, estão imbricados e as matrizes de sentidos comuns aos discursos das duas escritoras. A análise é feita a partir dos romances Mundo Novo (192?)de Ana Osório, e Correio da Roça (1913) escrito por Júlia Lopes de Almeida. Palavras Chave: gênero, feminismo, nacionalismo, literatura feminina Abstract: The research aims to discuss aspects of feminism in Brazil and Portugal in the early twentieth century, through the discourses and experiences of two feminist writers: the Portuguese Ana de Castro Osório and the Brazilian Júlia Lopes de Almeida. Two lines of investigation are followed: the first one relates to the representations of gender constructed by the authors; the second pursues the representations of nation constructed by them, seeking to verify how the discourses about women/gender and nation are interwoven and the common sense matrices to the two writers’ speeches. The analysis is made based on Ana Osorio’s novel Mundo Novo (192?) and Júlia Lopes de Almeida’s novel Correio da Roça (1913). Keywords: gender, feminism, nationalism, women's literature

Da última década do século XIX às três primeiras do século XX, Portugal e Brasil estiveram envolvidos em momentos de grande transformação política e social, representados especialmente pela implantação e consolidação da República – o Brasil em 1889, Portugal em 1910 – e pela constante expansão do modo de vida burguês, com seus modelos idealizados de família, casamento, maternidade, de homens e mulheres marcados pelas diferenças de gênero. A preocupação em consolidar e fortalecer o regime recém-criado por meio de discursos patrióticos, progressistas e de uma imagem de nação, também são similares nesse momento histórico dos dois países, embora as direções tomadas tenham sido opostas: Portugal volta-se para o exterior, a fim de se afirmar como potência imperialista; o Brasil volta-se para o interior, em busca de autenticidade e explicações para os obstáculos ao progresso nacional. A ideia de que as nações são construções imaginárias foi introduzida por Benedict Anderson (2008) que propôs pensá-las como “comunidades políticas imaginadas”. Nações são “imaginadas”, porque fazem sentido para a “alma” e são resultados de projetos e aspirações coletivas. Explica o autor que a nação é imaginada, porque “(...) mesmo os membros da mais minúscula das nações jamais conhecerão, encontrarão, ou sequer ouvirão falar da maioria de seus companheiros, embora todos tenham em mente a imagem viva da comunhão entre eles” (Anderson, 2008, p.32). Conforme conceitua Anderson, a nação é imaginada como limitada, porque possui fronteiras finitas; como soberana, porque o conceito nasceu com a destituição da legitimidade do reino dinástico de ordem divina; e como uma comunidade, porque é concebida sempre “como uma profunda camaradagem horizontal” (ibid.34). Uma das contribuições 1

Este resulta da pesquisa de pós-doutoramento em andamento na Universidade Nova de Lisboa e Université de Nice sob supervisão dos professores Manuel Gaspar Lisboa e Armanda Manguito Bouzy; conta com apoio financeiro da CAPES por meio de bolsa de estágio pós-doutoral.

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fundamentais da abordagem de Anderson é a importância que ele atribui ao capitalismo editorial e à cultura impressa, por meio do jornal e do romance, para a construção do tipo de comunidade imaginada. A cultura impressa institui sentidos e representações sobre a nação, convertendo-a numa comunidade real. As nações modernas, constituídas ao longo do século XIX, tiveram como principal expressão o republicanismo que apregoava princípios universais e igualitários, mas que, na prática, produziu a exclusão das mulheres da esfera pública e dos direitos. Assim, a república burguesa, como é o caso do Brasil e de Portugal, foi limitada ao imaginar a mulher como sujeito político. Conforme argumenta Mary Pratt, o que a república burguesa oferecia às mulheres era a “maternidade republicana”, ou seja, o papel de esposas obedientes e mães abnegadas, produtoras de cidadãos, não sendo elas mesmas cidadãs. Essa autora sublinha que “a população feminina das nações não era imaginada e sequer convidada a se imaginar como parte da irmandade horizontal” (1994, p.131). Não obstante, mesmo em situação desigual, desfavorável e silenciadas no processo histórico, mulheres, como a brasileira Júlia Lopes de Almeida e a portuguesa Ana de Castro Osório, participaram da cultura impressa de seus países como escritoras, jornalistas e leitoras, produzindo imagens de si mesmas e da nação. Mas, ao contrário da perspectiva presente na literatura escrita por homens, que tende a apregoar um modelo de domesticação e submissão feminina, é possível afirmar que essas escritoras construíram uma representação de nação, associando o progresso desta à emancipação e independência femininas. Assim, meu objetivo mais amplo neste estudo é discutir as intercessões entre o feminismo brasileiro e português das primeiras décadas do século XX, por meio da análise das representações de gênero (Scott, 1995; Lauretis, 1994) e de nação, construídas por Júlia Lopes de Almeida e Ana de Castro Osório. Restringi o corpus documental aos romances epistolares Correio da Roça (1913), de autoria da escritora brasileira e Mundo Novo (192?) da escritora portuguesa.

Uma ponte sobre o Atlântico: Ana Osório e Júlia Almeida

Nascida em Mangualde, em junho de 1872, em uma rica família burguesa, Ana de Castro Osório lançou-se à carreira das letras aos 23 anos com Infelizes, seu livro de estreia, em 1898. Dedicou-se à escrita de vários gêneros literários, tendo publicado inúmeros livros de contos, ensaios, romances e uma vasta obra de literatura infanto-juvenil, tornando-se uma das escritoras mais lidas e apreciadas da sua geração. Ela também foi colaboradora em inúmeros jornais e revistas em Portugal e no Brasil. Criou a Casa Editora Para as Crianças e a Edições Lusitânia. Manteve correspondência com diferentes personalidades do mundo literário, especialmente do Brasil. A extensa correspondência trocada com lideranças feministas, jornalistas, editores – entre eles Monteiro Lobato – representantes de livrarias e pessoas ligadas aos governos de diferentes

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estados, demonstra o enorme empenho e interesse de Ana Osório em difundir sua obra e propagar suas ideias no Brasil. Como resultado, teve dois dos seus livros de literatura infantil adotados pela instrução pública no Brasil: Uma Lição de História de 1909, em Minas Gerais; e Lendo e Aprendendo, de 1913, em São Paulo (Remédios, 2004). O Brasil também foi alvo da sua escrita e do seu projeto nacionalista. Entre 1911 e 1914, morou em São Paulo, acompanhando o marido, o poeta Francisco Paulino Gomes de Oliveira, cônsul de Portugal no Brasil. Nesse período, participou do Congresso de Instrução Pública realizado em Belo Horizonte, colaborou com jornais feministas e se inspirou para escrever o livro de contos infanto-juvenil Viagens aventurosas de Felício e Felizarda ao Brasil (1917) e o romance Mundo Novo (192?), já que ambos são ambientados no Brasil. Em 1922, já viúva, retorna ao Brasil para participar das comemorações do primeiro centenário de independência e realizar uma série de conferências sobre a cultura e a condição das mulheres em seu país. As conferências resultaram no livro A grande aliança (1924), no qual a autora defende a “aliança” entre Brasil e Portugal, com vistas a constituir uma raça forte para expandir a “civilização lusitana” e restituir a “glória de Portugal” (Osório, 1997). Até falecer, em 1935, Ana Osório teve uma intensa e ininterrupta atividade literária, cívica e política. Como Ana Osório, a amiga dela, a brasileira Júlia Lopes de Almeida, também teve uma vida dedicada à carreira literária e ao ativismo político. Foi uma escritora talentosa e a mais conhecida da Belle époque brasileira, tornando-se a primeira mulher a tentar entrar para a recémcriada Academia Brasileira de Letras e a primeira, também, a ser rechaçada. Iniciou sua carreira em 1881, aos 19 anos, como articulista do jornal Gazeta de Campinas. Publicou mais de 20 livros, alguns dos quais várias vezes reeditados; escreveu romances, contos, crônicas, peças de teatro, narrativas para crianças e colaborou, por mais de 30 anos, com diversos jornais e revistas do Brasil e de países como a França e Portugal, onde também teve alguns dos seus livros publicados. Em 1905, “tornou-se uma das poucas mulheres a participar da série de conferências inauguradas por Coelho Neto e Olavo Bilac[...]” (Luca, 1999, p.277) e, em 1914, foi homenageada em Paris, por importante intelectuais e literatos franceses e brasileiros, em evento amplamente noticiado pelos jornais no Brasil e na França. Júlia nasceu no Rio de Janeiro em 24 de setembro de 1862 e, em caminho inverso ao de Ana Osório, manteve fortes relações com Portugal. Viveu em Lisboa por três anos, onde se casou, em 1887, com o poeta e jornalista português Filinto de Almeida. Morreu em 1934. Numa época quando, em várias partes do mundo ocidental, a educação e, sobretudo, a escrita em prosa ainda era de difícil acesso para as mulheres, Ana Osório e Júlia Almeida não apenas construíram uma longa e profícua carreira literária, como também puderam viver dela. As mulheres eram vistas como incapazes de escrever e, sobretudo, proibidas de certas leituras consideradas impróprias ou perigosas para sua formação. Recebiam educação vulgar, suficiente para saberem escrever e ler, em especial as cartilhas católicas. Muitas escritoras brasileiras escondiam seus escritos, com receio de verem sua atividade, de certa forma clandestina,

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descoberta. No mundo literário, predominantemente masculino, as mulheres eram vistas como intrusas (Muzart, 2000). Ao contrário de muitas de suas contemporâneas, Ana e Júlia nasceram em um ambiente familiar mais favorável à educação feminina e se casaram com homens também ligados ao mundo das letras, o que lhes possibilitou tornarem-se escritoras e construírem uma carreira. Entretanto, o que essas mulheres, separadas pelo Atlântico, tiveram em comum não foi somente a língua, a educação, o talento da escrita e uma carreira incomum de escritoras, mas também o desejo de uma sociedade mais igualitária para as mulheres e o empenho pelo “progresso” dos seus respectivos países. Elas foram ativistas dos direitos políticos e sociais femininos, tornando-se as principais vozes do movimento feminista das três primeiras décadas do século XX, em seus países. Em Portugal, Ana Osório criou o Grupo Português de Estudos Feministas (1907); a Liga Republicana das Mulheres Portuguesas (1908); e a Associação de Propaganda Feminista (1911). Com a primeira grande Guerra, em 1914, criou a Comissão Feminina ‘Pela Pátria’; mais tarde, fundou a loja maçônica feminina Carolina Ângelo, em 1915, e ajudou a organizar, em 1916, a Cruzada das Mulheres Portuguesas (Remédios, 2004). No Brasil, Júlia Almeida participou da criação, em 1919, da Legião da Mulher Brasileira e da organização do primeiro Congresso Feminino do Brasil, em 1922. Realizou várias conferências no Brasil e no exterior, nas quais defendia a emancipação feminina, especialmente por meio da educação (Hahner, 2003). Não obstante à pluralidade do feminismo, desde seus primórdios, o feminismo assumido e propagandeado por essas escritoras é aquele de caráter burguês, mais conservador, restringindose, em grande parte às reivindicações de direitos que atingiam basicamente as mulheres de elite (cf. Cordeiro, 2012; Luca, 1999). Não se pode, porém, desconsiderar o potencial e a contribuição dessas escritoras, feministas de elite, para desconstruir efeitos de verdades e modelos femininos de submissão, passividade e futilidade, predominantes na literatura escrita por homens e, portanto, mais hegemônica. Júlia defendia a educação feminina, sendo suas protagonistas quase todas mulheres instruídas e educadas para funções que excedem àquelas restritas ao âmbito doméstico. Em suas obras, as mulheres ocupam o centro das tramas e as histórias giram quase sempre em torno do universo feminino e de personagens femininos nada convencionais; mulheres autônomas e inteligentes, embora em conformidade com o modelo de mulher burguesa, dedicada ao lar, à maternidade e à família (Telles, 1997). Ana Osório também defendia, em seus escritos, uma educação emancipatória para as mulheres, tanto nos livros destinados ao público adulto quanto ao público infantil, embora, como sugere Cordeiro (2012, p.81), ela fizesse certa distinção “entre educação e instrução, numa estratégia de escalonamento das mulheres portuguesas consoante a classe social a que pertencem”. Foi uma das principais denunciadoras do elevado índice de analfabetismo da população portuguesa e defendeu e auxiliou na elaboração da lei do divórcio. Em sua literatura,

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conforme Armanda Manguito Bouzy (2012, p.9-10), as personagens femininas “reivindicam uma liberdade jurídica e uma credibilidade profissional”. Mas, assim como Júlia, predomina na sua escrita, como modelo feminino, real e ficcional, a mulher burguesa casada, dedicada à família e à maternidade e, principalmente, responsável pelo futuro da “raça”. Júlia e Ana também fizeram parte dos círculos literários e intelectuais de seus países, fortemente influenciados por ideais republicanos, positivistas, médico-higienistas em voga, e se empenharam em “imaginar” e instituir um ideal de nação. Mundo Novo – o destino colonialista de Portugal Mundo Novo é um romance quase todo epistolar, publicado, possivelmente, em 1922 2. Narra a história da protagonista Leonor, representação da “nova mulher” portuguesa, culta, inteligente, viajada, independente, feminista e defensora do divórcio. Leonor é também uma mulher sozinha, órfã de pai e mãe, recebeu de um velha tia rica, Dona Bárbara, as condições de sua formação. Após a morte da tia, parte para o Brasil a fim de viver com o tio. No Brasil, essa personagem passa a colaborar com o jornal Lusitano e a realizar atitudes benevolentes, se tornando respeitada e uma liderança na comunidade portuguesa de emigrantes. Ao lado de outros portugueses emigrados funda a colônia Nova Esperança. O romance inicia com a carta de Leonor à sua amiga e confidente Regina, na qual a protagonista narra suas primeiras impressões da viagem a bordo de um navio inglês e explica os motivos de sua partida. Como se quisesse convencer a si própria, repete várias vezes: “Parte porque queres!”, ou, antes, para demonstrar que Leonor – sem pai, nem marido – é uma mulher livre, que pode escolher entre partir ou ficar, pois, como ela mesma afirma, é, aos vinte e seis anos, “única senhora e árbitra do meu destino” (Osório, 1930, p.21). A partida dela é também uma fuga. Assim, parte para fugir a um casamento tradicional, planejado pelos pais, deste a infância dela, com Miguel, que considera as ideias dela sobre a emancipação feminina apenas “teias de aranha”, e para o qual “a mulher não deveria ter direitos, de que não saberia usar e os deveres lhe bastavam para preencher os dias da existência, unicamente devotada ao homem, seu senhor...”(Ibid.p.27). Parte para fugir de uma sociedade repleta de “preconceitos esmagadores” contra as mulheres, não lhes possibilitando direitos cívicos, meios de conquistar lugares de direção e seu próprio dinheiro, por isso, vai em busca de uma sociedade mais liberta, em que o valor da pessoa é constituído pelo seu trabalho e não por seu sexo, um Mundo Novo. Parte, por fim, porque tem na alma “todas as fantasias aventurosas da nossa raça, queimame o sangue de muitos gerações de emigrantes e descobridores” (Ibid. p.10). Parte, assim, em busca de fazer fortuna para assegurar sua independência financeira. Leonor tem o “espírito do aventureiro” de que nos fala Sérgio Buarque de Holanda, no seu clássico Raízes do Brasil. O 2

Utilizo um exemplar disponibilizado pela Biblioteca Nacional de Portugal, catalogado como sendo de 1930; Bouzy (2012) sugere 1927 como a data provável do seu exemplar e Cordeiro (2012) indica ser 1922 o exemplar que utiliza.

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aventureiro, ao contrário do trabalhador, “vive dos espaços ilimitados, dos projetos vastos, dos horizontes distantes” (Holanda, 1995, p.44), visa à prosperidade, mas sem esforços, prefere ousar, arriscar tudo que tem em um único negócio com a possibilidade de riqueza imediata, ao trabalho lento e laborioso. É com esse espírito aventureiro que Leonor investe tudo que possuía em um negócio arriscado no Brasil e, com seus conhecimentos financeiros e capacidade persuasiva, convence também o tio a participar do negócio como sócio. O negócio é bem sucedido e Leonor rapidamente tornar-se uma mulher muito rica. Cumpre-se, assim, o destino do aventureiro português. Uma das tramas do romance é o mistério em torno do testamento desaparecido de D. Bárbara, ficando toda a fortuna da moribunda para o irmão. É interessante destacar que, somente após Leonor ter ficado rica, independente e autossuficiente financeiramente é que desenrola a história do testamento que a tia fez em favor da sobrinha. O que a autora deixa claro, dessa maneira, é que ela se tornou rica pelo seus próprios esforços, inteligência, trabalho e coragem de arriscar, não por uma força externa, como a herança familiar que, nesse caso, somente deixou Leonor ainda mais rica. Outra ponto a destacar na construção sequencial do enredo é que, também, somente após Leonor ter conquistado sua independência financeira é que, finalmente, ela vai conhecer Bernardo e se apaixonar por ele (Osório, 1930, p. 254). O “mocinho” só aparece no romance após percorridos dois terços da história e após muitas das tramas já terem sido desenroladas. Essa estratégia discursiva de Ana Osório vai de encontro ao pensamento de outras feministas, suas contemporâneas, que viam o amor-paixão, e sobretudo o casamento, a principal, como fonte de submissão e opressão feminina, por isso, defendiam a educação e independência financeira das mulheres como estratégias delas escaparem à dominação masculina (Maia, 2011). Entretanto, mais do que uma história de amor-paixão de um casal, Mundo Novo é uma história de amor à pátria. Assim, o discurso na obra está direcionado, sobretudo, aos portugueses emigrantes, constituindo-se quase que em uma forma de “doutriná-los”. O texto presa mais pela propagação de ideais defendidos pela autora, com longas explicações e debates sobre temas como o feminismo, o divórcio, produção agrícola e industrial portuguesa, mas principalmente sobre o dever do emigrante português com a pátria, com a manutenção de tradições e pureza da raça, do que com a trama propriamente dita. O romance de Ana Osório faz parte das práticas discursivas da intelectualidade portuguesa da primeira república, que pretendia afirmar seu projeto de nação, reforçando a imagem de Portugal como potência colonialista e imperialista. Segundo Élio Serpa, desde o século XIX, aos olhos das nações europeias, Portugal encontrava dificuldades em se afirmar como nação. Na primeira República, debatia-se, internamente, em torno da sua constituição como uma nação forte e imperialista, mas, externamente, via seus interesses colonialistas ameaçados (Serpa, 2000, p.70). Nesse contexto, os intelectuais portugueses procuraram, mediante diversas revistas literárias, jornais e da literatura, construir e fixar uma memória coletiva da sua tradição e mostrar,

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aos demais países da Europa, seu potencial imperialista. Para isso, utilizam como matriz discursiva a imagem de Portugal como “criador de nacionalidades”, da qual o Brasil era o maior e mais concreto exemplo – tanto das realizações portuguesas, quanto para as suas colônias em África. Conforme Serpa (2000, p.70), “com isso, marcavam presença no contexto das políticas colonialistas e, acima de tudo, dialogavam com o Brasil na medida em que este era o emblema da positividade da sua política colonialista…”. Essa proposta está evidente no projeto nacionalista de Ana Osório, pois uma das matrizes de sentido principais tanto em Mundo Novo, quanto em A Grande Aliança, é o engrandecimento do Brasil como a maior obra de Portugal; por isso, uma das estratégias na sua escrita é a utilização da história e da memória discursiva. Assim, em muitos aspectos a saga de Leonor faz lembrar a saga de Cabral e dos bandeirantes portugueses que “descobrem” – ou demarcam e tomam a posse, pois, como sugere a carta de Caminha, assim como a carta de D. Rosarinha já era sabida a existência – um território vasto, fértil e inexplorado; expulsa os invasores, conquista os selvagens e implanta, nesse território, uma colônia portuguesa próspera, civilizada e eugênica – embora aceite a cooperação de outros povos. Uma colônia desenvolvida econômica, social e moralmente; propagada da América do Norte a Paris e que serve de modelo e exemplo para as outras nações (Osório, 1930, p. 350). Nas palavras de Leonor: “Como vês Regina, realizei aqui alguma coisa de grande e de forte, que marcará para o futuro mais uma imposição da nossa raça... (Ibid. p.265-266), e conclui: “A cidade de Nova Esperança é apenas o exemplo do esforço que devemos realizar para a conquista civilizadora do Mundo Novo. (Ibid. p. 352) Nova Esperança é a representação do ideal de nação de Ana Osório. Resulta do trabalho, da bravura, da capacidade associativa e do espírito aventureiro do português, mas sobretudo da inteligência, da liderança e da engenhosidade feminina. Isso é explicitado e reafirmado pela autora por meio da fala de uma admiradora de Leonor: “ – E a senhora é que é aquela moça portuguesa que fez a propaganda da ideia e conseguiu capitais e foi quem lançou a pedra da fundação?!” (Ibid. p.351). Esse protótipo de nação imaginada por Ana Osório resulta também da cooperação e complementariedade entre os sexos, expressos no par Bernardo-Leonor. Como sócios da colônia, Bernardo se ocupa das realizações técnicas, Leonor das intelectuais e das atividades de assistência médico-social. Mas é especialmente pelo casamento, de um tipo de casamento, que Ana Osório tece o drama nacional e projeta o caminho para a consolidação da nação portuguesa. Conforme assinalei, Ana Osório compartilha de princípios médico-higiênicos, eugenistas e racistas, muito em voga entre os intelectuais do final do século XIX e início do XX, tanto em Portugal como no Brasil (Schwarcz,1993; Skidmore,1989). Por isso, no romance, uma das matrizes de sentidos – dirigida especialmente ao português emigrante – é o casamento heterossexual, endogâmico, intrarracial, porém mais equitativo, no qual a mulher seja considerada sócia e não parte dominada. A mistura etnorracional é vista como perniciosa e um empecilho à constituição de um povo forte, saudável, higiênico e superior, portanto, para a consolidação de

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uma nação. Assim, a autora afirma várias vezes e faz reverberar que o português emigrante deve buscar uma esposa em Portugal. Tal argumento pode ser percebido nos enredos de casamento de Angelino, do Comendador, de Bernardo e da própria Leonor. No primeiro caso, apesar dos laços afetivos entre seus empregados, Angelino – português branco emigrado – e a mulata brasileira Silvina – filha e neta da violência sexual do senhor branco com a escrava negra – Leonor vai aconselhar Angelino a mandar buscar a costureirinha Joaninha para se casar, sob o argumento de que ela é portuguesa. O tio de Leonor não buscou a esposa em Portugal, mas casou-se com a brasileira D. Flora, representação da mulher burguesa, fútil e pouco instruída. D. Flora é também a representação de todos os ressentimentos dos brasileiros com seus colonizadores portugueses que, frequentemente, era revivido em ondas de lusofobia, como naquele anos inicias do século XX, quando a obra foi escrita. Ela nutre raiva por Leonor e por toda herança colonial que esta evocava; por vingança contra o “sangue do marido”, D. Flora colabora com Elvira no plano de esconder o testamento de D. Bárbara, para prejudicar e punir a Leonor. Desvelada a trama do testamento e mediante a compaixão do marido que a perdoa, ela se rende aos valores e aos projetos de Leonor e o casal finalmente vai viver em harmonia. O casamento do comendador com D. Flora sugere a união contratual e estratégica entre brasileiros e portugueses, entretanto, no plano sexual, essa união não se concretiza, já que o casal não tem filhos, evitando, dessa maneira, a miscigenação. O casamento de Bernardo com a italiana Berthina é, por sua vez, uma advertência ao português emigrado. Sem o auxilio da família, que era abastada, o jovem engenho português conquista fama e fortuna em terras brasileiras. O infortúnio de Bernardo começa quando ele se casa com uma mulher de outra “raça” que não a sua. Berthina é descrita como uma mulher leviana, infantil e sonhadora. Das análises possíveis desse casamento, duas me chamam mais a atenção pelas ambiguidades que elas revelam no pensamento da autora. A primeira, como também destacou Bouzy (2012), diz respeito ao divórcio. Logo no início do romance, assim como em vários outros escritos, a autora defende o divórcio, nas vozes de Leonor e da jovem feminista brasileira Antonina. Entretanto, o divórcio não aparece como a solução para os problemas do casal (Bernardo e Berthina) e meio pelo qual os novos amantes (Leonor e Bernardo) pudessem ficar juntos. Assim, Leonor – rica, mas infeliz – foge do seu amor, regressando para Portugal. Em carta à amiga Regina, ela explica sua atitude: “[…] Mas sinto que não poderia resolver o problema moral doutra forma, que o orgulho do meu sangue é superior a todas as outras forças contraditórias que me solicitam”(Osório, 1930, p.271). É o “orgulho do sangue”, não a causa e solidariedade feminista. Assim, outra análise possível diz respeito ao caráter circunscrito do feminismo da autora. Na voz de Leonor, ela afirma, no início do romance: “penso que não tenho já o direito de ser egoistamente feliz, pensando que há tanta mulher neste mundo que sofre fome e sêde de justiça e que eu poderei auxiliar na sua humana revolta. (Ibid.p. 56)”. Entretanto, essa solidariedade e a

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defesa dos direitos das mulheres, enquanto um grupo que compartilha experiências comuns, dissipam-se quando atribuem o fracasso do casamento de Bernardo à exogamia, mas sobretudo à esposa que assimila todos os defeitos da raça. Berthina, desprovida de “agência”, é conduzida ao casamento pelos pais e manipulada ao divórcio pelo marido; a personagem vai sendo desclassificada na trama com representações negativas do feminino – mulher leviana, que abandona marido e filho – para justificar as atitudes de Bernardo. Nas palavras do Angelino, Berthina“[...] é uma mulher à tôa, sem princípios, que é a vergonha daquele senhor! Ela não é nada, não tem sangue, nem um bom nome a respeitar!...” (Osório, 1930, p.287). A defesa de princípios emancipatórios parece restringir-se às portuguesas e àquelas pertencentes às classes mais abastardas. Com a fuga de Berthina – planejada e facilitada do por Bernardo – os amantes estão finalmente livres para concretizar o amor e desenrolar o drama nacional. Assim, Bernardo vai a Portugal buscar Leonor e eles se casam, para redenção de Bernardo e recomposição da família nos moldes tradicionais. Como marido e mulher, “os iniciadores das novas bandeiras da raça”, retornam ao Brasil para continuarem, lado a lado, sua obra de “[..] penetração completa da terra brasileira”(Ibid.p.352), deixando para traz o filho de Berthina. Por oposição ao que seria o casamento com Miguel, que conforme destaca Armanda Manguito Bouzy(2012, p.11) “encarna a imagem da sociedade portuguesa organizada segundo as regras androcêntricas [...]”, o casamento com Bernardo representa a comunhão de ideias, onde marido e mulher não estão numa relação de subordinação de um sexo pelo outro, mas são complementares. Por conseguinte, é símbolo também de uma nação moderna, eugênica e expansiva. Em Mundo Novo, o feminismo, representado pelos discursos emancipatórios das mulheres, emerge como instrumento do nacionalismo de Ana Osório. Ele não é o fim, mas um dos caminhos defendidos pela autora para Portugal realizar “o ideal da raça”. Nova Esperança é o protótipo desse ideal, que só foi possível porque Leonor é uma mulher livre, independente financeiramente, instruída e, acima de tudo, é portuguesa. Bernardo já havia tentado encontrar o território perdido e fundar a colônia, mas fracassou na sua tentativa. Ele só conseguiu ao lado de Leonor, não de Berthina. Mas é preciso destacar que Nova Esperança foi sonho e projeção masculina, no caso de Bernardo, que a mulher, Leonor, tornou possível. A defesa da equidade entre os gêneros se dá em função dos papéis que ambos devem cumprir a favor da pátria. Leonor, representação da portuguesa moderna e emancipada, é o agente de regeneração da raça, de civilização e instituição da nação. Correio da Roça – regeneração da Mulher e do Brasil

Se o projeto de nação de Ana Osório e de intelectuais portugueses da primeira república voltava-se para as questões externas, buscando reafirmar os laços coloniais com o Brasil; em sentido contrário, a intelectualidade brasileira, ao imaginar sua comunidade nacional, voltava-se

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para as questões internas, procurando distanciar-se e até mesmo apagar seu passado comum com Portugal, a fim de afirmar sua autonomia, originalidade e autenticidade (Serpa, 2000). A busca de elementos que explicassem o Brasil com vistas à construção de uma identidade nacional remonta o período subsequente à independência. Entretanto, a República, imbuída de princípios nacionalistas, recoloca a necessidade de identificar os obstáculos que impediam o Brasil de se constituir como uma nação forte e civilizada. Muitos intelectuais voltam-se para o interior do país para identificar os males e “traços negativos” responsável pelo atraso. Alguns atribuíam à “herança ibérica com sua tradição estadista e pouco propensa à iniciativa individual”; outros à composição etnorracial da população com a predominância de raças inferiores e mestiços (Lima, Hochman, 2000). Assim, conforme destacam Lima e Hochman (2000, p.314) questões como raça e herança colonial reassumiam crescente importância nas controvérsias que marcam o debate em torno da questão nacional, no final do século XIX e nas três primeiras décadas do século XX. Com a expansão do discurso médico-higienista, a doença emerge como o principal obstáculo para o progresso nacional e para a civilização do povo; o brasileiro era percebido, dessa maneira, como preguiçoso, indolente, melancólico, resistente às mudanças. Era preciso sanear, higienizar, regenerar a população. Esse discurso justificou as campanhas sanitaristas, projetos de higienização e vacinação obrigatória. A literatura, enquanto uma prática discursiva, foi importante para a instituição de tais representações. Assim, o personagem Jeca-Tatu de Monteiro Lobato sintetiza a imagem construída do brasileiro do campo, como homem preguiçoso e doente, responsável pelo atraso nacional; imagem que necessitava ser superada para consolidação da nação. Conforme Ferreira, “a ‘causa’ da passividade do brasileiro do campo encontra finalmente uma explicação – a doença –, e uma esperança de cura pela educação, adoção de hábitos de higiene e mudança de hábitos alimentares” (Ferreira, 2014, 197). O Correio da Roça é um dos discursos que compartilha, instituir e circula tais sentidos e explicações sobre o Brasil e o brasileiro. Esse drama da questão nacional é, sem dúvida, o tema central do romance, a partir do qual Júlia participa e constrói um ideal de nação. Entretanto, no romance, é a mulher, mais precisamente a mulher do campo e a mulher burguesa instruída o agente da regeneração e do progresso nacional. O Correio da Roça é um romance epistolar, publicado em livro em 1913 e pela estratégia da escrita, indica ser dirigido especialmente às populações rurais brasileiras. Por meio das cartas de Fernanda à sua amiga Maria, a autora transmite instruções de higiene, cultivo agrícola, construções rurais, jardinagem, abertura e conservação de estradas, educação no campo, comércio, administração rural, economia doméstica, etc., e conscientiza a mulher do campo da importância do seu papel para o progresso nacional; pois, “[...] a lavradora mais do que outra qualquer mulher pode exercer no Brazil uma influência benefica sobre a tudo que a rodeiam...” (Almeida, 1913, p.115).

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O romance narra a história de Maria, uma senhora burguesa da sociedade carioca, que após a morte do marido, vê-se falida e pobre, restando como único patrimônio a fazenda Remanso que agrega o sítio Tapera, herdado dos pais. Maria é obrigada a se mudar com as quatro filhas: Cecília, Cordélia, Joaninha e Clara para a fazenda, de onde inicia sua longa correspondência com Fernanda. A fazenda Remanso e o sítio Tapera é a imagem do Brasil decaído, pobre, devastado e atrasado, resultado da preguiça, falta de higiene e resistência às mudanças do homem do campo representado pela figura do caboclo ignorante, inculto e incivilizado. Maria descreve a Fernanda como encontrou o sítio da Tapera: [...] A casa desmorona-se. Há buracos pelas paredes, por onde entram vento e a chuva, sem que o casal de caboclos se tivesse lembrado de entupi-los com uma passada de barro, ao menos... Corri ao laranjal! Onde estaria? A erva de passarinho comera-o todo. O cafezal está em mato. Os canaviais extintos...Dentro de casa – nudez completa: os caboclos nem ao menos uma das camas souberam guardar para seu uso... (Almeida, 1913, p.21)

Entretanto, com o trabalho de Maria e das quatro filhas, instruídas pela amiga Fernanda, a fazenda – assim como os moradores do seu entorno – passa por um profundo processo de regeneração e civilização, ressurgindo como uma fazenda próspera, moderna, racional, higiênica, com cultivo e criação de várias espécies, estradas bem construídas para escoar a produção, escola e um grande hospital, e serve de modelo para toda a vizinhança. A fazenda é o protótipo do Brasil que deve também passa por tal metamorfose para se constituir como nação. Nesse processo de imaginação nacional, é a mulher bem instruída o agente de regeneração e do progresso, como foi apontado anteriormente. Fernanda, principal mentora desse projeto, vive no Rio de Janeiro, é uma senhora culta, bem instruída, com conhecimentos que vai de comércio internacional à economia doméstica e com pródiga imaginação; para auxiliar Maria a introduzir princípios de racionalidade no cultivo agrícola e na administração da fazenda, ela se informa, pesquisa e estuda. Conforme explica à amiga na sua missiva: “Percebi toda a vida que meu marido gostaria muito que eu tivesse um pouco menos de imaginação; mas essa vontade é talvez a única que eu nunca lhe pude fazer!” (Ibid.,p.146). É por meio de Fernanda que Júlia – assim como Ana Osório – apresenta sua crítica à educação feminina e ao modelo de mulher burguesa passiva, fútil, pouco instruída, avessa ao trabalho, que também deve ser superado. Na primeira carta que Maria escreve à Fernanda, relata sua mudança para o Remanso, lamenta sua situação de penúria e das filhas sem ocupação. Ela se pergunta: “De que lhe valerão agora as prendas com que se ornaram para brilhar na sociedade”? e num “P.S.” solicita à amiga que lhes envie um “bom jornal de modas parisienses” para ter com que se distrair e ocupar (Ibid., p.8-9). Em resposta, Fernanda diz: “É com certeza por modéstia que te lamentas da escassez de meios, tendo a rodear-te quatro cabeças inteligentes, oito braços fortes e à tua disposição não sei

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quantos quilômetros de terras...”, e continua ela, em vez de jornais de moda, “assina de preferencia

revistas agrícolas instrutivas, alegres, que lhes dêem noções aproveitáveis de

industrias campestres...”, em vez do folhetim-romance ou das fofocas de sociedade, “[...] obriga as tuas filhas a lerem os jornais todos os dias, sem desprezo por certas noticias...”. No lugar de cultivarem saudades dos saraus e avenidas do Rio, “antes cultivassem batatas” (ibid., p.10-15). Assim, sem piedade das amigas, Fernanda passa a indicar uma ocupação para cada uma das filhas: cultivo de batatas, flores, criatório de aves, etc., e conclui: [...] aproveita essa circunstancia em favor da outra, a de veres tuas filhas interessadas pelo progresso e a redenção das terras abandonadas em que vivem e pela civilização dessa gente do povo que que lhes rodeia a fazenda e que vegeta mais do que vive sem proveito nem gloria para o Brasil nem para si. [...] sei de que milagres é capaz a inteligência e a energia das mulheres obrigadas a atuarem por si. (Ibid.p.15-16).

Passado o choque das duras palavras da amiga, aos poucos, as filhas vão se interessar cada uma por uma atividade produtiva e social da fazenda e, sempre aconselhadas por Fernanda, fazem seus negócios prosperarem. Criam uma escola, um coral, um hospital, rearborizam a fazenda. Ao relatar o progresso da fazenda, Maria explica: “dei inteira liberdade de ação às minhas filhas...”(Ibid.,p.138). O sentido que emerge na construção dessas personagens é que, para o progresso da fazenda, assim como do Brasil, é preciso um novo modelo de mulher que tenha educação e liberdade. Assim como no enredo de Ana Osório, somente após conquistarem sua independência e se realizarem nas ocupações escolhidas é que aparece na trama um par romântico para as filhas mais velhas, Cecília e Cordélia. Não por acaso, um agrônomo e um engenheiro com os quais as jovens irão se casar para dar continuidade ao projeto de redenção do campo brasileiro. Dessa forma, modelo de mulher burguesa fútil sede lugar ao modelo de uma nova mulher, defendido e apresentado pela autora como símbolo do progresso nacional: com uma ocupação produtiva, social, educada, casada e livre. Um modelo a ser seguido pelas outras, como a autora sugere na voz de Fernanda: “É desses empenhos que os nossos sertões precisam: mulheres que vos imitem...” (Ibid.p.166).

Interseções Débora Ferreira sublinha que a literatura escrita por mulheres tem revelado que “muitas escritoras compartilhavam de uma percepção da história/sociedade subversiva à versão oficial” (Ferreira, 2005, p.27), construindo, em seus textos literários, representações diferenciadas da nação. Assim, uma das características dessa literatura é primar por relações horizontais entre a protagonista e as outras mulheres da trama. “Os papéis masculinos, de pai, irmão, marido, dentre outros, são fracos ou inexistentes, sugerindo um universo com tênues normas patriarcais. As protagonistas são então, em geral, sem maridos ou filhos” (Ferreira, 2004, p.28). Essa

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característica está presente também nas obras das escritoras estudadas. Tanto em Mundo Novo, quando no Correio da Roça, os personagens masculinos são secundários e pouco expressivos nas tramas; as protagonistas são mulheres sozinhas que, embora se casem no final, como no caso de Leonor, Cecília e Cordélia, isso ocorre somente após realizarem seus projetos pessoais e conquistarem sua independência financeira. Além das histórias das protagonistas, outras histórias de mulheres, quase sempre de opressão e injustiça, são tecidas na trama, especialmente no romance de Ana Osório. Alguns outros pontos são comuns nos romances de Ana e Júlia: ambos são epistolares; a crítica à educação feminina pouco instrutiva; a crítica à mulher burguesa fútil e passiva como modelo a ser suplantado; a defesa de produtos nacionais; embora falem, sobretudo, para as mulheres; a importância que atribuem à amizade entre mulheres – Leonor-Regina, MariaFernanda – ao contrário de como tendem a ser apresentadas em discursos, quase sempre como rivais. Outro ponto semelhante a destacar é que as duas histórias iniciam com mulheres sozinhas (uma viúva outra solteira) que partem para um novo destino: Leonor para o exterior, o Brasil; Maria, em direção oposta, para o interior, a fazenda Remanso. As autoras indicam, assim, logo no início do romance, a direção que suas pátrias deveriam voltar-se para percorrer seu caminho de progresso e atingir seu novo destino como um nação consolidada. Tanto no projeto de Júlia, quando de Ana, a mulher/protagonista é ícone do progresso nacional, agente de regeneração e civilização, e tem deveres a cumprir com a pátria. Entretanto, pelo menos nesses romances, seu dever não é como mãe abnegada ou esposas obedientes do novo cidadão. Ela não é “imaginada” a partir de modelos de submissão, mas é revestida de agência e reclama para si independência financeira, educação, direitos e liberdade. Retomando, então, a hipótese que coloquei inicialmente, posso agora afirmar que essas escritoras construíram representações de nação, associando tais progressos à independência feminina. Embora o feminismo de Ana Osório e Júlia Lopes de Almeida seja mais moderado e elas reivindiquem uma autonomia feminina, ainda dentro do modelo burguês, não se pode negar a importância dessas escritoras para o pensamento feminista da primeira onda em Portugal e no Brasil. Elas fizeram de sua literatura um campo aberto para o debate em torno da condição feminina. Questionaram os papéis e lugares subalternos e passivos reservados às mulheres na cultura patriarcal e produziram novas representações sobre as mulheres, seus corpos, trabalho e independência, oferecendo a elas imagens mais positivas de identificação. Essas escritoras fizeram da escrita literária um ato político e uma estratégia de liberdade e de luta das mulheres.

Referências

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EDUCAÇÃO INTERCULTURAL INDÍGENA: UM ESTUDO COMPARADO ENTRE PROGRAMAS EDUCACIONAIS DE BRASIL, MÉXICO E BOLÍVIA Daniel Valério Martins e Racquel Valério Martins Universidad de Salamanca Email: [email protected] Resumo O presente artigo, mostra uma pequena parte de uma investigação sobre a educação superior das etnias indígenas localizadas na região metropolitana de Fortaleza, fazendo uma comparação com as etnias indígenas da Região de Santa Cruz de la Sierra da Bolívia e da região de Michoacán no México, levando em consideração a situação econômica, a formação identitária e, em especial, a garantia dos direitos específicos dos indígenas, dentre os quais põe-se em relevo o da educação diferenciada, ou seja, uma Educação Inter e Intracultural criada para o desenvolvimento, fazendo portanto um estudo comparado entre projetos educacionais superiores indígenas do Brasil – LII-PITAKAJA3, da Bolívia- UNIBOL4 e do MéxicoUIIM5 mostrando seus pontos comuns e suas divergências. Palavras-chave: Educação; interculturalidade; intraculturalidad e desenvolvimento. Resumen El presente artículo, es una pequeña muestra de una investigación sobre la educación superior de las etnias indígenas localizadas en la región metropolitana de Fortaleza- Brasil, haciendo una comparación con las etnias indígenas de la Región de Santa Cruz de la Sierra, de Bolivia e de la región de Michoacán en México, llevando en consideración la situación económica, la formación identitária y, en especial la garantía de los derechos específicos de los indígenas, de los cuales ponemos énfasis lo de la educación diferenciada, o sea, una Educación Inter e Intracultural creada para el Desarrollo, haciendo por tanto un estudio comparado entre proyectos educacionales superiores Indígenas de Brasil – LII-PITAKAJA, de Bolivia- UNIBOL y de México- UIIM, enseñando sus puntos en común y sus divergencias. Palabras- clave: Educación; interculturalidad6; intraculturalidad y desarrollo.

Estrutura dos Cenários Educacionais Indígenas

Em toda América Latina, em relação a políticas públicas em matéria de cultura e educação indígena, há ocorrido vários acontecimentos equivocados, com tentativas de gerar o esquecimento da tradição, e ao mesmo tempo dos problemas causados pela conquista europeia, a qual causou a diferenciação como a crença da existência de culturas inferiores, gerando um certo impedimento de auto reconhecimento, reconhecimento e interação cultural. Nesse artigo serão abordadas as bases históricas das estruturas educativas indígenas em nível superior de três países da América Latina; Brasil, Bolívia e México, observando suas instituições educativas criadas com objetivo de condições de igualdade de direitos e 3

Projeto criado no ano de 2010 , impartido pela Universidade Federal do Ceará para desenvolver o curso de Licenciatura Intercultural Indigena para os povos; Pitaguary, Tapeba, Kanindé, Jenipapo-Kanindé e Anacê. 4 As Universidades Indígenas de Bolívia (UNIBOL) criadas em 2008 durante o governo do presidente Evo Morales, mediante a aprovação do Decreto-Ley número 29664. 5 A Universidade Intercultural Indígena de Michoacán (UIIM), do México, constituída por decreto oficial, publicado no Periódico Oficial do Governo Constitucional do Estado de Michoacán, no dia 11 de Abril de 2006. 6 Interculturalidade é entendida como a relação de convivência pacífica de culturas heterogêneas, baseadas no diálogo multidireccional entre elas e a Intraculturalidade é conhecimento sobre sí mesmo e auto-aceitação, para entender o contexto multiculrural e promover a interculturalidade. (Gervás,2011) (Tradução nossa). Ademais, de acordo com o autor Ángel Espina, entendemos interculturalidade, “(...) como un espacio compartido de diálogo y de comunicación que no entrañe la supremacía de unas culturas sobre otras o una concurrencia de muchas culturas viviendo próximas pero aisladas en especies de guetos subculturales”. (Espina, 2006:14).

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oportunidades, equidades e desenvolvimento cultural, através da aplicação dos conceitos de interculturalidade e intraculturalidade nos povos indígenas abrangidos pelos projetos.

Educação Superior Indígena no Brasil

As chamadas políticas indigenistas iniciam no Brasil com a elaboração do Estatuto do Índio posta em vigor no ano de 1973, em continuação com a Constituição de 1988, com os artigos da O.I.T de 1989 relacionados com os povos indígenas e com a Declaração das nações Unidas de 2006. De acordo com os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), O Brasil é um país de dimensões continentais com uma área total de 8.514.876 km 2 formado por 26 estados e um Distrito Federal, todos submetidos a uma única Constituição, e com uma população estimada em 192 milhões de habitantes (2010). Segundo a Fundação Nacional do Índio (FUNAI), existem 220 povos indígenas diferentes, que somam mais de 345 mil pessoas vivendo em terras indígenas e aproximadamente 190 mil fora das reservas, incluindo-se as dos grandes centros urbanos, havendo falantes de 180 línguas distintas e ocupam 12,54% do território nacional. De acordo com os dados obtidos através do censo 2010, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 817 mil pessoas se autodeclararam indígenas, mostrando um crescimento de 84 mil indígenas entre os anos de 2000 e 2010, representando 11,4% da população indígena. O Estado do Ceará, seguindo-se dados do mesmo censo, possui uma população estimada em 19.336 indígenas com uma estimativa de crescimento de 6,2 % ao ano. Segundo Josicelia do Nascimento (2009) No ano de 2004 foi criado o primeiro convênio entre a FUNAI- e a Fundação Universidade de Brasília-FUB-UNB, com reservas de vagas especificamente para os estudantes indígenas. Inicialmente o convênio fez com que, 15 estudantes que cursavam faculdades particulares se submetessem a uma prova de conhecimentos gerais e matemática mas, somente 5 foram selecionados. Já no ano seguinte, em 2005, a seleção foi realizada pelo Centro de Seleção e promoção de eventos – CESPE, no intuito de abranger um maior número de indígenas para o provimento de vagas nos cursos de graduação da Universidade de Brasília–UNB, em Agronomia, Engenharia Florestal, Enfermagem e Obstetrícia, Medicina e Nutrição. Em seu trabalho, Josicelia pretende levantar as principais dificuldades vivenciadas pelos acadêmicos indígenas em suas trajetórias nas Instituições de Ensino Superior, demonstrando o seu esforço em superá-las e concluir e afirma que há urgência de um programa que inclua suporte econômico, para todo o período de curso. Esse seria o primeiro passo para a implementação de indígenas mesmo que por cotas nas universidades Federais do Brasil em 2014, dentro de seus espaços físicos, infelizmente o número de ingressos de indígenas se torna ainda muito reduzido se pusermos em proporção a situação de urgência que se encontram essas comunidades Indígenas e outro problema seria, gerar o

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afastamento dos principais “cabeças” de comunidade do convívio comunitário, correndo o risco do não regresso, mesmo que o objetivo central fosse o retorno a comunidade no intuito de aplicar projetos que viessem a desenvolver a comunidade de cada aluno. Aqui aplicamos mesmo sem uma garantia de retorno o conceito de Intraculturalidad, não vislumbrado no Brasil. Então para o seguimento do trabalho partimos de alguns argumentos; é justo o número de vagas ofertadas para os indígenas que queiram fazer parte do projeto? O afastamento de líderes até mesmo dos membros estudiosos das comunidades não seria um risco de deixa-la ainda mais propícia ao esquecimento? A implantação de um maior número de cotas para esses povos seria viável ou a criação de um espaço específico de graduações que viessem a ser utilizadas para o desenvolvimento comunitário para atender aos indígenas e estudiosos que queiram trabalhar a causa, não seria mais pertinente? Pode se comparar com modelos já existentes como os casos mexicano e boliviano com a utilização da interculturalidade? Em seguida são apresentados os 3 projetos para uma posterior comparação.

O Projeto LII-PITAKAJÁ

Projeto criado no ano de 2010, impartido pela Universidade Federal do Ceará para desenvolver o curso de Licenciatura Intercultural Indigena para os povos; Pitaguary, Tapeba, Kanindé, Jenipapo-Kanindé e Anacê, que apesar de nao funcionar com o sistema de cotas, foi elaborado exclusivamente para indígenas das cinco comunidades citadas anteriormente, gerando um convivio entre as mesmas, baseada no conceito de interculturalidade mesmo que de forma parcial, pois o convivio intercultural nesse caso especifico se limitaria as culturas indígenas e a troca de experiencia entre as mesmas, trata se de um curso não aberto a não indígenas que queiram cursar a única oferta de graduação exclusiva de formação de professores indígenas. Onde nesse caso os alunos não teem acesso ao espaço fisico da Universidade em tempo total, pois as aulas sao impartidas nas escolas diferenciadas, com um sistema semi-internado, ou seja, no período de férias dos alunos das mesmas, passam todo esse período instalados e alojados nessas Escolas Diferenciadas das comunidades, de maneira rotativa, quer dizer que, em cada período de férias são recebidos e alojados por uma comunidade distinta, e que durante essa estância se organizam, criando grupos de trabalhos, de limpeza, alimentação, vigilância etc. Nossa presença se limitou a dois períodos de alojamentos, uma na Escola Diferenciada Jenipapo-Kanindé e outa na Escola Diferenciada Pitaguary, observando seu funcionamento e conversando com os alunos a respeito das instalações e organização dos mesmos, e foi observado entre eles, um sentimento de estigma de diferenciação em comparação com alunos da Universidade Federal, pelo fato das aulas serem impartidas em parte em um espaço fisico não correspondente a universidade, e os mesmos reclamaram acesso a instalações da mesma, pois ocorre em poucas etapas do curso como exposto no próprio Plano Politico e Pedagógico LIIPITAKAJÁ no ponto especifico de Metodologias ensino/aprendizagem demonstrado abaixo:

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Os processos didáticos que promovem a relação entre os atos de ensinar e os de aprender possuem dois campos empíricos de realização alternada e cíclica, isto é, em certo mês as ações letivas acontecem na universidade (Tempo-Escola) e no mês seguinte elas são realizadas em uma das aldeias participantes do LIIPITAKAJÁ (Tempo-Comunidade).

O projeto conta hoje com 80 alunos das cinco comunidades que o compõe, todos eles professores e administrativos das Escolas diferenciadas e professores vinculados a Universidade Federal do Ceará, e que nenhum dos mesmos é indígena. E de acordo com suas habilidades e competencias em seus pontos A, C, E G e H, como demonstrados agora abaixo, são utilizados ferramentas que resumiria na aplicação do conceito de Intraculturalidade, não contemplado ainda no Brasil e que é o ponto de partida dessa investigação. a)Domínio de saberes tradicionais das culturas indígenas; c)

Ser educador que desenvolve boas relações entre os saberes tradicionais dos povos

indígenas e os conhecimentos acadêmico-científicos; e) Capacidades de transmissão dos conhecimentos adquiridos; g) Bom manejo no desenvolvimento das relações interpessoais

presentes nos ambientes

escolares e das aldeias; h) Possuir discernimento sobre as relações híbridas que envolvem os saberes tradicionais e aqueles promovidos pela sociedade circundante De acordo com sua grade curricular conta com uma organização nesta licenciatura segmentada em 6 (seis) Núcleos de Formação independentes e complementares entre si, que promovem a interdisciplinaridade relacionando disciplinas básicas das seguintes áreas do conhecimento: 1) Culturas Indígenas; 2) Ciências Humanas; 3) Gestão Escolar; 4) Matemática; 5) História e 6) Língua Portuguesa. Situação Indígena da Bolívia

No ano de 2006, Bolívia experimenta um câmbio político transcendental com a chegada de Evo Morales, de origem indígena e sindical, a presidência. Com ele volta à tona muitos dos princípios que impulsaram a Revolução de 1952. Nessas eleições consegue mais de 50 % dos votos prometendo medidas como se comprometer a fazer todo o possível para conseguir uma verdadeira igualdade entre todos os diferentes povos que fazem parte do panorama boliviano, industrializar o país, lutar contra a corrupção e nacionalizar os recursos energéticos. De acordo com os dados da UNFPA 2007/2011 e com informações obtidas na obra “ 30 anos de democracia em Bolívia” de 2012, Bolívia é um país sem costas, situado na América do Sul com uma superfície de 1.098.591 Km 2 e apresentando três grandes zonas: o Altiplano, ao oeste, ocupando 16% do território nacional; a região dos Vales, no centro, ocupando 19% do

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território nacional e na região oriental, os Llanos, a região mais extensa da Bolívia que corresponde 65% do território. De acordo com a UDAPE7 em 2006, 38% da população total e 49% da população indígena se encontravam em situação de pobreza extrema, adicionalmente, em 2004, 69% das crianças até os 17 anos se encontravam em situação de pobreza moderada. No caso infantil indígena, UDAPE estima que 84% dos menores de 5 anos e 90% de 5 a 13 anos se encontravam em situação de pobreza em 2002. E de acordo com estudos de Gervás (2011), professor titular da Universidad de Valladolid, mais de 50% da população é indígena, inclusive seu próprio presidente, e falam 36 idiomas originários, assim, a busca por modelos para o desenvolvimento social está em consonância com o desenvolvimento indígena, sendo a educação diferenciada a principal ferramenta desse processo. No mapa político e social do país se vê claro a maneira que se presencia o fortalecimento histórico dos movimentos sociais campesinos e originários no cenário político e na gestão pública, atualmente se vê e se constata uma mudança na situação econômica de Bolívia, quando conversamos com os alunos universitários e indígenas campesinos, que conseguiram com essa mudança social, maior visibilidade, mas ao mesmo tempo vemos aparecer discursos políticos, por câmbios sociais, baseados nos conceitos de Descolonização 8, aplicado pelo Estado e ao mesmo tempo fazendo surgir uma má interpretação do mesmo, quando utilizados em discursos de caráter nacionalista e de rejeição a cultura ocidental, em destaque a cultura espanhola, como uma espécie de vingança histórica, ressentimento histórico, por problemas causados na época colonial, não deixando claro que um mesmo processo de exploração ocorre passado 500 anos, mas dessa vez por classes ricas e dominantes, cidadãos do mesmo país. A partir do momento que ocorre tal situação, vemos o choque de informações e as distorções das mesmas quando trabalhados os vários conceitos empregados na Constituição do país, ou seja, problemas de tal natureza se chocam com os conceitos de intraculturalidad e interculturalidade, além da democracia e liberdade de expressão. Como exemplo podemos observar, tais argumentos chegando as universidades indígenas, quando seus alunos, jovens são como “esponjas” absorvendo informações e ideias de cambio social, gerando uma espécie de “ideologia nazi”, uma descriminação que vai contra toda a política não indígena e um sentimento de vingança social e não um sentimento de igualdade entre as culturas. Comentário esse, levando em consideração as palestras assistidas, durante o seminário de Descolonización en el Horizonte del Socialismo Comunitário, ocorrido na UNIBOL Guarani, durante os dias 19, 20 e 21 de maio de 2014, contando com a participação de políticos locais e nacionais, dentre os quais merecem destaque, Leonilda Zurita, chefe geral do partido MAS, do Presidente Evo Morales e o Deputado Wilson Changarai. 7

Acezado en 9/11/2013 y disponible en http://www.udape.gov.bo. Conceito trabalhado na UNIBOL, estabelecido pela Constituição de Bolivia, que se refere a por fim nas amarras coloniais e no pensamento de inferioridade que ha estado durante anos na mente da sociedade boliviana. 8

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A Educação Indígena em Bolívia

De acordo com o informe do governo do Estado Plurinacional da Bolívia sobre o direito dos povos indígenas de janeiro de 2011, foi incorporada na constituição a nova Lei Educativa AbelinoSiñani – Elizardo Pérez de 16 de dezembro de 2010, que consolida a educação como Intercultural, Bilíngue, Produtiva, Descolonizadora, voltada para uma visão comunitária, social que respeita a diversidade cultural, linguística e que fortaleça a identidade. A referida Lei reconhece que todas as pessoas têm o direito de receber educação em todos os níveis e de maneira universal, gratuita e sem descriminação e está orientada para a reafirmação cultural das nações e povos indígenas originários, na construção do Estado Plurinacional e no estado de “Vivir Bien”, sendo inclusiva, intracultural, intercultural e plurilíngue em todo o sistema educativo. Com base na política do Vivir Bien foram criadas as Escuelas de Gestión Publica Plurinacional, direcionada aos líderes e representantes das organizações comunitárias com o objetivo central de apoiar e incorporar os servidores públicos a uma perspectiva de uma “gestão pública intercultural mais participativa, mais eficiente e mais transparente”. Que de acordo com o mesmo Informe do Governo já capacitou entre os anos de 2007 a 2010, 6.432 pessoas. Sendo criado portanto para dar uma continuidade, o curso de pós graduação em Diplomado en Gestión Publica Intercultural com suas práticas voltadas ao desenvolvimento comunitário.

A UNIBOL - Universidades Indígenas da Bolívia

As Universidades Indígenas de Bolívia (UNIBOL) foram criadas em 2008 durante o governo do presidente Evo Morales, mediante a aprovação do Decreto-Ley número 29664. Tal decreto supremo estabeleceu que os fundamentos filosófico-políticos e suas bases educativas se sustentarão em 3 pilares: a descolonização, a intraculturalidad e a interculturalidade e com duas finalidades primordiais de acordo com o informe do Ministério de Educação e Cultura de Bolívia: Transformar o caratér colonial do Estado e da educação superior com a formação de recursos humanos com sentido comunitario, produtivo e identidade cultural. Articular a educação superior com as necessidades regionais de desenvolvimento e a participaçao das comunidades organizadas na região. E que de acordo com o mesmo informe do Ministério de Educação as citadas universidades possuem as seguintes características: são gratuitas com base na renda, são desenvolvidas com o regime de internato, ou seja, vivem nas instalações universitárias, com alojamento e refeitório incluídos no programa, e que esses alojamentos estão divididos por carreiras e por sexo (homens/mulheres/licenciaturas) e com controle de presença todas as noites e folhas de permissão para casos especiais de afastamento da residência universitária, possuem uma formação orientada para a produção e com realização de atividades produtivas e

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comunitárias integrando teoria e prática, são trilíngues, estão sujeitas a avaliações permanentes e individuais e são consideradas incubadoras de empresas comunitárias e familiares. Nessa linha de pensamento foram então criadas 3 (três) universidades indígenas Bolivianas Comunitárias Interculturales Produtivas: a UNIBOL Aymara, a UNIBOL Quechua e a UNIBOL Guaraní y de Pueblos de Tierras bajas, cada uma com 4 áreas de conhecimentos e com seu modelo baseado no desenvolvimento produtivo que compete a cada região do país, ou seja, de acordo com seus climas e modo de produção. Todas com matérias transversais como: Ciências Sociais, História, Economia e Meio Ambiente. No que diz respeito à UNIBOL Guaraní y de Pueblos Tierras Bajas, “Apiaguaiki Tupa” 9, cabe destacar que, atualmente, possui um total de quatro cursos voltados para o aprimoramento das atividades realizadas nas comunidades, pondo, assim, em relevo as necessidades demandadas pelas populações indígenas. Tratam-se, pois, das seguintes titulações: Engenharia Florestal, Medicina Veterinária e Zootecnia, Engenharia em Ecopiscicultural, Engenharia do Petróleo e Gás Natural.10 (GERVÁS, 2012). O campus da UNIBOL Guaraní- Apiaguaiki tupa, que serviu de base para o desenvolvimento do trabalho de campo dessa investigação, está situado no povoado de IvoChuquisaca, Bolívia, recém instalado, desde janeiro de 2014 e com previsão para final de obra em dezembro do mesmo ano, mas que já se encontra em pleno funcionamento, tendo seus alunos sido transladados das instalações anteriores que se encontrava na localidade de KuruyuquiChuquisaca, e que eram cedidas ao governo, mas não pertencentes ao mesmo. Entre as atividades comunitárias desenvolvidas pelos alunos, estão as limpezas do campus, espaços comuns e parte do território onde se encontra instalada a Universidade, no primeiro dia, quando de nossa chegada, ficamos surpresos, com a quantidade de lixo que se encontrava no caminho que levava à universidade, mas passado alguns dias me dei conta que, uma vez por semana, grupo de alunos, dentro do programa de atividades comunitárias, se organizam para a limpeza da região. Atualmente a Universidade em seu Campus Guarani- Apiaguaiki Tupã, conta com um número total de 732 alunos matriculados em suas 4 licenciaturas, dentre os quais 185 guaranis, 547 não guaranis, pertencentes a 16 outras etnias contando entre seu alunando com 511 homens e 221 mulheres. E de acordo com dados do quadro docente conta com um total de 71 professores, onde somente os 8 professores de línguas indígenas (Guarani, Gwarayu, Mojeño e Bésiro - 2 profissionais por idioma) são realmente indígenas, os demais não, e 13 das 17 etnias que compõem a Unibol não têm classes nos seus idiomas originários, por falta de profissionais.

9

Apiaguaiki Tupã é o nome de um líder indígena Guarani da batalha de Kuruyqui em 1892. Mais informação sobre o assunto, cf. GERVÁS, Jesus M. Aparicio. Didáctica de las Ciencias Sociales: cuatro casos prácticos. Seminario Iberoamericano de Descubrimientos e Cartografía. Valladolid, 2012.p. 78. 10

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Situação indígena de México

A conjuntura analisada nesse tópico, faz referência a quatro etnias mexicanas que em comum dividem o projeto educacional da UIIM que são; os Purhepechas, Nahuas, Otomis y Mazáhuas, todos provenientes da região de Michoacán que segundo os dados do ENEGI (2010) conta com uma população total de 4.351,037 habitantes e de acordo com (Martinez, 2005)“ Os mazáhuas y otomíes eram grupos migrantes provenientes del valle de Toluca, que escapavam da submissão dos mexicas dos valles centrales”(Martinez, 2005) e os Nahuas e Purhepechas eram emigrantes que viviam do comércio. Outro fator a ser destacado é que a população de Nahuatzen, cidade que serviu de base no trabalho de campo realizado nessa investigação, que segundo os dados do ENEGI (2010), conta com um total de 27.174 habitantes, foi formada por esses indígenas comerciantes de diversas famílias Purhepechas que foram se fixando no lugar, e além dos Purhepechas que formam a maior parte da população, também outras etnias se somam ou visitam a comunidade pela instalação da Universidad Intercultural Indígena de Michoacam – UIIM, na comunidade de Pichátaro, ao lado de Nahuatzen, que está de fácil acesso, uma vez que, mesmo que afastada do centro das duas cidades, se encontram muito próximo à estrada que une as mesmas, sendo ponto de passagem de vários transportes.

Educação Intercultural Mexicana

De acordo com o autor Roger Diaz de Cossio (2009) o pontapé inicial para a implementação da educação intercultural, foi a criação da Coordenação geral de Educação Intercultural Bilíngue no ano de 2000 e que perdurou até o ano de 2006 sendo o início da implantação de programas mais modernos analisando a problemática e o contexto multicultural mexicano. Durante o período de funcionamento de tal Órgão, foram desenhadas e estabelecidas 6 Universidades Interculturais Indígenas em todo o país (3 delas em Michoacán) e que apesar de pequenas contam com unidades de investigação e difusão das culturas indígenas das regiões onde estão situadas. Observando que de acordo com estudos do mesmo autor, no ano de 2009 a população indígena somava 10 % da população mexicana ou seja, 10 milhões de indígenas repartidos em mais de 50 culturas e línguas diferentes e em meio a esses dados foram criadas tais universidades para pôr fim ao processo de invisibilidade a que os indígenas vinham sofrendo. Nas palavras de Buenabad ( 2009), expomos o início ou base da implementação da educação intercultural no México que serviu de pilar para a formação e concreção da Universidade Intercultural Indígena de Michoacán. La propuesta de una educación intercultural se oficializó en un principio en el Programa Nacional de Educación 2001-2006, quedando plasmada en la Política de Educación Intercultural para todos. Esta política contempló la incorporación del

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enfoque intercultural en todo el currículo de la educación básica obligatoria.11 (Buenabad, 2009).

A UIIM - Universidade Intercultural Indígena de Michoacan

A Universidade Intercultural Indígena de Michoacán (UIIM), do México, foi constituída por decreto oficial, publicado no Periódico Oficial do Governo Constitucional do Estado de Michoacán, no dia 11 de Abril de 2006. Esta Universidade transmite educação a aproximadamente mil estudantes divididas em 3 campus atendendo a toda região de Michoacán, das etnias Purhépecha, Mazahua, Otomí e Nahua, que cursam as licenciaturas de Desenvolvimento Sustentável, Gestão Comunitária e Governos Locais, Língua e Comunicação Intercultural, Arte e Patrimônio Cultural e Saúde Comunitária (em projeto de implementação).

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Cada disciplina com

seu caráter específico voltada para as questões indígenas em seus diversos pontos, como por exemplo: Desenvolvimento Sustentável: uma licenciatura criada no intuito de uma revalorização dos recursos naturais renováveis e não renováveis; Arte e patrimônio cultural: inclui na disciplina as manifestações em seus mais diversos âmbitos como; gastronômica, rituais, danças, músicas, artesanato, buscando dar uma maior visibilidade a cultura indígena de uma maneira geral; Língua e comunicação intercultural: promovendo e difundindo o conhecimento, valorização, resgate e revitalização das línguas indígenas; Gestão comunitária e governos locais: trabalhando a reflexão do alunado a respeito da gestão comunitária e de organismos não governamentais dando ênfase as políticas públicas, diversidade cultural, questões sociais, ambientais e de identidade. Atualmente a Universidade Intercultural Indígena de Michoacán, com a sede localizada na comunidade de Pichátaro, al lado de Nahuatzen conta com um total de 326 alunos matriculados, 164 mulheres e 162 homens, que do total 118 são indígenas falantes do purhe, e 208 falam espanhol, divididos entre suas quatro licenciaturas. No seu quadro docente conta com um total de 92 Professores, que desses, 1 possui pós-doutorado e 12 doutorados e os demais com mestrado e licenciatura. Professores indígenas. Observado estudos de Augustin Jacinto Zavala (2011), ao ser criada a UIIM, a princípio enfrentaria uma dupla problemática, ou seja, de um lado estaria a sabedoria popular ajudando na sobrevivência dos povos indígenas e de outro lado a investigação e docência que seriam as funções da instituição na busca por uma clarificação dos saberes tradicionais. Então como resultado institucional surgiria a profissionalização dos saberes tradicionais com a união dessas duas situações apresentadas. Em tal situação se observa mesmo que não abordado, o manuseio do conceito de intraculturalidad, com a ideia de somar os conhecimentos no intuito de desenvolvimento da comunidade e o mantimento de seus saberes tradicionais. 11

.Revista Decisio. Saberes para la acción en educación de adultos. Número especial Interculturalidades en educación. Ed. CREFAL. 24 Sept- dic- 2009 12 Casillas, Silas. J. C. (Acessado em Novembro/2012). Disponível na internet: www.interamerica.de/volume-4-1/casillas/ .

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Assim, menciona o autor que tais saberes tradicionais não estão relacionados somente a etnias originárias ou aos povos originários, mesmo que geralmente tais saberes sejam observados como “conhecimentos tradicionais” ou conhecimentos nativos”, e sua proposta seria a observação do grau de dependência dos povos em relação a esses saberes e sua sobrevivência.

Conclusões 

Pontos em comum entre os Projetos Educacionais Indígenas

Fortalecimento da identidade/ ação transformadora produtiva. Os três projetos apresentam um caráter produtivo de fortalecimento identitário e ao mesmo tempo fortalecimento comunitário, cada um de acordo com a realidade da região que está inserido, ou seja, o projeto LII-PITAKAJÁ, foi estruturado na observação da falta de profissionais da educação para suprir a necessidade das Escolas Diferenciadas, assim, a ideia central seria produzir conhecimentos e propaga-los por meio da difusão e educação. No caso do projeto da UIIM, voltado para a produção de projetos de desenvolvimento sustentável além da produção artística, cultural e governamental. No caso da UNIBOL Guarani, voltada para a produção da indústria petroleira, e formação de profissionais nas áreas de piscicultura, veterinária e meio ambiente. Todos os projetos com caráter transformador social, fortalecendo assim suas identidades e torando se mais visíveis no contexto global. Resgate cultural e Difusão cultural Em todas comunidades visitadas no trabalho de campo observamos uma força em relação ao resgate das culturas desses povos, nas comunidades que formam o projeto LII-PITAKAJÁ, vemos que as Escolas diferenciadas trabalham essa questão com o resgate linguístico e difusão e propagação da cultura como observado na Escola diferenciada Jenipapo-Kanindé em Aquiraz, Brasil, estruturada fisicamente respeitando a cultura do Toré, e que é uma das escolas que se concentram os alunos do projeto de formação superior de professores indígenas. Em relação a UIIM, também observamos tal preocupação, pois em todas as licenciaturas transmitidas, buscam enfatizar a questão do resgate cultural, linguístico e artístico, principalmente na cultura Purhe, da região de Michoacán onde se encontra edificada a Universidade Indígena. Também vários municípios da região fazem todos os anos o

“Encuentro de Grupos Modernos”

no Pindekua Purhe, resgate da música tradicional, uma mistura de tradição e moderno com a utilização de instrumentos não indígenas na produção musical indígena Purhepecha, ou seja, fazendo o uso do conceito de interculturalidade e intraculturalidade, bases dessa investigação. Em relação a UNIBOL, o resgate cultural é evidenciado na questão linguística, pois falar um idioma originário é um dos requisitos de acesso e admissão na universidade sendo portanto o alunos e professores obrigados a ter conhecimentos e domínio de suas línguas maternas, pois o próprio trabalho de fim de curso será redigido no seu idioma originário.

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Formação Superior Os três programas têm como objetivo principal a formação superior, seja em uma só licenciatura como o caso do LII-PITAKAJÁ, ou em quatro como os casos da UNIBOL e da UIIM, e todos com perspectivas continuadas, pois ambas por serem licenciaturas a nível superior, ambas dão acesso a estudos de pós graduação, alguns até em fase de implementação e outros já em andamento. Acompanhamento psicológico Ocorre nos três projetos mencionados uma defasagem no que corresponde a um acompanhamento psicológico, pois por se tratarem de povos que por muito tempo foram tratados como minorias étnicas e estigmatizados pela população não indígena, sofrem ainda com um sentimento de inferioridade, que necessita ser trabalhado para não ser gerado uma descriminação a inversa como vingança histórica, fugindo do pilar central de interculturalidade, símbolo dos três projetos educacionais. 

Pontos de divergencias entre os Projetos Educacionais Indígenas.

Enquanto o projeto LII- PITAKAJÁ desenvolve somente a formação de professores indígenas com a licenciatura intercultural, (que não respeita a aplicabilidade do conceito de interculturalidade, no momento que não promove a abertura a interessados não indígenas que poderiam ter acesso para ver de perto a problemática, estudando inseridos no quadro de alunos).O projeto da UIIM , em suas quatro graduações não desenvolvem a pedagogia com o intuito de propagação e formação de professores, mas abrem espaço para alunos não indígenas. Os professores indígenas em Michoacan são formados pela Escuela Normal Indigena de Cherán, que somente preparam professores para o ensino primário, ou pela Universidad Pedagogica Nacional, ou seja, os próprios professores da UIIM, em sua maioria não são indígenas. Caso semelhante ao da UNIBOL, pois em suas quatro carreiras também não desenvolve a formação de profissionais da Educação e no seu quadro docente, somente os professores de línguas são indígenas. A UIIM, apesar de ser uma Universidade Indígena, tem uma abertura de seus cursos para todas as comunidades, ou seja, entre seus requisitos de ingresso não exigem o pertencimento a alguma etnia indígena, mesmo tendo sido criada para atender as 4 etnias citadas anteriormente, respeitando assim a aplicabilidade do conceito de Interculturalidade. No caso da UNIBOL Guaraní y Pueblos de Tierras Bajas, todo seu alunado é indígena, sendo constatado a existência de 17 nações indígenas13, distinto dos demais projetos, e funciona com o sistema de internato, ou seja, seus alunos passam todo o tempo curricular nas instalações da própria Universidade, enquanto o projeto LII-PITAKAJÁ, funciona como meio internato uma vez que seus alunos se concentram no período de férias porque passam todo o ano transmitindo classes para os alunos das Escolas Diferenciadas. Os alunos da UIIM, assistem suas aulas durante o dia e regressam no final da tarde 13

De acordo com a constituição boliviana, “Bolívia é um estado Plurinacional”, ou seja, formado por várias nações indígenas, pois possuem um idioma, cultura, tradições e território próprios.

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para o convívio de seus familiares. De acordo com o alunado da UNIBOL, de maneira geral essas universidades foram criadas para atender de forma intercultural os povos, Aymara, Quechua, Ayoreo y Guarani, mas em realidade se dividiram e cada etnia se estabelece com uma universidade específica, e em protesto das demais etnias a UNIBOL- Guarani se tornou denominada, UNIBOL – Guarani y de los pueblos de tierras bajas.

Procurando portanto o

desenvolvimento parcial do conceito de interculturalidade que faz parte dos seus pilares estruturais o que a torna distinta das UNIBOL Aymara e Quechua. Parcial por agir com segregação (indígenas x não indígenas). Por outro lado também se fortalece no conceito de intraculturalidade pois, ademais de seus auto reconhecimentos, esses alunos são indicados por mérito e por notas por sua comunidade (os melhores), fazendo com que sejam escolhidos e selecionados os que venham a regressar aos seus povoados com o intuito de desenvolver na prática os conhecimentos adquiridos teoricamente, o mesmo passa com o projeto LII-PITAKAJÁ, mesmo não existindo tal conceito teórico no Brasil e não fazendo parte dos pilares da construção do projeto e sendo desenvolvidos somente com o projeto pedagógico. Outro ponto a ser observado durante essa estância em relação a não aplicabilidade do conceito de interculturalidade, foi que a mesma está se distanciando entre professores e alunos, como exemplo podemos citar a hora do almoço, na UNIBOL, pois existe uma divisão e os professores se isolam do grupo discente, criando uma espécie de “barreira ou grau de importância”, não havendo uma interação dos dois grupos durante esse período. Enquanto a UNIBOL, é considerada trilíngue, pois além do castelhano e de sua língua originária, também são desenvolvidas aulas em um idioma estrangeiro, a UIIM, se encontra com o problema de resgate linguístico, pois a maioria de seus professores não são falantes de línguas originárias e muitos alunos têm seu idioma originário como primeira língua tornando até difícil a compreensão entre alunos e professores (caso observado com os Purhepechas) e no caso LIIPITAKAJÁ, nenhum professor fala o tupi-guarani e entre o alunado, todos possuem somente um baixo conhecimento sobre o idioma, assim que todos falam o português e as aulas são ministradas em português. A UNIBOL, entre seus pilares de construção trabalha o conceito de Descolonização, como parte do processo surgido com a intraculturalidade, ou seja, conceito que visa pôr o indígena como sujeito ativo na sociedade, acabando com a visão colonial de submissão. No México as Universidades Indígenas estão abordando tal conceito, mas não como pilares de formação. No caso do Brasil o Projeto LII- PITAKAJÁ não aborda tal conceito, mas nesse caso específico, seria o reflexo, por estar inserido em um país que somente 0,4% da população é indígena, de acordo com dados do IBGE. De acordo com as reprovações ocorridas nos referidos cursos, nos casos brasileiro e mexicano, seus alunos tem o direito de repetir as disciplinas em questão, sejam ocasionadas por faltas ou por baixo rendimento, no caso boliviano, por tratar de regime de internato, com uma bolsa concedida pelo governo que cobre toda despesa de alojamento e alimentação, em cada

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semestre é feita uma avaliação e caso o aluno mostre reprovação em mais de 50% das disciplinas trabalhadas no semestre, o aluno perde a bolsa de estudos, sendo obrigado a deixar o campus universitário. Sendo observados vários casos, e de mães que chegam a chorar pedindo outra oportunidade para seus filhos. Vemos portanto, uma enorme distância entre teoria e realidade no que diz respeito aos conceitos de intra e interculturalidade abordados nos 3 projetos educacionais, sendo portanto enviado relatórios com essas observações realizadas no intuito de aportações de cada um dos projetos ao outro, como forma de cooperação mutua com o objetivo de desenvolvimento de ambos e a busca por melhorias na educação indígena. Bibliografia

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UNFPA (2011). Evaluación Independiente Del Programa De País Bolivia 2008-2011. New York. SUSTENTABILIDADE NA MODA E O CONSUMO CONSCIENTE Mariana Araújo Universidade do Minho Mestranda em Design de Comunicação de Moda Universidade do Minho - Portugal [email protected] Ana Cristina Broega Universidade do Minho Departamento de Engenharia Têxtil Universidade do Minho - Portugal [email protected] Silvana Mota-Ribeiro Universidade do Minho Instituto de Ciências Sociais Universidade do Minho -Portugal [email protected]

Resumo O presente artigo tem como objetivo fazer uma reflexão sobre a importância da sustentabilidade no âmbito da moda e o aparecimento de um novo consumidor, mais consciente e preocupado com os problemas da humanidade. Neste trabalho, será discutida a dicotomia existente entre a sustentabilidade e a moda, marcada pela efemeridade e por produtos com um ciclo de vida limitado, onde prevalece a indústria Fast Fashion. Paralelamente, observa-se o surgimento de uma nova vertente o chamado Slow Fashion. O artigo irá abordar o tema do sistema de moda e a sustentabilidade, nomeadamente, a questão dos novos consumidores e do consumo consciente. Palavras-chave: moda, sustentabilidade, consumo, slow fashion, fast fashion Abstract This article aims to reflect on the importance of sustainability in the context of fashion and the emergence of a new costumer more conscious and concerned about the humanity problems. In this work, we will discuss the dichotomy between sustainability and fashion, marked by ephemerality and products with a limited life cycle where the fast fashion industry prevails. In parallel, we observe the emergence of a new effect called slow fashion. The article will address the theme of fashion system and sustainability, also the issue of new consumers and conscious consumption will be discussed. Keywords: fashion, sustainability, consumption, slow fashion, fast fashion

Introdução

A temática da sustentabilidade tem sido bastante discutida nos últimos anos em consequência das preocupantes alterações climáticas e da degradação do meio ambiente. O desenvolvimento sustentável está sendo trabalhado nas mais diversas áreas do conhecimento, inclusive, na moda, que começa a pensar os produtos de forma mais consciente. Apesar do sistema de moda ser um ramo que normalmente visa a produção e o consumo desenfreado com a efemeridade a dominar o ciclo de vida dos produtos, onde se observa a predominância da indústria do fast fashion, baseada principalmente na resposta rápida, atualmente, começa a surgir um novo paradigma, que privilegia o bem-estar, e com as questões ambientais e que procura produzir peças ambientalmente corretas, seja na escolha dos materiais

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têxteis ou mesmo pensando em como pode ser feito o processo de reciclagem das mesmas. Neste contexto, podemos falar de um novo modelo o chamado slow fashion. Vários são os meios que a moda pode utilizar para tratar a questão da sustentabilidade, a redução, reutilização ou a reciclagem de materiais são alguns dos exemplos de como a sustentabilidade pode estar presente na moda. Para além disso, é importante que o desenvolvimento sustentável esteja presente em todo o ciclo de vida do produto desde o processo, pré-produção, produção, uso e fim de vida do produto. Todas as etapas devem ter em conta aspectos sociais, econômicos e ambientais (Oenning, 2012, p. 17). Neste contexto, surgem as marcas sensibilizadas para trabalhar com a sustentabilidade e com peças ecologicamente corretas, com preocupação ambiental. Muitas pesquisas mostram a preocupação ambiental das pessoas, que dizem preferir consumir produtos de empresas com responsabilidade ambiental. Segundo Koskela e Vinnari, nos Estados Unidos, em 2004, oito em cada 10 consumidores afirmaram que as questões ambientais são importantes e eles se consideram ambientalistas (Niinimaki, 2009). Para Morais, Carvalho e Broega existe um grande envolvimento das pessoas com a moda e a preocupação ambiental está evoluindo, onde aparece uma forte necessidade por ações no campo da moda sustentável (Morais, Carvalho, & Broega, 2011). Nota-se assim o surgimento de um consumo consciente, onde se verifica que cada vez mais os consumidores se interessam em saber mais sobre o produto, nomeadamente, como este foi feito e se é nocivo ao meio ambiente. A investigação para a realização deste trabalho foi baseada em pesquisas bibliográficas de artigos sobre o tema, para além de livros relevantes, que abordam a sustentabilidade na moda. O artigo pretende fazer uma análise da relação entre a sustentabilidade e a moda, primeiro uma reflexão sobre o sistema de moda, ressaltando a predominância da indústria fast fashion, mas também o aparecimento do slow fashion. O trabalho aborda também a relação entre a sustentabilidade e a moda e o aparecimento de um novo consumidor, mais consciente e preocupado com os aspectos ambientais.

O sistema de moda

Estamos inseridos numa sociedade marcada pelo consumo, onde prevalece a existência de vários grupos, distinguidos por características próprias e diferenciadas. Neste contexto, a moda desempenha um papel importante, uma vez que, entre os bens que consumimos, as roupas e os acessórios acompanham toda a nossa vida. Berlim refere que para além do uso das peças apenas por pudor e proteção, a vestimenta também está relacionada com o adorno, que nos propicia magia, identidade e comunicação. Assim, vale ressaltar que “roupas e moda são entidades diversas, porém ambas contribuem para o bem-estar do ser humano em aspectos funcionais e emocionais” (Berlim, 2012, p. 20). Nesse sentido, a moda acaba por funcionar como um forma de produção simbólica, estando relacionada

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com a criação de identidade individual, liberdade e prazer, agindo como uma forma de manifestação de quem somos e dos nossos desejos. “Todos os dias, ao definirmos como vamos nos apresentar para colocarmos os pés no mundo, buscamos algo que possa nos distinguir... ou nos disfarçar. Lenço, paletó ou brinco que nos tornem interessantes, elegantes, irresistíveis” (Garcia & Miranda, 2005, p. 17). Dessa forma, a moda acaba por desempenhar um papel imprescindível nas nossas vidas atuando como uma forma de identidade e comunicação, onde expressamos as necessidade emocionais. É uma forma de constante expressão cultural, onde o individuo mostra como se vê perante à sociedade. Portanto, estamos em constante busca do novo, de tendências que expressem quem somos (Refosco, Mazzotti, Sotoriva, & Broega, 2011). “A moda é novidade que estimula sentimentos e desejos, é um poderoso fenômeno social de grande importância econômica que deixou de ser somente sinônimo de glamour, frivolidade, enfeite estético e acessório decorativo...transformou-se em objeto considerado essencial para a vida cotidiana e vetor de articulação e do desenvolvimento de relações sociais” (Angelis Neto, Souza, & Scapinello, 2010, p. 3).

Neste contexto, observa-se uma indústria cada vez mais forte, marcada pela efemeridade, onde a cada estação o sistema de moda apresenta novas peças, essas com novas cores, formas, materiais, tudo com um ciclo de vida curto, afim de deixar espaços para as novas propostas que virão na estação seguinte. A moda caracteriza-se por seguir tendências o que vai acarretar num ciclo de vida programado, que impõe o descarte rápido e precoce dos produtos, que podem estar ou não em bom estado, mas deixam de “estar na moda”. O sistema de moda impulsiona o consumo desenfreado, incentivando o consumidor a seguir tendências, cria uma vontade de substituir as peças e acessórios por novos modelo a cada nova coleção. A acessibilidade à moda, proporcionada pelas novas tecnologias e pela globalização, também contribui para impulsionar o consumo, onde observamos a rapidez com que novas tendências chegam as lojas e a informação chega aos consumidores, que são cada vez mais estimulados a consumir (Refosco, Mazzotti, Sotoriva, & Broega, 2011). Observa-se a predominância da indústria fast fashion, marcada pela rapidez na produção, preços baixos e novidades constantes. Muitas marcas trabalham com o modelo fast fashion, entre elas podemos citar a Zara, C&A, Stradivarius, Blanco, H&M, etc. O sistema de moda marcado pelo consumo desenfreado e pela efemeridade baseado, principalmente, na indústria fast fashion acarreta consequências negativas para o meio ambiente. Muitas vezes as pessoas não percebem que desde a produção até o descarte, as peças passam por muitas etapas que envolvem o gasto e desgaste de recursos naturais. Esse sistema de moda está em oposição à sustentabilidade, mas já começam a aparecer contracorrentes na área, inclusive, vertentes como o Slow Fashion, que mostram ser possível aliar a moda e a sustentabilidade. Também já aparecem marcas de moda que procuram desenvolver as suas coleções levando em conta a questão da sustentabilidade.

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Slow Fashion Segundo Fletcher, slow fashion “é simplesmente uma abordagem diferente em que os designers, compradores, varejistas e os consumidores estão mais conscientes dos impactos dos produtos sobre os trabalhadores, comunidades e ecossistemas14” (Fletcher, 2007, p. 01) O termo slow fashion teve a sua origem no slow design que é um tipo de processo que destaca o procedimento lento e reflexivo tendo em conta o desenvolvimento dos resultados do projeto e levando em consideração a necessidade de democratizar o processo de design. O paradigma do slow design defende que o papel do design deve se fundamentar em três aspectos: o individual, sociocultural e o bem-estar ambiental (Anciet, Bessa, & Broega , 2011) (Fuad-Luke, 2004). O termo “slow” surge não em contraposição ao “fast”, mas sendo apenas uma nova abordagem do design e da moda. É um processo que “implica que designers, comerciantes, varejistas e consumidores considerem a velocidade da natureza para produzir os recursos usados na produção têxtil e compararem com a velocidade com que são consumidos e descartados” (Berlim, 2012, p. 54). O slow design remove as limitações do tempo e do crescimento econômico, leva o design para além da fabricação de coisas para o mercado e, consequentemente, evita ter que competir num jogo cada vez mais acelerado de progresso tecnológico, posicionamento da marca e globalização comercial. Ele celebra e equilibra as necessidades individuais e socioculturais com as ambientais (Fuad-Luke, 2004). Já o slow fashion objetiva a preservação dos recursos naturais, onde incentiva a reflexão e um atitude que não tenha pressa, mas que ao mesmo tempo seja produtiva e aliada com a criatividade e a qualidade dos produtos, onde o consumo descontrolado não prevalece. “Conjugam prazer em criar, inventar e inovar com prazer em consumir” (Berlim, 2012, p. 54). Também é contra a padronização de estilos e fazem com que o consumidor saiba de onde vêm os produtos e os materiais usados. O slow fashion é uma vertente amiga do meio ambiente, algo que não é visto na indústria do fast fashion, e é uma maneira de encontrar a sustentabilidade na moda.

Moda e sustentabilidade

A definição mais conhecida sobre desenvolvimento sustentável foi exposta no Relatório Brundtland, resultado da comissão com o mesmo nome e composta por 40 especialistas de todo o mundo. A Comissão Brundtland foi formada pela ONU e tinha como objetivo analisar assuntos relacionados com a temática socioambiental e a partir daí elaborar relatórios com propostas de soluções para o problema. 14

Tradução livre da autora

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Segundo o Relatório Brundtland, o desenvolvimento sustentável é o desenvolvimento que “satisfaz as necessidades do presente sem comprometer a possibilidade das gerações futuras satisfazerem suas próprias necessidades” (World Commission on Environment an Development, 1987). Bellen defende que o “conceito de desenvolvimento sustentável trata especificamente de uma nova maneira de a sociedade se relacionar com seu ambiente de forma a garantir sua própria continuidade e a de seu meio externo” (Bellen, 2005, p. 22). Sachs refere ainda a “harmonização de objetivos sociais, ambientais e econômicos” (Sachs, 2002, p. 54). Diniz e Bermann defendem que no conceito de desenvolvimento sustentável “Temos a necessidade de repensar o desenvolvimento econômico de uma nova forma, levando em conta a igualdade entre gerações. Até então, o desenvolvimento econômico tinha uma óptica um pouco mais restrita e normalmente considerava os determinantes fundamentais do crescimento econômico sem levar em conta o meio ambiente” (Diniz & Bermann, 2012, p. 323).

Devido à crise ambiental e ao consumismo desenfreado que afetam o mundo atualmente, nota-se uma crescente preocupação mundial e a questão da sustentabilidade passa a ser de interesse de Governos, Organizações e da Sociedade Civil em geral que percebem a necessidade de respostas urgentes da sociedade para enfrentar este problema. “Diante da crescente preocupação mundial em relação à crise ambiental e o consumismo da atualidade, governos, organizações públicas e privadas, universidades, sociedades e designers começam a se familiarizar com o conceito de Desenvolvimento Sustentável” (Marcos & Schulte, 2009, p. 58).

Desta forma, a sustentabilidade deve ser abordada por todas as esferas, inclusive, na moda. Mas ao tentar relacionar a sustentabilidade e a moda, observa-se a dicotomia existente entre as duas abordagens, uma vez que o sistema de moda está essencialmente baseado na efemeridade e no incentivo ao consumo, causando diversos males ao meio ambiente, seja através do uso de recursos naturais ou mesmo por causa da utilização de mão de obra escrava na produção das peças. Entretanto, é exatamente por causa dos danos causados pela indústria da moda que se nota uma necessidade de pensar numa moda sustentável, que leve em consideração os princípios do desenvolvimento sustentável, pensando nas questões ambientais e sociais. “De fato, verificamos que a moda pode, sim, adotar práticas de sustentabilidade, criando produtos que demonstrem sua consciência diante das questões sociais e ambientais que se apresentam hoje em nosso planeta, e pode, ao mesmo tempo, expressar as ansiedades e desejos de quem a consome. Afinal, a moda não apenas nos espelha – ela nos expressa” (Berlim, 2012, p. 13).

Incorporar a sustentabilidade é um desafio para a moda, mas já começam a surgir ações que

pensam

num

desenvolvimento

ambientalmente

sustentável,

conjecturando

peças

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ecologicamente corretas. Neste contexto, o designer de moda tem

que atuar com

responsabilidade, pois o papel desempenhado por ele funciona como ligação entre a indústria, o comércio e a sociedade. “É, cada vez mais necessária à intervenção do designer para alcançar uma melhor relação produto - ambiente – sociedade, e isto inicialmente pode ser alcançado com a formação de uma cultura de designers conscientes dos problemas sociais e dos impactos ambientais” (Pazmino, 2007, p. 02). Para Anciet, Bessa e Broega “de fato, verifica-se cada vez mais nesta área uma consciência de que os designers detêm a sua quota-parte de responsabilidade no que respeita à preservação do ambiente e ao desenvolvimento sustentado” (Anciet, Bessa, & Broega , 2011, p. 02) Muitas são as pesquisas que tentam conciliar moda com o desenvolvimento sustentável, desenvolvendo as mais variadas ferramentas que tenham como prioridade a utilização de forma consciente dos recursos naturais. O maior desafio para a moda está na incorporação da preocupação com o meio ambiente em todo o processo de produção, desde a pré-produção até o descarte. Na pré-produção, por exemplo, devem ser escolhidas fibras têxteis biodegradáveis e sustentavelmente produzidas. Na produção, devem ser escolhidas técnicas que reduzam o impacto ambiental. Sem mencionar o respeito aos direitos dos trabalhadores e ao bem-estar social, muitas vezes as peças vêm de diversos lugares longínquos e muitos trabalham em péssimas condições sociais (Refosco, Mazzotti, Sotoriva, & Broega, 2011). Apesar de ainda ter muito caminho pela frente, a moda começa a incorporar a sustentabilidade, algumas ações concretas começam a ser feitas nesse sentido. A reciclagem, reutilização e a redução são alguns exemplos disso. Na redução, a preocupação é reduzir na fonte, através da diminuição de resíduos que surgem pelo meio da fabricação e consumo de produtos. A reutilização está relacionada com a utilização de produtos (ou apenas uma parte) já existentes, seja para a mesma função ou uma nova. Já a reciclagem reutiliza a matéria-prima dos produtos para desenvolver e produzir novos. Para além de que, também existem outras ações visando a sustentabilidade tanto em roupas como em acessórios, que levam em conta o processo de criação, produção, consumo e descarte do produto. Seja através da utilização de algodão orgânico nas peças, que é plantado sem o uso de pesticidas; estamparias e tingimentos ecológicos, peças feitas com couro de peixe e até mesmo a valorização da mão de obra local no fabrico das peças, entre tantas outras iniciativas que dão preferência ao desenvolvimento de um produto sustentável. Paralelamente, começa a surgir um consumidor mais informado e preocupado com o que consome, atento as questões ambientais, que procura saber como foram feitos os produtos e se são amigos do meio ambiente.

Consumo consciente

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Nota-se que já começa a aparecer um consumidor mais consciente, que procura comprar produtos desenvolvidos de forma sustentável. Pode-se observar uma mudança nos hábitos de consumo causadas, principalmente, pela recessão econômica, avanços tecnológicas e o surgimento de uma consciência ecológica (Refosco, Mazzotti, Sotoriva, & Broega, 2011). Se antes as pessoas compravam apenas por status, agora compram por questões mais profundas. Lipovetsky defende que o consumidor atualmente está mais consciente e passa a preocupar-se com questões além da ostentação de produtos de luxo (Lipovetsky, 2007) (Valente, 2008). A moda acaba por ser uma forma de individualização, emocionalização, democratização e preocupação social (Valente, 2008). O consumidor acaba por se orientar através de valores individuais, emocionais e psicológicos, ele não adquiri um produto apenas por status, mas também por satisfação, identificação ou estética, passa a pensar mais em si próprio do que no outro. Desta forma, observa-se uma maior individualização na hora da compra, onde este se responsabiliza mais pelas escolhas que faz e as peças são um instrumento de identidade, ou seja, o consumo é muito mais do que uma aquisição, “existe uma adequação e uma manipulação de fichas simbólicas de valores e representações” (Berlim, 2012, p. 48). Aparece um novo comportamento na sociedade, que procura produtos para viver melhor e se identifica com questões atreladas ao bem-estar, qualidade de vida, responsabilidade social, felicidade, liberdade, meio ambiente, entre outros. Neste contexto, a sustentabilidade deve abranger, além de uma mudança no processo produtivo do sistema de moda, também de “um novo estilo de vida do consumidor engajado com os problemas da humanidade e preocupado com os valores éticos através de seus atos de consumo” (Refosco, Mazzotti, Sotoriva e Broega, 2011, p.06). “No entanto, a preocupação com a preservação do meio ambiente no processo de desenvolvimento de produtos já faz parte do universo da moda. Seus consumidores já começam a se conscientizar dos problemas ambientais trazidos pelo consumismo” (Neto, Souza, & Scapinello, 2010, p. 03).

Essa mudança de consciência na população, leva a que as empresas passem a se preocupar em incorporar processos que colaborem com o desenvolvimento sustentável para preservar o meio ambiente. Neste contexto, a área da moda desenvolve vários projetos e estudos, uma vez que “o mercado da moda também incorporou o discurso sustentável e apresenta peças que unem criatividade, estilo e consciência ecológica” (Casotti & Torres, 2011, p. 01). Em consequência da mudança do comportamento de consumo começam a surgir marcas voltadas especificamente para a sustentabilidade e algumas já forte no mercado começam a implementar o desenvolvimento sustentável na criação de coleções especiais usando material orgânico ou que não seja nocivo ao meio ambiente. Esse é o caso da H&M, que mesmo tendo como base a indústria fast fashion, lançou a Councious Collection, onde usou materiais mais sustentáveis, como algodão orgânico, linho e alguns tecidos reciclados (figura 1 e 2).

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Na figura 1, a peça é um vestido de renda com mistura de algodão orgânico e os ombros são compostos por uma peça feita com contas de plástico reciclado. Na figura 2, temos sandálias bordadas com algodão orgânico, lantejoulas e miçangas feitas de poliéster reciclado. O vestido é de organza feito com poliamida reciclada e fibras de lyocell15

Fig. 01 - H&M Concious Collection (Bergin, 2014)

A Levi’s lançou uma coleção de calças jeans fabricadas com algodão orgânico, a Levi’s Eco. A marca brasileira Osklen (figura 3 e 4)ntambém é um exemplo de como é possível conciliar moda e sustentabilidade, esta usa materiais reciclados e naturais na produção das suas coleções, como pro exemplo, seda, lã, algodão orgânico, sementes e couro de tilápia 16 (Valente, 2008).

15

Utiliza celulose a partir da polpa da madeira, retirada de árvores cultivadas através do reflorestamento. O couro da tilápia, além de ser mais barato que o couro de boi, possui beleza e resistência e pode ser considerado um material ecofriendly. Ele é reaproveitado depois de retirada a parte para consumo humano e utilizado na fabricação de peças. 16

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Fig. 02 - Campanha Guardiões da Amazônia (Osklen, 2007)

Fig. 03 - Campanha Guardiões da Amazônia (Osklen, 2007)

Estes são exemplos de como a sustentabilidade começa a fazer parte da moda e como a mudança de comportamento do consumidor tem contribuído para isso, exigindo das marcas uma produção mais consciente e que leve em consideração o meio ambiente.

Conclusões

A sustentabilidade já deixou de ser uma preocupação apenas de ambientalistas e passou a ser de interesse de toda a sociedade, inclusive, no âmbito da moda, que ainda tem um longo caminho a percorrer na questão. Mesmo assim, não é um caminho fácil, principalmente, para uma indústria onde prevalece a rapidez no ciclo de vida dos produtos e o incentivo ao consumo desenfreado, causando graves males para o meio ambiente e contribuindo de formar direta para a crise ambiental. O modelo fast fashion domina o sistema de moda atual, mas começa a surgir uma vertente diferente, o slow fashion, que está ganhando adeptos e mais espaço nessa indústria marcada pela efemeridade. Dessa forma, começa a aparecer uma vertente da moda mais engajada e com responsabilidade social que está preocupada com as questões sociais e ambientais.

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Neste contexto, também surge um consumidor mais preocupado e consciente que exige das marcas uma maior responsabilidade social. Um consumidor que procura produtos com os quais se identifique, que reflitam os seus valores e identidade. Paralelamente, as marcas começam a responder a essa nova demanda, seja através de coleções específicas, ou mesmo mudando aos poucos a sua política. Também surgem novas marcas sustentáveis. Apesar de ser possível uma moda sustentável, ainda há muito que ser feito e é um trabalho que passa não só pela consciência do consumidor, mas também pela vontade das marcas de adotarem uma postura sustentável. Referências Bibliográficas WORLD COMMISSION ON ENVIRONMENT AN DEVELOPMENT. (1987). Our Common Future. Retrieved 2013, from UN: http://www.un-documents.net/our-common-future.pdf VALENTE, S. (2008). Luxo sustentável: a nova estratégia de mercado premium. X Congresso de Ciências da Comunicação no Nordeste. São Luís: Intercom. ANCIET, A., BESSA, P., & BROEGA , A. (2011). Ações na área da moda em busca de um design sustentável. VII Colóquio de Moda. Maringá. ANGELIS NETO, G., SOUZA, L., & SCAPINELLO, L. (2010). Reflexões sobre a sustentabilidade no segmento de moda. VI Colóquio de Moda. São Paullo. BELLEN, H. M. (2005). Indicadores de sustentabilidade uma análise comparativa. Rio de Janeiro: Editora FGV. BERGIN, O. (2014, março 20). Fashion. Retrieved junho 05, 2014, from Telegraph: http://fashion.telegraph.co.uk/news-features/TMG10710735/Mark-the-date-for-HandMs-ConsciousExclusive-collection.html BERLIM, L. (2012). Moda e Sustentabilidade uma reflexão necessária. São Paulo, Brasil: Estação das letras e cores. CASOTTI, L., & TORRES, V. (2011). MODA SUSTENTÁVEL E CONSUMIDORES OSKLEN. XVIII Prêmio Expocom 2011 – Exposição da Pesquisa Experimental em Comunicação . Vitória: Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação. DINIZ, E. M., & BERMANN, C. (2012). Economia verde e sustentabilidade. Estudos Avançados , 26 (74). FUAD-LUKE, A. (2004). ‘slow design’ – a paradigm shift in design philosophy? Retrieved Maio 28, 2014, from ResearchGate: http://www.researchgate.net/publication/228555968_Slow_Design_a_paradigm_shift_in_design_ph ilosophy FLETCHER, K. (2007, june 1). Slow Fashion. Retrieved maio 10, 2014, from Ecologist setting the environmental agenda since 1970: http://www.theecologist.org/green_green_living/clothing/269245/slow_fashion.html GARCIA, C., & MIRANDA, A. (2005). Moda é comunicação experiências, memórias, vínculos. São Paulo: Anhembi Morumbi.

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ELEMENTOS CULTURAIS BRASILEIROS APLICADOS EM ACESSÓRIOS FEMININOS Jamile Schmitz Goulart Universidade Do Minho – Portugal [email protected] Helder Manuel Teixeira Carvalho Universidade Do Minho – Portugal [email protected] Rita Ribeiro Universidade Do Minho – Portugal [email protected] Resumo Este artigo apresenta a relação entre a moda e a cultura brasileira com o objetivo de identificar marcadores identitários do Brasil na criação de joias e bijuterias femininas. O Brasil, país caracterizado por sua colonização híbrida, bem como por sua extensa dimensão territorial, possui imensas riquezas culturais, que têm sido traduzidas em tendências de moda. A partir disto, pretende-se fazer uma reflexão sobre o conceito de brasilidade e os caminhos para a sua aplicação nos acessórios de moda, além de observar a relação dos indivíduos com o consumo de acessórios, visto que os marcadores identitários da cultura brasileira podem ser vistos como fator de diferenciação dos produtos de moda. Palavras-chave: Acessórios, brasilidade, bijuteria, consumo, moda. Abstract This paper presents the relationship between fashion and Brazilian culture aiming at identifying identity markers of Brazil in the creation of jewelry for women. Brazil, a country characterized by its hybrid colonization, as well as its extensive territorial dimension, has immense cultural richness, which have been translated into fashion trends. Therefore, it is intended to reflect on the concept of brazilianness and paths to its application in fashion accessories, and observe the consumption of accessories behaviour, as the identity markers of Brazilian culture can be seen as a factor of product differentiation. Keywords: Accessories, Brazilianness, jewelry, consumer, fashion.

Introdução

O mercado de bijuterias e acessórios femininos vem ganhando destaque na economia mundial e pode ser considerado um setor de grandes oportunidades graças ao seu crescimento acelerado. O hábito da utilização de adornos no corpo é conhecido desde a pré-história, sendo que eram feitos de seixos, ossos e se revestiam de um significado religioso. Muitas vezes serviam como talismã para homens e mulheres, que aos poucos, deixaram de utilizar esses adornos apenas pelo significado simbólico e passaram a utilizá-los como enfeites (Faraco, 2009, p. 11). Conforme Freyre (2009), brasilidade é um modo característico e específico de ser do povo brasileiro, resultado da sua história e miscigenação social e cultural. Pensando nisto observou-se a possibilidade do desenvolvimento de um estudo dos marcadores identitários que caracterizem o Brasil e que possam ser aplicados no desenvolvimento de bijuterias femininas. No cenário internacional, a brasilidade é reconhecida através das cores e símbolos famosos tais como o Pão de Açúcar, o Cristo Redentor e as frutas tropicais, entre outros. Porém os aspectos que caracterizam a brasilidade vão muito além desses símbolos, como por exemplo, os elementos naturais de origem brasileira como sementes, pedras, cordas, plumas, rendas e conchas. Para Rybalowski (2008), o aspecto artesanal do produto brasileiro, de que é ou parecer ser feito à mão,

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persiste como forte apelo para o consumidor, uma vez que a produção é industrial, mas com proposta de valor diferenciador. Com base no cenário descrito, pretende-se estudar a cultura do Brasil com o intuito de aplicar matérias primas de origem brasileira e com atributos de brasilidade na moda em acessórios femininos, além de distinguir marcadores identitários da cultura brasileira, relevantes para a construção de imagem/identidade para marca de bijuteria, destinada a mulheres estrangeiras que se identificam e apreciam a cultura brasileira. Da cultura da ornamentação do corpo à joalheria contemporânea

Os primeiros indícios do homem pré-histórico associados aos seus adornos pessoais referem-se às épocas superiores do Paleolítico. Nesta fase, o indivíduo começa a perceber a beleza ao seu redor, e cria uma ligação entre o espírito e a matéria, que se refletia nos objetos que produzia. Assim, é no espírito que o homem coloca seu estado de felicidade, conquista, prazer e os produtos existem para satisfazê-lo. E, por meio da beleza, o homem experimenta as realizações do espírito, pela emoção prazerosa que esta lhe causa. A estética, pelas teorias cristalizadas pode-se definir também como o lugar em que os homens se encontram, superam-se, progridem e convivem, de modo que lhes possibilitem encontrar a felicidade (Bisognin, 2006, p.880). As primeiras joias encontradas na humanidade são de origem sumeriana. Porém, é no Egito onde foram encontradas as joias com maior valor estético. Na Grécia, as peças de origem mais antiga provieram dos fenícios, tendo sido encontrados colares feitos de placas de ouro com estampas zoomórficas. “Os sumérios foram os primeiros a deixar registos escritos sobre as suas peças de joalharia, descrevendo técnicas de produção e a habilidade em trabalhar o ouro, tendo estes conhecimentos sido absorvidos por várias civilizações antigas entre o Golfo Pérsico e o Mediterrâneo, da antiga Assíria à Babilónia, passando pela antiga Anatólia (atual Turquia), pela legendária Tróia, Egito, alcançando as civilizações minoana (em Creta) e micénica no território da atual Grécia, chegando até aos Etruscos na Itália.” (CARDOSO, 2010, p. 26)

O tema geral da joalheria na Idade Média expressava os ideais de cristianismo e do amor idealizado. Segundo Swarbrick (1996), as gemas coloridas, especialmente esmeraldas, safiras e pérolas, além do vidro, compunham ornamentos com ouro, prata e bronze. No século XIX há um aumento do gosto pelo luxo, devido a um período de prosperidade, baixos impostos e o surgimento de uma sociedade elitizada resultante da Revolução Industrial, em que a produção em série possibilitou o consumo de joias de uma parcela maior da população. Conforme Cobertta (2007, p. 29), o dinheiro mudou de mãos e com isto aparecem os noveau riche (novos ricos), que precisavam demonstrar poder e, portanto, queriam joias poderosas.

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O século XX é um período marcado pela expansão da gama do que é considerada joalheria, em que são utilizados na sua confecção materiais que vão além do ouro e das pedras preciosas. Designers famosos e as grandes marcas como H.Stern, Cartier e Tiffany, utilizam materiais como cristal, aço escovado, couro, titânio, prata e cobre no desenvolvimento das suas peças, o que caracteriza a consolidação da joalheria contemporânea. “Durante o século XX, a joia abandonou o privilégio do artesanal e o uso exclusivo de materiais nobres e luxuosos e se aproximou de “ligações perigosas” com consequências muito interessantes. A inserção de “materiais vulgares” na esfera simbólica do luxo confundiu e contaminou os limites entre o valorizado e o desvalorizado, o que resultou em uma mudança deliberada na consolidação das hierarquias do bom gosto e da preciosidade”. (ANNICCHIARICO; CAPPELLIERI; ROMANELLI, 2004, p. 7)

Com a Primeira Guerra Mundial, diversas transformações ocorreram nos campos das artes, moda e design. Neste período, o desenho industrial possibilita refinamento estético capaz de resistir à produção industrial em série. Graças à inauguração da Bauhaus, escola alemã de arquitetura e design, concebeu-se o raciocínio da estética funcional dos objetos. Porém, o pensamento modernista discordava que “a capacidade de evocar ideias também faz parte de qualquer proposta de design: ou seja, as funções de um objeto não podem ser reduzidas apenas ao seu funcionamento” (Cardoso, 2004 p. 131). E assim, a produção dos artigos de moda e, consequentemente, a joalheria contemporânea, evoluíram simultaneamente com o design. Com o fim da Segunda Guerra Mundial, houve um período de escassez de metais e pedras preciosas, acontecimento que dá origem ao design das peças que imitavam as joias produzidas com metais não preciosos, e assim surgem as bijuterias (Gola, 2008). A utilização do design no desenvolvimento das bijuterias recebeu forte influência de Chanel, que adotou a ornamentação do corpo com peças não preciosas com “um desenho novo que era sinônimo de atitude e de estilo da mulher moderna” (Pullée, 1990, p. 48). Naquele momento, a sociedade enfrentava um período de mudanças sociais, e as tendências de moda estavam voltadas a um público mais jovem. É a partir desse período que começam a surgir peças em que o seu valor é atribuído ao design, e também aparecem na sua produção elementos como madeira, papel e polímeros. Ainda no período pósguerra, pode-se perceber que a presença de avanços tecnológicos bem como dos meios de comunicação, que desencadeou uma aceleração no consumo de bens. A manifestação da joalheria contemporânea surge como uma tendência que permite espaço para a experimentação de diferentes materiais e para a criação livre, efetiva e sem preconceitos de produtos (Faggiani, 2006). Ao analisar os caminhos tomados pela ornamentação, design de joias e bijuterias, derivamse inúmeros processos que são conciliados pelo mercado, bem como pelo desejo do ser humano de diferenciação dos demais indivíduos dentro do contexto de contemporaneidade. O que nos mostra que a gama de materiais que podem ser utilizados no desenvolvimento de peças de joalheria contemporânea cresce cada vez mais.

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É preciso certa ponderação ao definir o que é uma joia contemporânea ou uma bijuteria, visto que a joalheria contemporânea está associada a um metal precioso junto de outros tipos de materiais, e a bijuteria é criada através de materiais não nobres.

Moda e consumo no contexto dos acessórios

Muito além do vestuário, a moda atualmente possui um envolvimento cada vez maior com os mais diversos produtos do mercado. Conforme Braga (2005), a moda é a representação da cultura de um povo ou de uma época. Em busca de se reunir em grupos através de suas semelhanças, os seres humanos encontram no consumo de moda uma forma de identificação. “No passado o conceito de moda era associado apenas ao vestuário, principalmente nas áreas mais especializadas do segmento feminino de roupas. Na última década, entretanto, o conceito de moda vem se expandindo, ícones da moda estão presentes em vários outros segmentos do mercado, como: perfumes, óculos, acessórios, celulares, cadernos, artigos de higiene, louças, eletrônicos, etc”. (COBRA, 2007, P. 11)

A história da ornamentação do corpo é tão antiga que o seu uso precede a história da vestimenta. Os registros do hábito de se usar a joia são de aproximadamente há 7 mil anos, quando ainda se utilizavam adornos feitos de sementes e conchas. Desde os primórdios das civilizações, as joias simbolizam status e poder. “O homem desde o início de sua existência, produz elementos artísticos associados a ornamentos - joias -, revelando assim sua criatividade, representando os símbolos de cada época e colocando em destaque a dimensão estética do mundo material, ou mesmo das formas naturais.” (GOLA, 2008, P.7)

A representação estética e a preocupação dos indivíduos com a aparência tem como propósito impressionar, fascinar, surpreender e até mesmo comunicar qualquer manifestação sensorial. Muito além de um simples ornamento, a joia carrega e comunica um significado cultural. Remete a símbolos de status e de posição social, completando a construção da imagem individual. O fato de um objeto milenar como a joia estar hoje mais complexa, o que é evidenciado pela atual diversidade de suas possibilidades, é reflexo da fluidez da sociedade pós-industrial (Bauman, 2001). A produção em massa contribuiu para a dimensão simbólica da joia. Ao se individualizar numa sociedade com produtos produzidos em série, houve uma valorização da exclusividade e expressividade na concepção de uma joia única que diferenciasse o consumidor do século XX. Atualmente a joia não está somente relacionada ao status e ao seu próprio valor intrínseco. As suas formas de uso estão democratizadas. A gama de materiais usados para a sua fabricação está em constante expansão.

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“As preferências distintivas por sempre novos estilos de consumo e a invocação técnica capaz de produzi-los são, nesse sentido, concebidas como fatores de “libertação da individualidade” e de diferença cultural. Assim, os critérios de libertação do indivíduo e de sua identidade são constituídos graças às benesses do mercado. É a partir dele de sua atual capacidade produtiva diversificada que, enfim, o homem também se diversifica”. (SEVERIANNO, 2001 P. 92)

O consumo está ligado a uma série de fatores que fazem o comportamento do consumidor tornar-se cada vez mais individual. Porém, este comportamento não está relacionado ao produto em si, e sim ao ato de consumir. A partir do momento em que o indivíduo começa a consumir determinado produto é que ele desenvolve sua identidade. A padronização agora se encontra na atitude de consumir freneticamente para tornar-se um indivíduo. Em paralelo a isto, existe a necessidade incessante dos seres humanos pertencerem a grupos sociais, e, consequentemente, esses indivíduos adotam o comportamento do grupo em que estão inseridos. Entretanto, sua contribuição como indivíduo para o grupo social acontece de forma exclusiva devido à sua liberdade de escolha, em que ele colabora com os traços da sua própria identidade. Além dos acessórios serem utilizados pelos indivíduos como inserção num determinado grupo social, também são utilizados com o intuito de melhorar o visual das vestimentas ou caracterizar um estilo. Para que isto aconteça, os acessórios estão cada vez mais diversificados devido à extensa gama de materiais utilizados no seu desenvolvimento. Do couro e conchas aos metais e pedras preciosas, o consumidor encontra nos acessórios um universo de possibilidades para a construção da sua imagem. Os acessórios são vistos como objetos que transmitem os valores de quem o usa, assim como retratam o estilo de cada um. De acordo com o que é visto na joalheria contemporânea, pode-se afirmar que os acessórios transmitem conceitos e são mais valorizados enquanto exclusivos ou quando possuem algum atributo de diferenciação. Como o próprio nome já diz, os acessórios exclusivos são as peças únicas, e que não serão reproduzidas. Já os atributos de diferenciação aplicados aos acessórios de moda envolvem questões relacionadas a materiais e design e apelo de consumo. A brasilidade aplicada na joalheria/bijuteria

A descoberta da América por Colombo em 1492 e, posteriormente, o descobrimento do Brasil por Cabral afetou o comércio de gemas ocidental. Grandes riquezas foram encontradas em terras sul americanas como esmeraldas, ouro e prata. Em chegada à nova terra, os portugueses encontraram índios que adornavam seus corpos com penas coloridas, sementes e ossos de animais. Durante o século XVI, as joias usadas no Brasil por mulheres e homens eram raras e as poucas que já existiam, seguiam a moda vinda da Europa. Não havia tradição da ourivesaria no país, todas as peças encontradas no Brasil vinham de fora.

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“As culturas indígenas mostram-se identificáveis nos vários objectos encontrados, nas tradições e nos adornos usados em rituais e cerimonias (alguns preservados até nossos dias), demonstrando grande sensibilidade, particularmente no uso das cores”. (GOLA, 2008, P.78)

A consciência de uma identidade brasileira surgiu com maior impacto a partir da Semana de Arte Moderna em 1922. Esse movimento despertava uma linguagem nacionalista no país, com temas relacionados com os índios e as tradições nacionais com o intuito de valorizar a cultura brasileira. “Com toda sua complexidade e diferenciação ideológica, o movimento modernista que surge com a Semana de 1922 representa um divisor de águas nesse processo: por um lado significa a reatualização do Brasil em relação aos movimentos culturais e artísticos que estavam ocorrendo no exterior, e por outro, implica também buscar as raízes nacionais, valorizando o que haveria de mais autêntico no Brasil”. (OLIVEN, 2001)

Desde o século XX até os dias de hoje a criação de uma joia se mostra em transformação visto que a quantidade de ouro nas peças já não é o seu valor principal, e também leva-se em consideração o próprio design das peças e seus conceitos. Kotler (1998) afirma que design significa a forma mais potente para diferenciar e posicionar os produtos e serviços de uma empresa. Tendência mundial nas últimas décadas, a arte da joalharia brasileira vem se adaptando a uma clientela interessada em peças de qualidade e design diferenciado. Pedrosa (2005) considera que as joias brasileiras já são identificadas no mercado consumidor estrangeiro pelo traço jovem e leve, pela paleta de cores e pela beleza das peças. País das cores, da dança, do futebol, do clima tropical, das riquezas naturais e das misturas raciais, o Brasil vem construindo uma identidade nacional através de elementos que começam a ser reconhecidos internacionalmente. Sodré (2010, p. 326) ressalta no discurso do expresidente do Brasil Fernando Henrique Cardoso na abertura das comemorações dos cinco séculos de existência do Brasil: “Somos talvez a maior nação multirracial e multicultural do mundo ocidental, senão em número de habitantes, na capacidade integradora da civilização que fundamos. Essa diversidade e sua mestiçagem constituem a marca do nosso povo, orgulho do nosso país, o emblema que sustentamos no pórtico do século”.

No caso deste estudo, a

identidade brasileira terá enfoque no campo da moda, especialmente voltada às bijuterias, indo além dos estereótipos encontrados no país. Para Leal (2002, p. 50) “temos uma das maiores biodiversidades do planeta, temos matérias-primas naturais belíssimas e únicas, que se bem usadas, se tornam enormes vantagens competitivas”. Atualmente o Brasil está em evidência no cenário internacional por ser uma economia que está em constante crescimento e isto tem mudado a imagem do país perante o mundo. Morace (2009) reitera que o Brasil possui valores que são reconhecidos mundialmente e que podem gerar grande oportunidade ao país no momento em que possam ser revelados através de produtos.

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Assim, surge o conceito de brasilidade que busca uma definição sobre o que é a identidade brasileira. Freyre (2009) afirma que brasilidade é um modo característico e específico de ser do povo brasileiro, resultado da sua história e miscigenação social e cultural. Nesse contexto, fazem parte da concepção de identidade brasileira temas como a natureza, aspectos culturais, sociais e econômicos. No campo da moda aplicada aos acessórios, pode-se observar a marca de sandálias Havaianas, marca brasileira com maior reconhecimento internacional, cujos produtos estão de acordo com conceitos de identidade Brasileira. As sandálias Havaianas (figura 1) são as sandálias mais conhecidas no Brasil por todas as classes sociais e, além disso, a marca também é reconhecida no mundo como “made in Brazil”.

Figura 1: Sandálias Havaianas Edição Especial Carnaval 2014. Fonte: Harper`s Bazaar Brasil

Encontradas em mais de 60 países, as sandálias Havaianas retratam aspectos culturais do estilo de vida do povo brasileiro através do seu design descontraído, condizente com o clima tropical que abrange o país, as cores intensas e alegres. De acordo com Avelar (2009), o conceito de brasilidade na moda pode agregar aspectos de originalidade do produto, através de tecidos, formas, cores, volumes e a justaposição de todos esses elementos. Ao aprofundar os conceitos de brasilidade aplicados às bijuterias toma-se como exemplo o designer João Sebastião que interpretou em suas peças (figura 2) a concepção de identidade brasileira. Nascido em Cuiabá, Mato Grosso do Sul, João Sebastião utiliza em suas peças a mistura de materiais, cores e movimentos folclóricos. A sua coleção “Brasileiríssima” foi inspirada nas coloridas araras e tucanos brasileiros, que tem como principal referência as cores da bandeira brasileira e que faz referência à Copa do Mundo de 2014, que será realizada no Brasil. As peças são produzidas em metal esmaltado, com banho de ouro e retratam a fauna e a flora brasileira.

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Figura 2: Coleção “Brasileiríssima” de João Sebastião Fonte: Website do Designer

Na coleção “Pantanal” (figura 3), o designer João Sebastião, lança uma linha artesanal em que enaltece as suas raízes mato-grossenses, explorando novamente a fauna e a flora nacional através das cores vibrantes, dos pássaros e flores presentes nas peças da coleção.

Figura 3: Coleção “Pantanal” de João Sebastião Fonte: Website do Designer

Dentro do conceito de brasilidade em bijuterias também temos como exemplo a Sobral Design, empresa brasileira que desenvolve joias e outros objetos com resina de poliéster. A empresa já esteve presente em eventos de moda internacional, como o Paris Fashion Week, e suas peças já foram utilizadas por celebridades internacionais. Na coleção Rio + Design, inspirada nos encantos do Rio de Janeiro, apresenta muitas cores nas suas criações, assim como retrata paisagens e monumentos como o calçadão de Copacabana, o Pão de Açúcar e o Cristo Redentor (figura 4).

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Figura 4: Coleção “Rio + Design” de R Sobral Fonte: Website da empresa

Considerações finais Em busca de se diferenciar entre os demais, os indivíduos buscam maneiras de se destacar dentro dos grupos dos quais fazem parte. Uma das maneiras de se atingir esse objetivo é através da ornamentação do corpo. Desde o início do século XX houve um crescimento considerável da gama de materiais que podem ser utilizados no desenvolvimento de peças de joalheria contemporânea. Na cultura brasileira voltada à moda, é comum haver a valorização do que é lançado nos grandes centros de moda na Europa. Porém, um país com as riquezas naturais e culturais como o Brasil possui muitas características peculiares que merecem ser estudadas. O artesanato de moda brasileira reflete a acentuada miscigenação cultural presente no país. A hibridização das culturas europeia, negra e indígena ocorrente no país, associadas à moda e ao artesanato, transformamse em artigos sofisticados, exclusivos e originais. Os marcadores identitários brasileiros aplicados nos acessórios tornam-se diferenciais competitivos, e algumas marcas brasileiras já assimilaram a importância de um design diferenciado em suas peças, estando com isso, aptas a competir no âmbito internacional. Ao observar a extensão territorial brasileira bem como as diversas influências culturais recebidas durante a sua colonização, existem inúmeros atributos de brasilidade que podem ser aplicados no desenvolvimento da identidade de uma marca de bijuterias brasileira.

Referências Bibliográficas

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A ÁGUA COMO ELEMENTO MOTIVADOR DO DIÁLOGO CIENTÍFICO INTERNACIONAL Nubia Deborah Araujo Caramello17 Grupo de investigação Água, Território e Sustentabilidade – UAB/Espanha Laboratório de Geomorfologia Programa de Pós Graduação em Geografia pela Universidade Autônoma de Barcelona [email protected] David Sauri Pujol Grupo de investigação Água, Território e Sustentabilidade – UAB/Espanha Programa de Pós Graduação em Geografia pela Universidade Autônoma de Barcelona [email protected] Resumo O presente artigo é uma reflexão do papel dos Rios como um ator espacial e suas águas como testemunha de seu uso e ocupação, tornando crescente o poder de motivar cientificamente o dialogo em escala local e global a partir do século XX. Como reflexão apresenta o Estado de Rondônia - Brasil, e os mecanismos que vem sendo desenvolvido em prol das águas e do direto de uso múltiplo, adquirido legalmente através da Lei das Águas Brasileira 9.433/97, e ganha, teoricamente, aportes para a mitigação de seus impactos. Entretanto esses instrumentos sozinhos não são suficientes para o desenvolvimento de uma gestão eficiente das águas. Fato este que motivou o diálogo científico multidisciplinar e internacional entre Brasil e Espanha, em busca de novas abordagens teóricas e metodológicas, por meio da experiência desenvolvidas com a Historia Ambiental , elemento chave para analisar a dinâmica de inter-relação entre o rio e a sociedade Palavras chaves: Diálogo Hídrico, Gestão das Águas, Conhecimento Interdisciplinar, Historia ambiental. Resumen El presente artículo es una reflexión sobre el papel de los ríos como protagonista del espacio y sus aguas como un testimonio de su uso y ocupación, lo que hace aumentar el poder de motivar científicamente el diálogo a escala local y global a partir del siglo XX. Como un reflejo de la situación en el Estado de Rondônia, y los mecanismos que se están desarrollando en apoyo del agua y de usos múltiples directos, garantizados legalmente por la Ley de las aguas de Brasil 9.433/97, y gana teóricamente aportes para la mitigación de sus impactos. Sin embargo, estas herramientas por sí solas no son suficientes para el desarrollo de una gestión eficiente de las aguas. Hecho que motivó el diálogo científico multidisciplinar internacional entre Brasil y España, en busca de nuevos enfoques teóricos y metodológicos desarrollados a través de la experiencia con la historia ambiental, elemento clave para analizar la dinámica de relación entre el rio y la sociedad. Palabras clave: Diálogo hídrico, Gestión de las Aguas, Conocimiento Interdisciplinar, Historia Ambiental.

Introdução

O presente texto, trata do convite à uma reflexão sobre considerarmos o rio como um ator de bacia hidrográfica e suas águas como elemento motivador de diálogos, seja local, regional ou global, por se constituir a maior testemunha do uso e ocupação de uma bacia hidrográfica. Respalda-se na experiência vivenciada a respeito da busca de um novo sentido para o termo “sustentabilidade

hídrica”

junto

ao

Grupo

de

Pesquisa

Experimental

Diálogo

Hídrico

Multidisciplinar, localizado no interior do Estado de Rondônia - Brasil. Considerando uma base de discussão empírica que visa por meio da amplitude das experiências globais, é necessário identificar instrumentos teóricos e metodológicos que possa instrumentalizar a percepção hídrica, visando a reordenação de uma proposta coletiva de gestão de recursos hídricos que atenda as necessidades de sustentabilidade socioambiental local ou a 17

Bolsista do Programa Brasileiro de Capacitação do Nível Superior, Doutorado Pleno – CAPES

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nível de pequenas bacias hidrográficas e proporciona uma nova holística sobre os corresponsável pela recuperação de um cenário ambiental degradado. Buscando na Historia Ambiental, para contribuir com as reflexões “Quais os atores de uma bacia hidrográfica a serem considerados no plano de gestão? Será que a legislação de Recursos Hídricos vigente atualmente (Lei das Águas Brasileira 9.433/97) corresponde a uma proposta de sustentabilidade aplicável ao espaço Amazônico?”, é uma das interrogações que permeiam a tese de doutorado em andamento na Universidade Autonôma de Barcelona da primeria autora deste trabalho. De acordo com Donald Worster, um dos fundadores da História Ambiental, a água em nosso tempo torna-se um estimulador de diálogos em diferentes escalas: …..el agua se ha convertido en un tema global: una parte cada vez más escasa, contaminada y conflictiva de la naturaleza. Es hora de que los historiadores observen más de cerca a este elemento vital de la naturaleza y las formas que ha tomado, para indagar sobre el significado del agua y su papel en la historia (Worster, 1988:163.)

Seguindo o apontamento de Worster, não objetivamos uma ampla discussão a respeito do percentual de água geograficamente distribuída no planeta terra, tampouco dos níveis de contaminação mundiais e os motivos que desencadeiam cada um desse fator, até mesmo porque esse é um tema amplamente publicado e reforçado por inúmeros pesquisadores no Brasil e demais países tanto pelas ciências humanas como pelas exatas. Mas, buscaremos demonstrar os diálogos que ela, a água, vem desencadeando em diferentes níveis espaciais e em esferas políticas, econômicas e territoriais, e como acaba motivando a interdisciplinaridade da pesquisa ambiental e suas escalas de parceria mundialmente. Quando pensamos em uma proposta de gestão hídrica, devemos considerar os desafios deste instrumento, e geograficamente devemos considerar que as águas doces não

estão

distribuídas e acessíveis de forma igualitária em todo o mundo, por razões tanto naturais (clima, vegetação, solo, altitude, longitude, etc) quanto antropicas (cultura, economia, políticas públicas, etc). Fatores que levaram o Relatório do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento PNUD do ano de 2006, a classificar a água como um recurso limitado, em grande parte do Oriente Médio, África, partes da América Central e oeste dos Estados Unidos da América. Relatando que até 2050 mais de 45% da população mundial não terá acesso à água potável, se nenhuma providencia cabível for tomada para minimizar essa situação (PNUD, 2006). Neste relatório a América do Sul é classificada como a porção continental mais rico do Planeta em recursos hídricos, com destaque para o Brasil, dispondo de cerca de 20% das reservas de água doce do mundo. Sendo a região Amazônica com o percentual de 60% do território Brasileiro e com menor densidade populacional a detentora de cerca de 80% dessa água e os demais 20% distribuídos entre as regiões Sul, Centro Oeste, Nordeste e Sudeste, locais onde os conflitos pela água já se acentuaram desde a década de 70.

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Uma análise que para os brasileiros, residentes em Rondônia, Estado da região Amazônica, hoje não é um fator a se comemorar, até mesmo porque falta, em muitos rios e em muitas torneiras, água, e sua ausência torna-se um convite ao diálogo local em busca de compreender historicamente as lacunas que vem proporcionando esse novo cenário. E também desencadeando ações em busca de mitigar a realidade que vem sendo identificada em várias bacias hidrográficas em Rondônia.

Rio: um elemento natural ou social?

Quantas

vezes

nos

questionamos

sobre

a

origem

do

nome

de

um

rio?

Geomorfologicamente ele pode receber denominações, voltado a sua estrutura física, más, não será como Rio Meandrante ou Rio Radial, que ele será recordado, mais sim pelo nome próprio direcionado a eles, um nome fruto de uma historia que configurou socialmente a sua localização. Tomemos como exemplo rios com reconhecimento mundial: Rio Madeira, Rio Amazonas, Rio Nilo, Rio Ganges; ou ainda conhecido localmente:_Rio Vermelho (localizado na Bacia do Rio Branco, Zona da Mata – Rondônia/Brasil, com área aproximada de 689 km²) e Rio Tordera (localizado na Bacia do Rio Tordera, Zona da Catalunha/Espanha com área aproximada de 894 km²) . Observamos os rios localmente citados acima e façamos um ensaio refletivo. O que esses rios geograficamente distribuídos possuem em comum? Será que passaram pelos mesmos processos metabólicos de apropriação? Quais marcas podem ser classificadas pela geomorfologia ambiental como naturais ou antropicas? Qual o enquadramento de suas águas? Qual percepção os moradores ribeirinhos possuem sobre eles? Sua vazão é suficiente para o uso e ocupação socioeconômica de seus moradores? Há, algum tipo de conflito para ter direito ao acesso â eles? Que tipo de espécies aquáticas existem? Houve alguma alteração nos últimos 10 anos? Como estaria à paisagem desses Rios se não tivesse ocorrido a relação social?

A

B

Figura 01: A – Rio Tordera, trecho localizado em Sant Celoni, Catalunha/Espanha, B – Rio Vermelho, trecho localizado em Alta Floresta do Oeste, Rondônia/Brasil Fonte: Banco de dados de pesquisa de campo. Crédito foto A - Jackson Itikawa; B -Carla Arruda Silveira

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As respostas podem se diferenciar entre alguns rios, como também serem muito semelhante em outros, porém todos eles têm uma história a contar, a de como entraram em contato com os seres humanos e quais relações foram se desenvolvendo ao longo do tempo e possibilita que cada um tenha sua identidade própria. Uma historia que segundo Worster (1988), pode ser analisada em uma das três linhas de investigação: o entendimento da natureza propriamente, a análise do domínio socioeconômico e a apreensão de percepções, valores éticos, leis, mitos e outras estruturas. Um rio é alimentado pelas águas, como nosso corpo é alimentando pelo sangue, para que nosso coração se mantenha vivo, quando algo altera os parâmetros de qualidade desse sangue, logo os médicos comunicam uma doença que precisa ser tratada, pois sua circulação pode comprometer os demais sistemas do corpo. O mesmo se passa com a água de um Rio, quando seus parâmetros físicos, químicos e bacteriológicos são alterados, sendo um forte indicador que ele esta doente e todos que dependem diretamente dele também podem ficar. Porém quem faz o diagnóstico? E quem comunica que esse Rio esta doente? Será que os demais atores de uma bacia hidrográfica, em sua dimensão rural e urbana, conhecem a saúde do seu parceiro de jornada cotidiana? E que fator ou a qual ator espacial é atribuída a culpa? Entre tantas interrogações o grande desafio e descobrir juridicamente quem são os réus. Dessa forma acreditamos que a ägua, se torna a maior testemunha social do uso e ocupação de uma bacia hidrográfica, na qual os seus rios vão guardando as marcas dessa historia ambiental. Se analisarmos interdisciplinariamente, a água foi a base essencial da origem de todas as espécies de seres vivos do planeta Terra, como também sua ausência é apontada, como o fator limitante para que os demais planetas estudados não apresentem características naturais semelhantes ao nosso. Configura-se como um elemento natural de significado paralelo, ao mesmo tempo em que um elemento tão singelo conhecido e com possibilidade de ser tocado por todos indiferente da condição econômica, étnica, opção sexual ou nacionalidade. Por outro lado é o elemento mais importante do meio físico, sendo fundamental à existência dos seres bióticos, fato que o torna um dos bens mais preciosos sobre a ótica da essência da vida. Houve um tempo em que a espécie humana não se diferenciava da natureza e o termo meio ambiente era impensado, tendo em vista que todos faziam parte de uma mesma malha metabólica. Invés de uma migração em busca de trabalho onde as grandes indústrias estavam implantadas ou em processo de serem, ou de oferta de terras para produzirem, a migração era determinada pela escassez de alimento, alteração climática entre outras razões. O fato era que os elementos bióticos e abióticos determinavam as estratégias de sobrevivência de nossa espécie. Neste período por meio de uma metodologia adaptativa ao meio natural como ser natural, a sociedade sobreviveu. O processo migratório torna-se menos frequente, configurando a estrutura de sociedade sedentária atual, em virtude de que com o tempo a espécie humana descobre que esses elementos poderiam ser reorganizados para atender suas necessidades e passam a lançar mão

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de uma metodologia transformadora por meio da técnica. Para Worster (2008:164) ¨La tecnología del agua alteró el paisaje terrestre y acuático, la configuración de los pueblos, la relación entre las ciudades y los países¨. . A Água como motivador de diálogos

O fato é que desde a organização territorial da espécie humana em uma sociedade sedentária, a água é considerada um elemento comum na natureza, impensável como algo que viria a ser um elemento motivador de tantos diálogos no inicio do século XX, e tratado como um grande desafio em pleno século XXI. Entretanto a pressão de um rápido crescimento populacional de 600 para 7 000 milhões de habitantes no planeta no período de 1970 a 2011 (PNUD, 2013) desvinculada de uma proposta de gestão ambientais territorial, desencadeou a urgência de diálogos mundiais em busca da sobrevivência da própria espécie humana.

Século XX

Inúmeros eventos mundiais evidenciaram que as mudanças ambientais existentes até então necessitava de forma urgente entrar em uma pauta de discussão global, reconhecendo que isoladamente seria impossível combatê-los. O primeiro encontro ambiental com repercussão mundial ocorreu em 1972, em Estocolmo, tendo as ¨Mudanças Climáticas¨, como elemento norteador. Cinco anos depois, em 1977 em Mar del Plata, Argentina, ocorre a Conferência das Nações Unidas, sendo a primeira vez na história que a água é a pauta principal do diálogo internacional entre governantes mundiais em busca de uma gestão das águas. No ano de 1987 é organizado pela Comissão Mundial para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento da Organização das Nações Unidas (ONU), a sequencia às discussões sobre o uso eficiente dos recursos hídricos, ressaltando seu múltiplo, aproveitamento em diversos setores da sociedade. O documento gerado nesse evento ficou conhecido como Informe Brundtland, constituiu a primeira tentativa de eliminar a dualidade entre desenvolvimento e sustentabilidade, criando o plano Nosso Futuro em Comum (Boada e Sauri, 2002). Em 1992 ocorre a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento Humano, no Rio de Janeiro – Brasil, que passou a ser conhecida como Rio-92, paralelo a Cúpula da Terra 92. Por meio de intensos diálogos entre todos os setores da sociedade e olhares múltiplos nasce um instrumento de gestão mundial, a Agenda 21 Global, composta de 40 capítulos, dos quais alguns se faz necessário evidenciar. O Capitulo 18, que dispõe sobre a utilização e proteção dos recursos hídricos evidenciando que:

A água é necessária em todos os aspectos da vida. O objetivo geral é assegurar que se mantenha uma oferta adequada de água de boa qualidade para toda a

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população do planeta, ao mesmo tempo em que se preserve as funções hidrológicas, biológicas e químicas dos ecossistemas, adaptando as atividades humanas aos limites da capacidade da natureza e combatendo vetores de moléstias relacionadas com a água. Tecnologias inovadoras, inclusive o aperfeiçoamento de tecnologias nativas, são necessárias para aproveitar plenamente os recursos hídricos limitados e protegê-los da poluição (MMA, Agenda 21).

E os capítulos 34 e 35 voltados ao reconhecimento do relevante papel da ciência e da tecnologia como fatores fundamentais para o processo de desenvolvimento sustentável (Philippi, 2000). Pode-se se afirmar que a Rio-92, foi um grande divisor de águas do dialogo ambiental envolvendo todos os setores da sociedade, e a partir de então desencadeou uma sequencia de eventos ambientais que objetivaram monitorar o empenho dos pais envolvidos nos acordos da Agenda 21: Rio + 5 (Nova Yorque, Estados Unidos), Rio + 10 (Joanesburgo, África do Sul), Rio + 15 ou COP 15 (Copenhague, Dinamarca) até chegar à Rio + 20 que ocorre novamente no Rio de Janeiro. O ano de 1996, torna mundialmente a água como elemento de Gestão e diálogo permanente através da criação do Conselho Mundial da Água (WWC), objetivando promover a consciência sobre água, criar compromisso político e incentivar ações em todos os níveis da sociedade. Nesse mesmo período o governo de Marrocos co-organizaram o primeiro Fórum Mundial da Água. Merece destaque o ano de 1997, que foi marcado por dois momentos muito importante: o primeiro em escala mundial, em Kyoto, Japão, em que se assina o protoco internacional com compromissos mais rígidos para a redução da emissão dos gases que agravam o efeito estufa, considerados, de acordo com a maioria das investigações científicas, como causa antropogênicas do aquecimento global. Em segundo o Brasil lança a seu primeiro instrumento jurídico em nível nacional voltado a urgência da implantação de uma gestão das águas integrada entre todos os setores à Lei 9.433/97 e à implantação da Agencia Nacional das Águas (ANA). O elemento natural água passa a receber uma nova denominação social, política e econômica, passando a ser conhecido como recurso hídrico, e ganha na legislação brasileira aportes para a mitigação de seus impactos.

Século XXI

A água torna-se tema norteador de diálogos mundiais por meio do Fórum Mundial da Água, que é realizado a cada três anos. Esse evento vem se destacando por meio de parcerias mundiais que vem se ampliando desde 1996. Em 2000, foi a vez de Haia nos Países Baixos, seguido de Kyoto no Japão em 2003, Cidade do México em 2006, Istambul na Turquia em 2009, em 2012, cidade de Marselha e o governo da França. O próximo evento esta programado para, a ser realizado em 2015, na Coréia do Sul.

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A Organização das Nações Unidas (ONU) para reforçar ainda mais uma ação global para atender às metas dos Desafios do Milênio (ODM) relacionadas à água, foi proclamado a década da água de 2005 à 2015. Tendo sua vigência em 22 de março de 2005, no qual a partir de então passou anualmente a se comemorar o dia mundial da água. Em 2009, a ONU lança uma agencia direcionada para a temática, intitulada

“ONU Água” e juntamente com suas 26 agências,

passaram a estabelecer parcerias com setores governamentais e não governamentais para identificar e analisar a cada três anos, dados e tendências que afetam os recursos mundiais de água doce. Em 2012, as atividades desenvolvidas pelo Grupo Experimental de Pesquisa Diálogo Hídrico Multidisciplinar, que tem entre suas atuações o I e II Simpósio de Recursos Hídricos em busca de instrumentalizar a população para o diálogo hídrico, de forma a integrar todos os atores no processo de articulação de Gestão das Águas em pequenas bacias hidrográficas no Estado de Rondônia,

ganha dimensão por meio do convite do Fórum Nacional da Sociedade Civil em

Comitês de Bacia Hidrográfica (FONASCH), a fim de socializar a experiência durante o Fórum Amazônia Sustentável, que ocorreu no observatório da Gávea durante a Rio +20. E durante a Cúpula da Terra. Ambos eventos fazem parte de um conjunto de espaços de diálogos proposto durante a Rio + 20. Em 2013, o Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientifico e Tecnológico(CNPq) que objetiva contribuir com a disseminação de informações sobre ciência, tecnologia e inovação no Brasil, elege para o Premio Jovem Cientista, o tema "Água: desafios da sociedade". E no mês de outubro de 2014, ocorrerá em Cáceres, Espanha, o ¨CONGRESO INTERNACIONAL: GESTIÓN HÍDRICA Y PLANIFICACIÓN ESTRATÉGICA DEL TERRITORIO¨, onde participarão da área de vários países, sendo o evento patrocinado pelo Ministerio de Ciencia e Innovación de Espanha, Governo de Extremadura e a Liga Mundial de Advogados Ambientalistas.

Contando

com

colaborações

acadêmicas

das

Universidade

de

Extremadura, Universidade Nacional Autónoma de México, da Universidade Paulo Freire de Nicaragua e da Universidade Belgrano de Argentina, entre outras. A cada ano torna-se cada vez maior o número de eventos que buscam proporcionar o diálogo direcionado à água, em escalas locais e regionais, organizados por atores representantes de todos os setores da sociedade, de forma isolada ou integrada, buscando nessa metodologia a possibilidade de ampliar alternativas participativas para a problemática instaurada. Seria impossível apresentar aqui todos eles.

Aproximação da escala espacial de diálogo: Rondônia/Brasil

Quando o conflito pelo acesso e uso da água se instala no mundo ou no restante do país, se voltam os olhares para a Bacia Amazônica, e ecoam-se gritos de “Precisamos proteger a Amazônia, lá estão as reservas de água doce”, porém a trajetória de eventos mencionados

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desenvolvido entre os séculos XX e XXI, não foram suficiente para que o maior patrimônio de água doce do mundo se mantivesse ausente de impactos ambientais. A percepção de uma região rica quantitativamente em recursos hídricos desvinculou as consequências quando um rio torna-se qualitativamente comprometido, ele se torna doente. Nesse sentido buscando aproximar a escala de análise para nossa área de investigação doutoral, e dessa forma ter maior propriedade das informações aqui apresentadas, delimitamos o estado de Rondônia como diálogo local. Rondônia com seus 52 municípios, esta inserido dentro da bacia hidrográfica Amazônica, em uma região de intensa pressão econômica, pelo avanço da soja e da agropecuária, e recentemente um novo ciclo econômico, o de geração de energia hidrelétrica por motivação por uma riqueza hidrográfica distribuídos em 238 mil e 400 km². Através da lei complementar do Estado de Rondônia Lei 255/2002, o estado ganha sua legislação das águas, momento em que foi divida em sete bacias hidrográficas sendo elas: Bacia do Rio Guaporé, Bacia do Rio Mamoré, Bacia do Rio Abuná, Bacia do Rio Madeira, Bacia do Rio Machado e Bacia do Rio Roosevelt (figura 2). Uma riqueza hídrica de afluentes que alimentou por muito tempo a percepção de quantidade hídrica, fato que não motivou que os comitês de Bacia Hidrográfica fossem implantados mesmo diante da presença da Legislação Hídrica Estadual desde 2002. Dessa forma até meados de 2012, não houve processo de criação dos comitês. Infelizmente o habito de agir ambientalmente apenas para remediar e não prevenir torna-se uma das grandes falhas das políticas territoriais e somente quando o caos se implanta, as leis saem das gavetas e todos correm para proteger as águas, os solos, o ar. O Estado de Rondônia não se diferenciou desse cenário, as várias influências culturais seja na cultura alimentar, na percepção econômica de espaço pelos povos da/na floresta desvinculada de um planejamento integrado, vem resultando em um índice de transformação do espaço natural, tendo a supressão da vegetal natural seu principal indicador de impacto (Caramello, Marçal & Lima, 2011)

Figura 01 - Bacia do rio Machado ou Ji-Paraná Fonte: SIPAM, material de palestra de formação 2010 .

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Um cenário caótico vem se implantando paralela a suposta teoria da busca para um desenvolvimento sustentável mundial. Na hora da decisão final, o progresso e a urgência do desenvolvimento falam mais alto. Um dos fatores que podem confirmar essa afirmativa encontramos nos estudos desenvolvidos pelo Laboratório de Pesquisa de Geografia e Planejamento Ambiental, da Universidade Federal de Rondônia, que desde 2011, apresentava uma reflexão a respeito de dois grandes empreendimentos no Rio Madeiras, financiado pelo Governo Federal, a construção das Usinas Hidrelétricas de Jirau e Santo Antonio, e entre os muitos impactos evidenciava que uma das áreas a serem alagadas pelos empreendimentos seria a comunidade de Mutum-Paraná, bem como a emergência de uma nova reestruturação na geografia local pela construção das hidrelétricas no Rio Madeira (Cavalcante, Nunes, Silva & Lobato 2011). As considerações cientificas apresentadas por Cavalcante et al (2011), torna-se lamentavelmente, confirmadas no inicio de 2014, quando ocorreu uma das maiores cheias do Estado de Rondônia, alagando quase por completo o Município Mutum-Parana, citado no relatório de Cavalcante et al. Chegando a outros municípios distribuídos em todo percurso do Rio Madeira e também a Bolívia, pais fronteiriço. Se as usinas foram responsáveis pela alteração da adaptação do Rio Madeiras as enchentes de 2012, é um diálogo que esta em processo de discussão por vários pesquisadores. Porém os efeitos são inquestionáveis e vivenciados pela população local que acaba ficando a margem dos diálogos técnicos científicos, uma das falhas para que uma gestão de integração de todos os setores da sociedade ocorram. O cartão de visita do Estado de Rondônia, a estrada de Ferro Madeira Mamoré, considerada como patrimônio mundial pela UNESCO, e localizada a jusante das hidrelétricas citadas, tornaram-se fonte de diálogos jornalísticos noticiados por toda a rede de jornal local e nacional.

Figura 3: Enchentes no Rio Madeira, em fevereiro de 2014, Porto Velho, Rondônia/Brasil. Fonte: Registro disponibilizado pelo fotografo Benedictos

Realidades como essa se torna um exemplo da relevância de a implantação de Gestão de Recursos Hídricos por meio da Lei 9433/97, adaptada pela Lei Estadual 255/2002. Frente, a esse desafio, o Estado de Rondônia, por meio do Conselho de Recursos Hídricos aprovou em fevereiro de 2014, a autorização legal para eleições e implantação de comitês de bacias hidrográficas. Entretanto, tornar a lei um instrumento de intervenção espacial, não depende apenas da existência

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da mesma, mais, também o quanto cada ator de bacia hidrográfica se compromete a dialogar com os demais setores, reconhecendo a relevância de cada um em uma Bacia Hidrográfica. Não haverá gestão dos recursos hídricos de fato se as representatividades amazônicas não estiverem capacitadas com a maior arma em busca do desenvolvimento sustentável o conhecimento, para que a presença de conflitos pelo direito a água possa ser mitigado através da co-participação de cada ator local.

Ações atuais desenvolvidas em busca do diálogo hídrico em Rondônia: passos significativos

Direcionamos nosso diálogo para as percepções apresentadas por diversos setores da sociedade que diante do desafio vivenciado, sobre a fragilidade do sistema hídrico do Estado de Rondônia, vem estabelecendo sua contribuição. a)

Sistema de Proteção da Amazônia (SIPAM) – PROJETO PROBACIAS (Setor Público Federal): Após o diagnostico do comprometimento de grande parte dos mananciais voltados ao abastecimento urbano do Estado de Rondônia, se implantouesta iniciativa. Contando com o apoio e comprometimento dos órgãos parceiros, o objetivo deste projeto é desenvolver instrumentos, metodologias e estratégias para viabilizar um programa de restauração de bacias hidrográficas enfatizando as matas ciliares de nascentes, mananciais e o uso racional dos recursos hídricos.

b) Secretaria de Meio Ambiente e Agricultura de Jaru – Projeto Recuperação de Mata Ciliar: Envolvendo e capacitando os produtores rurais, investiu na recuperação de matas ciliares em parceria com o SIPAM c) Mobilização da Sociedade Civil Organizada e Usuários da Bacia do Rio Branco: Estratégias de mobilização em prol da formação de comitês de Bacia Hidrográfica na região Centro-Sul de Rondônia, iniciativa de pós-graduandos da turma de Perícia e Auditoria Ambiental da Faculdade de Rolim de Moura (FAROL), formando o Grupo Experimental

de Pesquisa Diálogo Hídrico Multidisciplinar. Reuniões em busca de

esclarecimentos sobre as estratégias de mediação de conflitos pelo acesso a áGUA. Revindicação por investimento em projetos de mitigação dos problemas ambientais na Bacia do Rio Branco, problemas envolvendo o destino inadequado do lixo, a falta de informação sobre as reais responsabilidades de impacto gerado pelas PCHs locais, alto índice de desmatamento e acessibilidade para os que ficam ilhados nos períodos de alta estiagem, fazem parte da articulação desse grupo, composto por Lideranças indígenas, produtores rurais, moradores urbanos, quilombolas, universidade e Ministério Público. d) Programa de Educação Ambiental na Bacia do Rio Branco – RO: Projeto Piloto Setor Energético: O presente programa é uma iniciativa do setor energético privado que surgiu da necessidade de investigar as vantagens e desafios para o empreendedor do setor

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elétrico na implantação de programas de responsabilidade socioambiental no interior do Estado de Rondônia. Trata-se de uma experiência vivida na implantação de ações desenvolvidas no Programa de Educação Ambiental “PRESERVAR E CONSERVAR É DEVER DE TODOS”, desenvolvido na região de Alta Floresta d’Oeste, pela HIDROLUZ Centrais Elétricas. Tem como objetivo demonstrar a importância da participação da iniciativa privada, atuando como apoio para o fortalecimento da educação no âmbito regional e, de que forma o vínculo entre o setor público e o privado podem contribuir na formação socioambiental de alunos do ensino fundamental, médio e superior. Demonstra também os benefícios para o empreendedor que adquire uma postura de parceria e envolvimento com a comunidade onde esta inserida. A formação do cidadão não é de responsabilidade única do estado, toda a sociedade deve estar inserida neste processo, a prática da responsabilidade social voltada para a sensibilização para a conscientização dos jovens sobre a importância da preservação e conservação ambiental é fundamental para a melhoria da qualidade de vida local. A inserção da iniciativa privada neste processo contribui para fortalecer e disponibilizar o suporte necessário para o desenvolvimento das ações pedagógicas e práticas que despertam nos alunos uma visão diferenciada neste processo.

A contribuição teórica e metodológica da Espanha na escala local de estudo.

O que torna uma universidade referência internacional e possibilita parcerias entre os grupos/laboratórios de pesquisa Geografia e Planejamento Ambiental (LAGEOPLAM-UNIR, Rondônia, Brasil), Grupo de Estudos Ambientais do Norte Fluminense (GENORTE/LAGESOLOSUFRJ, Rio de Janeiro, Brasil), Grupo de Estudos Água, Território e Sustentabilidade (GRATSUAB, BellaTerra, Espanha), grupo de pesquisa

“Recerca en Àrees de Muntanya i Paisatge

(GRAMP-UAB, Espanha)”, juntamente com o Grupo Experimental de Pesquisa Diálogo Hídrico Multidisciplinar (Zona da Mata, Rondônia, Brasil)? A resposta consiste em buscar compreender as lacunas presentes no diálogo hídrico da esfera local ao global, e que possa ao mesmo tempo contribuir para que esse diálogo se torne um instrumento de políticas públicas durante o ensaio do que seria de fato a Gestão Sustentável das Águas, no espaço Amazônico. Um desafio urgente, porém, não inovador.

Philippi Jr (2000), com uma experiência

acumulada, já o reafirmava no inicio do século XXI, evidenciado que era necessário analisar a dinâmica ambiental como uma realidade sistêmica aberta. E, para dar conta da complexidade que envolve o uso e ocupação das bacias hidrográficas e seus efeitos na qualidade e quantidade das águas, era essencial uma interação de pesquisa interdisciplinar. “.... o maior obstáculo para o desenvolvimento da ciência e da tecnologia seria o aprendizado de uma abordagem global de um dado problema ambiental,

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envolvendo a multidisciplinaridade e a interdisciplinaridade, o que tem como implicação a aproximação, o diálogo e a fusão das diferentes disciplinas. Na verdade, mesmo existindo experiências anteriores em trabalhos interdisciplinares, ficou patente ainda uma significativa dificuldade para se atuar nesse sentido: não há uma receita pronta para o exercício dessa interdisciplinaridade” (Philippi, 2000, p. 13).

O fato é que o passado torna-se hoje o nosso maior professor, no sentido que precisamos compreende-lo, para que possamos fazer a lição de casa em busca de um ambiente equilibrado. E se esse professor, nos, apresenta os ambientes naturais e transformado como objeto de estudo, torna-se também um convite a analisar a base teórica da historia ambiental como uma lupa para que possamos compreender os processos que desencadearam os cenários múltiplos em diferentes escalas de interesse de cada equipe de investigação. A ideia de uma história ambiental começou a surgir na década de 1970, à medida que se sucediam conferências sobre a crise global e cresciam os movimentos ambientalistas entre os cidadãos de vários países. Em outras palavras, ela nasceu numa época de reavaliação e reforma cultural, em escala mundial (Worster, 1988:250). A água, neste período é percebida pelos historiadores como uma protagonista da nova fase que se inicia. A través de milagrosas tecnologías nuevas, el agua se convirtió en un recurso abundante y democrático. El agua fue obligada a movilizar las ruedas de la industria y a obtener enormes ganancias al hacer textiles. La tecnología del agua alteró el paisaje terrestre y acuático, la configuración de los pueblos, la relación entre las ciudades y los países (Worster, 1988:164)

Neste mesmo viés, Molina e Toledo (2011) apontam que “...La misión de hombren moderno consitía en acelerar el mecanismos de la evolución serviéndose de la propria naturaleza para conseguir el máximo bienestar. El progresso se materializava, pois, no logro da abundancia material mediante a utilización de la ciência y tecnologia” (2011:41). Estas forma de organização espacial vem construindo a cada dia novas cicatrizes, e se queremos contribuir com novas reflexões não podemos continuar, como diz o ator supracitado “....no persigue, como pretendían las vijas historiografías positivistas y neopositivista, buscar la sino producir un conocimiento de calidade, esto es, un defininido por la utitilidad, social...” ( Molina e Toledo, 2011:46). Compreender os processos que desencadearam a historia do ambiente e como essas informações podem ser base de políticas públicas, tanto nem níveis locais quanto globais. Além disso, há a necessidade de envolver a percepção de que todos estamos inseridos em um sistema biótico e que cada local tem sua identidade, porém em tempos de mudanças globais, onde a cultura e a economia estão interligados precisamos aguçar a holística dos fatores desencadeados das mudanças em um ensaio de escalas (David e Sauri, 2001). Neste contexto, analisar a sociedade e sua relação com os elementos naturais é um convite a compreender por meio da historia ambiental os processos metabólicos que aproximam e

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distância ambos (David e Sauri, 2001; Molina e Toledo, 2011). Aproximando essa reflexão ao diálogo proposto no presente artigo, perceberemos que a água é elemento essencial não apenas para sobrevivência biótica, mas para o desenvolvimento econômico que compõem mudanças constante. No crescente cenário de preocupação de interação entre a sociedade e o meio físico, pesquisadores Espanhóis, especificamente na região da Catalunha, fazem com que as bacias hidrográficas passam a ser alvos de projetos de pesquisa multidisciplinar, tendo como base a historia ambiental, por reconhecer que não somente a espécie humana mais também o ambiente natural. Isto tem muito a nos dizer, sobre como se sente e que cicatrizes guardam de acontecimentos em tempos remotos milenares como nas eras glaciais ou no tempo atual por meio dos ciclos econômicos, que configuram a paisagem que hoje visualizamos na Catalunha. Os estudos vem apontando que a natureza sozinha é dinâmica, entretanto a ação humana configura de uma forma extremamente acelerada a paisagem (Guerra e Marçal, 2006). Evidências identificadas nas obras Naturaleza Transformada, organizada por Molina e Alier (2001), Els Sistemes Socioecolòcs de la conca de la Tordera, organizada por Boada, Mayo & Maneja (2008) contendo estudos desenvolvidos por pesquisadores intregados ao Instituició Catalana d’História Natural e na obra Cambio Globa, escrita por Boada e Saurí (2002), dotadas de reflexões teóricas sobre as raízes do que não esta inserida somente nos diálogos de mudança climática, mais no conceito que o planeta terra é um sistema ambientalmente integrado.

Palavras de encerramento

A história de um rio passa a ser a nossa história. Há uma relação de interdependência da sobrevivência de ambos. Os diálogos estabelecidos em todos os âmbitos mencionados, o focam como um elemento, um recurso. Mas o Rio ator de uma bacia hidrográfica, que precisa ser ouvido e também garantido seu direito ao uso múltiplo das águas, não é mencionado. O resgate da compreensão de como esse rio e a historia humana se separam, torna uma pergunta motivadora a utilizar a base teórica da historia ambiental. Vários lugares do mundo a utilizam para contar os processos que transformaram a paisagem, entre esses lugares optamos pela experiência que vem sendo desenvolvida na Espanha, devido a sua utilização fazer parte de uma equipe multidisciplinar e interdisciplinar, onde o olhar do geógrafo se faz presente. Nesse breve diálogo estabelecido, como um relato de pensamento e não almejou uma discussão científica, porque o empírico necessita ter espaço para que os instrumentos teóricos, tecnológicos e científicos possam criar uma teia de interação e colaborar com os mutuos diálogos.

Referencias bibliográficas

BOADA, M. & SAURI, D. El Cambio Global. Editora Rubens, Barcelona 2002.

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O QUE É O ECONÔMICO? A PERSPECTIVA DA ECONOMIA SOLIDÁRIA E DA ECONOMIA FEMINISTA Luciene Rodrigues18 Depto. de Economia/PPGDS / UNIMONTES [email protected] Resumo A definição do campo “econômico” comporta uma dimensão formal e outra substantiva, esta última quase sempre esquecida pelo mainstream econômico. A noção dominante de economia considera apenas a dimensão formal, reconhece como atividade econômica somente a produção de bens e serviços com valor de troca. Polanyi oferece elementos para recuperar a dimensão substantiva, mostrando a pluralidade do comportamento econômico e que a finalidade última da atividade econômica é a satisfação das necessidades. Neste sentido, a presente comunicação procura discutir o processo de autonomização da esfera econômica assimilada ao mercado e apresenta algumas ferramentas analíticas para a desconstrução do conceito dominante a partir da noção de Economia Solidária. Mostra-se como o conceito de Economia Solidária recupera a dimensão substantiva e aponta, ainda, para a proximidade entre o conceito de economia solidária e a abordagem feminista da economia. Palavras chaves: economia solidária; mudança social; economia feminista. Abstract What constitutes the economic field comprises a formal dimension and other substantive, the last one is forgotten by the economic mainstream. The dominant notion of economics considers only the formal dimension, as economic activity recognizes only the production of goods and services with exchange value. Polanyi provides elements to retrieve the substantive dimension, showing the diversity of economic behavior and that the purpose of economic activity is the satisfaction of needs. In this regard, this communication aims to discuss the process of empowerment of the economic sphere assimilated to the market and presents some analytical tools for the deconstruction of the dominant concept from the notion of solidarity economy. It is shown how the concept of solidarity economy retrieves the substantive dimension. The study also points to the proximity of the concept of solidarity economy and feminist approach to economics. Keywords: solidarity economy; social change; feminist economy.

Introdução

A Economia compreende o estudo do conjunto de atividades de produção de bens e serviços e sua distribuição. Produção e distribuição precisam de colaboração entre pessoas, assim como a política, a cultura, a economia é uma atividade social. A definição do que é economia comporta duas dimensões, sendo uma formal (a relação entre meios e fins) e outra substantiva, relacionada às formas de cooperação estabelecidas entre os atores sociais para produzir, circular e distribuir os bens e serviços. A noção dominante de economia considera apenas a dimensão formal, reconhece como atividade econômica somente a produção de bens e serviços com valor de troca. Polanyi (2000) oferece elementos para recuperar a dimensão substantiva, mostrando a pluralidade do comportamento econômico. As abordagens teóricas da economia feminista e a economia solidária são parte deste esforço de concepção de uma economia plural, contribuem para a construção de uma economia mais humana, centrada nas necessidades humanas. Neste sentido, a presente comunicação busca destacar a aproximação entre essas duas concepções de economia, desenvolve a hipótese de que a aborgem da economia solidária do que é o econômico é muito próxima da perspectiva feminista da economia. Isso é feito pela explicitação de valores comuns e 18

Pesquisa apoiada pela Fundação de Apoio à Pesquisa do Estado de Minas Gerais - FAPEMIG

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princípios econômicos convergentes nas duas perspectivas. O texto, organizado em três seções, busca responder à questão: como a noção de economia de paradigmas econômicos emergentes como a perspectiva da economia solidária e a abordagem feminista da economia, colocam em xeque, tensionam, desconstroem o conceito dominante de economia? Na primeira seção, mostra-se que as duas perspectivas buscam em Polanyi a base conceitual para desconstruir a visão dominate de economia. Para Polanyi as sociedades não modernas garantiam os meios materiais para a satisfação das necessidades através de duas formas econômicas básicas a reciprocidade e a redistribuição. Enquanto que na sociedade contemporânea de mercado o objetivo é o acúmulo de ganhos monetários, em outras economias o que se busca é a reprodução material da própria vida. Entende Polanyi que devemos recuperar o significado substantivo de "economia" e tanto a economia solidária quanto a abordagem feminista da economia procuram com seu corpo conceitual fazer isso. Assim, a primeira seção analisa a trajetória histórica de encastramento-desencastramento-reencastramento da economia nas relações sociais de modo a perceber o processo de autonomização da esfera econômica assimilada ao mercado o que, não raro, acaba por gerar confusão entre a noção de economia, associando-a à economia de mercado e à auto-regulação deste. Na segunda seção, apresentam-se algumas ferramentas analíticas para a desconstrução do conceito dominante a partir da noção de Economia Solidária. Mostra-se que a economia possui um hemisfério luminoso e um cinzento e que a noção dominante de economia capta apenas o primeiro hemisfério, aquele que é mensurável e visível e que o conceito de Economia Solidária recupera a dimensão substantiva da economia, toda atividade produtiva voltada para satisfação de necessidades sociais estabelecidas democratimente. A partir de seis critérios de diferenciação, o estudo mostra algumas diferenças entre a economia capitalista, a economia pública e a economia solidária. A terceira seção dedica-se a discutir convergências, pontos de aproximação, valores e princípios partilhados entre as abordagens do que é o econômico da economia solidária e da economia feminista. Por ultimo, são feitas algumas considerações finais.

1. Economia solidária e a noção dominante de economia

No campo teórico, o conceito dominante de economia difere do entendimento da perspectiva da economia solidária com relação ao que é econômico e ao que é atividade econômica. Em um dos manuais de Economia mais difundidos no mundo, Mankiw (2014) define a economia como “o estudo de como a sociedade se organiza para decidir a dinâmica de alocação dos recursos escassos”. Nesta mesma obra, o autor sumariza os principais pressupostos que fundamentam o campo disciplinar da economia em dez princípios. Os quatro primeiros procuram

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tratam do processo pelo qual as pessoas tomam decisões; os três seguintes, como as pessoas interagem; e, os três últimos, como a economia funciona (ver Box 1).

Box 1: Dez princípios econômicos, segundo Mankiw (2014) COMO AS PESSOAS TOMAM DECISÕES Princípio 1 - As pessoas enfrentam tradeoffs Tradeoff é o termo econômico para uma situação de escolha conflitante. Ao conquistar o uso de um recurso escasso, se abre mão de outro. Princípio 2 - O custo de alguma coisa é aquilo de que você desiste para obtê-la (custo de oportunidade) A partir do tradeoff, a tomada de decisões exige a comparação entre os custos e benefícios das possibilidades de ação. Princípio 3 - As pessoas racionais pensam na margem Um tomador de decisões racionais executa uma ação se, e somente se, o benefício marginal ultrapassa o custo marginal. Princípio 4 - As pessoas reagem a incentivos As pessoas respondem a incentivos, a fatores externos que influenciam na tomada de decisão. COMO AS PESSOAS INTERAGEM Principio 5 - O comércio pode ser bom para todos A concorrência é um fator interessante. Princípio 6 - Os mercados são geralmente uma boa maneira de organizar a atividade econômica Perseguindo os próprios interesses pessoais, as pessoas enobrecem e elevam o mercado. Ao perseguir o próprio interesse, frequentemente se atinge o interesse social. Princípio 7 - As vezes os governos podem otimizar os mercados Existem algumas exceções à regra em que os mercados são uma boa maneira de se organizar a atividade econômica. Em alguns casos, pode não haver uma alocação eficiente de recursos, o que é chamado de falha de Mercado. COMO A ECONOMIA FUNCIONA Princípio 8 - O padrão de vida de um país depende da sua capacidade em produzir bens e serviços Princípio 9 - Os preços sobem quando o governo emite moeda demais Princípio 10 - A sociedade enfrenta um tradeoff de curto prazo entre inflação e desemprego

A esses dez princípios de economia estão associados conceitos de escassez, eficiência, indivíduo racional, economia de mercado, assimetrias de mercado, ciclo de negócios, entre outros. A idéia forte de que recursos ou fatores de produção são escassos e que desejos e necessidades humanas são ilimitadas e que sempre se renovam. Assim, a economia moderna apresenta três traços (1) autonomia conferida à esfera econômica assimilada ao mercado, o que gera confusão entre economia e economia mercantil, dos fisiocratas aos neoclássicos; (2) o mercado como autoregulador; a esses dois pontos de Polanyi, Laville (2013) identifica um terceiro, levantado por Marx, Mauss e Weber (3) a identificação da empresa moderna com a empresa capitalista. Um contrapondo a esta compreensão do que é a Economia tem sido colocada pela perspectiva da Economia Solidária, tanto no campo teórico quanto das práticas. Estas tem sido um fenômeno crescente em muitos países desenvolvidos, subdesenvolvidos nos cinco continentes, com diversidade de formas econômicas onde as pessoas se associam para produzir e reproduzir meios de vida com base em relações de reciprocidade e igualdade. Essa práticas têm recebido diferentes denominações: Economia solidária, Economia popular, Economia popular solidária,

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Economia social solidária, Economia social, Economia da dádiva, Sócio-economia solidária, Economia do trabalho, Economia humana, Economia da reciprocidade, Privado social, Setor não lucrativo, Terceiro setor, entre outras. A noção de Economia Solidária tensiona a teoria economica dominante e o individualismo metodológico associado ao apresentar uma perspectiva plural da economia e ao compreender que o agir humano pode ser motivado bela busca do interesse comum, que a finalidade econômica pode ser múltipla e não apenas mercantil; que a atividade econômica inclui toda atividade voltada para a produção de bens e serviços com valor de uso e não apenas com valor de troca. Propõe-se a crítica à estrutura de desejos ou demandas de bens e serviços, a qual gera o imaginário do consumo numa sociedade capitalista, e sim chegar a um acordo relativo às formas de produção e consumo mais adequadas social e ambientalmente. Trata de uma desconstrução de princípios individualistas e privatistas predominantes na maioria das relações econômicas, e de construção de uma cultura pautada na solidariedade e no bem comum. A Economia Solidária surge nos últimos 35 anos, corresponde a práticas novas ou “renovadas”, nas vizinhanças do terreno da Economia Social. Por vezes são termos complementares, por vezes opostos. A Economia solidária não é uma simples continuação a nova denominação para a Economia social, mas antes, uma nova realidade com novas práticas e novas teorizações. É um prolongamento e uma inflexão da teorização da Economia social. Segundo Roque Amaro (2009) uma das originalidades da Economia solidária é de se inscrever iniciativas da sociedade civil num espaço público de sociedades democráticas modernas. Até o século XVII, não havia separação entre economia e moral (Lechart, 2002). Havia uma unidade entre o social, o econômico, o político e o religioso. Segundo Polanyi (2000), a economia estava enraizada no sistema social, sendo impossível separá-la mentalmente de outras atividades societárias. Polanyi destaca que produzir e distribuir bens e serviços envolve troca, mercados, assim como relação social. Para ele, até a modernidade, as atividades econômicas encontravam-se encastradas nas relações sociais. Para Laville (2013), na modernidade democrática, a economia vai apresentar um duplo movimento: o primeiro exprime a tendência ao desencastramento da economia, de uma economia “com” mercado, passa-se cada vez mais a uma economia “de” mercado, uma certa autonomização da atividade econômica, possibilitada em grande parte pelo desenvolvimento da economia monetária, pelo uso intenso do dinheiro na mediação de todas as trocas. Simmel (1987) mostra que o dinheiro tem suas virtudes em termos econômicos: a primeira delas é que ele desvincula o produtor do consumidor e cria uma relação entre possuidor e comprador, o que gera uma impessoalidade, o que faz com que a desigualdade gerada pela relação pessoal deixe de existir. A segunda virtude é que o dinheiro torna tudo intercambiável, permitido que tudo possa ser comprado e trocado basta ter o dinheiro, que é uma forma abstrata que substitui qualquer coisa. Portanto todos os bens podem ser avaliados pelo mesmo fator. A

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terceira é que o dinheiro aproxima o mundo, pois possibilita o contato indireto com diversos lugares do mundo. Segundo Simmel quando o dinheiro serve como mediador entre as relações econômicas, ele liberta, traz independência; mas quando serve de mediador entre as relações sociais, acaba trazendo a elas uma superficialidade, leva a indiferença, corta a relação. Para Laville (2013) o neoliberalismo ativa a tendência ao desencastramento da economia, com a utopia da sociedade de mercado. O segundo movimento exprime a tendência inversa desencastramento, o reencastramento democrático da economia, onde a referência à solidariedade é aspecto fundamental. Dessa maneira, uma primeira chave analítica seria perceber esse movimento de encastramento desencastramento - reencastramento da economia nas relações sociais, ao longo da história, que pode ser mais intenso em determinadas sociedades, mais fraco em outras, e assumir formas diferenciadas nos diferentes espaços e tempos bem como a pluralidade do comportamento econômico como assevera Polanyi (2000), com a atividade econômica voltada não somente para o mercado como também para a redistribuição, reciprocidade e administração doméstica (ver Quad. 1). Antes do século XIX, todos os sistemas econômicos conhecidos tinham lugar no princípio da reciprocidade, da redistribuição, da administração doméstica senão numa combinação dos três. Estes princípios foram institucionalizados sob a idéia de uma organização social que utilizava, entre outros, os modelos da simetria, da centralidade e da auto-suficiência. Os mercados existiam mas estavam diferenciados e limitados a certos espaços na europa ocidental.

Produção e repartição de bens e serviços ↕





Mercado

Redistribuiçã

Reciprocida

o

de

↕ Administração Doméstica

Quadro 1 - Os quatro princípios do comportamento Econômico segundo Polanyi

Até o século XVII, não havia separação entre economia e moral (Lechart, 2002). Havia uma unidade entre o social, o econômico, o político e o religioso. Segundo Polanyi (2000), a economia estava enraizada no sistema social, sendo impossível separá-la mentalmente de outras atividades societárias. A definição de economia tem uma dimensão formal (relação entre fins e meios) e uma relação substantiva (relações entre pessoas e destas com a natureza). A definição neoclássica atém-se ao sentido formal da economia. A ocultação do sentido substantivo da economia resulta na confusão entre a economia e a economia mercantil, ao desencastramento da economia. Na perspectiva da Economia Solidária, produzir, trabalhar e consumir de forma solidária e autogestionária seria, ao mesmo tempo, voltar a um princípio fundamental da relação humana e criar algo novo em relação aos comportamentos e maneiras de pensar hegemônicos. Contra a redução da economia ao mercado, mobilizou-se o princípio da redistribuição e da reciprocidade. A tensão entre desencastramento e encastramento pode ser considerada como

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constitutiva da economia mercantil moderna. O serviço público define-se, pelo fornecimento de bens ou prestação de serviços revestidos de uma dimensão de redistribuição (dos ricos para os pobres, dos ativos para os inativos e assim por diante), cujas regras são estabelecidas por uma autoridade pública submetida ao controle democrático. A noção de solidariedade também constitui uma referência para o estabelecimento de uma regulação democrática da economia.

2. Os hemisférios da atividade Econômica

Segundo Leroux (2013) a atividade econômica é conduzida em dois grandes hemisférios, um cinzento, e outro luminoso (ver Fig. 1). O hemisfério cinzento Leroux chama de Economia informal, uma atividade quantificável mas que foge à medida. O Hemisfério visível, denominado economia oficial (deveria, mas não é necessariamente formal). É somente a esse hemisfério que se pensa quando se fala em economia.

Figura 1: Hemisférios da Economia Fonte: Elaboração própria com base em Leroux (2013)

A Economia tem cinco grandes continentes, sendo dois situados no campo cinzento (Economia Informal) e três no campo luminoso (economia oficial), conforme Fig. 2. A Economia Social e Solidária faz hemisfério luminoso, da economia oficial, podendo também, em alguns casos, estar inserida no campo cinzento, junto com a economia doméstica. No primeiro hemisfério (Informal) tem-se a economia sunterrânea e a economia doméstica. No segundo hemisférico (oficial) tem-se a economia pública, a economia capitalista e a Economia social/solidária.

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Para medir a importância de cada uma na produção de riqueza, a contabilidade nacional usa o valor adicionado (que mede a riqueza criada pela atividade) e o PIB (que mede o total da riqueza produzida pela economia oficial).

Portanto, só entram nas medidas da atividade

econômica, a produção de bens e serviços que possuam correspondente valor de troca, que passam pelo mercado e que são oficiais. Toda produção de bens destinados ao consumo da família, do grupo ou comunidade ou a produção de serviços reprodutivos e de cuidado não pagos, não são consideradas atividades econômicas, além das atividades ilegais, relacionadas ao delito e ao crime. A economia solidária e a perspectiva feminista da economia desenvolvem todo um arcabouço teórico/metodológico de modo a considerar as atividades informais e domésticas como econômicas e para mensuração, consideram aspectos como qualidade de vida, eficiência social, a realização efetiva do potencial das pessoas interligadas por relações de solidariedade, com justiça e paz, entre outros. Entre Estado, comunidade e mercado existem economias pública e privada, empresas e organizações lucrativas e não lucrativas, formais e informais e uma diversidade de comportamentos econômicos na produção de bens e serviços que não podem ser reduzidos a apenas um deles, qual seja, o mercantil (Fig. 3).

Figura 2: Tipos de Economia e Princípios do Comportamento Econômico Fonte: Elaboração própria

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Figura 3: Setores da atividade econômica entre Estado, Comunidade e Mercado Fonte: Nyssens, M. (2014)

Para melhor compreensão das economias e dos comportamentos econômicos, apresentamos a seguir um modelo tipo ideal de modo a identificar características dominantes de cada economia, mesmo sabendo que a realidade é complexa e híbrida. A despeito do fato de que situações concretas contenham elementos de um e de outro tipo, o modelo tipo ideal permite distinguir algumas das propriedades dominantes. Na FIG. 1, os T(i,j,n) referem-se às totalidades; A e B a códigos disjuntivos para cada totalidade. A compreensão geral do fenômeno advém da articulação das várias totalidades.

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Fig 1. Formalização do modelo de análise estrutural Fonte: Hierneaux (2007)

A Fig.4, constitui um tipo ideal das economias capitalista, solidária e pública, diferenciadas caracterizadas a partir dos critérios tipo de propriedade, princípio de comportamento econômico dominante, forma

de gestão dos recursos, forma de poder, finalidade principal da atividade

econômica e modo do agir econômico. A economia capitalista caracteriza-se, neste modelo pelas propriedades: propriedade privada individual, princípio mercantil, heterogestão, plutocracia, atividade voltada para a geração de lucro, para a reprodução e ampliação do capital e comportamento econômico com base na utilidade (homo economicus), nas preferências individuais de consumidores e firmas. A economia pública tem como característica a propriedade coletiva, o princípio da redistribuição, a gestão centralizada, a distribuição segundo o mérito, a obrigação de redistribuição igualitária dos recursos materiais. A economia solidária tem como traços propriedade privada coletiva, princípio reciprocitário, autogestão, democracia, atividades econômicas voltadas para a produção de valor de uso, para a satisfação de necessidades sociais democraticamente determinadas, para a reprodução da vida e do interesse comum, com base no princípio da cooperação, do homo donator.

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Fig. 4 – Representação de concepções de Economia Fonte: Elaboração própria.

Autores latino-americanos como Razeto, Coraggio e Singer nos oferecem pistas importantes à conceituação de Economia Solidária: “o conjunto das iniciativas econômicas associativas nas quais (a) o trabalho, (b) a propriedade de seus meios de operação (de produção, de consumo, de crédito etc.), (c) os resultados econômicos do empreendimento, (d) os conhecimentos acerca de seu funcionamento e (e) o poder de decisão sobre as questões a ele referentes são compartilhados por todos aqueles que dele participam diretamente, buscando-se relações de igualdade e de solidariedade entre seus partícipes. (CRUZ: 2006, p. 69). Cada tipo de economia, traz termos associados a elas, embora na prática, nenhuma delas exista de modo puro como no modelo tipo ideal. Elas podem conjugar um “e” outro elemento, sem se restringir a ser isto “ou” aquilo, isto é, sem as características disjuntivas necessárias elencadas na inteligibilidade do modelo. A economia capitalista traz os termos concorrência, acumulação, eficiência, interesse individual. A economia solidária, por sua vez associa-se aos termos autogestão, solidariedade, sustentabilidade, inclusão, interesse comum, emancipação social, compromisso com a vida, com a natureza, com a justiça social, relações horizontais. Esses princípios da economia solidária são também os princípios norteadores do paradigma feminista da economia.

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3. O paradima feminista da economia e a economia solidária As ciências econômicas foram um dos últimos campos do conhecimento a trazer a categoria gênero para seu corpo analítico embora tenha contemplado questões relacionadas às mulheres com freqüência, ainda que não necessariamente sob uma ótica feminista. A ortodoxia hegemônica resiste em trazer a categoria o gênero para a economia, para a desconstrução cultural de modo a afetar a própria estrutura do conhecimento. A partir dos anos setenta algumas economistas principalmente de origem marxianas e institucionalistas, mais aberta a visões interdisciplinares e à análise de relações sociais de gênero e de desigualdades de poder, colocam ênfase na exploração, nas desigualdades e na tendência sistemática do mercado em gerar hierarquias sociais. O debate sobre trabalho doméstico tinha como foco a natureza deste trabalho, assim como sua função enquanto aparato de reprodução e manutenção da força de trabalho dentro do sistema econômico. O debate enfatizava como o trabalho doméstico não remunerado contribui para reduzir os custos de manutenção e reprodução da força de trabalho e para analisar as relações de gênero implícitas no trabalho doméstico e na divisão de trabalho. A abordagem marxista-feminista também contribuiu para debates sobre assuntos mais sistêmicos – como as relações entre capitalismo e patriarcado. Dentro da literatura sobre desenvolvimento, as feministas elaboraram uma crítica da teoria da modernização, lembrando que tanto a divisão do trabalho baseada em relações de gênero assimétricas quanto as estruturas hierárquicas geradas pelas instituições capitalistas impossibilitavam que o desenvolvimento tivesse o mesmo impacto sobre homens e mulheres (Benería, 2003). Da mesma forma, estudos do mercado de trabalho que tinham como enfoque as questões de classe e gênero contribuíram para trazer a lente de gênero para a análise econômica nas áreas de emprego, migração, mudança demográfica, dinâmica doméstica, mercado informal e crescente participação das mulheres no mercado de trabalho, entre outros temas. Enfim, estes são apenas pequenos exemplos para ilustrar que a perspectiva de gênero na economia contribuiu para mudar a concepção do que é o econômico e para mostrar como a abordagem dominante da teoria econômica não considera as assimetrias entre classes, gênero e raça/etnia, colocando o comportamento econômico como universal independente de ser rico/pobre, homem/mulher, preto/branco. Cumpre destacar alguns princípios comuns às abordagens da economia feminista e da economia solidária relativas à centralidade do trabalho, relações simétricas, tomada de decisão com base na democracia e desenvolvimento da autonomia e emancipação social. Nesse sentido partilham princípios comuns como autogestão, comércio justo, consumo ético, solidariedade e bem comum. A autogestão constitui um valor partilhado pelas duas abordagens, por ser esta um projeto de organização que privilegia a democracia direta. Fruto de grupos libertários, que buscam a emancipação, traz a idéia de organização do trabalho e do processo decisório sem a presença de um centro e com equilíbrio de poder. Trata-se de um esforço de criação de novas práticas e

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vivências coletivas, espaço importante de combate contra a formação de lideranças perenes, concentração de poder, hierarquização das funções, centralização das decisões, alienação dos sujeitos pela separação entre as instâncias decisórias e as de execução. Para as economistas feministas, comportamentos não hierárquicos constitue princípio fundamental, defendem o poder horizontal, o poder “com” os outros e não um poder sobre os outros. Para ambas as perspectivas, as relações horizontais são algo sempre em construção porque os mecanismos de contradição estão sempre presentes, podem tender a hierarquização. Autogestão não é igualdade plena, implica democracia participativa no processo decisório. Outro aspecto em comum entre as duas perspectivas é quanto ao comércio internacional. O comércio internacional tradicional vem se desenvolvendo sob relações de troca com base em um modelo que gera injustiça, desigualdade e marginalidade. O comércio justo, com produtores responsáveis e consumidores éticos, não se configura apenas como uma relação comercial, procura estabelecer um vínculo de cooperação e parceria entre os produtores do Sul e os importadores do Norte. Em sua base, está o trabalho por uma economia justa e solidária. Desenvolve uma “economia da proximidade”, apesar das grandes distâncias geográficas. Outro ponto em comum diz respeito à concepção de consumo como ato econômico, ético e político isto é, o ato de consumo como um exercício de poder. O consumo de produtos cuja produção é feita sob a exploração humana ou depredação da natureza, é também co-responsável pelo efeitos. O ato de compra contribui para que os responsáveis pela opressão econômica e pela agressão ambiental possam converter as mercadorias produzidas daquela forma em capital a ser reinvestido do mesmo modo, reproduzindo práticas socialmente injustas e ecologicamente danosas. O consumo solidário é aquele praticado em função não apenas do bem-viver pessoal, mas também do bem-viver coletivo, do equilíbrio dos ecossistemas. A solidariedade e a cooperação são valores partilhados pelas duas perspectivas. A ação coletiva com o intuito de partilhar o trabalho necessário para a produção da vida social, de grupos, instituições e/ou países atuam de forma combinada para atingir objetivos comuns ou afins. Devem haver ações que não procedam somente do interesse material calculado ou de uma obrigação, mas de uma lógica da aliança e de certa gratuidade. Nesse ponto, existem controvérsias entre economistas feministas com relação ao papel do trabalho não pago: dádiva ou exploração? Todo um conjunto de bens e serviços circulam no mundo da dádiva. (Godbout e Caillé, 1992) mostram que a característica da dádiva moderna é o fato de ela se tornar também dádiva aos estranhos. Não é na racionalidade individual que se deve buscar a chave das ações sociais, mas nas redes e na confiança que liga e une os seus membros. A centralidade no trabalho, base da economia solidária e da perspectiva feminista contrapõe-se à economia do capital, na qual o conjunto da economia é visto por um único princípio de mercado, do qual participam indivíduos utilitaristas e calculistas. Nele, a capacidade de competir e ganhar dá acesso desde a riqueza, até o potencial de autodesenvolvimento, e sua orientação geral baliza-se conforme a lógica da acumulação de capital. Os trabalhadores não são

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sujeitos, mas objetos, são “recursos humanos”, aos quais se acrescentaram as noções de “capital humano”, “capital social”. A economia solidária e a a perspectiva feminista da economia buscam a construção consciente de outra economia, cuja base são certos valores como a justiça social, a solidariedade e o respeito à natureza. A economia moral busca a socialização da riqueza, privilegiando as necessidades sociais e não o lucro, o valor de uso e não o valor de troca, a construção de espaços públicos de proximidade, em que a eficiência compreenda a materialização de benefícios sociais e não meramente monetários e que a eficácia seja avaliada com relação à satisfação de necessidades e a objetivos materiais, socioculturais e ético-morais dos indivíduos e da coletividade, imediatos ou de longo prazo. Por fim, outro aspecto importante nas duas perspectivas é a autonomia e a emancipação social. Para Catani (2009) a emancipação social vincula-se ao conceito de autonomia. Uma comunidade política é emancipada, é livre, quando suas leis não são impostas por processos repressivos, tutelares ou paternalísticos; é autônoma quando não obedece a regramentos subjetivos, adventícios ou arbitrários; é, verdadeiramente, emancipada, quando a lei maior é o bem comum, objetivo e universalizador. Considerações finais

Por associar a atividade econômica direta e indiretamente com o mercado, a análise econômica tinha a tendência de tornar invisível uma grande parte do trabalho feito com base no princípio reciprocidade e administração doméstica, especialmente por mulheres. Uma ampla variedade de atividades não remuneradas que produziam bens e serviços para o consumo intrafamiliar, entretanto, simplesmente não era consideradas “trabalho” em termos econômicos. Além da produção doméstica, figurava entre as atividades excluídas o trabalho voluntário em instituições e comunidades e atividades agrícolas para autoconsumo. Como uma grande proporção do trabalho de mulheres se dá nessas atividades, o trabalho feminino é subestimado em estatísticas, permanecendo economicamente invisível e toda a economia a ele relacionada. Essa realidade tem mudado graças à novos paradimas emergentes como a economia feminista e a economia solidária nos círculos acadêmicos, o que tem contribuído para uma releitura da economia e para a visibilidade tanto teórica e empirica de outros princípios econômicos. A economia feminista aplicou critérios de mercado à alocação de tempo, ressaltando a importância econômica da produção familiar e do trabalho das mulheres, dando-lhes visibilidade nas estatísticas econômicas. A distinção conceitual entre produção e reprodução – assim como a análise das relações entre as duas – inaugurou novas possibilidades para compreender o papel das mulheres e da reciprocidade na reprodução social. O paradima feminista da economia traz uma literatura crítica com relação ao paradigma econômico existente. Estas concepções (economia solidária e economia feminista) rejeitam a separação entre as dimensões social e econômica, observando conforme Elson e Cagatay (2000)

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o conteúdo social da esfera econômica. A nossa aposta é de que a economia solidária e a economia feminista possam inspirar modelos distintos daquele centrado no capital, que gera exclusão de ampla camada da população. Que economia social/solidária possa se enriquecer com os diálogos com a economia feminista e vice-versa e se fortalecerem para enfrentar o poder do capital e do patriarcalismo. No Brasil percebe-se um esforço teórico nos três campos. Quintela (2003) foi a primeira economista a discutir essa relação entre economia solidária e feminismo e, atualmente, está na pauta das discussões da Rede de Economia e Feminismo. A discussão dos três temas estavam presentes no FSM porém isoladas umas das outras, ou apenas tangenciando umas às outras. Ambas perspectivas, com suas abordagens plural da economia reenvia a uma concepção de mudança num quadro democrático, incluem um desejo de liberdade e de autodeterminação, fazem parte de um esforço de construção de uma economia mais humana, centrada no fornecimento de necessidades humanas e não em noções de escassez, eficiência e maximização do crescimento econômico.

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RIZOMA E COMUNICAÇÃO ANARCAFEMINISTA: DIÁLOGOS (IM)POSSÍVEIS ENTRE NORTE E SUL Gabriela Miranda Marques19 Universidade Federal de Santa Catarina [email protected] Resumo: Se é fato que estamos em um mundo globalizado onde a internet se tornou o modus operandi da comunicação local-global, outros grupos e movimentos há muito, já praticavam uma comunicação descentrada através de cartas em todo mundo. Este é o caso das anarcafeministas, denominação daquelas que se declaram anarquistas feministas e atuam desde pequenos coletivos e organizações em diversos lugares e que são objeto de estudo de minha tese de doutorado. Esta comunicação busca refletir acerca dos diálogos existentes no eixo norte e sul, mais especificamente entre Espanha e Brasil, percebendo como se mantém e se desconstroem colonialismos em uma rede rizomática(Deleuze & Guatarri, 2000) de comunicação. Rede esta, que para além da internet tem como ferramentas os fanzines, grupos musicais e rádios livres como ferramentas múltiplas de troca de informação e construção de redes de afeto e militância. Esta reflexão só é possível desde o lugar de pesquisadora participante que coloca em xeque sua produção acadêmica no deslocamento-diáspora(Hall,2006) tentando perceber como os trânsitos possibilitam o fortalecimento das raízes deste rizoma e como as relações de base colonial entre norte-sul(Costa,2012) fazem com que ainda, mesmo dentro de movimentos de cunho anarquista, se reproduzam dinâmicas que atribuem o conhecimento ao norte global e ao sul o local de produção de estudos de caso(Pelucio,2012). Palavras-chave: colonialismo – comunicação – rizoma - anarcafeminismo Resumen Se de hecho estamos en un mundo globalizado donde la inte se ha tornado el modis operandi de la comunicación local-global, otros colectivos y movimientos hace mucho tiempo ya practicavam una comunicación descentralizada se utilizando de cartas en todo el mundo. Eso incluye las anarcafeministas, denominación de las que se declaram anarquistas feministas, y actuam en pequeños colectivos y organizaciones en distintos lugares y que son objecto de mi tesis de doctorado. Este artículo intenta refexionar acerca de los diálogos existentes en el eixo norte-sul, y mas especificamente entre España y Brasil, percebiendo de que manera se mantienem y deconstruyen colonialismos en una red rizomática(Deleuze & Guatarri, 2000) de comunicación. Esta red, que además de la internet tiene otras heramientas como los fanzines, grupos musicales y radios libres como maneras multiplas de intercambio de informaciones y construción de redes de afecto y militancia. Reflexionar de esta manera solo és posible desde mi lugar como investigadora participante que cuestiona suya producción academica desde su deslocamiento-diáspora(Hall,2006) intentando percebir de que manera los transitos tornam posibles el fortalecimientos de las raíces del rizoma y, como las relaciones de basis colonial entre nortesul(COSTA,2012) hacen com que aún, mismo que sea desde movimientos anarquistas, haya la reproducción de dinamicas que atribuyen el conocimiento al norte global y que el sur sea el lugar de producción de estudios de caso(Pelucio,2012). Palabras clave: colonialismo - Comunicación - rizoma - anarcafeminismo

Entre fronteiras, nas fonteiras Este artigo se insere no contexto de minha tese de doutorado intitulada “Anarcafeministas na cena anarcopunk: práticas contemporâneas de resistência” que surgiu de minha experiência pessoal na cena20 anarcopunk e anarcafeminista21. Tendo compreendido que a experiência 19

Pesquisadora bolsista de doutorado do programas Capes- PDSE. Cena é um termo êmico, utilizado para designar o conjunto de práticas culturais ligadas pela proposta musical punk. Poder-se-ia, ainda, falar em uma cena anarcopunk, metal, straight edge etc. 21 Aqui me refiro a anarcafeminismo pois é a denominação que estas mulheres utilizam hoje, no entanto nem sempre foi assim. Durante muitos anos a grafia foi anarcofeminismo, esta mudança é devido ao centramento dos debates na “guerra de linguagem” que os feminismo autônomos passam a se inserir. Nesta tese apesar de relacionarmos de forma geracional o anarcofeminismo atual com o do início do século 20

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vivenciada por mim nesta cena alterou as formas como me relaciono com o mundo e interfiro nele, a tomei como objeto de estudo nesta pesquisa de doutorado. A cena anarcopunk está inserida na cena punk de forma mais ampla e o que a diferencia é a associação com o anarquismo, na cena brasileira na década de 1990 emerge um movimento feminista conhecido como anarcafeminismo, que perdura até os dias de hoje. O anarcafeminismo do fim do século XX tem uma ligação geracional (MANNHEIM, 1993:193-242) com aquele anarco feminismo no início deste século cujo coletivo mais conhecido é o Mujeres Libres, agrupação feminista de mulheres anarquistas que atuaram antes, durante e depois da guerra civil espanhola. Sendo esta ligação histórica um fio na rede que me trouxe como pesquisadora a Barcelona. O anarcafeminismo tem gradativamente ganhado visibilidade nas últimas décadas, em parte por conta da crise dos feminismos de estado que se organizaram em ONGs após o fim da ditadura militar. Ao conjugar feminismo, punk e anarquismo as mulheres anarcafeministas fazem emergir uma feminista diferente com modelos de feminilidade e atuação próprios ao meio onde estão inseridas. A principal forma de expressão e de circulação de idéias são os fanzines22 e músicas. Foi através destas fontes, utilizadas na pesquisa de doutorado, que observou-se o fluxo de ideias entre Espanha, especialmente Barcelona, e Brasil. Deve-se ter em conta com que os fanzines são acontecimentos únicos e em sua utilização como fontes históricas, alguns aspectos de sua materialidade e do processo envolvido em sua fabricação. Todo o processo de construção, cópia e distribuição do fanzine fica a cargo daquele indivíduo ou coletivo que se responsabiliza por escrevê-lo e construí-lo. Neste sentido, a periodicidade e distribuição deste material é aperiódica e rizomática. Rizoma foi um conceito elaborado por Gilles Deleuze e Felix Guatarri (2000) com base na noção de rizoma da botânica, no entanto os autores ampliam esta noção. O rizoma planta é aquele caule que nasce de forma horizontal, formando muitas linhas, podendo ou não em suas diversas partes emergir à superfície. O rizoma filosófico de Deleuze e Guatarri é, sobretudo, multiplicidade e heterogeneidade, não é o fim nem o início, mas o entremeio, um encontro ou desencontro, emergência ou ruptura. O rizoma será um conceito bastante útil quando vamos observar o punk e sua forma-de-vida e também se aplica como metodologia de análise dos fanzines. Chamamos a distribuição dos fanzines de rizomática,(Ferreira,2003) pois, ao ser distribuído vai inicialmente a um grupo de pessoas previamente conhecido, ou que solicitaram o

não se propõe uma linearidade entre eles e buscamos nos focar naquele anarcofeminismo que se insere na cena anarcopunk. 22 Os fanzines em si não foram criação do punk, estes existiam desde a década de 1930 em um formato diferente que era atrelado à construção da palavra – eram revistas para fãs de ficção científica, publicados por empresas do ramo; neste caso, acabam tendo pouca relação com o ressurgimento dos fanzines na década de 1960, com os movimentos ditos contra-culturais do período. Falavam de bandas e shows que não eram divulgados de outra forma, eram escritos a mão, feitos por litografia, datilografados e reproduzidos em algum as centenas de cópias sendo distribuídos sem custo, ou pelo custo da reprodução.

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envio através de cartas23, formando uma linha de troca horizontal. Ao receberem estes fanzines e se identificarem com eles, os indivíduos realizavam mais cópias e distribuíam em suas localidades, formando uma outra rede não hierárquica de distribuição de conteúdo. Um zine poderia assim desaparecer facilmente quando não multiplicado, e poderia gerar novas conexões e contatos sendo passado de mão em mão. Em certa medida, essas conexões formam um grande rizoma que podemos observar via cartas trocadas, relatos orais e pelos próprios fanzines. Neste último caso isso fica perceptível através de textos publicados e caixas postais divulgadas, esse encontro de subjetividades e escritas-de-si (Foucault,2006) são colocados na tese como os encontros das linhas desse rizoma. Muitos textos propagados via fanzines no Brasil, são também traduções livres de fanzines vindos dos Estados Unidos, Espanha, Portugal e em menor medida de outros países europeus e da América Latina. Estas traduções tornaram-se uma prática em maior escala a partir dos anos 2000 e da proliferação do acesso a internet, o que facilitou o acesso a materiais que antes demorariam mais tempo a chegar no país. Neste mesmo período percebemos a partir de relatos e zines já coletados, uma mudança nos debates no interior do anarcofeminismo no Brasil . Neste período percebemos a entrada de assuntos ligados a teoria queer em textos e traduções no interior da cena. Se consideramos que o zine é uma “escrita de si” (Foucault, 2006, p. 144-162), ou seja, uma escrita que revela para o outro algo de si mesmo e constitui, tanto para quem escreve quanto para quem lê, uma técnica modificadora do eu, então, a entrada de uma nova temática (como o queer) de forma sistemática no que foi publicado na cena, permite-nos pensar de que forma a circularidade deste conhecimento permite a mudança pessoal e da cena como um todo no que se refere a temática do gênero a partir deste período. A maior parte dos “textos queer” traduzidos para o português é feita de forma “faça-você-mesma”24 a partir de textos em espanhol. Assim, temos acesso a zines com obras de autoras como Judith Butler e Beatriz Preciado,25 por exemplo. Sobre os textos não acadêmicos publicados em fanzines, muitos relatos de experiências da cena anarcafeminista de Barcelona tem chegado ao Brasil, destaco “Tijeras para

23

É interessante notar como o constante uso dos Correios, o envio por cartas, foi apenas parcialmente substituído pela internet. Alguns indivíduos ligados ao punk continuam a se comunicar através de cartas mesmo que a prática tenha sido bastante reduzida nos anos 2000 com a proliferação do acesso a internet. 24 Do inglês Do It Yourself – DIY, prática comum e um dos principais motes da cena punk e também anarcofeminista. Tendo o faça-você-mesma como uma estratégia de ação as pessoas tendem a construir aquilo que lhes falta sejam instrumentos musicais, móveis para casa, traduções de textos ou periódicos. Se falta um espaço cultural no bairro, se constroi este espaço coletivamente, portanto na prática o DIY é uma prática de empoderamento pessoal mas também de transformação coletiva. 25 Podemos citar: O pensamento heterossexual, de Monique Wittig, Biolpolítica. Colonialidade e multidões queer de Beatriz Preciado, e Como os corpos se tornam matéria de Judith Butler, cada um destes textos foi traduzido e editado pelo coletivo Hurrah e é repassado em zines que podem ser vendidos até o valor máximo de R$2.(dois reais).

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todas”26(Várias, 2013).

Escrito em 2011, este texto narra a experiência de

enfrentamento ao machismo e seus correlatos na cena libertária de Barcelona. Foi traduzido para o português no mesmo ano, ganhando diversas versões traduzidas coletivamente 27 e tem sido usado como base para ações de enfrentamento à violência em espaços libertários no Brasil (Dados do caderno de campo, 2012). Assim inicialmente o projeto de pesquisa PDSE- Capes buscava perceber estas trocas, os fios de comunicação que ligam Barcelona e Brasil, dentro da perspectiva que haviam trocas e intercâmbios de materiais, bandas e textos de uma forma menos hierarquizada que a produção de conhecimento acadêmica em nossas universidades, desta forma ambos países seriam produtores de conhecimento e trocariam experiencias em uma ideia de local-global, onde se pudesse pensar localmente e agir globalmente. Aqui se faz necessário falar um pouco mais de meu lugar de fala, seguindo o que propôs Donna Haraway (1995), ressalto a importância do posicionar-se como tarefa ética e política para o conhecimento científico. Estou falando desde a diáspora, e isso fez com que eu me repensasse não só como sujeita, mas também o meu lugar de produçao de conhecimento. Foi aqui, na diáspora que eu tive meu direito a fala desautorizado por ser brasileira, que fui reconhecida como imigrante e racializada. Foi na diáspora que eu descobri que sou mestiça, e que pelo lugar de onde eu venho “não devo ter muito com o que colaborar”, um pouco parecida com a experiência relatada por Larissa Pelúcio (2012). Nós, pessoas que por nossa cor e posição academica no Brasil sempre fomos tratadas como brancas e com uma série de privilégios e, ao sair deste lugar, nos deparamos com um mundo construído em uma base colonial. Como afirma Walter Mignolo(2003), o colonialismo, mais que um sistema que atuou no passado, é um sistema ativo e funciona em diversos níveis. Para além do nível econômico e imperialista, podemos falar em uma“colonização do imaginário”, que pode ser representada pela idéia de acreditar que devemos sair de nosso país latino-americano e ir a outros países europeus, ou os da américa do norte, para aprender novas coisas com sujeitos que produzem as teorias que nós vamos aplicar em nossos estudos de caso. Vamos buscar a “verdadeira teoria” a “teoria pura”. Como estudante de doutorado, preocupada com as questões de colonialidade acadêmicas e as políticas de divisão do conhecimento em produtoras/aplicadoras diretamente ligadas a norte-sul, já esperava de certa forma ver reproduzidas as lógicas de eurocentrismo nas universidades de Barcelona. O que foi uma grande novidade foi perceber a reprodução, mesmo que parcial, das divisões políticas eurocentradas e coloniais nos meios ativistas. É importante não perder de vista a dimensão da colonização do imaginário levantada anteriormente. O colonialismo tem bases sólidas e sistemas de reprodução social, através das culturas, das escolas, universidades e mais diversas dimensões da vida, assim não é possível criar a ilusão de que, ao se criticar um sistema como o capitalista, por exemplo, ou o patriarcado, se estaria automaticamente questionando o 26 27

Disponível em http://www.feministas.org/spip.php?article572 Uma delas pode ser acessada em http://www.feministas.org/spip.php?article572

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colonialismo. Infelizmente, este pode funcionar na lógica da esquerda, da direita e do centro, para falar nas grandes matrizes políticas. Para voltar ao objeto deste artigo que são as anarcafeministas e os rizomas criados por estas entre Brasil e Barcelona, havíamos apontado para as políticas de tradução (Niranjana,1992: 47-86) nos grupos brasileiros. Estas traduções englobam a reprodução em português de fanzines e textos de outras línguas, para que este “conhecimento” ou esta forma de fazer feminismos possa servir também de “aprendizado” as anarcafeministas no Brasil . Lembramos que mesmo que possamos observar a produção e a circulação dos fanzines a partir da metáfora do rizoma, devemos pensar que mesmo os rizomas tem lugares onde são mais fortes e grossos, se falamos do rizoma da biologia. Neste sentido as políticas de tradução mais observadas são de grupos centrados em três grandes centros do Brasil: Rio de Janeiro, São Paulo e Brasília, percebemos assim que mesmo dentro de uma dinâmica nacional de distribuição e produção reproduzimos a lógica de centros produtores e centros consumidores. Assim é fundamental pensarmos no lugar de enunciação das teorias, como diria Claudia de Lima Costa: “É no âmbito das teorias feministas, no entanto, que a questão do lugar se torna fundamental, não para avaliar unicamente suas categorias analíticas, mas também –e principalmente – para medir o alcance político das mesmas, isto é, as maneiras como essas intervêm nas estruturas de desigualdade social. Sempre situadas diferentemente nos sistemas de dominação, de privilégio e de exclusão, narramos (e publicamos) a partir de um lugar (tanto em seu sentido literal quanto metafórico, quero dizer, como imaginado, político, mental, etc.). Procurar entender esse lugar em todas suas dimensões nos leva à necessidade de historicizá-lo e de politizá-lo, permitindo, então, uma avaliação mais crítica da construção e institucionalização das diferenças (e das práticas políticas que as articulam).” (Costa, 2003:260)

Seguindo o pensamento de Costa ao pensarmos no lugar de enunciação dos fanzines percebemos lugares de produção e tradução muito centrados no que podemos chamar “nosso norte local”, isto é, centros históricos de produção de conhecimento e conhecidos como centro do Brasil, enquanto as outras localidades podem ser lidas como periferias de produção, mesmo que pensemos em zonas de contato e que o rizoma nos permita visualizar um grande intercambio e zonas cinzentas ainda constatamos a assimetria na linguagem e valoração. E ao observar as traduções de textos vemos principalmente um grande volume de textos norte-americanos e espanholes sendo traduzidos. Mesmo em uma politica de edição não hierárquica e que parte de uma escrita de si, como no caso dos fanzines, podemos perceber como em certa medida o sistema colonialista ainda está em ação em nossas traduções e publicações. Outro nó desde rizoma seria Barcelona, e os diálogos existentes nesta cidade, com movimentos do Brasil. Aqui já partirmos de uma disjunção: buscando redes que ligam um país de dimensões continentais a uma cidade menor que o Rio de Janeiro. Ao buscar fanzines brasileiros em Barcelona me deparei com um vazio material, porém com uma diversidade de questionamentos. Os fanzines do Brasil que localizei estavam em

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coleções particulares, escritos em português. Durante a pesquisa de campo foi possível perceber como a política de traduções em Barcelona prioriza outro norte, os Estados Unidos. É relevante salientar que para além de um diálogo norte-norte as traduções da língua anglófona são as mais realizadas em todo o mundo(Costa,2003), e que historicamente o movimento feminista autônomo e anarcofeminista dos Estados Unidos tem uma elevada quantidade de produções escrita. Em uma dinâmica também colonialista tendemos a valorizar mais aquilo que é escrito do que é oral, e a teoria frente a outras formas de produção cultural. Assim, o baixo, ou inexistente, número de traduções de textos do português, ou a circulação de textos vindos do Brasil me parece bastante significativa. Significativa também, devido ao movimento de pessoas e bandas, ligadas ao anarcafeminismo, ou ao feminismo e anarquismo vindas do Brasil que passam por Barcelona. Logo produções musicais e pessoas circulam de forma mais ampla e os textos escritos, justamente aqueles que são mais valorados em nossa cultura letrada, são pouco difundidos. Isso percebido em uma cena ou grupo que se propõe a questionar sua prática diárias a partir de pressupostos de não-hierarquização e igualdade, que busca um mundo sem fronteiras, no entanto, este pequeno recorrido nos permite perceber como a colonização do imaginário ocorre em um nível tão profundo. Pra não dizer que não falei das flores: dos diálogos possíveis

Se é verdade que nossa cultura tende a valorizar tudo aquilo que é escrito frente a tradição oral, também é verdade que a descolonização tende a passar por uma desconstrução de um certo tipo de cultura. Assim nestes encontros nas fronteiras de contato, em shows, debates, circulando na cidade os corpos, músicas e falas brasileiras criam tensões na cena anarcafeminista. Como diria Walter Mignolo (2003) são aquelas que são colonizadas que devem criar a descolonização, não existe possibilidade que ela venha dos colonizadores. Neste sentido, mesmo que não exista uma política de tradução escrita, existe uma tradução possível na existencia e no contato entre estas duas raízes do rizoma. As anarcofeministas do Brasil e de Barcelona se propõem a realizar uma crítica constante de sua prática, e uma análise teórica de como o patriarcado e o colonialismo funcionam juntos logo desta fronteira gerada pelo encontro surgem novas possibilidades, onde percebemos que o norte tem o que aprender com o sul, e

o sul tem a possibilidade de se colocar no protagonismo

de sua própria história. Se os feminismos historicamente foram questionados em sua pretensão homogeinizadora, criando novas e potentes correntes feministas como ocorreu com as feministas negras e lésbicas, não é nada problemático reconhecer que temos problemas internos e quanto maior o nível de diálogo maior a probabilidade de que consigamos descolonizar ao menos nossas

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relações. Por fim as fronteiras entre norte e sul são penetráveis, mesmo que sejam novedosas e tortuosas é possível adentrá-las e criar algo neste entremeio. Inclusive a própria escrita deste artigo já tem algo a dizer desta interação e questionamento. Se é possível estar aqui em Barcelona, escrever em português e criar questões, mais do que respostas, sobre como as dinâmicas em nossas vidas e movimentos reproduzem de certa forma o colonialismo, logo é possível questionar. E o lugar do questionamento é justamente a fronteira, esta zona cinza onde a criação de algo novo é possível.

Produzir ou reproduzir no cú do mundo?

Ao invés de pensar aqui o porque dos textos brasileiros não são traduzidos em barcelona, proponho uma inversão: porque nós traduzimos e damos tanta importância aqueles relatos e teorias vindos de outra realidade cultural e social lá no Brasil. Como disse Larissa Pelúcio: “Na geografia anatomizada do mundo, nós nos referimos muitas vezes ao nosso lugar de origem como sendo “cu do mundo”, ou a fomos sistematicamente localizando nesses confins periféricos e, de certa forma, acabamos reconhecendo essa geografia como legítima. E se o mundo tem cu é porque tem também uma cabeça. Uma cabeça pensante, que fica acima, ao norte, como convêm às cabeças. Essa metáfora morfológica desenha uma ordem política que assinala onde se produz conhecimento e onde se produz os espaços de experimentação daquelas teorias. Por isso, mesmo admitindo o meu encanto com a literatura produzida nos Estados Unidos e na Europa, como creio ficou patente ao longo deste artigo, penso, enquanto devoro tupinambarmente aqueles textos, é que essa relação ainda é bastante desigual. Que esse contato não resultou até o momento em diálogo, em trocas mais horizontais. Nas palavras de Ramón Grosfoguel, o que temos, ainda, é um monólogo vertical (Grosfoguel, 2006: 40)” (PELUCIO, 2012:413-414)

Como imaginamos esta cabeça pensante no norte produtora de teorias, fazemos uma ligação direta com uma militância feminista mais elaborada, que leva mais tempo, que teria o que nos ensinar. Fato é que devoramos seus textos e relatos pois também damos pouco valor as coisas produzidas por nós. Talvez não seja Beatriz Preciado que deva tomar ayuasca como brinca Pelúcio no fim do seu texto(Pelúcio, 2012), mas que nós mesmas possamos a tomar, e nesta verticalidade do mundo criar novas experiencias a partir de nosso lugar colonizado, para descolonizar nossas vidas. Me parece claro que se entendemos que o mundo tem estruturas coloniais e hierarquizantes, de teorias,e de militancias também, não acredito que somente com a nossa própria produção poderíamos alterar a realidade das coisas, porém, é necessário aprender e pensar também o nosso lugar. “Toda tradução é uma traição” já diz o dito popular nas universidades, temos que levar em conta o contexto onde as produções teóricas nas quais nos embasamos são criadas em um contexto específico e nem sempre são transpostas a nossa realidade cultural. Desde as teorias da

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tradução e neste artigo me baseio nos textos de Claudia de Lima Costa (2003,2012) notamos como a colonização dos saberes nos levam a pensar nossa realidade a partir de um ponto de vista que nem sempre se adequa aquilo que vivemos em realidade. No caso das anarcofeministas tem-se posto em prática no Brasil uma busca por criar desde uma experiencia local algo que se conecte com aquilo que se produz fora do local, pois afinal podemos e devemos dominar as teorias em voga em todos os espaços, mas também há uma efervescência de criação e análise das práticas cotianas que já levam em conta o fato de que as respostas aplicáveis em outros espaços nem sempre são válidas aquelas situações enfrentadas aí. Voltamos ao texto “Tijeras para todas”(Várias, 2013), citado no início deste artigo, que relata vários tipos de enfrentamento a violências de gênero ocorridas em meios libertários. Ao longo de sua tradução e debate em diversos coletivos do Brasil, foi constatada que nem sempre os métodos aplicáveis para resposta e combate a estas violências aplicados em barcelona, seu local de origem, podem ser transpostos e reaplicados na realidade brasileira. Muito trabalho vem sendo feito na tentativa de criar algo desde um ponto de vista descolonial, que as permita responder as violências atentando as formas e limitações locais, utilizando matizes de uma cultura particular que permitirão ir além da reprodução para chegar a produção de estratégias locais que deem conta de anseios e borraduras particulares. Dialogar

Esta comunicação não pretendia realizar nenhuma análise profunda, se não, começar um diálogo localizado na diáspora, pois muitas vezes para perceber seu lugar em uma ordem mundial é necessário ser colocada a margem dela. Se não posso me desfazer do meu privilégio de ser branca e pós graduanda no Brasil, aqui posso experimentar meu deslocamento racial e epistemólogico para pensar novas questões, ligadas a uma prática distinta a qual observo e participo porém não faço parte. Colocar em dúvida nossas posições de sujeito e incomodar com minha presença espaços homogêneos é também uma pratica descolonial na diáspora, e este é um começo de uma tentativa de colocá-la em palavras.

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TENDÊNCIAS E DESAFIOS DA POLÍTICA DE FORMAÇÃO DE DOCENTES UNIVERSITÁRIOS/AS NO CONTEXTO DA TRANSNACIONALIZAÇÃO EDUCATIVA Luciana Leandro da Silva Doutoranda em Educação Universitat Autònoma de Barcelona (UAB) [email protected] Vicente Rodriguez Professor da Faculdade de Educação Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) Resumo O presente trabalho discute alguns dos resultados e reflexões acerca das tendências e desafios da formação de docentes universitários, como recorte da uma pesquisa mais ampla, que se fundamentou na comparação de políticas de formação no âmbito de universidades públicas catalãs e paulistas. Diagnosticou-se que, apesar das especificidades, estas instituições afrontam tendências e desafios similares no campo da formação: uma das tendências é o aparecimento de setores de formação permanente de professores universitários, a raiz das mudanças que estão ocorrendo nos últimos anos nas universidades; outra tendência é o distanciamento entre pesquisa e ensino, cujo abismo foi aprofundado com o advento de políticas neoliberais e com a supervalorização da produtividade acadêmica por parte das avaliações externas e da competitividade imposta pelos rankings. Este fenômeno não contribui a um real desenvolvimento e profissionalização docente, na medida em que sobrecarrega e desmotiva os docentes a participar de processos de formação permanente. Palavras-Chave: Transnacionalização educativa; Sociedade/Economia do Conhecimento; Políticas de formação; Docência universitária Abstract This paper discusses some results and thoughts about the trends and challenges of university teachers’ training as a part of a larger study, which was based on the comparison of training policies within public universities of Catalonia and Sao Paulo. Despite the specificities of these institutions, we found that they confront similar challenges and trends in the field of training: one of this trends is the emergence of sectors and initiatives for the permanent training of university teachers, as result of the changes that are occurring in recent years in universities; another trend is the gap between research and teaching, which was deepened with the advent of neoliberal policies and the overvaluation of academic productivity by external evaluation and competitiveness imposed by the rankings. This phenomenon does not contribute to real development and professionalization of university teachers, because it overwhelms and discourages them to participate in permanent training processes. Keywords: Transnationalization of Education; Knowledge Society/Knowledge Economy; Training Policies; University Teaching

Introdução

A transição para o século XXI caracteriza-se por intensas transformações no sistema econômico mundial, permeado por crises, recessão e incertezas. Entre as transformações mais significativas estão as que afetam o setor produtivo e o papel do Estado, abrindo espaço para a atuação de organismos internacionais que passam a regular as políticas sociais. Esta “nova ordem global” aponta na direção de uma “nova ordem educativa” (Antunes, 2008) marcada pela transnacionalização, processo que acentua as tendências de mercado no campo educativo e coloca às universidades e à formação o desafio de responder às transformações no mundo laboral e favorecer a mobilidade de estudantes e trabalhadores.

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Aumenta assim o dilema entre sociedade e economia do conhecimento, já que às universidades são colocadas novas dinâmicas e prioridades, ressaltando seu papel como organização, baseada em critérios de eficiência, produtividade e burocratização (Chauí, 2001). Tudo isso influencia de modo decisivo o ethos acadêmico e as condições para o exercício da docência universitária. Nossa preocupação com a formação permanente dos professores e professoras universitárias deriva da constatação de que este campo está sendo influenciado pelos processos de reforma educativa de caráter regional e transnacional, muitos dos quais apoiados num paradigma técnico-instrumental que concebe a formação como processo de adaptação e não necessariamente como processo de emancipação e desenvolvimento pessoal e profissional dos docentes. O objetivo principal da pesquisa que embasa este artigo é caracterizar as tendências que influenciam as políticas de formação de docentes universitários, especialmente com relação às diretrizes e recomendações internacionais e regionais dirigidas à educação superior. Este processo fundamentou-se na comparação de políticas de formação no âmbito de seis universidades

públicas

catalãs

e

paulistas28.

A

metodologia

adotada

se

baseia

na

complementaridade entre os enfoques qualitativo e quantitativo, utilizando as seguintes técnicas para a coleta de dados: 

Análise de documentos oficiais de caráter internacional e regional;



Entrevistas com responsáveis e especialistas no campo da formação;



Questionário aos docentes das seis universidades participantes;



Grupos focais com participantes dos projetos de formação.

Todos os instrumentos foram construídos a partir dos objetivos da pesquisa e da definição de alguns eixos estruturais de análise:

28

Em Catalunha: Universitat Autònona de Barcelona, Universitat Politècnica de Barcelona e Universitat Rovira i Virgili. Em São Paulo: Universidade de São Paulo (USP), Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e Universidade Estadual Paulista (UNESP).

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MACRO Transnacional

Discursos

Níveis

Dimensões

Práticas

Institutional MICRO

Figura 1 – Níveis e dimensões da pesquisa

A figura n.1 mostra que foi realizada uma análise que vai do “macro” ao “micro”, isto é, desde os discursos produzidos no nível transnacional - e implicou analisar documentos de caráter internacional e regional publicados nos últimos anos sobre a formação - até as práticas que ocorrem no nível institucional - o que exigiu conhecer as práticas e iniciativas de formação no âmbito das universidades. Além disso, nossas dimensões principais de análise foram as políticas, as práxis da formação e as opiniões dos sujeitos envolvidos na pesquisa.

Transnacionalização educativa e mudanças na educação superior na Europa e América Latina

Desde o final do século XX estão se consolidando intensos movimentos de integração geopolítica e internacionalização, impulsionados pela necessidade de fortalecimento econômico dos países frente às constantes crises do sistema. Nessa “nova” ordem mundial globalizada, as políticas educativas são consideradas um importante meio de regulação, especialmente por parte de agências internacionais como o Banco Mundial, OCDE e UNESCO, que consideram a educação um motor do desenvolvimento econômico e social dos diferentes países. Nesta

pesquisa

a

transnacionalização

educativa

é

entendida

como

fenômeno

intrinsecamente relacionado aos processos de globalização e regionalização, que se referem,

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entre outras coisas, à consolidação de espaços de decisão para além do nível nacional, alterando as dinâmicas de poder e a tomada de decisões no âmbito da política educativa (Dias Sobrinho, 2005). Além disso, trata-se de um termo que se refere aos novos paradigmas que enfrentam as ciências sociais ante a emergência de uma "nova ordem mundial", já que a educação/formação passam a ser assuntos não só de interesse dos Estados, mas também organismos

internacionais

e

entidades

supranacionais,

sendo

consideradas

motor

do

desenvolvimento econômico e social, assumindo características muito próximas do âmbito econômico e empresarial. As mudanças no papel do Estado desencadearam importantes alterações organizativas e estruturais nos sistemas educativos: a lógica do “Estado mínimo” para as políticas sociais e do “Estado máximo” para o capital acabou por intensificar processos de privatização e mercantilização educativa. Merece destaque, no caso brasileiro, o selvagem processo de privatização (85% das matriculas privadas), concentração e internacionalização do capital educacional (concentrado em poucos grupos capitalizados na Bolsa de valores). No caso catalão, onde maior parte das matriculas são públicas, podemos dizer que houve um processo de “privatização por dentro”, pois as universidades públicas adotaram um modelo de gestão baseado na lógica de mercado e repassaram os custos para os usuários, aumentando o valor das taxas estudantis. Neste cenário, as universidades públicas enfrentam alguns dilemas importantes: paralelamente ao aumento das matrículas e às exigências de inovação tecnológica e renovação dos processos de ensino-aprendizagem, houve a diminuição dos recursos públicos para este nível e necessidade de assegurar a qualidade; além disso, estas instituições são chamadas a potenciar o desenvolvimento econômico, a competitividade e a produtividade e, ao mesmo tempo, dar resposta às demandas de democratização, inclusão e responsabilidade social. A recente construção do Espaço Europeu de Ensino Superior (EEES) como projeto intergovernamental e transnacional para promover a competitividade e atração dos sistemas educativos europeus, especialmente com relação aos EUA, também promove um ajuste das universidades européias as novas demandas do sistema capitalista global, fortalecendo a integração econômica e a mobilidade de mão-de-obra qualificada, por meio da convergência e do reconhecimento de títulos. Deve-se ressaltar que esta tendência de regionalização educativa não se limita ao contexto europeu, mas também está influenciando as políticas educacionais em outros continentes. Neste sentido, autores como Azevedo (2008), Verger e Hermo (2010) verificaram uma grande aproximação do EEES às metas estabelecidas pelo Setor Educacional do MERCOSUL (SEM) processo que destaca, entre outras coisas, a necessidade de reconhecimento das qualificações, incentivo à mobilidade dos estudantes e professores e implantação de ações conjuntas na área de formação de professores. Além disso, a construção de políticas educativas

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comuns implica a convergência de orientações didáticas, com a incorporação de novas dinâmicas, estruturas e linguagens, convocando-nos a pensar sobre a influência desses processos no trabalho e na formação dos professores universitários. Autores como Zabalza (2002), Pimenta e Anastasiou (2002), Leite (2008), Almeida (2011) entre outros reconhecem que estes processos de reforma repercutem no desenvolvimento profissional dos docentes universitários e ressaltam a importância de institucionalizar projetos e iniciativas de formação didático-pedagógica, capaz de proporcionar-lhes fundamentos teóricos para sua prática e apoio permanente, especialmente num contexto em que estes profissionais experimentam contraditórias demandas e desafios. Emergência de setores de formação nas universidades catalãs e paulistas

Para além das especificidades e diferenças que marcam cada uma das instituições e regiões pesquisadas, existem também algumas similitudes, como é o caso do surgimento de setores que se encarregam de organizar atividades de formação permanente para os professores universitários. A tabela n.1 mostra os setores e objetivos da formação oferecida pelos mesmos:

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Tabela 1 - Breve panorama sobre os setores de formação de professores universitários U niversidad es S etores de formação e ano de criação

O bjetivos principais

UA

Catalunha URV

B

São Paulo UP

USP

UNE

C

Uni tat d’Innovació Docent en Educació Superior (IDES) 2003

Instituto de Ciencias de la Educación (ICEURV) 1999

Inst ituto de Ciencias de la Educación (ICE-UPC) 1998

Ref lexionar sobre a formação por competência; desenhar disciplinas e sistemas de avaliação; avaliar o papel das metodologias atives no novo marco do EEES; utilizar as TIC como suporte à doc ência; compartilhar experiências do processo de adaptação das titulações ao EEES

Possibil itar aos professores: adquirir conhecimentos, destrezas e atitudes vinculadas às competências docentes; tomar consciência da necessidade de inovação educativa; desenvolver competências e habilidades docentes para promover a mudança; estabelecer espaços de intercambio de experiências docentes; gerar equipes docentes para concretizar projetos de inovação e adaptação ao EEES

Ofe recer formação pedagógica básica, principalment e prática, coerente com o modelo educativo europeu e que permita aos professores desenvolver, melhorar e inovar sua atuação docente; con tribuir ao desenvolvime nto profissional dos professores em todos os âmbitos da sua atividade acadêmica.

UNICAMP

SP Gabin ete de Apoio Pedagógico (GAP) e Comissão de Apoio Pedagógico (CAP) 2004 Const ruir espaços de aperfeiçoament o pedagógico para os docentes da Universidade de São Paulo. Valorizar as atividades relacionadas à Graduação, incentivando e dando apoio aos docentes para que renovem e aprofundem seus conhecimentos no sentido de melhorar a qualidade do ensino ministrado.

Núcle o de Apoio Pedag. (NAP) 2000 e Centro de Estudos sobre a Prática Pedagógica CENEPP 2008 Prom over a reflexão sobre a prática pedagógica e a divulgação de experiências bem sucedidas em sala de aula; possibilitar o aperfeiçoament o contínuo da docência e garantir a manutenção da qualidade do ensino na universidade, ao lado da pesquisa e da extensão.

Espaço de Apoio ao Ensino e Aprendizagem (EA²) 2011

Oferecer ações contínuas que permitam valorizar as aprendizagens e a docência na graduação; promover e divulgar eventos nas áreas de educação, ensino, pedagogia e avaliação do ensino superior; oferecer apoio e serviços que auxiliem docentes no constante aprimoramento de sua atividade de ensino; Oferecer auxílio acadêmicoadministrativo para ações que visem captar recursos e investimentos para inovações e aprimoramento no ensino de graduação.

Em termos comparativos, as universidades catalãs foram as primeiras em desenvolver setores para a formação dos docentes, especialmente através dos Institutos de Ciências da Educação (ICE), antes mais voltados para a formação continuada de professores da educação básica e que, nos últimos anos, vêm se dedicando ao campo da formação docente universitária. Em algumas universidades também foram criados setores voltados especificamente para a docência universitária (como é o caso do IDES-UAB) que oferecem apoio para a concreção dos desafios colocados pela construção do EEES. Observamos que a preocupação com a construção do EEES é muito presente nos objetivos da formação das universidades catalãs, especialmente no que se refere à formação por competências, melhoria das estratégias metodológicas, uso das novas tecnologias, inovação docente e intercambio de experiências. Nas universidades paulistas o processo de criação destes setores é mais recente: na USP o Gabinete de Apoio Pedagógico foi criado em 2004 e se transformou em Comissão de Apoio Pedagógico em 2008. Também em 2008 houve na UNESP a criação do Núcleo de Estudos sobre a Prática Pedagógica (NEPP), atual CENEPP, um projeto descentralizado que se caracteriza

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especialmente por possuir comissões nos diferentes campus, característica que faz desta uma iniciativa peculiar; além do CENEPP, existe no âmbito na Faculdade de Medicina de Botucatu (FMB-UNESP) um Núcleo de Apoio Pedagógico (NAP), que atua no campo da formação de profissionais da área da saúde desde o ano 2000. Na Unicamp o EA2 começou a funcionar em 2011, mas já demonstra ocupar um espaço importante dentre as políticas institucionais. Comparando os objetivos destes setores de formação, notamos algumas ênfases em temas como: aperfeiçoamento pedagógico, reflexão sobre a prática, qualidade dos processos de ensino-aprendizagem, melhora da formação dos graduandos e apoio continuo à docência.

Principais resultados e conclusões

A partir da aplicação dos diferentes instrumentos metodológicos escolhidos para esta pesquisa, é possível perceber algumas complementaridades e ambigüidades entre as informações coletadas, muitas delas ligadas à diversidade de fontes e contextos de formação. A tabela n.2 apresenta uma visão geral dos resultados encontrados a partir dos diferentes instrumentos e participantes da pesquisa. Trata-se também de uma triangulação de instrumentos, informantes e informações que outorga maior validez aos resultados.

Organismos nstrum.

formação)

mudanças e concepções)

aspectos das ações de

Práxis (principais

Políticas (preocupações, ujeitos

I

S

Tabela 2 - Principais resultados segundo os informantes, instrumentos e dimensões Internacionais e regionais (Análise Documental)

Responsáveis e Especialistas (Entrevistas)

Docentes (Questionários e Grupos Focais)

Preocupações com as mudanças no mundo global, no papel do Estado, etc.; Formação docente passa a ser parte da agenda, relacionada a preocupação pela melhora da qualidade; Detectamos ambigüidades e importantes mudanças conceituais: de uma visão mais ampla respeito ao papel da universidade e da formação, para uma visão mais funcional e instrumental das mesmas

Mudanças no mundo produtivo impactaram em novas demandas curriculares; aumento das demandas, precarização e tendência a fragmentação dos processos (docência- pesquisa) Formação se mostra como tendência reforçada nos últimos anos, muito relacionada às alterações estruturais e organizacionais, sendo convocada a dar conta de distintas demandas, internas e externas.

Universidade e formação devem ter um papel crítico-emancipador, sendo que a formação não pode deixar de lado as demandas e exigências do mercado de trabalho As mudanças metodológicas e as demandas de produtividade acadêmica são os fatores externos que mais influenciam na política

Formação como responsabilidade institucional e individual; Documentos incentivam a incorporação de novas tecnologias e o uso da educação a distancia no ensino superior; A pesar de considerar a formação como processo permanente, recomendam que as universidades ofertem cursos e oficinas de curta duração

Formação é considerada um processo permanente, mas às vezes se restringe a atividades pontuais; Oferta flexível as necessidades e demandas dos docentes; Atividades têm por base a atualização tecnológica e o uso de plataformas virtuais; Setores de formação privilegiam atividades práticas e baseadas na reflexão sobre a prática; Existem atividades tanto de caráter formal como informal

Formação deveria estar baseada em processos amplos e contínuos Motivações: aprendizagem coletiva, flexibilidade, unidade do grupo; Resistências: falta de tempo e excesso de trabalho; valorização desigual da docência; separação entre teoria e prática; linguagem da pedagogia

95 XIX Seminário Acadêmico da APEC: O Local, O Global e o Transnacional nas Produçao Acadêmica Contemporânea 19 e 20 de junho de 2014, Barcelona, Catalunha. ISBN: pesar das ambigüidades, os documentos apresentam algumas recomendações importantes: - garantir a autonomia e liberdade acadêmica; - criar códigos de ética; - reforçar vínculos com o mundo do trabalho; - promover a mobilidade e criar mecanismos para garantir a qualidade; - fomentar o uso das TIC e a colaboração entre instituições e países - Promover a igualdade de gênero

propostas)

Opiniões (Desafios e

A

Promover o intercambio e a integração de esforços entre universidades, de modo a constituir projetos conjuntos de formação; Promover o reconhecimento e valoração da docência e da formação Potenciar a participação de professores e seu poder decisório por meio de assembleias Considerar outros espaços como formativos Criar uma cultura de responsabilização coletiva

Compor e conjugar as possibilidades e os limites das novas tecnologias; Valorizar os diferentes perfis de professor universitário (docente e pesquisador) Oferecer uma base para as novas gerações de docentes Oferecer apoio permanente e acompanhar o trabalho dos docentes

A seguir, serão apresentadas algumas conclusões e reflexões com base nas diferentes dimensões da pesquisa:

Dimensão Políticas: preocupações, mudanças e concepções

No que diz respeito às políticas de formação e sua relação com as políticas transnacionais, a pesquisa realizada nos permite afirmar que: •

Muitas das preocupações expressadas pelos documentos oficiais são compartilhadas por responsáveis de formação e especialistas: mudanças no papel do Estado, redução do financiamento público e a reestruturação do sistema produtivo que impuseram novas exigências às universidades, aumentando as preocupações com relação à formação de estudantes e docentes, de modo que estes pudessem estar aptos e adaptados às novas demandas.



Alguns documentos ressaltam a responsabilidade dos professores de "fazer mais com menos", ou seja, garantir a qualidade e melhorar seus conhecimentos e habilidades, mesmo num contexto de restrições financeiras severas e de aumento das demandas. Ao solicitar que os professores desenvolvam habilidades para "adaptar-se" a esta nova situação, entende-se que esses discursos amparam o processo de precarização da profissão docente.



A crescente demanda de estudantes e a falta de investimentos adequados no ensino superior também conduziram a um processo de precarização das condições de trabalho dos professores; trata-se de uma tendência que reforça a fragmentação e as dicotomias entre os processos de ensino e aprendizagem, entre a teoria e a prática, entre ensino e pesquisa, não contribuindo para a participação dos professores nas atividades de formação permanente.



As reformas educativas implantadas nos últimos anos em ambas as regiões também possuem tendências de reorientação curricular (revisão de planos de estudos, criação de novos cursos, convergência, harmonização, etc.) a fim de facilitar a mobilidade,

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comparabilidade e reconhecimento das qualificações. Isso ocasiona uma série de mudanças organizacionais e estruturais e, conseqüentemente, no papel dos/das docentes, o que levou a uma intervenção no âmbito da formação permanente desses profissionais. •

Muitos dos documentos oficiais analisados revelam uma visão principalmente funcional e instrumental quanto ao papel das universidades e da formação, o que também se reflete na política de formação, que acaba sendo funcional à reforma; isso pode ser atribuído à intensificação do neoliberalismo na educação superior que pressiona as universidades para se adaptarem às novas dinâmicas do capitalismo global e empresarial.



Houve uma transferência de modelos, já que os princípios e diretrizes do EEES exercem influência sobre a formação de outros espaços regionais, como o Setor Educacional do MERCOSUL.



Muitas das mudanças ocorridas nas políticas de formação em universidades participantes do estudo foram ativadas principalmente após a intervenção de políticas globais, que foram adotadas pelos governos locais. De acordo com a opinião de responsáveis e especialistas, no caso das universidades catalãs, é evidente a influência do processo de Bolonha e de toda alteração organizacional e estrutural ocasionada pela adaptação a este processo. No

caso

das

universidades

paulistas, as

políticas

de

expansão e

democratização, internacionalização, as novas diretrizes curriculares e as demandas de avaliação e garantia da qualidade foram aquelas que mais afetaram as dinâmicas de formação. •

Em ambos os contexto existe uma forte preocupação quanto ao tema dos rankings, os quais foram abordados como algo problemático, visto que obriga as universidades a abrir mão de suas necessidades internas para atender demandas externas. Além disso, diagnosticou-se que a internacionalização e os rankings são elementos que reforçam a tendência de adoção de modelos específicos de formação, sobretudo baseados nos modelos das universidades norte-americanas ou estadunidenses.



Neste sentido, em ambos os contextos se admite a tendência de “americanização” ou “anglonização” da educação superior, pois o modelo norte-americano e/ou anglo-saxão é citado em vários momentos pelos participantes: nas universidades catalãs este modelo justifica o fortalecimento da relação entre universidades e mercado de trabalho, enquanto que nas universidades paulistas esse modelo baseia a ideia de que os professores possam escolher entre exercer um perfil mais docente ou mais pesquisador. Alguns participantes também criticaram o modelo de grants, típico das universidades norteamericanas e que vincula o financiamento com a produtividade científica, de modo a fortalecer a pesquisa em detrimento do ensino e ampliar a distância entre essas duas tarefas fundamentais dos professores universitários. Ao defender o direito de escolher entre um perfil pesquisador ou docente, os professores de ambos os contextos reivindicam

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que ambos tenham o mesmo peso e sejam reconhecidos no processo de avaliação e promoção. No contexto da fragmentação causada pelas reformas neoliberais, considera-se extremamente importante reforçar a complementaridade entre ambas essas dimensões do trabalho acadêmico. •

A formação de professores também é influenciada pelos padrões de qualidade criados externamente e colocados para as universidades e para os professores pelas agências de qualidade.



A preocupação manifestada nos documentos oficiais quanto à melhoria da qualidade da formação de professores se relaciona à qualidade dos resultados dos alunos e, conseguinte, do próprio sistema. Percebe-se a existência de uma relação positiva entre formação de professores e melhora do desempenho do aluno, de modo que a formação de professores adquiriu centralidade na agenda a partir do momento em que se reconheceu a sua importância para a garantia da qualidade e para a implantação das reformas educacionais pretendidas. De fato, os professores que responderam ao questionário mostram uma preocupação significativa quanto à melhoria dos resultados dos alunos, como um dos aspectos que garantem o êxito dos processos de aprendizagem.



Dada a tendência de responsabilização dos professores pela qualidade da educação, quase sempre sem considerar o contexto e as determinações que afetam seu trabalho (aumento das exigências, condições de trabalho precárias, etc.), entende-se como importante avanço a compreensão da formação como responsabilidade coletiva e institucional, por meio da institucionalização de setores de formação no âmbito das universidades.



Em uma breve análise dos fatores que influem na política de formação vimos que as mudanças nas metodologias de ensino e as exigências de produtividade acadêmica são os fatores mais sentidos pelos docentes. Este último tem um efeito negativo sobre a formação, uma vez que as exigências de produtividade acadêmica implicam que os professores prestem mais atenção na pesquisa e não se dediquem tanto ao ensino/docência. Estes fatores afetam de modos diferentes os distintos grupos dentro das universidades: as mulheres e os/as docentes de categorias iniciais, com menos anos de experiência (professores novatos ou noveles) indicam ser mais vulneráveis, pois demonstram sentir com maior intensidade a pressão de vários fatores externos; isso indica que esses grupos também estão mais sujeitos ao processo de precarização da profissão.



O enfoque da formação baseada em competências se destaca como tendência nas universidades catalãs, já que a implementação do EEES impulsionou o uso deste enfoque na formação de alunos e professores; nas universidades paulistas diagnosticou-se maior resistência à adoção desse enfoque, devido a sua natureza técnico-instrumental, mas ao

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mesmo tempo se admitiu que essa influência tende a aumentar, principalmente devido à pressão de políticas internacionais. Dimensão Práxis: principais aspectos das ações de formação

Quanto à Práxis da formação nas instituições pesquisadas, é possível asseverar que: •

Nas universidades catalãs e paulistas privilegiam-se dois tipos de conteúdo para as atividades de formação: aqueles de caráter técnico, relacionados à atualização tecnológica, utilização de plataformas virtuais, etc. e conteúdos de tipo didáticopedagógico, que buscam abordar questões mais de fundo, como fundamentos e epistemologia da educação superior, metodologias, planejamento e construção de projetos político-pedagógicos, avaliação educacional, etc. Isto revela as múltiplas e complexas demandas que a formação permanente é chamada a cumprir.



O aspecto prático é uma tendência comum aos dois contextos, já que a formação costuma ter tanto um formato prático, como também propõe uma reflexão sobre a prática, trazendo para dentro da formação a experiência cotidiana, os problemas e soluções propostas pelos docente, resgatando o sentido da práxis na formação.



Embora os professores em ambos os contextos afirmem a importância da formação como um processo amplio e contínuo, continuam a existir atividades específicas e pontuais, principalmente devido à falta de tempo e disponibilidade dos professores em participar de atividades que exijam um compromisso mais permanente.



A motivação por participar de atividades de formação ainda se restringe a poucos grupos de docentes que se interessam por ela devido a interesses pessoais ou à existência de demandas que lhes afetam diretamente (abertura de novos cursos, mudanças curriculares, adoção de abordagens pedagógicas diferenciadas, etc.), por isso existe o desejo de que a participação aumente e que os professores se envolvam mais nas atividades, não apenas como espectadores, mas principalmente como atores, ajudando a levar adiante a política de formação.



No âmbito dos setores de formação das diferentes universidades estudadas, observa-se que as políticas e os modelos externos são internalizados pelos gestores (reitores, próreitores, diretores) e se pro(im)põem como prioridades institucionais, como é o caso da busca de fontes alternativas de financiamento, reformulação curricular para atender às exigências do mercado trabalho, produtividade acadêmica, avaliação/controle externo, etc. No entanto, da mesma forma como as demandas podem ser colocadas simplesmente de cima para baixo, também existem caminhos alternativos: neste sentido, observa-se processos de re-significação das demandas externas em favor da comunidade acadêmica, o que nos permite destacar alguns exemplos específicos em cada uma das regiões estudadas:

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o Os Grupos de Inovação (GI-IDES) no âmbito da UAB foram concebidos como grupos de trabalho, formação e pesquisa que fomentam a inovação, pois se organizam de acordo com os temas que mais interessam a comunidade acadêmica. Eles são constituídos por professores de diferentes áreas, constituindose como importantes experiências interdisciplinares, com base no princípio da integração, troca de experiências e informações entre pares. o

Outras experiências interessantes são aquelas que ocorrem no âmbito do NAP e do CENEPP (UNESP): a partir da necessidade de rever o currículo para se adaptar às diretrizes curriculares nacionais, professores e responsáveis aproveitaram para definir os projetos político-pedagógicos dos cursos, repensar as práticas existentes e introduzir novas práticas que aproximassem os estudantes das demandas da comunidade que circunda a universidade, especialmente através do compromisso com aquilo que é público. No caso específico do NAP e da disciplina de Integração Universidade Serviço Comunidade (IUSC), este processo suscitou uma consciência significativa sobre a formação como um trabalho coletivo e reflexivo (Manoel, 2012). Um dos pontos mais interessantes desta experiência formativa dentro do projeto/disciplina IUSC é que a formação de professores não é vista apenas como "atividade-meio" para garantir uma educação de qualidade, mas como uma finalidade intrínseca, isto é, trata-se de uma atividade com sentido próprio, pois pretende incentivar os profissionais a repensar a sua prática e a melhorá-la.



Além disso, muitos setores disputam pelo reconhecimento da atividade docente entre os indicadores de avaliação institucional, para que a docência e a formação sejam tão valorizadas quanto à pesquisa para fins de progressão na carreira.

Dimensão Opiniões: desafios e proposições

Quanto a este aspecto, colocam-se alguns desafios e propostas para a política de formação, a partir dos comentários dos/as participantes e das reflexões desenvolvidas ao largo da pesquisa: Desafios •

Superar o reconhecimento desigual em relação à pesquisa e ao ensino, promovendo que ambos tenham o mesmo peso entre os indicadores de avaliação que permitem a progressão dos professores e professoras na carreira acadêmica.



Conhecer as determinações do trabalho docente e re-significar as demandas externas a favor da comunidade acadêmica, como já acontece em algumas universidades por meio de experiências de formação como o GI-IDES e disciplina IUSC: esta ultima surgiu com o intuito de fazer da renovação curricular uma oportunidade de reflexão sobre a prática

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docente e reforçar o papel social da universidade e seu compromisso com as demandas do seu entorno. •

Ir além das necessidades imediatas do mercado de trabalho, ampliando a visão sobre o mundo do trabalho, de modo que a universidade não ceda à lógica mercadológica de preparar somente os profissionais que o mercado precisa. Neste sentido, os participantes da pesquisa consideram a necessidade conciliar as exigências do mercado de trabalho e as demandas de formação de profissionais para a transformação social. As intervenções destes atores reforçam a necessidade de considerar que a formação oferecida pela universidade deve ir além do aspecto técnico, considerando a dimensão ética e política da formação para a transformação da sociedade e do próprio mercado.



Superar o enfoque por competências como subserviência às exigências do mercado, o que inclui pensar na dimensão ética e ecológica das competências, com base em uma filosofia mais ampla de educação/formação que permita fazer das atuais mudanças e reformas uma oportunidade de aproximar as universidades às demandas dos setores mais marginalizados da sociedade.



Deixar-se inspirar por (e não simplesmente copiar) outros modelos e práticas de formação, o que requer considerar o caráter complexo e multidimensional dos processos educativos e a impossibilidade de transferir ou copiar projetos e práticas; o que sim é possível (e bastante recomendável) é promover a aprendizagem mútua, baseada no estudo aprofundado das experiências que ocorrem em outros contextos e que nos permitem refletir sobre como podem contribuir para repensar a nossa realidade. Proposições



Promover a participação de professores através de construção coletiva de um projeto institucional, o que requer a consolidação de espaços de participação (como as assembleias de docentes) e a construção de projetos político-pedagógicos que fundamentem as atividades de formação.



Promover o trabalho coletivo e interdisciplinar no campo da formação de professores, o que requer reforçar a colaboração entre as instituições e setores de formação, para além da mera competição.



Resgatar o significado da docência universitária, o que significa resistir à lógica econômica, funcional e tecnocrática que se apropria dos processos acadêmicos, desvalorizando conhecimentos e práticas consideradas ineficazes ou "inúteis" para o sistema e que impõe a produtividade e a precariedade como aspectos centrais da instituição acadêmica.



Conhecer outras experiências e alternativas no campo da educação: além dos modelos hegemônicos, propõe-se a necessidade de considerar novas teorias e práticas de novos contextos, como aqueles projetos e propostas que emergiram por meio da comparação entre universidades catalãs e paulistas.

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Considerações finais

Nesta síntese dos principais resultados e reflexões sobre as tendências que afetam o campo da formação permanente de professores universitários em algumas instituições públicas catalãs e paulistas, observou-se que a transnacionalização e a globalização neoliberal impuseram novas demandas e dilemas as universidades, conduzindo a um processo de precarização da profissão docente. Além disso, existe a tendência de considerar a formação como elemento funcional à reforma, responsabilizando os docentes pelo êxito ou fracasso dos processos de mudança e pela qualidade educativa, sem levar em consideração o contexto e as determinações que marcam o exercício desta profissão. Paradoxalmente, a criação de setores de formação no âmbito das diferentes universidades,

contrasta

esta

tendência,

sinalizando

para

a

consciência

acerca

da

responsabilidade institucional e coletiva pela qualidade da educação. Além disso, muitos desses setores optaram não só por empregar a formação como uma estratégia para a adaptação dos professores às mudanças colocadas pela reforma, mas principalmente para fortalecer a dimensão didático-pedagógica da docência universitária e processos de reflexão sobre a prática e de desenvolvimento profissional. Isso comprova a importância do papel dos atores locais na condução e re-significação das políticas que vêm de fora, em favor das necessidades e interesses da comunidade acadêmica. Assim mesmo, esses setores enfrentam muitos desafios, entre os quais o de superar a distancia entre pesquisa e ensino, já que a produtividade acadêmica continua a ser mais reconhecida nas avaliações tanto em nível institucional, quanto externo, seguindo os parâmetros colocados pelos Rankings. Reitera-se assim a necessidade de superar o paradigma técnico-instrumental, fazendo da formação um processo de desenvolvimento e profissionalização docente, resgatando seu sentido social e seu caráter emancipatório. Com isso, espera-se haver proporcionado alguns elementos para ampliar as reflexões acerca dos desafios colocados pelo contexto global e transnacional para a profissão acadêmica. Consideramos que muitas das respostas que buscamos encontram-se nas mesmas experiências locais, por isso a importância de considerar a imbricação entre global-transnacional-local no campo das políticas educativas e da educação comparada. Como professores e pesquisadores que atuam em contextos transnacionais, precisamos considerar estas questões e assumir o desafio de pensar alternativas a globalização hegemônica neoliberal, através da construção de práticas dialógicas, participativas e de empoderamento, que possibilitem o desenvolvimento humano e profissional em sentido amplo.

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Referencias ALMEIDA, M. I. (2011). Pedagogia Universitária e projetos institucionais de formação e profissionalização de professores universitários. Tese de Livre Docência. São Paulo: USP. ANTUNES, F. (2008). A nova ordem educacional: Espaço Europeu de Educação e Aprendizagem ao longo da vida. Coimbra: Almedina. AZEVEDO, M. L. N. de (2008). A formação de espaços regionais de educação superior: um olhar meridional - para o Mercosul. Revista Avaliação, 13(3), 875-879. CHAUI, M. (2001). Escritos sobre a universidade. Sao Paulo: Editora Unesp. DIAS SOBRINHO, J. (2005). Dilemas da educação superior no mundo globalizado: sociedade do conhecimento ou economia do conhecimento? São Paulo: Casa do Psicólogo LEITE, C. (2008). Que lugar para as ciências da educação na formação para o exercício da docência no ensino superior? In J. M. (org) Sousa (Ed.), IX Congresso da Sociedade Portuguesa de Ciências da Educação (pp. 131–140). Funchal: LivPsic. PIMENTA, S. G. & ANASTASIOU, L. C. G. (2002). Docência no Ensino Superior. Sao Paulo: Cortez. VERGER, A.; & HERMO, J. P. (2010). The governance of higher education regionalisation: comparative analysis of the Bologna Process and MERCOSUR-Educativo. Globalisation, Societies and Education, 8 (1), 105-120. ZABALZA, M. Á. (2002). La enseñanza universitaria: el escenario y sus protagonistas. Madrid: Narcea.

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ESTUDANTE OU IMIGRANTE? RELATOS DA EXPERIÊNCIA MIGRATÓRIA BRASILEIRA NA ESPANHA Elisa Tavares Duarte Universidade de Salamanca [email protected] Resumo A partir da utilização do acervo audiovisual, da iniciativa Ponto de Memória: Memória Oral da Imigração Brasileira na Espanha pretende-se apresentar distintos aspectos relacionados com projetos migratórios e processos de adaptação, a partir de entrevistas realizadas a estudantes brasileiros vinculados à Universidade de Salamanca. A referida iniciativa se constituiu no final de 2011, tendo como proposta principal a criação de um acervo audiovisual, formado pelos relatos da experiência migratória de brasileiros residentes na Espanha; igualmente, baseada no pressuposto de criação do conhecimento da realidade brasileira a partir de narrativas e testemunhos dos protagonistas, a iniciativa propunha também disponibilizar seu acervo de forma gratuita na internet. As entrevistas selecionadas para este trabalho foram realizadas em 2012, a partir da metodologia de entrevistas semi-estruturadas de final aberto. Palavras-chave: migrações, fontes orais, acervo digital, Ponto de Memória. Resumen A partir de la utilización del acervo audiovisual, de la iniciativa “Ponto de Memória: Memória Oral da Imigração Brasileira na Espanha” se pretende presentar distintos aspectos relacionados con proyectos migratorios y procesos de adaptación, a partir de entrevistas realizadas a estudiantes brasileños vinculados a la Universidad de Salamanca. La referida iniciativa se constituyó a finales de 2011, cuya propuesta principal era la creación de un acervo audiovisual, formado por los relatos de la experiencia migratoria de brasileños residentes en España; igualmente, basada en el presupuesto de creación de conocimiento de la realidad brasileña a partir de narrativas y testimonios de los protagonistas, la iniciativa propuso también poner a disposición su acervo de forma gratuita en internet. Las entrevistas seleccionadas para este trabajo fueran realizadas en 2012, a partir de la metodología de entrevistas semi-estructuradas de final abierto. Palabras-clave: migraciones, fuentes orales, acervo digital, Ponto de Memória. “El ser humano nace siempre en el seno de una cultura, pero eso no significa que esté destinado a quedarse en ella. No es preciso elegir entre ‘pertenecer a una cultura’ y ‘actuar como individuo libre’, ya que lo uno no excluye el otro, sino todo lo contrario: dominar la propia cultura facilita la invención individual, aunque, ‘dominar’ no significa, como pretenden los integristas de toda obediencia, ‘seguir ciegamente’”. Tzvetan Todorov, El miedo a los bárbaros, p. 97.

Introdução

A citação que abre o presente artigo é parte de uma interessante obra do crítico literário, filósofo e historiador Tzvetan Todorov, publicada em 2008, que trata, entre outros aspectos, de um tema frequente em suas obras, a alteridade. Neste caso, Todorov embarca em análises sobre cultura e memória e as recorrentes disputas no campo da construção de identidades, nas quais ambas servem, às vezes como argumento, e outras vezes como ferramenta, meio para lograr um fim. Desta maneira, este trabalho tem como objetivo apresentar distintos aspectos relacionados com projetos migratórios e processos de adaptação, a partir de entrevistas realizadas a estudantes brasileiros vinculados à Universidade de Salamanca, na Espanha. Estes projetos migratórios, mas, principalmente, os processos de adaptação guardam profundas relações, como

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veremos, com a construção de (novas) identidades, num contexto social e cultural distinto ao que a pessoa identifica como de origem. Partindo de Masanet (2008), entendemos os processos migratórios como

(...) conjunto de situaciones que se dan tanto en el lugar de origen como en el de destino. (…) comprende las diversas etapas y situaciones que conlleva la migración: el contexto de partida, las experiencias previas de partida, las motivaciones, el proyecto migratorio, la trayectoria migratoria, el asentamiento en la sociedad de acogida, las experiencias migratorias en la sociedad de acogida, las transformaciones en los lugares de origen, el retorno, etc. (Masanet, 2008, p. 3.)

A referência anterior é um pequeno fragmento de um trabalho resultado das pesquisas de doutorado de Masanet, no qual utiliza tanto fontes estatísticas para caracterizar o fluxo migratório de forma demográfica, como também relatos da experiência migratória. Entendendo com ela esta noção de processo migratório, os fragmentos de relatos aqui apresentados dão conta de maneira cabal desta perspectiva. Por outro lado, para esta ocasião, optamos por apresentar a transcrição praticamente na íntegra de um interessante relato, onde de poderá apreender de forma bastante clara, não só a caracterização do processo migratório em seu conjunto, mas também sua construção, com base no resgate da memória.

A experiência do Ponto de Memória: Memória Oral da Imigração Brasileira na Espanha (2011)

Antes de passar aos relatos, cabe apresentar as linhas gerais da iniciativa Ponto de Memória: Memória Oral da Imigração Brasileira na Espanha. Como iniciativa, se constitui oficialmente no final de 2011, a partir do programa “Pontos de Memória”, do Instituto Brasileiro de Museus, autarquia do Ministério da Cultura. Naquela ocasião, o projeto tinha como objetivo.

El objetivo de esta iniciativa es la promoción de la construcción, valorización y preservación de la memoria social de los inmigrantes brasileños en España, como noción de patrimonio cultural, a través de los testimonios orales y su amplia difusión entre la comunidad brasileña en Brasil y en el exterior, como mecanismo de inclusión social, ciudadanía y de identificación étnica, dando visibilidad a los problemas reales y cotidianos enfrentados por la comunidad, en una actitud de empoderamiento en relación a su propia condición de migrante y de ciudadana y ciudadano brasileño en el exterior. (Ponto de Memória, 2011).29

Não caberia no espaço deste trabalho retomar as questões mais de cunho teórico acerca das possibilidades e avanços das noções de cultura imaterial e coletivos culturalmente

29

Cf. http://www.cebusal.es/ponto-de-memoria/presentacion/

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marginalizados dos circuitos oficiais de expressão cultural 30, porém sublinhar a importância da elaboração de um acervo uniforme, em suporte digital e audiovisual, que permita conhecer diferentes aspectos da presença brasileira na Espanha. Como critério para seleção de participantes, o único critério era de residir a mais de um ano na Espanha de forma continua, com independência de situações administrativas. As entrevistas seguiam a metodologia de entrevistas semi-estruturadas de final aberto, que permite certa flexibilidade por parte do entrevistador, ao mesmo tempo em que, em momentos diferentes da entrevista, podem ser ativados blocos temáticos, de acordo com o fio da narração. Porém, vejamos alguns exemplos desta dinâmica.

Histórias cruzadas, vidas cruzadas

Nesta terceira parte do trabalho serão apresentadas quatro histórias, quatro vidas que, num determinado momento, se cruzaram em Salamanca. Os quatro projetos migratórios aqui abordados se iniciam a partir da perspectiva de formação regular, ou seja, de estudos na Universidade de Salamanca. Mesmo que compartilham o mesmo objetivo inicial – melhorar o nível de instrução formal -, localidade de destino e instituição à qual se vinculam e, consequentemente, a mesma situação administrativa inicial na Espanha, o que se verá é que, tanto a construção dos projetos migratórios como e as estratégias escolhidas por cada um foram diferentes. Partindo da descrição anteriormente apresentada acerca dos do perfil de brasileiros e brasileiras entrevistados na iniciativa Ponto de Memória na Espanha (2011), para esta ocasião, os perfis selecionados obedeceram a um critério de vinculação a níveis diferenciados de estudos, dois deles apoiados em programas institucionais específicos e outros dois empreendidos a partir de empenhos pessoais, em graduação e em pós-graduação: máster e doutorado. Não obstante, isso não significa que nos quatro casos aqui apresentados não houvesse mobilização pessoal, a diferenciação simplesmente servirá para que se distinga entre as estratégias levadas a cabo por parte de nossos protagonistas. Das quatro entrevistas, três foram realizadas no Centro de Estudos Brasileiros (CEB) da Universidade de Salamanca, um edifício histórico, localizado no centro da cidade, num de seus espaços dedicados a pequenas reuniões e conferências. A partir da metodologia de “bola de neve”, conhecida pela característica fundamental que permite a ampliação da rede de “informantes” a partir de um número prévio mais reduzido dos mesmos; antes das entrevistas, foram estabelecidos contatos com os possíveis participantes através de redes sociais e ligações telefônicas. Uma vez combinados o local e o horário para a entrevista, dando a explicação da

30

Em outra ocasião, tratei de paresentar algumas referências sobre o tema. Cf. Tavares Duarte, Elisa. (2013) “Memória da imigração brasileira na Espanha: a experiência do ‘Ponto de Memória’”. Atas do congresso, 7º CEISAL, Porto.

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natureza da iniciativa, a primeira tarefa era de explicar os termos de cessão de direitos de imagem, acervo e divulgação do produto resultante, explicação acompanhada de um documento a ser assinado por eles. Uma vez solucionadas possíveis dúvidas, a entrevista e seu correspondente registro começam. Nos quatro casos aqui apresentados, as entrevistas foram realizadas pela autora deste trabalho, em companhia de Carolina Delgado, quem se responsabilizava pelo equipamento técnico, portanto, no momento das entrevistas estavam presentes três pessoas. De forma geral, as entrevistas se realizam sem interrupções, salvo por petição do entrevistado ou por necessidades técnicas, com uma duração média de sessenta minutos. Seguindo a estrutura de entrevistas semi-estruturadas de final aberto, a pessoa entrevistada vai se posicionando progressivamente em relação ao seu próprio projeto migratório. Tomando como ordem de apresentação os diferentes níveis de formação, começaremos pela entrevista de Alessandro Veiga.

Fig. 1. Entrevista Alessandro Veiga em sua residência. Fotografia: Carolina Delgado. Acervo Ponto de Memória na Espanha, 2011.

Alessandro (19 anos, dois anos e meio vivendo em Salamanca) é natural de Vera Cruz do Oeste, uma pequena cidade do Paraná, que se vincula à USAL através da primeira edição do programa ProUni Internacional, uma parceria entre o Ministério da Educação brasileiro (MEC; atualmente, as gestões do programa passaram a agência de Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, CAPES), o Banco Santander e a USAL. Este programa que, atualmente, está em seu quinto ano de realização, possui, hoje em dia, cinquenta e quatro participantes, que realizam os estudos completos de graduação na instituição, financiados através de bolsas individuais proporcionadas pelo banco Santander. Tal como prevê o programa ProUni no Brasil, sua versão internacional possui como requisito que os contemplados também sejam estudantes com níveis de rendimentos excelentes no ENEM, ao mesmo tempo em que provenham de famílias com escassos recursos econômicos. No primeiro ano, a seleção foi realizada diretamente pelo MEC. Segundo a experiência de Alessandro,

Bom, a ideia até parece um pouco loucura, mas é realmente o que aconteceu. Eu simplesmente estava em aula nesse dia. Quando chego em casa tinha uma ligação da minha mãe, uma ligação do meu pai, e eu, a princípio, pensei que tinha

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acontecido alguma coisa, porque era muito difícil que os dois me ligassem na mesma hora, no mesmo dia, falei “alguma coisa aconteceu”. Então, liguei para a minha mãe e ela me disse que tinha recebido uma ligação dizendo que eu tinha recebido uma bolsa do Ministério da Educação para cursar meus estudos aqui na Espanha. Ela me passou um número de telefone que eu liguei, e simplesmente já estava falando com o assessor do Ministro. Ele me explicou toda a situação, a princípio me parecia um pouco diferente, não sabia se era verdade ou se não, mas logo ele me passou todas as informações correspondentes, e eu vi que era realmente um programa sério, que seria o primeiro ano, que era uma experiência, e que eu tinha que confirmar ainda naquele dia, porque eles estavam pendentes, eu era a última vaga, pendentes de que esta última vaga fosse confirmada; que se eu não quisesse, que eles passariam para outra pessoa. Então, foi só uma questão de falar com meus pais, pensar e pesar tudo num balança, se era isso realmente o que eu queria. E eu acho que é uma coisa, um sonho que quase todas as pessoas têm, que é passar um tempo de sua vida em outro país, aprender coisas diferentes, e eu não hesitei, e resolvi vir. (Fragmento de entrevista a Alessandro Veiga, realizada em 20/10/2012, acervo Ponto de Memória na Espanha 2011).

Alessandro e outros nove companheiros e companheiras de programa ProUni Internacional embarcaram desde Brasília com destino a Madri e vieram diretamente para Salamanca, onde já lhes esperavam as famílias de acolhimento, onde deveriam residir durante as semanas prévias de preparação para o vestibular espanhol, que lhes permitiria ingressar na USAL. A gente chegou aqui era treze de abril, “martes” 13, que na Espanha seria a nossa “sexta-feira 13”, apesar de que é um dia que as pessoas não consideram bom, de um pouco de azar… De que ano? De 2010. É um dia que não tem como esquecer. Primeiro, a sensação de “nossa, vou viajar para outro país”. Apesar de que, claro, antes a gente já tinha ido para Brasília, já tinha viajado de avião, uma viagem de onze horas avião para mim parecia “Ai, meu Deus, eu vou estar cruzando o Atlântico, isso aqui pode cair”, e é algo que quem nunca passou pela experiência, sempre tem um pouco de receio. No caso, a gente chegou aqui, e já vem aquele clima: você olha as plaquinhas e tudo escrito em espanhol, muitas placas em inglês, e você fica assim, “nossa, cadê o português?”, “o que é que está acontecendo?”… Aí, já vem aquele monte de gente falando em línguas diferentes, em outra língua… e então, você fica “Meu Deus, estou num lugar diferente”. E a gente foi recebido pelo Centro de Estudos Brasileiros, ainda no aeroporto, e viemos com eles até Salamanca. E chegando em Salamanca foi aquela impressão de cidadezinha histórica, tudo bonitinho, tudo novo, tudo lindo. (...) No começo, nós fomos acolhidos por uma família espanhola. Todos fomos, em grupos de dois, morar com uma família espanhola. E eu acho que isso foi uma das principais partes para nossa adaptação, porque fomos muito bem recebidos por nossa família, e isso criou uma relação muito boa, porque a gente aprendeu a cultura com alguém que viveu a vida toda nessa cultura. Era uma senhora já de bastante idade, ela que ensinou para a gente como era morar na Espanha, os costumes da Espanha, e que isso foi fundamental para nossa adaptação. Depois, quando a gente chegou na universidade, eu acho que a gente foi muito bem recebido, no geral. Assim, as pessoas acabavam tendo curiosidade de saber de onde a gente era, o que a gente estava fazendo ali, quanto tempo a gente ia ficar… então, eles procuravam a gente para conversar, a gente foi sempre muito bem recebido. Hoje, eu já tenho um número considerável de pessoas que eu converso bastante, que estão sempre comigo, que me ajudam na hora que eu preciso, ou que eu ajudo na hora que eles precisam, e essa relação é muito interessante porque é uma experiência única. (Fragmento de entrevista a Alessandro Veiga, realizada em 20/10/2012, acervo Ponto de Memória na Espanha 2011).

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No passado mês de maio, e depois de quatro anos morando e estudando em Salamanca, Alessandro se graduou em Engenharia Química. O segundo relato que compõe esta parte do trabalho é o de Luciana Santos, (35 anos, quatro anos vivendo em Salamanca). Luciana é natural de Salvador, porém nascida no Rio de Janeiro. Ainda pequena seu pai foi transferido para a Bahia, onde ela viveu até lançar-se a Salamanca. Socióloga de formação, Luciana conta em seu relato sobre suas experiências de trabalho na cidade de origem, com intervenção junto a coletivos em risco de exclusão social. Conta que, chagado um momento, quando a “miséria humana te endurece”, considerou que já era hora de ver novas paisagens. Assim começa a organizar a viagem: procura um programa de pósgraduação em Serviços Públicos, em Ciências Sociais. Inicialmente, duvida entre uma instituição francesa e a salmantina, na qual caba por recair a decisão apoiada pela carestia de vida na capital francesa, além de que já possuía familiares residindo na capital “charra”. Concluído o primeiro “máster”, ingressa no segundo (na ocasião da entrevista, em fase de finalização), na área de Direito, em Interdisciplinaridade de gênero. Provavelmente, em função de sua formação e experiência profissional, a entrevista com Luciana se desenvolveu de forma bastante reflexiva, não utilizando da narração dos fatos da experiência migratória, mas de sua própria condição de migrante, ou como ela mesma diz em algumas ocasiões, de ser “imigrante, mulher e negra”.

Fig. 2. Entrevista Luciana Santos no CEB. Fotografia: Carolina Delgado. Acervo Ponto de Memória na Espanha, 2011.

Quando provocada acerca das diferenças entre o “Brasil que conhece” e a “Espanha que conhece”, diz

Pois, primeiro de tudo, as diferenças culturais são fortes e marcantes, tanto do ponto de vista do comportamento social, das pessoas aqui, tanto do ponto de vistas das relações, de como se desenvolvem as relações aqui. (...) Eu acho que no meu primeiro ano aqui, eu não conheci ninguém daqui. (...) A comunidade é extremamente fechada, e uma pessoa de fora tem uma dificuldade imensa de entrar... e a gente está acostumado, ao menos em Salvador, a pessoas te conhecem hoje e já te convidam para sua casa amanhã. Você sente isso, um pouco essa distância que criam as pessoas. E depois com relação a ser estrangeiro. É muito complicado você não fazer parte da comunidade que você está vivendo. Do ponto de vista de que você não pode se locomover com mais liberdade, que você não pode chegar e pedir um trabalho, você não pode chegar e dizer “eu faço isso e aquilo outro”, quero oferecer o meu trabalho, mas até porque

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as pessoas de você não têm referência nenhuma. Então, primeiro você tem que criar um entorno, para que as pessoas comecem a te conhecer, saber quem você é, para depois você começar a falar de suas necessidades. Se te dão espaço. Isso para mim é muito diferente do Brasil. Porque no Brasil, ao menos o Brasil que eu conheço, pelo menos em Salvador, você se move por uma comunidade que as pessoas te conhecem, (...) e talvez isso se dá porque você viveu aí toda a sua vida. (...) E aí, novamente, eu volto à questão das escolhas: quando você escolhe estar num país diferente, você tem que pagas pela escolha. E uma das consequências, a meu ver, é a solidão que te impõe. (...) E no Brasil, não sei como seria viver como estrangeiro no Brasil. E isso não acontece, mas falando do ponto de vista de ser brasileira. (Fragmento de entrevista a Luciana Santos, realizada em 03/10/2012, acervo Ponto de Memória 2011).

O terceiro relato corresponde a uma aluna de programa de doutorado (atualmente já concluído) em Direito Constitucional. Ana Claudia Santano (30 anos e vivendo há cinco em Salamanca) desfrutava de excelentes condições de estudo, já que havia conseguido uma bolsa da Agência Espanhola de Cooperação Internacional para estudar na USAL. Ana Claudia é natural de Curitiba, no Paraná, e como ela mesma diz no início da nossa conversa, falar de sua cidade é falar de um pedaço de Europa no Brasil. Como muitas pessoas do sul do Brasil, Ana Claudia vem de uma família também de imigrantes, por um lado, alemães, e por outro, italianos. Seu relato oscila entre histórias divertidíssimas e outras, nem tanto, como o costume que teve, durante os primeiros meses, de “preparar las maletas” para voltar ao Brasil a cada domingo. Sobre o “choque cultural”, conta:

Saio de lá num verãozinho e chego aqui num inverno horrível. E, bom, os primeiros seis meses de adaptação foram horríveis, horríveis, horríveis. Porque nas duas primeiras semanas, você está muito contente e muito feliz. Depois disso, você começa a perceber as escolhas que fez. Então, começa a sentir falta de tudo: do ar, da porta da sua casa, os ruídos dos seus vizinhos, porque tudo é muito diferente. Para mim, tudo foi muito diferente. Tive, sim, algumas situações que marcaram muito a minha vida, no sentido do choque cultural. Bom, eu sabia falar espanhol, mas ficava muito nervosa na hora de falar. Então, rápido as pessoas me diziam “não te entendo”. Nem sequer paravam para me escutar, logo me diziam “não te entendo”. Bem, me lembro de um dia que fui a “extranjería” para dar entrada nos meus documentos e fazia muito frio e entrei numa cafeteria para tomar um café. Então, havia um garçom no balcão e eu vi que o nome dele era Ramón. Mas, eu não sabia pronunciar o “R” espanhol e comecei: “Jamón”, “Jamón”, “Jamón”, e ele se zangou muitíssimo, trouxe para mim um prato de presunto, que eu nunca tinha visto na vida... Eu lhe disse: “O que é isso?”, e ele: “Você está aí gritando ‘presunto’, ‘presunto’, ‘presunto’, pois aqui está. 11 euros.” E eu, “ai...”. Enfim, o pão espanhol também me fez sofrer um pouco porque o pão brasileiro é muito molinho. E eu adoro pão. Hoje em dia, eu já me acostumei a ficar sem pão na minha vida, mas no início foi muito duro. Então, no início tinha a gengiva toda machucada, porque por fora o pão espanhol é muito duro. Então, a minha companheira de apartamento me disse: “vai, de manhã bem cedo, comprar o pão recém saído”. Tá bem. Então eu... estava nevando, foi a primeira vez que eu vi a neve, e estava como uma menina assim “ai, que lindo”, e fui comprar pão. Então, olhei para a moça e disse: “Olá, queria uma bisnaga de pão”. E para me certificar, perguntei: “Desculpa, o pão é de hoje ou de ontem?”. A moça me olhou com uma cara... e me disse: “Não, o pão é de ontem! Você acha que eu acordo às cinco da manhã para que o pão seja de ontem?” Eu olhei para ela e “Obrigada”. Então, pouco a pouco, fui entendendo essa dinâmica, onde a simpatia a gente ganha depois e não antes. Esse foi o maior choque cultural que tive na minha

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vida. (Fragmento de entrevista Ana Claudia Santano, realizada a 09/10/2012, acervo Ponto de Memória Espanha 2011)

Finalmente, e para fechar esta parte do trabalho, apresentamos o relato de Daniela Fiuza (30 anos e vive há oito anos em Salamanca). A experiência de Daniela resulta extremamente interessante porque seu projeto migratório se estrutura em função da perspectiva de estudos, mas com uma série de condicionantes. Igualmente, pelo tempo de vivência em Salamnca, nossa entrevistada passou por três situações administrativas diferentes (visto de estudos, permissão de residência e trabalho e, finalmente, o processo de aquisição de nacionalidade espanhola). No momento da entrevista, Daniela era estudante de Comunicação Audiovisual na Universidade de Salamanca, no terceiro ano (atualmente, com os estudos já concluídos). Vive num apartamento bem localizado na cidade de Salamanca e, há seis anos, compartilha residência exclusivamente com o noivo, que também é brasileiro e estuda Administração e Finanças. Sua família, a exceção de uma irmã que morou em Madri e em Salamanca, vive toda em Fortaleza. Sem cargas econômicas no Brasil, seu projeto migratório é bem representativo das informações sócio-demográficas: acentuação do fluxo migratório em 2005, conformado por uma maioria de mulheres, que chegam a Espanha sem cargas familiares e, portanto, com projetos migratórios bastante flexíveis. A entrevista a Daniela se realizou no CEB, em 10/10/2012.

Sim, eu sou de Fortaleza, eu sou de uma família humilde, o meu pai é taxita e a minha mãe é funcionária pública. Vim para cá por uma bolsa de intercâmbio, na Universidade de Salamanca. Fiquei um ano como “becaria” da Universidade pelo programa PEI, depois eu fiz o curso superior de “Imagen y sonido”, e agora estou no terceiro de Comunicação Audiovisual. Mas, não falei muito de Fortaleza. Nossa... é uma cidade maravilhosa, eu adoro Fortaleza. A minha infância eu vivi em São Paulo, porque o meu irmão nasceu lá em São Paulo, e meu pai trabalhava em São Paulo, então... eu nasci em Fortaleza porque a minha foi me ter em Fortaleza, mas depois voltamos para São Paulo. Adoro Fortaleza, adoro o calor de Fortaleza, a comida de Fortaleza, tenho muita saudade. Ainda que eu pense que esse meu ciclo aqui na Espanha está acabando, eu vou ter que voltar por um tempo, eu acho que quando eu termine a minha faculdade no ano que vem, ou no outro, eu estou voltando pra Fortaleza. É o que mais me preocupa, porque realmente todas as vezes que eu vou a Fortaleza, todas as vezes que eu vou de férias para Fortaleza, eu não sei se eu vou conseguir me adaptar. É muito difícil, eu, eu vejo, eu, atualmente, me considero uma estrangeira no meu país. Infelizmente, é... é triste de te dizer, mas tem alguns costumes, um jeitinho brasileiro, que eu realmente... são coisas que eu hoje em dia, eu vejo como uma certa é... não sei como te explicar, como uma certa fobia, não? De ter determinados comportamentos sociais que a “mi”, não são do meu agrado e coisas que eu fazia, “muy a menudo”, mas que hoje em dia são coisas que eu não considero que sejam valores que eu queira, por exemplo, transmitir aos meus filhos. Me explico, para que não fique como... é... “nossa, ela foi morar fora e agora ela mudou”, não, não é isso. É que, por exemplo: aqui... é, as pessoas não precisam fazer uma fila pra saber que você está na minha frente. E eu não vou chegar num canto e tomar o seu lugar. Aqui as pessoas chegam e perguntam: “quem é o último?” E no Brasil, sempre tem aquele jeitinho de tentar passar na frente, ver se eu posso adiantar, se um favozinho ali, ou um amigo meu que pode me ajudar por lá, e tal... essa malícia que tem, não digo todos, mas que está na cultura brasileira, essa malícia, não, eu não gosto. Eu não considero que seja bom para o crescimento da população no Brasil, eu não acho que isso seja uma coisa interessante, não acho que seja bonito, não dá orgulho ver gente que tenta sacar vantagem na frente dos outros, que tente passar, que tente... eu acredito que cada um tem seu lugar e, pouco a

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pouco, a gente via crescer junto, sem ter que pisar nos outros. Né? No Brasil, infelizmente... aqui também acontece, com certeza deve acontecer, mas eu vejo isso no Brasil muito latente na população, de sempre tentar tirar vantagem em alguma coisa. Isso eu recrimino. Não sei, vai ter gente que não vai gostar, mas é a realidade, eu vejo, eu vejo muito isso, que as pessoas sempre tentando tirar vantagem em alguma coisa. Não sei, não me parece que seja um costume, ainda mais que seja, não sei, que seja idealizado como o jeitinho brasileiro. O que é o jeitinho brasileiro, me explica? Eu vejo o jeitinho brasileiro como uma maneira de tirar proveito de uma situação. Infelizmente, é triste, mas eu vejo isso. Esse jeitinho brasileiro de ver se eu consigo um favorzinho, se eu consigo adiantar o meu lugar na fila, se eu consigo fazer as coisas de uma maneira, que não é correta, mas que eu estou tirando algum benefício, esse jeitinho eu não gosto. Esse desconto que dão quando a gente sabe que os preços das coisas é o que é, e que já estão cobrando muito mais caro e esses 10% de desconto quando você paga à vista não tinha que ser porque o preço já está, continua a ser exorbitado... é... não sei... é que são situações que eu vejo que são do dia-a-dia, entendeu? (...) e outra coisa, que eu tinha e que agora bem menos era de querer ter, de querer ter a razão de tudo. “Eu estou pagando”, é a frase que eu mais detesto. É que você chega no Brasil e você acha que porque você sentou numa cadeira num restaurante, “eu tô pagando...”, e ele tem que me servir. Não é assim, aqui eu já trabalhei de “camarera”, e eu me coloco do outro lugar. Eu acho assim, a grande diferença realmente, que eu quero deixar bem claro, das coisas que eu vejo no Brasil, e que eu vivo aqui, é que eu conheci o outro lado. Eu conheci o lado de quem está servindo e não de quem está pagando. (...)Esse jeitinho brasileiro que eu não gosto. É esse jeitinho brasileiro que não entendo a divisão de classes, que eu não entendo que você tem que ser menos [mais] do que eu porque você está pagando. É essa coisa que eu não gosto. Entendeu? Eu sou super brasileira, eu amo o meu Brasil, eu tenho orgulho do meu país, mas não acho que porque uma pessoa trabalhe na minha casa, ela é menos do que eu. (...) Eu acho que essas pessoas deveriam tirar um tempo para ir morar fora e se dar conta de todas as coisas que a gente faz errado. No Brasil, eu estudei Comunicação Social e Publicidade, vim pra cá com uma bolsa, estudei aqui também Comunicação Audiovisual. Não terminei a carreira de Comunicação Audiovisual nesse tempo, porque como era extraoficial, não podia terminar a carreira, porque era de segundo ciclo. Fui... estudei idioma, espanhol e tal e depois... fiz uma FP superior, um ciclo formativo superior de “Imagen y sonido”, e isso, voltei para a faculdade de Comunicação Audiovisual e já estou no terceiro ano e espero no ano que vem, me formar. É... no meu âmbito de estudos, na única coisa que eu trabalhei foi na televisão de Salamanca, fiz as “práticas” lá, forma muito boas “práticas”. Amei! Ainda que sei que não vou ter lugar, porque aqui as coisas são muito... os empregos são de toda uma vida praticamente, mas... a parte disso já trabalhei de “camarera”, de ajudante de cozinha, em loja, trabalhei em lojas de “regalos” por 3 anos... e posso dizer que sou afortunada, hoje em dia eu cobro uma “beca” do governo espanhol para estudar, e que me permite, junto com o que eu trabalho ter um recurso econômico suficiente para aguentar até o próximo verão. E nada, sou feliz estudando, adoro estudar, por mim, continuaria estudando, ainda que a minha mãe dia “outra coisa? Já tá bom!”, mas mesmo assim, eu sou muito feliz estudando. Gosto muito. Ah, no Brasil, o único trabalho que eu tive foi de assessora de comunicação da Caixa Econômica. Trabalhava no departamento de Comunicação Social da Caixa Econômica, e foi uma experiência maravilhosa. Eu considero que se eu tivesse continuado lá, (...) hoje em dia eu ia estar realmente consolidada na minha profissão, mas eu considero também que a gente tem que saber arriscar, e acredito que todo o sacrifício que eu tive aqui, eu posso chegar no Brasil e ter uma recompensa. Afinal de contas, a gente que vem pra cá, é bom? É. Mas, você abre mão de muita coisa. E... e o tempo passa e você tem uma certa idade, e como eu digo, acho que ano que vem eu volto porque, porque você já não aguenta muita coisa, você já quer ter uma família, já é muito tempo longe de casa, as coisas mudam, minha mãe envelhece, o meu pai já se foi, então... é... a família chama muito, nesse caso. Por isso, eu vou voltar. Eu espero poder chegar lá e me consolidar, e conseguir trabalhar em alguma coisa que eu estudei, com Comunicação Audiovisual ou Publicidade. O que seja.

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A vida que eu tinha e a vida que eu tenho? A vida que eu tinha, eu trabalhava muito menos, desfrutava muito mais, tinha... era muito mais tranquila em relação à questão econômica. Ainda que hoje em dia, (...), também consegui muitas coisas estando fora, eu sempre digo para a minha mãe, uma coisa assim, e foi a primeira coisa que eu me dei conta quando cheguei aqui: a dificuldade de encher uma geladeira. Eu nunca pensei que na minha casa fosse tão difícil ter a geladeira cheia. Que sempre que eu abria, a geladeira estava sempre cheia. Ou seja, (...) e aqui não. E aqui não, aqui você tem que ter dinheiro, fazer supermercado, é todo o trabalho que é para você ter suas coisas, você se manter por você mesma, se você fica doente aqui, só está... só estamos eu e o meu namorado. É uma vida bem diferente, eu posso dizer que eu cresci muito vindo para cá, bastante. Eu me coloquei do outro lado, eu deixei de dizer que eu estava pagando, eu deixei todas essas coisas, (...). Agora também, por outro lado, hoje em dia, eu sou muito mais tranquila do que eu era no Brasil: eu não tenho medo de sair na rua, eu faço a minha vida... é... eu digo na questão da segurança, eu faço a minha vida como eu tenho que fazer, no sentido de que por exemplo, ontem mesmo eu estava voltando da academia e vinha pensando “nossa, já são dez horas da noite e eu estou voltando andando da academia”, o que é impensável no Brasil. (...) Eu acho que a grande diferença entre a minha vida no Brasil é que a minha vida no Brasil era minha família e meus amigos e eu estava do outro lado, é... e aqui eu tive que amadurecer muito rapidamente e eu passei a ter que estar do lado ou dos meus pais, quando tinha que encher a geladeira, ou das responsabilidades, quando eu mesma tenho que assumir as responsabilidades, e... por outro lado, no meio disso tudo tem é... como se diz? As vivências, não? Isso, que aqui é mais fácil você viver, a vida é mais tranquila, você não se preocupa com nada, eu posso sair com tudo o que eu quiser que... apesar de que eu nunca fui assaltada no Brasil, eu chego no Brasil e tenho um medo horroroso de ser assaltada. Nunca fui, mas eu tenho um medo de que... nossa! Eu digo para a minha mãe, “não posso ver um homem na bicicleta que eu já acho que vai levar o meu relógio”. Sabe? (risos). Minha mãe diz: “menina, para com isso! Que se você ficar assim, você não vai viver!” E eu digo: “mas, mãe, eu tenho medo!”. Aqui, essa sensação de medo eu não tenho, nunca tive. Nunca. E posso voltar às seis horas da manhã, posso sair dez horas da noite, três horas da manhã, a hora que for, eu venho de qualquer lugar e não tenho medo. O que mais me pesa de voltar para o Brasil é isso. É a violência, é a insegurança, são essas coisas que você não pode dominar, que você não pode controlar. Você está exposto. E o pessoal vai dizer: “nossa, mas ela é muita alarmista, ela nunca foi assaltada e por quê está dizendo isso?”. Mas é porque, talvez, não chegou a hora de ser assaltada. “Nossa, mas ela é neurótica, pobrezinha...está aí, foi viver fora e tá toda besta”. Não, é porque eu experimentei o outro lado. Todo ano vem a minha sogra aqui, ela sempre coloca as coisas dela, sai sempre muito arrumada, tal, não que ela não saía no Brasil, vai sempre muito arrumada. E agora eu me lembrei, a primeira vez que a minha mãe e o meu pai vieram aqui, a minha mãe colocou um cordãozinho “ai, minha filha, a gente vai jantar fora, né?! Será que eu posso colocar esse cordãozinho?” E eu, “mãe, a senhora pode colocar esse cordãozinho, a senhora pode ir toda coberta de ouro que não vai acontecer nada”. E ela ficou “ahhh”, impressionada. “Nossa, que tranquilo, a gente está andando, já é uma hora da manhã...”. Está vendo? Não acontece nada. Vem um pessoal do Brasil aqui e tiram foto do lado do caixa eletrônico que está na parede, está na parede. E no Brasil, você vai tirar dinheiro e tem que montar aquele esquema de segurança. (...) eu acho que todo mundo deveria experimentar uma vez na vida essa sensação de ser livre, dentro do que é ser livre, ser livre. De poder andar e ter essa tranquilidade. E como surgiu a ideia de sair do Brasil? O meu noivo veio seis meses antes. Porque queria mudar de ares, ele trabalhava num banco e disse que queria mudar de ar. Eu quero ver... era na época da novela “América”, não sei se você se lembra, que era a Déborah Seco que ia para os Estados Unidos, toda aquela coisa, que a gente fica rico, que no Brasil é uma droga, que eu vou ficar rico morando fora... mentira! Ninguém fica rico morando fora. Aí, ele veio. E eu me inscrevi num programa de intercâmbio para ver se eu conseguia a “beca”. A “beca” era, as “becas” eram duas “becas” para toda universidade, e uma delas foi para mim. E eu disse: “nossa, uma oportunidade dessas, eu não vou deixar escapar”. Claro que eu vou ter que vir [ir] para a Espanha. E diziam: “nossa, e você vai deixar o seu emprego? E você vai deixar suas coisas?”. E eu dizia: “não, mas em um ano eu estou aqui. Um ano eu não vou aguentar”. Um ano, e minha mãe dizia, eu chorava todo dia antes de vir. E a

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minha mãe dizia assim: “olha...”, um dia ela disse assim, uns quinze dias antes, “olha, se você ficar chorando todo dia, você não vai mais. Porque você não pode. Você todo dia chora, você está todo o dia se lamentando... isso é uma coisa boa ou uma coisa ruim?”. Aí, eu parei para pensar e “isso é uma coisa boa”, vamos ver o que via passar. E vim, vim... é... comecei morando num piso na Plaza San Justo. Plaza San Justo que hoje em dia é um lugar bom, mas cheio de punks, e eu penso “nossa senhora, onde é que eu fui me meter?”, e o pessoal dizia “nossa, Plaza San Justo? Lá é muito bom, do lado da Praça Maior”. Realmente, mas, uma loucura. E... um piso cheio de gente, cheio de amigos... eu considero que nessa época eu vivia um Big Brother, porque era todo mundo super amigo, a gente se fez super família e tal... tanto é que depois disso, muita gente me perguntava “ah, você conhece tal brasileiro?”, eu digo “não, não conheço ninguém”. Por quê? Porque um ia embora e parecia que estava morrendo alguém, era aquele choro, era aquela coisa, e eu dizia “meu Deus, e agora? Vão embora todos os meus amigos! Eu não posso, eu sofro muito”. Coisas mesmo de Big Brother, sabe? De Gran Hermando, que o pessoal faz uma família. Aí eu disse, “não, você quer saber de uma coisa? Vamos morar eu e você (eu e meu noivo), e vamos nos apartar dos brasileiros porque, a gente já tinha decido que a gente queria ficar, queria ficar mais tempo... Então, toda vida que ia vir gente de intercâmbio, eu ia estar chorando um mês antes da pessoa ir e um mês depois da pessoa ir, eu ia ficar sofrendo por saudade. Eu disse “não, vamos viver só nós dois”, e claro, fazem parte do nosso ciclo de amizade, mas para evitar sofrer, esse sentimento de Big Brother, porque eu realmente acredito que o pessoal fica mesmo melhor amigo da vida, porque realmente acontece, com as pessoas que eu vivi, a gente ainda se encontra, a gente se fala, tenho um carinho enorme, considero como se fossem meus irmãos, mas aí eu já dei uma passo para sair desse ciclo, disse “não”, porque muita gente que vem, vem para curtir as férias, para “pasarlo bien”, e tudo isso, e não era muito o que a gente estava querendo. E aí, foi. A gente continua no mesmo piso até hoje. Como foi a organização da viagem? Ele veio, mas ficou em Madri. A minha irmã também estava em Madri. Então, ele veio, veio visitar uns amigos, veio para Salamanca, e gostou da cidade e ficou. Eu, a bolsa, eu podia escolher para Oviedo, Valladolid, é... creio que para Málaga, podia escolher para outros lugares da Espanha e para Salamanca. Eu disse “não, vou escolher para Salamanca porque está mais perto de Madri”, onde estava a minha irmã e o meu noivo já estava aqui em Salamanca. E ele disse “ah, a cidade é linda, é maravilhosa, é super pequenininha, dá para você fazer tudo, e tal...”, e vim. Me organizei; soube, todo ano eu me lembro disso: soube que eu tinha recebido a bolsa quando estava em casa, recebi um telefonema do meu pai lá, e disse “pai, o senhor nem sabe? Eu fui selecionada para ganhar a bolsa e não sei o quê...”, e ele disse, “e tu vai, Danita?”, e eu, “vou, né? O senhor deixa?”. E começamos a madurar essa ideia de eu vir e tudo isso. Apesar de que eu ainda penso, “nossa”, nem eu acreditava que tinha vindo, porque eu era super medrosa. Eu tinha medo de pegar um ônibus, ir parar em algum canto e me perder. Até hoje eu me perco. Antes de eu vir para cá, eu pensei, “qual é o melhor lugar para ir?”, eu vou pelo lugar que eu vou sempre, porque se eu me perder, pela Calle Companhia, porque vai que eu erro, e me perco? Eu sempre continuo me perdendo. E o meu pai dizia “e tu vai conseguir ir? Tu vai conseguir andar? Não sei o quê...”, e eu dizia, “não sei, pai, acho que vou...”, e começamos a conversar em casa, e tudo, organizamos a viagem e tal... fizemos um esforço econômico muito grande pra eu vir, porque naquela época o euro era caríssimo. Realmente, só vinha pra fora quem tinha bastante dinheiro, e eu não era dos que tinham bastante dinheiro (risos)... porque eu me lembro na época que o euro estava a 3,65 [reais], no câmbio. Era muito dinheiro, muito, muito dinheiro. E juntamos, fizemos um esforço econômico grande, deu tudo certo e eu cheguei aqui no dia 10 de agosto de 2005. E até hoje. Você veio direto para Salamanca? Não, eu fiquei uns dias, eu fiquei dois dias em Madri com a minha irmã. Fiquei em Madri e depois vim para cá e aqui foi...vamos... a descoberta! Foi, assim, para mim, uma cidade linda, inacreditável, para mim era um sonho estar aqui, e eu gostei desde o primeiro dia de Salamanca. E onde você se instalou? Na Plaza San Justo. Mas o seu namorado já vivia lá?

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Já vivia lá. Entre os que vivíamos lá, os que passavam uns dias, os agregados, éramos umas doze pessoas vivendo lá no piso. Ou seja, era uma verdadeira loucura: era assim, entre Malhação e “meu Deus, o que eu estou fazendo aqui?”. Sabe? Mas, assim, a gente tinha um quarto só para a gente. E o resto dormia uns na sala, outros nos quartos com os outros, tinha um quarto que era enorme, tinha a sala que era também era enorme e que a gente também fazia que era quarto...era muita gente. (...) O dia de comprar era uma festa. Era o dia mais legal de todos. E aí, como eu vim com pouco dinheiro, eu comecei trabalhando invitando o pessoal na rua. Invitava para o “Tim-tim”, que era o bar, que hoje é o 12, que é o que está na Calle La Rúa, né? Invitava, não sei o quê... trabalhava com um rapaz que é super gente boa, que é o Vítor... eu eu dizia assim... que era a única coisa que eu sabia falar em espanhol... porque eu já tinha estudado espanhol, mas eu não entendia muito. E eu dizia assim, “vale, vale...”, “vale, vale...”. E eu decorava. Ele dizia assim, “Daniela, duas copas, a segunda é grátis”. E aí pronto, “você diz, a segunda, grátis”. Eu pegava ali, os papéis para invitar e botava na minha cabeça “a segunda é grátis”. Você podia passar e perguntar o que fosse, que eu “a segunda é grátis”, “a segunda é grátis”, “a segunda é grátis”, só isso. “La segunda copa es grátis”. Se eu tivesse que trabalhar toda a noite, até três horas, até três horas falando a mesma coisa... “eh, ¿dónde está la calle....?”, “la segunda es grátis.”. Ou seja, trabalhava na Plaza Mayor, invitando. E fazia um pouco de dinheiro e fui sobrevivendo assim. Para as classes? Ia, não muito... porque o horário, o primeiro ano era horrível para se acostumar, dormir, acordar... e como o pessoal ia, era uma casa itinerante, que todo mundo ia, entrava e saía, todo dia tinha gente em casa, e era perto de lugar de bar, então, todo o mundo passava lá em casa, “botellón” lá em casa, é... ou seja, é viver a vida “Salamanca”, salmantina, a tope. Por isso que eu quis sair do Big Brother... e ir viver só com o meu namorado, porque afinal de contas, dos doze, acabaram ficando duas meninas, e eu e o meu namorado. E o resto teve que ir embora e a gente disse “não”, também não vou mais querer saber dessa vida de festa, não. Já aproveitei bastante. E pronto. (risos). E a sua relação com os espanhóis do seu entorno? Adoro. Ou seja, a grande maioria dos meus amigos e o meu grupo de amigos, todos são espanhóis. E eu considero que estou super bem integrada, gosto muito deles, são... os espanhóis têm uma coisa que eu acho assim... vamos, fantástica. Eles dizem mesmo as coisas, eles não estão nem aí. Se tiver que dizer uma coisa, “ei, você furou a fila”, eles vão falar para você. No Brasil, não. No Brasil fica todo mundo assim...Tão morrendo ali de raiva, e não dizem...e aqui “perdone, que yo iba por delante”. Adoro. São super verdadeiros, se ele tiver que falar alguma coisa para você, ele vai falar, ele vai te dizer na cara. E não vai ter esse negócio, “nhê, nhê, nhê...”, não. (...) E considero que estou bem integrada, porque a minha vida, o meu círculo de amizades, são espanhóis, e eu também valoro muito a cultura dos espanhóis. Eu acho que eu... hoje em dia, a gente está pedindo a nacionalidade, já levamos com o processo de nacionalidade e... realmente, não é... eu teria orgulho de me sentir espanhola. Sinceramente, e eu sempre digo, que se eu tivesse que fazer alguma coisa de bom por tudo o que me fizeram aqui, a parte das becas e tudo isso, eu faria, porque eu gosto. Eu gosto. Eu gosto de viver em Espanha, viver a Espanha do lado bom e do lado ruim. Eu conheci antes da crise e eu estou vivendo na crise, igual que os espanhóis... mas, eu sou assim, apaixonada pelos espanhóis. “Nossa”, é mais fácil falar mal de um brasileiro do que de um espanhol. Eu gosto daqui. Eu me sentiria orgulhosa, se eu tivesse a nacionalidade, de ser espanhola. Com certeza... vamos... com certeza. E cultura geral da Espanha? Sei tudo. Vejo todos os telediários. Eu busco viver Espanha o mais profundo que eu posso. (...) Eu gosto daqui. Eu considero que metade de mim é espanhola. (...) Para mim, eu acho que foi uma experiência muito boa, e eu acho sempre que vou voltar aqui. Sempre vou querer voltar. Ainda que eu viva no Brasil, sempre vai ter essa parte, essa parte do meu coração que vai ser para eles. De verdade. E por que você pensa em ir embora? Por tudo isso que eu já falei. Porque a gente via ficando velho, porque eu não acho que aqui eu não possa ter uma família (...). Queria poder ter as coisas daqui a gente de lá. E esse lugar é impossível. Eu queria ter o clima de Fortaleza e a praia de Fortaleza na Plaza Mayor. E é impossível. Eu queria ter os colégios públicos daqui e a minha família também. E é impossível. (...) É assim, eu acho que o que me chama é a família, mais do que os amigos, mais do que tudo, é a família. E também o meu desejo de me realizar profissionalmente. (...) E eu não sei se me

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realizaria profissionalmente aqui, porque no Brasil um publicitário ganha muito mais dinheiro, ou quem trabalha na televisão tem muito mais reconhecimento. (...) E a sua relação com a Administração Pública espanhola? Bem..., eu nunca tive...primeiro eu tive DNI de estudante, depois eu consegui passar para residência, nunca tive nenhum problema. Cobrei paro como todo mundo, todas as coisas que eu faço, sou bem atendida... a ver... quando eles não saem para tomar o café... eu sou bem atendida (risos). (...) É mais, eu acho que as coisas aqui funcionam melhor do que no Brasil. Infelizmente. Mas, não tenho nenhuma queixa, não. (...). E em relação com a Administração brasileira? Com os setores de representação brasileira aqui na Espanha? Relação com a representação...? Consulados... Horrível. Eu me considero desatendida com o Consulado do Brasil aqui. (...) Porque você vai fazer um trâmite e “nossa”... eu já fico mais nervosa de saber que eu tenho que fazer, por exemplo, convalidar a documentação para a nacionalidade... eu levei três horas para receber um carimbo, que se eu tivesse mandado fazer tinha sido mais rápido. (...) Se você tem que renovar o passaporte, é uma dificuldade, tudo é uma dificuldade. E que trâmite de documentação brasileira você já teve que fazer? Tive que convalidar os meus estudos... que também, outra coisa: no Brasil, o consulado de Fortaleza também é uma vergonha. É... convalidei os meus estudos, fiz os trâmites da nacionalidade, tudo isso, acho que essas duas coisas... também fiz a convalidação dos estudos do meu namorado, mas todas as coisas que a gente teve que fazer, foi uma dificuldade. (...) Ou seja, a Administração Pública daqui funciona muito melhor com a gente em relação a um “papeleo”, que uma Administração do Brasil para a gente. É como se fosse uma barreira. No meio disso tudo tem uma barreira. E essa barreira custa caro. Você tem que pagar e pagar bastante. (...) Eu tenho que fazer qualquer “papeleo” no Brasil e... vamos... menos de 100 euros você não gasta. Entre traduzir, traduzir legalizado, não sei o quê, e tal... e os “sellinhos”, é muito dinheiro. Ou seja, eu considero que é uma fábrica de fazer dinheiro. (...) Vão me deportar? (risos). É uma burocracia desnecessária. Eu acho. (...) Eu vim para viver Espanha, se fosse para ficar com a cabeça no Brasil (...), eu vim para viver a Espanha e tudo que traz a Espanha. (...) Eu que sou a estranha, sou eu que tenho que me adaptar. Eu que tenho que me adaptar a eles. (...) Por isso, nunca fiz nenhum curso de integração, em nem me sinto excluída socialmente. Eu vim com visto de estudante, trabalhando no restaurante, depois que passaram os três anos, você tinha direito a trocar o visto automaticamente, se você tivesse um contrato de trabalho, então trocaram, o meu chefe fez todo o trâmite comigo, para trocar o visto. E depois, a residência, já tive todas as renovações que têm, e agora a próxima renovação vai ser em outubro e posso pegar a permanente de cinco anos. E a partir disso, já levo um ano e meio tramitando a nacionalidade. Você é feliz aqui? Eu? “Bua”... super feliz. Só falta uma praia na Praça Maior. Sou bastante feliz. (...) A gente é tão feliz aqui que o que falta é trazer a minha família toda, a temperatura de Fortaleza e a praia. Pronto. E eu já ia ser a pessoa mais feliz do mundo. Quase nada. Não... quase nada (risos). Considerações finais

Nesta ocasião, optamos pela apresentação de relatos da experiência migratória brasileira na Espanha, com alguns fragmentos e uma das entrevistas na íntegra. Esperamos que as histórias aqui transcritas provoquem o interesse e a curiosidade neste tipo de metodologia.

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Finalmente, não poderia encerrar este texto, sem agradecer profundamente às pessoas que diante das nossas câmeras e gravadores abriram suas vidas de forma tão generosa e sincera.

Referência bibliográfica:

BOSI, Ecléa. Memória e sociedade. (1994). Companhia das Letras, São Paulo. BRAGA MARTES, Ana Cristina & Fleischer, Soraya. (2003). Fronteiras cruzadas. Etnicidades, gênero e redes sociais. Paz e Terra, Rio de Janeiro. DANTAS DEBIAGGI, Sylvia & de Paiva, Geraldo José (org.). (2004) Psicologia, E/Imigração e Cultura. Casa do Psicólogo, São Paulo. MASANET RIPOLL, Erika. (2008) De Brasil a España: un estudio sobre la migración desde una perspectiva integrada de los lugares de origen y de destino. Tese de doutorado, Universidade de Alicante, Alicante, Espanha. SEBE B. MEIHY, José Carlos (2004). Brasil fora de si. Experiências de brasileiros em Nova York. São Paulo, Parábola. SEBE B. MEIHY, José Carlos & Holanda, Fabíola. (2007). História Oral. Como fazer, como pensar. Contexto Ed., São Paulo. TAVARES DUARTE, Elisa. (2013) “Memória da imigração brasileira na Espanha: a experiência do ‘Ponto de Memória’”. Atas do congresso, 7º CEISAL, Porto. TZVETAN TODOROV. (2008) El miedo a los bárbaros. Galaxia Gutenberg, Barcelona.

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EL TEATRO DE SHAKESPEARE Y EL ESPACIO CONTEMPORÁNEO Marina Simone Dias ETSAB- UPC [email protected] Resumen Desaparecido hace casi cuatro siglos, Shakespeare sigue vivo, sigue representándose en todo el mundo, universal y contemporáneo. Más allá de quién fue y de qué significa, está el hecho incontestable de que “Shakespeare”, por sí solo, no quiere decir nada: no significa nada si no es representado, traducido, adaptado, interpretado, comprendido. En definitiva, su semántica no reside en el qué, sino en el cómo, presentada en los montajes actuales de sus obras. El trabajo investiga la dramaturgia y el espacio renacentista inglés que formó parte de la praxis teatral de Shakespeare, rompiendo con las convenciones de unidad de tiempo y lugar, y conquistando una libertad antes impensada, tanto a nivel dramatúrgico como arquitectónico-escénico. Se ha buscado abordar también su significado, situándolo en su tiempo, en la historia del teatro, y analizando su papel en el teatro contemporáneo. Palabras-clave: Shakespeare, teatro, arquitectura, escenografía. Resumo Desaparecido há quase quatro séculos, Shakespeare continua vivo, permanece sendo representado ao redor do mundo, contemporâneo e universal. Mais além do que foi e do que significa, é inegável o fato de que "Shakespeare", por si só não significa nada: não significa nada se não é representado, traduzido, adaptado, interpretado e compreendido. Em suma, sua semântica reside não no que, mas no como, apresentado nas montagens atuais de suas obras. O trabalho investiga a dramaturgia e espaço renascentista inglês que fez parte da práxis teatral de Shakespeare, rompendo com as convenções da unidade de tempo e lugar e conquistando uma liberdade anteriormente inesperada, tanto em nível dramatúrgico como arquitetônico-cênico. Procurou-se abordar o seu significado, situando-o em seu tempo, na história do teatro e analisando o seu papel no teatro contemporâneo. Palavras-chave: Shakespeare, teatro, arquitetura e cenografia.

“¿Quién es Shakespeare?” Era ¿católico o anglicano?, ¿escéptico o creyente?, ¿monárquico o republicano?, ¿homosexual o heterosexual? Shakespeare no dejó registros sobre su vida, su trabajo, su obra, nada, por lo que casi todo lo que se dice de él no son más que especulaciones. Ese silencio pasó a formar parte de la “leyenda Shakespeare”. Sigmund Freud, que leyó intensa y extensamente a Shakespeare, en la década de treinta, afirmó que dejó de creer que el autor de las obras de Shakespeare era el hombre de Stratford; así como Orson Welles. Brecht defendía que el autor inglés no escribió solo toda la obra a que se le atribuye, sino que sería el “dramaturgo jefe” de un equipo de autores. Para otros, el verdadero autor de las obras de Shakespeare sería Chistopher Marlowe, Francis Bacon, o bien Edward de Vere, el 17º Conde de Oxford. En la investigación lo que realmente importa es el análisis de las obras en sí, inscritas en el periodo isabelino-renacentista y para un público y espacio concretos. Es decir, se sabe tan poco a ciencia cierta sobre la vida –personal, profesional– del dramaturgo que, en realidad, poco importan estas cuestiones. Debido a la dificultad de responder adecuadamente y de manera definitiva a esa pregunta aparentemente simple, nos toca sencillamente cuestionarnos: “¿qué entendemos por Shakespeare?” Los estudiosos pueden discutir furiosamente durante siglos acerca de la existencia o no de figuras como Shakespeare. Como dice la investigadora Helena Buffery, dejemos que discutan en

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plena indiferencia 31, pues lo cierto es que hay una realidad superior que es la de la obra artística y de su valor intrínseco. De otra parte, Harold Bloom cita la observación de T.S. Eliot acerca de las investigaciones: “lo más que podemos esperar es equivocarnos sobre Shakespeare de una manera nueva”32 y propone que dejemos de equivocarnos sobre él, directamente dejando de intentar acertar. En esa misma línea, tomamos a “Shakespeare” simplemente como el autor que escribió las decenas de obras más famosas de la dramaturgia mundial. Ni más ni menos; independiente de los detalles de su biografía. Aunque sólo el contexto no explica el valor de Shakespeare, el que vivió él y sus coetáneos fue muy peculiar. La estética, temática e ideología del dramaturgo van unidas a su contexto histórico-social y cultural específicos. Hasta mediados del siglo XVI, Inglaterra era un Estado débil, de poca importancia en el exterior, con una población escasa y considerada semibárbara, y un idioma prácticamente desconocido fuera de sus fronteras. Al fin del siglo XVI, el contexto social de la era Tudor y de los primeros Stuarts fue el producto del precario equilibrio entre la herencia medieval, el descubrimiento de restos de teatros antiguos, de la tragedia antigua y de la Poética de Aristóteles, la expansión marítima, el descubrimiento de nuevos mundos geográficos y científicos, y los movimientos religiosos de Reforma y Contra-Reforma. Tras la Guerra de las Dos Rosas, la violencia de los antagonismos religiosos y la expansión del despotismo de la realeza inglesa por parte de los Tudor, la pequeña nobleza y la clase media rural y urbana ansiaban por un gobierno que les asegurara paz social, orden institucional y crecimiento económico. La era isabelina se situó en la frágil frontera entre dos mundos: el feudalismo en descenso y el capitalismo naciente. En Londres, en la vida urbana de la mayor ciudad europea de la época, Shakespeare descubrió nuevos horizontes para su repertorio dramático y para sus historias del extranjero. Con la ascensión del sentimiento de unidad política nacional y prosperidad económica, el orden social vigente –hasta entonces entendido como divino– pasó a ser percibido como injusto y posible de cambio. A la vez, eran lanzadas las bases culturales de un nuevo contexto humanista, donde prevalecería la preocupación por la moral y la conducta individual. A mediados del siglo XVI, la reforma protestante había puesto fin al anterior teatro religioso, dando lugar a un nuevo y dinámico teatro profano. Lo que entendemos hoy como teatro isabelino es indisociable de ese poder vigente, que se relaciona con una escritura particular, un modo de interpretación y una arquitectura y escenografía característicos, es decir, todo un código de representación específico33. A partir del conflicto entre los resquicios de un mundo medieval teocéntrico y las nuevas tendencias humanistas y clásicas, predomina en Shakespeare un lenguaje manierista: cargado de

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BUFFERY, 2010, p.163-164. Su libro deriva de su tesis doctoral acerca del mismo tema. BLOOM, 2002, p.24. 33 SURGERS, 2005, p.85. 32

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tensión, dinamizando la relación entre elementos opuestos. El resultado de este ambiente paradójico y conflictivo da lugar a un nuevo significado existencial, que rehabilita la tragedia como género y crea un nuevo producto. En sus obras, el dramaturgo plasma las ideas de orden y de responsabilidad social en su particular visión trágica. En esa sociedad más bien secular, caracterizada por la ausencia de lo absoluto, de los dioses y del destino, el talento y genialidad del dramaturgo también utilizó la Geografía y la Historia34. El crítico teatral Jan Kott halla la grandeza del realismo de Shakespeare en “darse cuenta del grado de involucración del hombre en la historia”35.

La dramaturgia y el espacio de Shakespeare

El teatro renacentista, el teatro isabelino, el teatro de Shakespeare son resultado de la conjunción entre un poder fuerte y una escritura particular, lo que implica un código de representación característico y una arquitectura-escenografía específica. Shakespeare no escribía obras literarias, sino “guiones” para las puestas en escena que posiblemente él mismo llevaba a cabo. La escritura shakespeariana tiene la representación, la obra espectacular, en su origen. Por este motivo –y también porque el teatro isabelino estaba marcado por esta característica– sus obras tienen pocas acotaciones y tan imprecisas, dejando gran libertad al director que las monte y al público que las asista. Son los propios diálogos los que indican y determinan la escena. Existe, así, una relación intrínseca entre las obras dramáticas de Shakespeare y el espacio renacentista inglés: la dramaturgia es indisociable del espacio. En la construcción del texto, Shakespeare ya tenía un fin muy concreto: un espacio y un público específicos. Ya hacía referencia a la arquitectura y a la escena, ya tenía en cuenta la proximidad y posición del público. En sus obras, la organización retórica del texto y la de la arquitecturaescenografía se superponen. Partiendo de la lectura del texto shakespeariano es posible observar la concepción y la práctica escenográfica de la época, y cómo las relaciones espaciales sugeridas o inscritas en el texto se concretizaban sobre la escena isabelina 36. En la historia del espacio teatral occidental europeo, el renacentista inglés es un capítulo aparte: su estética, temática e ideología van unidas a su contexto histórico-social y cultural específicos. Mientras el drama renacentista italiano se desarrollaba como una forma de arte elitista, el teatro isabelino, en cambio, resultaba un espacio albergador de todas las clases, ejerciendo un papel de “nivelador social”. Por un lado, prescindiendo del estilo rebuscado usual en la época y del romanticismo jocoso de la élite inglesa, Shakespeare concentró en sus obras una variedad de elementos de alta 34

Cf.: GASSNER, 1974. BOQUET, 1989. HAUSER, 1995. DINIZ, 1999. p.124. HONAN, 2001. SURGERS, 2005. 35 KOTT, 2007, p.57. 36 PAVIS, 1994, p.52-53.

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cultura y de cultura popular, refinados y más rudos, además de mezclar elementos poéticos y cotidianos, serios y divertidos, sagrados y profanos 37 –tales como dramas elaborados, estudio de personalidades, juego de palabras y acrobacias verbales, música, danza, duelos de esgrima, farsa, fiesta y pillerías del bufón. El lenguaje teatral refleja esta exigencia, enriqueciéndose con registros variados y adquiriendo gran flexibilidad de expresión. En ese teatro tosco, según Brook38, Shakespeare tenía la libertad de mezclar elementos diversos y dilatar los límites de la imaginación espectadora. De hecho, sus obras también están llenas de personajes heterogéneos: en las tragedias se mezclan los nobles con individuos que pertenecen a las clases bajas, se interrelacionan los sentimientos más sublimes con los más canallescos. Así, siglos antes de que estos conceptos fueran incorporados al vocabulario de la crítica experta, Shakespeare ya ponía en confrontación lo heterogéneo, híbrido, multicultural, como una yuxtaposición o collage de tipos sociales y lenguajes, transgrediendo todo tipo de fronteras –a ejemplo de las convenciones de la unidad de tiempo y lugar–, creando un teatro original. Por otro lado, el teatro isabelino fascinaba a todas las clases de espectadores. Ese público heterogéneo –representado por nobles, cortesanos, artesanos, comerciantes, estudiantes y campesinos– y con gustos diversos debería decodificar estos elementos. Tal hecho provocaba un movimiento dialéctico que mantenía el interés del espectador y garantizaba que el teatro fuera entendido también por los que no dominaban todos los códigos presentados. La relación física con este público era muy próxima y directa: la acción se desarrollaba sobre una plataforma rodeada por los espectadores –sin embocadura ni “cuarta pared” que aislara esos dos mundos– que vivían la obra con los personajes. La relación espacial entre escenario y patio de espectadores no era frontal como en los teatros a la italiana, sino prácticamente central. La mayor parte de la asistencia solía permanecer de pie en el patio descubierto –a menudo comiendo o bebiendo, negociando o luchando– o bien en las galerías, pero siempre muy cercanos a la acción. Las galerías, cubiertas por un tejado de paja, estaban dispuestas en tres plantas superpuestas. Reservadas a los más pudientes, éstos ocupaban los mejores lugares, o incluso un sitio en el propio escenario. Cuanto al espacio, el drama isabelino también buscó su lugar teatral. Una vez que el teatro medieval abandonó las iglesias y las catedrales para ocupar las calles y plazas de las ciudades, se dirigieron a las tabernas, salones comedores de las universidades o edificios como los colegios de abogados y castillos privados39, pobremente adaptados a la labor teatral. No obstante, fueron los circos-arenas de luchas de osos y perros y los patios de las posadas inglesas (inn-yard) los que adquirieron una importancia singular por su propia morfología, sirviendo de modelo para la construcción de los primeros teatros. Las posadas se organizaban alrededor de un patio, que funcionaba como aparcamiento para los vehículos de la época y como almacén de los servicios de

37

CASTEL-BRANCO, 2010, p.155-156. BROOK, 2001. 39 Parte de la dramaturgia de la época se originaba en la vida cortesana londinense. 38

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correos y transportes ordinarios. Solían tener tres pisos con galerías y un primer piso de habitaciones con galerías que daban al patio y que servían de palcos durante las representaciones teatrales. Así, el edificio teatral isabelino consistió en una construcción muy simple de madera, un cilindro dotado de un amplio patio interno sin techo, cerrado por las tres plantas de galerías cubiertas. De hecho, se trataba de una planta poligonal próxima a un círculo, a la que Shakespeare hace referencia en el prólogo de Henry V: “this wooden O”. Esa arquitectura de forma circular –una geometría con un sentido místico–, era una herencia del tiempo en el que los actores se presentaban en arenas construidas para los combates de animales. También la memoria espacial estaba presente en la escala similar a los patios de posadas, en las galerías escalonadas y en el vacío central, tratando de acoger el mayor número posible de espectadores, siempre muy cerca de la acción y de los actores40. A diferencia de lo que pasó en el caso del teatro a la italiana, que se desarrolló a partir de un grupo de arquitectos y teóricos humanistas, el teatro isabelino fue obra de artesanos y autoresactores que ponían en práctica ellos mismos su forma de pensar 41. En definitiva, se trataba de un espacio circular, “encerrado en sí mismo y abierto al cielo a la vez, radiante y convergente, en el cual la representación se desarrolla en volumen”42. La escena isabelina se hallaba a medio camino entre el tablado medieval, simultáneo y predeterminado según la previdencia divina, y la escena a la italiana43 de gran profundidad e ilusión perspectiva –que alcanzaría su máxima expresión más tarde. Sin embargo, conservando aún mucho de la antigua simplicidad medieval, ya no representaba lugares predeterminados, según una dimensión esencial e intemporal, puesta en términos religiosos, sino en la sucesión autónoma de los acontecimientos 44. La inexistencia de un escenario tal como se entiende hoy en día –léase: a la italiana– le proporcionaba una gran libertad no sólo al espectáculo, sino principalmente al juego dramático. Esa libertad se reflejaba también en una flexibilidad temporal y espacial. La escasez escenográfica tenía la ventaja de prescindir de interrupción entre actos para el cambio de escenario. Unos pocos objetos bastaban para ubicar la acción: un trono era la corte, una mesa era una taberna, etc. Se trataba de un espacio escénico reducido y desnudo, por lo tanto, muy ágil y económico. Por su conformación espacial, estos teatros ofrecían una significativa intimidad: la plataforma escénica avanzaba hacia el público –apront stage–, que la rodeaba. Las galerías

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MACKINTOSH, 2000, p.21. SURGERS, 2005, p.87. 42 MACKINTOSH, 2000, p.100. 43 El principio a la italiana estaba presente en Inglaterra, pues había sido desarrollado por Iñigo Jones a su regreso de Italia, donde se había formado por Palladio. 44 “Tudo é projetado a partir do homem; o indivíduo, seu caráter, sua psicologia, tornam-se paulatinamente o eixo do mundo. Para aumentar o efeito perspectivo, acentua-se a tendência de separar palco e platéia – separação indispensável para intensificar a ilusão da realidade sensível”. ROSENFELD, 1996, p.130. 41

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cubiertas, dispuestas en plantas superpuestas, estaban reservadas a los más pudientes, que ocupaban los mejores lugares o incluso un sitio en el propio escenario. En el patio central descubierto permanecía de pie la mayoría de los espectadores. Esta disposición era muy importante, pues permitía acercar la acción dramática al público, involucrándolo en la representación, participando en el drama. Así, otra característica heredada del teatro medieval era el espacio único, global, democrático, que envolvía público y escena. Este espacio englobaba a todos y ponía en juego una imbricación compleja entre la ficción de la representación y la realidad del espectador, ofreciendo una multitud de puntos de vista posibles. Los textos de Shakespeare revelan cuanto él buscaba a su público, produciendo una dramaturgia que tiene la consciencia de la presencia del público y que a menudo se refiere a él45. Según se cree –a partir de datos de las excavaciones del Rose y del Globe, del boceto de Buchel-Witt, de un contrato de construcción del Fortune, de algunas ilustraciones panorámicas de la época de la ciudad de Londres y de las indicaciones de algunos dramaturgos– todos esos teatros eran bastante semejantes en forma y dimensiones. No obstante, las informaciones más fiables sobre espacios concebidos y construidos para la actividad teatral y sobre las condiciones espaciales de trabajo de Shakespeare46 se refieren principalmente a The Rose y The Globe. The Rose fue construido en 1587, siendo ampliado en 1592, y tenía un aforo de más de dos mil espectadores47. Tenía una forma poligonal que se acercaba a un círculo, de veinticinco o treinta metros de diámetro, y con una pequeña plataforma cubierta con forma de trapecio –amplio al fondo y más estrecho delante– de cinco metros de profundidad como escenario. Los actores estaban muy próximos a los espectadores del área central, mientras que los dos o tres pisos de galerías cubiertas (como en las posadas inglesas de la época) estaban a sólo nueve o diez metros de distancia del escenario, rodeándolo en casi 260º48. The Globe era un poco más grande. Fue construido por Peter Street en 1599 en la orilla sur (izquierda) del río Támesis, en la zona conocida como Southbank o Bankside –un vecindario donde se concentraban varios teatros de la época, notorio por la delincuencia, la prostitución, las tabernas, los teatros y otros entretenimientos, como por ejemplo, las riñas de perros contra osos– y fuera de la jurisdicción de la city y de los administradores puritanos. Para su construcción se utilizaron materiales del desmantelado The Theatre, de James Burbage. Este teatro acogió a la compañía teatral Lord Chamberlain’s Men, de Burbage y Shakespeare, cuyas presentaciones, en 45

BORNHEIM, en: HELIODORA, 1997, p.XX. Pese a que Shakespeare presentó varias de sus obras en espacios de características completamente distintas, como las salas de los palacios, en presencia de la reina Elistabeth I o del rey James I –para el que, por ejemplo, estrenó Othelo, en 1604. ASTINGTON, 2001, p.104. 47 Según Iain Mackintosh, por cuestiones de comodidad y seguridad, hoy en día en el Rose no cabrían más de 400-500 personas. Cf.: MACKINTOSH, 2000. 48 El Rose pasó a tener otros usos, entrando en decadencia años más tarde. La descubierta y la excavación de las fundaciones del Rose, cerca del puente de Southwark, en 1989, ofrecieron datos más exactos y fiables respecto al trazado de los teatros shakespearianos que los que se tenía hasta entonces. HONAN, 2001, p.141-142. 46

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general, se daban durante el día y los meses de verano. En 1613 fue destruido por un incendio causado accidentalmente por un cañón durante la representación de Enrique VIII, siendo reconstruido el año siguiente. En 1642 fue cerrado por el renacido puritanismo inglés y demolido en 1644 para la construcción de bloques de viviendas49. Tenía forma circular con aproximadamente treinta metros de diámetro. Pese a sus dimensiones reducidas –producto de la limitación de espacio horizontal para construir–, según se cree, podía albergar más de tres mil espectadores. Su escenario rectangular medía cerca de siete u ocho metros de profundidad, trece metros de ancho y se elevaba a un metro y medio de altura desde el patio central. Desde la parte inferior del escenario, se podía acceder al mismo a través de una trampilla. Otra trampilla estaría en el techo para la aparición y desaparición de personajes sobrenaturales. Sobre el escenario había dos columnas decoradas que sostenían el techo, y tres puertas que conducían a la parte posterior de la escena, y por donde entraban y salían los personajes. Sobre estas puertas había un balcón utilizado como un espacio superior –una manera eficiente de aprovechar al máximo el espacio reducido. Esa dimensión vertical era frecuentemente utilizada por la acción dramática. Tanto en The Globe como en The Rose, el escenario era, por lo tanto, poco más que una plataforma fija y neutra, con tan sólo algunas puertas y trampillas, donde una serie de ilusiones eran creadas. Respecto a otras escenas de la historia del teatro –tales como el contemporáneo, el clásico griego o el de algunas compañías medievales italianas, que sí contaban con maquinarias escénicas y maestros de ilusión para “hacer presente” a los dioses y “hacer visible” el mundo sobrenatural– la isabelina poseía pocos elementos y recursos escénicos. Parte de la originalidad del periodo se debe a sus logros en traducir, con esos mínimos recursos, sensaciones y ambientes al espectador. La progresiva y total desaparición de las máquinas está relacionado con la secularización de ese teatro renacentista: tales estructuras y elementos ya no eran necesarios en una cultura que, alejándose de la influencia católica 50, se volvía hacia los conflictos sociales y morales del ser humano. En esta concepción más sociológica, antropológica y metafísica de lo trágico, la tragedia shakespeariana es consecuencia de la propia existencia humana51.

49

En 1989, su ubicación fue descubierta por unas excavaciones debajo de un aparcamiento. En el siglo XX el teatro fue reconstruido a cerca de 200 metros de su emplazamiento original por la fundación Amigos del Teatro del Globe de Shakespeare e iniciativa del actor y director Sam Wanamaker. La construcción no es una réplica exacta del edificio original, sino la reconstrucción basada en todo el conocimiento que se posee hoy del tema. En 1997 fue finalmente inaugurado bajo el nombre de Shakespeare’s Globe Theatre, con una capacidad de 1500 espectadores, destinado a representaciones de las obras del dramaturgo. 50 La separación del Papado y del Sacro Imperio Romano fue uno de los hitos del reinado de Elizabeth y del nacimiento de la Inglaterra moderna. 51 PAVIS, 2003, p.416. Shakespeare inaugura un nuevo concepto de tragedia: la “tragedia moderna”, distinta de la clásica griega. Mientras esta última se basaba en la relación de los hombres con los dioses, la tragedia de Shakespeare no contiene elementos religiosos y se desarrolla, sobre todo, en las relaciones sociales entre nobles y personajes de la corte. Cf.: WILLIAMS, 2002. BORNHEIM, 1975.

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Este teatro era no mimético, no realista y no ilusionista, pues no buscaba ser la imitación fiel (mímesis) de una realidad exterior, y mucho menos dar a los espectadores la ilusión de que la representación teatral era la propia “vida real”, sino que las evocaba. Al prescindir de decorados y de casi todo tipo de escenografía, la palabra se encargaba de dar vida al espacio, evocando épocas, lugares y climas dramáticos, y creando imágenes que el público “veía”. El teatro de Shakespeare, a través de su poesía dramática, era un espectáculo para la imaginación de sus espectadores, así como de las generaciones futuras52. Una profunda unidad de lenguaje caracterizaba ese teatro, que le permitió al dramaturgo contar todas sus historias, no sólo viajando por el mundo53, sino también pasando de la acción exterior al universo de las impresiones interiores y desvelando la existencia psíquica –antes aún de la creación de la Psicología como ciencia del conocimiento. Más que una separación entre sala y escena, el teatro isabelino se basó en la comunión entre realidad y ficción vivida por su público. Pese a su popularidad, tenía mala reputación. En pocos años, varios teatros pasaron a ser edificados en Londres con este fin concreto, la mayoría se situaba fuera de la jurisdicción de la City, más allá del Támesis, puesto que estaba prohibido en la ciudad. A comienzos del siglo XVII, con 200.000 habitantes, Londres tenía diez teatros públicos. El establecimiento de teatros públicos grandes y provechosos económicamente fue un factor esencial para el éxito del teatro inglés renacentista. Sin embargo, en 1642, con el inicio de la Guerra Civil Inglesa el gobierno puritano prohibió por decreto toda representación teatral: los teatros citados fueron clausurados y destruidos, y con ellos gran parte del testimonio del teatro inglés del renacimiento. Dieciocho años después, con la restauración de la monarquía, los teatros reabrieron, pero con un carácter bastante diferente: por ejemplo, con proscenio. Por tanto, ese teatro llegó a su fin de manera brusca, aunque dejando un formidable legado para las generaciones futuras. El espacio isabelino y el espacio contemporáneo

Cuando Shakespeare rompió con su dramaturgia las convenciones de unidad de tiempo y lugar, conquistó una libertad antes impensada, tanto a nivel dramatúrgico como arquitectónicoescénico. Las nuevas posibilidades creadas por el teatro isabelino –precursor del teatro moderno– fueron el gran legado para los siglos venideros, asumidas completamente por el teatro contemporáneo. Mackintosh afirma que el teatro actual ha evolucionado directa y sucesivamente a partir de Shakespeare, nuestro antepasado teatral54. Ese teatro renacentista posee la virtud de la versatilidad, la flexibilidad del escenario desnudo en contacto con el público. Hoy en día, el 52

Cf.: KOTT, 2007. Para citar sólo algunos ejemplos, Romeo y Julieta, Otelo y El mercader de Venecia se pasan en Italia, mientras La tempestad se ambienta en una isla del Caribe y Hamlet en Dinamarca. 54 MACKINTOSH, 2000, p.17. 53

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espacio libre, abierto, cambiante según las necesidades de la dramaturgia, y con una escenografía muy elemental, se materializa en espacios teatrales flexibles en los que la disposición del público se adapta a la puesta en escena. También para Peter Brook –desde la década de cuarenta trabajando con obras de Shakespeare y al frente de la Royal Shakespeare Company entre los años 1962 y 1970–, Shakespeare es el mayor dramaturgo de todos los tiempos y el mayor representante de un teatro entretenido, alegre y popular, al que Brook llamó tosco. El director reivindica para el teatro contemporáneo esa “tosquedad” como factor congregante e impulsor de una participación comunitaria, de una libertad “joiosa”55. En términos teatrales, Shakespeare es el gran modelo para Brook, pues es una mezcla del teatro “sagrado” y “tosco”, con una variedad de elementos: épicos y populares, rituales y cómicos, refinados y rudimentarios, un lenguaje flexible y penetrante, que alcanza directamente el público. Si para los espectadores de la Inglaterra de los siglos XVI-XVII, la violencia, la pasión y la poesía eran inseparables56, también el público contemporáneo no es indiferente a esa mezcla de elementos. Ese teatro popular “es por naturaleza antiautoritario, antipomposo, antitradicional, antipretencioso. Es el teatro del ruido, y el teatro del ruido es el teatro del aplauso”57. A partir del teatro de Shakespeare, Brook desarrolló su concepto de “empty space”, plasmado en su célebre libro El espacio vacío (1968). Como explica el director, la extraordinaria fuerza de las obras de Shakespeare se revelan en las puestas en escena contemporáneas porque transcurren “en ningún lugar”, no tienen ambientación concreta. Respecto al espacio teatral, en Shakespeare la relación con el público tiene relevancia crucial. En una comparación con el espacio griego, que parece alejar a los espectadores de la escena, el espacio isabelino los acerca de una manera casi promiscua. También el espacio contemporáneo presenta tal característica: busca esa proximidad, esa promiscuidad con el público. De esa relación saca su esencia contemporánea. Shakespeare es ante todo una imaginación –fecunda y desbordante, como subraya Brook58– más que dramatúrgica, sobre todo escénica, espectacular. Si se considera que las marcas espacio-temporales son el signo de la estética de una obra, que organizan el microcosmos de la ficción y la estructuran según principios decisivos59, a partir de la flexibilidad y libertad temporal y espacial que Shakespeare asume en sus obras, gran parte de su teatralidad reside en la velocidad de la narrativa, en la contundencia dramática y en el poder de condensación de las escenas60.

“Alegre”, en castellano. CASTEL-BRANCO, 2010, p.155. BROOK, 2001, p.124 57 Ibídem, p.89. 58 BROOK, 1994, p.38. 59 RYNGAERT, 1995, p.76. 60 KOTT, 2003, p.17. 55 56

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En este sentido, el teatro de Shakespeare es impactante porque su tiempoespacio son condensados, lo que se aproxima mucho al lenguaje cinematográfico. “La vida en el teatro es más entretenida e intensa porque está más concentrada. La acción de reducir el espacio y comprimir el tiempo crea un concentrado”61. De hecho, para Jan Kott y Peter Brook, Shakespeare es cinematográfico. El espacio vacío y la escasa escenografía hacen mucho más fluido el espectáculo, implicando más fácilmente el público en el drama. En Shakespeare, las escenas se suceden rápidamente, saltando de un lugar a otro o de un tiempo a otro, con una agilidad muy familiar para el espectador contemporáneo, acostumbrado a los cortes de escenas de las películas. Es decir, aunque Shakespeare está dividido en escenas debido a la convención del teatro, su verdadero lenguaje se compone de tomas y secuencias 62. Los monólogos – soliloquios– shakespearianos son primeros planos, que el actor-personaje pronuncia desde el proscenio, directamente a la cámara-espectador. En Shakespeare no hay “intersticios”: como en una gran película, se compone exclusivamente de escenas de tensión 63. A diferencia del cine es la imaginación que llena los huecos y el espacio, mientras que la pantalla del cine lo enseña todo64. Puede que no sepamos a ciencia cierta el porqué, pero sí sabemos que es bastante fácil trasladar las obras de Shakespeare a nuestra sociedad actual. También el tiempo es otro elemento fundamental del teatro y de su teatro en particular. Hay una diferencia importante entre el tiempo de la ficción –que regula la organización de la narrativa y su cronología (encadenamientos, elipsis, recurrencias) y el tiempo de la representación (ritmo, continuidad o discontinuidad). El núcleo de la cuestión reside en cómo transmitir al espectador un concepto tan abstracto. El tiempo de la representación es un tiempo real, mientras que el tiempo de la ficción es una abstracción pura, una metáfora a ser inscrita en la duración del montaje, haciéndose notar su espesor y sus características propias. El entendimiento del tiempo revolucionó a partir de Shakespeare: él resume “años enteros en un mes, varios meses en un día; resuelve una gran escena en tres o cuatro parlamentos en los que se concentra la quintaesencia de la historia”65. Shakespeare sobrepasa la dimensión física del tiempo y del espacio. En él, tiempo y espacio son de la vivencia, del sentimiento de sus personajes.

El significado de Shakespeare Como defendía Martin Heidegger66, la comprensión del texto se encuentra determinada por la realidad histórica del individuo-intérprete. En cada momento histórico, los textos se producen de

61

BROOK, 1994, p.19. KOTT, 1969, p.411. 63 KOTT, 2007, p.440. 64 BROOK, 1994, p.38. 65 KOTT, 2007, p.50. 66 Cf.: HEIDEGGER, 2003. 62

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manera diferente y haciendo uso de la “historia efectual” 67 de ese tiempo. Así, el verdadero sentido del texto está referido al momento del autor, pero también está sujeto a la situación histórica del intérprete, que le confiere a su vez una manera de entender el mundo, y así expresa su finitud y evidencia sus límites –los cuales determinan su horizonte de expectativas. Todos tenemos una consciencia históricamente moldeada; es decir, la consciencia es un “efecto de la historia”. Al estar plenamente inmersos en ella y en la sociedad y cultura de nuestro tiempo y lugar, estamos configurados en tanto sujeto-intérprete por ellas. Por otra parte, también respondemos a ese contexto y a sus prejuicios, lo que genera una cierta “tensión” que hay que tener siempre en cuenta. La tarea de la comprensión histórica consiste en reconocer al otro y comprenderlo. Como ya sostenía Hans-Georg Gadamer, para entender un texto no tratamos de entrar en la constitución psíquica del autor, sino que intentamos trasladarnos a su perspectiva. La comprensión se realiza en el momento en que el horizonte del intérprete, al relacionarse con el del autor, se ve ampliado y a la vez incorpora al otro, formando un nuevo horizonte: “comprender es siempre el proceso de fusión de estos presuntos horizontes”68. Así, un texto comprende una “fusión de horizontes” donde el intérprete encuentra la vía que lo articula en relación con nuestro propio trasfondo cultural e histórico. Desde la hermenéutica, esto significa que la comprensión se da en un horizonte comprensivo en el presente que es la superación del horizonte histórico 69. Por otra parte, para la estética de la recepción y según Hans-Robert Jauss, lo que convierte un autor o una obra en “clásico” pasa por el análisis del “horizonte de expectativas”. Depende de las normas, los códigos, el sistema de valores literarios, morales, sociales y culturales en los que se inscribió el momento de su creación. Al trascender horizontes de expectativas de épocas diferentes, ese momento sincrónico se torna diacrónico, y la obra adquiere el estatus de “clásico”, una vez que la wirkung –potencia, efecto, impacto– de la acción dramática trascienden el tiempo. Casi cuatrocientos años tras su desaparición, el futuro de Shakespeare es ilimitado. La distancia temporal que nos separa de la Inglaterra isabelina, así como las diferencias culturales entre su época y la nuestra, nos aconsejan a intentar comprender su papel y sus obras, teniendo en cuenta esa distancia cultural, ese horizonte de expectativas, pero sin olvidar nuestra cultura y nuestro lugar de enunciación. Cuando queremos penetrar en el conocimiento de la cultura isabelina y de su arquitectura y espacio en particular, no olvidamos que somos parte, pertenecemos y coincidimos con los cánones de la civilización occidental, que dictan pautas de conducta o patrones culturales. Este aspecto tan significativo de nuestro proceder condiciona

67

La historia efectual es lo que determina a priori la manera de entender un texto. Cf.: GADAMER, 2012. 68

Cf.: GADAMER, 2012. Para Gadamer, las categorías fundamentales de su propuesta son: comprensión-interpretación-confluencia de horizontes-prejuicios. Se refiere a horizontes de tiempo (pasado y presente-tradición). Cf.: Ibídem. 69

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nuestra forma de ser, de pensar y de criticar. De una manera u otra nuestra formación cultural se siente influida por esta circunstancia a la hora de analizar cualquier cultura ajena a la nuestra70. Entonces, ¿cómo leemos e interpretamos Shakespeare hoy? ¿Por qué sus textos siguen vigentes? Delante de una puesta en escena de shakespeariana, el espectador hace su interpretación de lo que interpretan los actores, y que no es nada más que la interpretación del texto hecha por el director. Así, cada obra genera tantas interpretaciones como lecturas, aunque todas tengan el denominador común fundamentado por el mismo texto dramático original. Sus textos siguen vigentes porque además de su valor como obra dramática, poseen una grandeza peculiar: la capacidad de expandirse no sólo en cada nueva lectura individual, sino también en cada nueva lectura generacional, despertando el interés de cada nueva época y cultura 71. Shakespeare supo hallar los puntos neurálgicos del universo humano y plasmar en sus obras las líneas de fuerza que todos percibimos al observar la realidad. Logró tratar y resumir en menos cuatro decenas de obras lo que tradicionalmente se ha llamado “temas universales” 72. En Shakespeare: The Invention of the Human (1999)73, Harold Bloom desarrolla la tesis de que Shakespeare inventó “lo humano” tal como lo seguimos conociéndolo hoy. Bloom justifica que la representación del carácter y de la personalidad humana “sigue siendo siempre el valor literario supremo, ya sea en el teatro, en la lírica o en la narrativa” 74. Y ésa “no es sólo la más grande originalidad de Shakespeare, sino también la auténtica causa de su perpetua presencia” 75. Así es Shakespeare: habla de la vida, del poder y de las relaciones. Y a Shakespeare lo leemos y lo interpretamos cómo queremos y cómo podemos. Hoy y aquí, en la Catalunya del inicio del siglo XXI, un Shakespeare contemporáneo es aquel que logra ser el más isabelino 76 y el más catalán al mismo tiempo. Eso no significa una actualidad o actualización forzada, o meramente aparente, sino que la obra alcanza, a través del montaje de Shakespeare, los valores, los sentimientos y la sensibilidad de nuestra época, así como nuestras propias experiencias.

Referencias bibliográficas

70 71

GUSSINYER I ALFONSO, 1992, p.189.

OLIVA, 2001, p.142. Cf.: JOHNSON, 2003. 73 Cf.: BLOOM, 1999. 74 Ibídem, p.25-26. 75 Ibídem, p.26. 76 Respecto al teatro, el periodo isabelino hace referencia al reinado de Isabel en Inglaterra, desde la subida al trono hasta su muerte (1558-1603). Sin embargo, con frecuencia es más idóneo hablar del teatro renacentista inglés, que incluye también los reinados de James I (1603-1625) y parte del de Carlos I, hasta el cierre de los teatros ingleses, en 1642. En la investigación, muchas veces “isabelino” y “renacentista” serán utilizados indiscriminadamente, puesto que tienen cierta superposición temporal. 72

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A TENDÊNCIA ARISTOTELIZANTE DAS ESCOLAS PLATÔNICAS: DOS RUMOS DA FILOSOFIA GREGA E O CRISTIANISMO Francisca Galiléia P. da Silva Doutoranda em Filosofia Universidad Complutense de Madrid- Espanha Bolsita CAPES de Doutorado Pleno. [email protected] Resumo A presente pesquisa pretende refletir acerca da expansão e estudo das obras de Platão nos primeiros séculos após o surgimento do cristianismo. Inicia-se pela consideração de que Platão foi compreendido como um dos mais significativos filósofos gregos, de maneira que seus textos foram conhecidos, traduzidos e sobre os quais foram feitas paráfrases, resumos e comentários. Porém, a relevância de Platão no âmbito filosófico não o deixou imune às interferências resultantes das conquistas sofridas pelos gregos nos primeiros séculos da era cristã. Particularmente nos primeiros anos do século III d.C., houve uma tendência à redução dos estudos de Platão, o que está diretamente relacionado ao ambiente cristão onde se localizavam tais estudos. Como resultado, objetiva-se explanar como o pensamento platônico ganha características aristotélicas bem como o pensamento aristotélico recebeu características platônicas, numa conciliação entre as teses dos dois grandes mestres da filosofia grega em função de uma adaptação aos propósitos cristãos. Palavras-chaves: Platão; Aristóteles; cristianismo; neoplatonismo. Resumen Esta investigación reflexiona acerca de la expansión y del estudio de las obras de Platón en los primeros siglos después de la aparición del cristianismo. Así, se parte de la consideración de que Platón era uno de los filósofos griegos más importantes, por lo que sus textos eran conocidos, traducidos y sobre los que se hicieron resúmenes y comentarios. Sin embargo, la relevancia de Platón en el contexto filosófico no le dejó inmune a interferencias, principalmente durante los primeros años del siglo III dC, cuando hubo una tendencia de reducción de los estudios de Platón, algo relacionado con el ambiente cristiano. Como resultado, el objetivo de este trabajo es explicar cómo las ideas platónicas reciben características aristotélicas así como el aristotelismo gana características platónicas. Resultando en una conciliación entre las tesis de los dos grandes maestros de la filosofía griega bajo la propuesta de adaptación a los propósitos cristianos. Palabras-claves: Platón, Aristóteles; cristianismo; neoplatonismo.

1.

Introdução

A fim de proporcionar uma melhor compreensão do que se pretende discutir no presente trabalho, parte-se da consideração de que uma das principais mudanças ocorridas na filosofia clássica se deveu ao processo de transição da cultura helênica para a helenística. Por sua vez, para um bom entendimento de como se deu a transição da cultura helênica para o helenística, considerando, igualmente, as mudanças de paradigmas ocorridas, é fundamental o conhecimento de alguns fatos históricos que caracterizaram tal transição. Primeiramente, ressalta-se o sentimento de rivalidade entre os Gregos e os Persas, o que veio a contribuir para a entrada de Alexandre Magno (356-323 a.C) meio a este histórico confronto. Uma vez aceita a colaboração dos Macedônios para a derrota dos persas, os gregos viram Alexandria, no Egito, se tornar a capital do mundo helenístico, assim como assistiram à cultura helênica sendo difundida entre não gregos, tornando-se a identidade cultural da parte oriental do Império Romano.

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Ter a cultura difundida e, ainda que miscigenada com valores originados de outros povos, configurada como hegemônica em meio a outras culturas poderia ser um sinônimo de uma grande conquista para muitos povos, mas não para os gregos. Para o cidadão grego, a identidade de ser grego era o seu valor, o signo de sua superioridade, ou seja, a cultura e a tradição próprias da Grécia eram, não somente, feitas pelo homem grego, mas para o grego. Existia, portanto, uma grande preocupação em definir, e distinguir, quem era grego dos não gregos, em manter a cultura grega como patrimônio exclusivo dos gregos. No entanto, sob o domínio de Alexandre, esse povo teve que ver o seu supremo bem se tornando patrimônio de todos e, ao mesmo tempo, se readaptar ao processo de transição da situação de cidadãos da democracia grega para súditos de Alexandre77. Como resultado de tudo isso, tem-se a perda de liberdade política, isto é, a destituição da autonomia da polis e, portanto, daquilo que era próprio do grego: a participação na vida política. Desta forma, com o desmoronamento sociopolítico da polis e a conversão de cidadão em súdito, uma nova exigência passa a existir entre os gregos, a fim de se adaptar a esta nova forma de comunidade a que estavam submetidos. É a identidade do homem, enquanto individuo e realidade particular, a que será levada em consideração para a formulação de um novo paradigma filosófico. Parte-se, portanto, da separação entre ética e política. Algo impensável no momento anterior, uma vez que, como afirmava Aristóteles, “o homem é um animal político”78, agora surge como imperativa a separação entre a esfera do indivíduo e a do ser social. É, exatamente, com base nesta separação que se encontram as escolas helenísticas.

2.

Centro de estudos da filosofia grega no período helenístico Fazem parte das chamadas “Escolas Helenísticas”, caracterizadas pelas reformas

filosóficas próprias da convivência entre gregos e romanos, as escolas socráticas menores, o epicurismo, estoicismo, o ceticismo e o ecletismo. Tais escolas correspondem a um novo estilo de vida cultural e reflexão filosófica que nasce em parques e sob pórticos e, aos poucos, se vê direcionada ao abandono das crenças tradicionais. Valendo-se, pois, dos clássicos do período helênico, reconfiguraram a filosofia a partir de um viés mais individual, dando origem ao que vem a ser a filosofia latina, herdeira e veículo de difusão do pensamento grego. Diante do quadro político em que tal conhecimento filosófico se desenvolve, o objetivo se volta para a busca por uma perfeição e um bem interior – compreendido, também, como a única garantia de alcançar a felicidade.

77

Sobre este assunto, recomenda-se a leitura de : WALBANK, E.W. História del mundo antiguo. Trad. para el castellano de Francisco Javier Lomas. Madrid: Taurus, 1985. 78 Cf. Política, I, 1253b, 15.

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Ocorreu que, como orgulho do vencedor, a cultura grega e, em especial, a Filosofia se difunde de forma eclética, ou seja, a todos era conveniente estar inserido em uma discussão filosófica. Um membro dessa sociedade que surgia se envergonhava por não destinar alguns momentos de seu dia a não filosofar, ainda que não surgisse, daí, alguma investigação filosófica profunda. Afinal, aos romanos era o pensamento filosófico voltado para a moral ou norma de vida algo mais interessante que a busca por categorias universais presentes na Lógica ou Metafísica. Não havia como pensar em estabelecer premissas universalizantes diante de uma situação de instabilidade política. A preocupação acerca da vida, analisada inclusive desde a ótica das ações cotidianas, foram agravando após a morte de Alexandre, 323 a.C., , o que veio a, novamente, resultar numa configuração de filosofia como uma reflexão voltada para obtenção de segurança e bem-estar social. Diante desse novo sentimento e roupagem ganha pela filosofia, a Academia platônica e o Liceu aristotélico vão, aos poucos, perdendo espaço diante das escolas epicuristas e estoicas. Pela perda de ênfase quanto ao aspecto da filosofia como uma ciência especulativa, que buscava o conhecimento da física e de valores ulteriores para as realidades existentes, o que se encontra em destaque, neste período, são as discussões acerca da moralidade, a formação e a manutenção do bem-estar. Portanto, o que sobrevive e em que ambiente são mantidos os estudos das filosofias platônicas e aristotélicas? Com a mudança de modelo de realidade, são poucos os autores que se mantém sem sofrer por mudanças, reinterpretações ou mesmo adaptações. Verifica-se, pois, que Platão e Aristóteles, ainda que considerados os grandes mestres do pensamento filosófico grego, não ficaram imunes a tais interferências. No caso de Platão, é possível observar que os elementos presentes em seu pensamento filosófico foram discutidos e inseridos em meio a doutrinas estoicas. Sua presença junto ao estoicismo pode ser verificada, já de inicio, quando analisado o princípio cósmico de "razão criadora” defendido por Zenão (333-263 a.C), de clara herança do demiurgo platônico. Porém, ainda que seja, facilmente, verificada a presença de Platão meio as doutrinas estoicas, os estoicos foram, paradoxalmente, um dos grandes opositores do pensamento platônico, principalmente no que concerne a ontologia. A oposição ao pensamento platônico presente nos estoicos, representantes da escola mais influente do período helenístico, é resultante do fato de que não são levadas em consideração a existência de ideias platônicas como principio ulterior da realidade, juntamente com seus moldes de universalidade e transcendência. Em outras palavras, enquanto para Platão o verdadeiro conhecimento reside nestas realidades metaempíricas (destinando, à realidade empírica, o conhecimento errôneo), para os estoicos, assim como para os epicuristas, só no âmbito do sensível é possível extrair qualquer tipo de conhecimento. Portanto, é sobre o mundo sensível, de maneira inversa a Platão, que os estoicos e epicuristas vão formular suas teorias do conhecimento.

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No que respeita a Aristóteles e a permanência de sua filosofia no período helenístico, se constata que mesmo após sua morte (322 a.C.), ou seja, um ano após a morte de Alexandre, deu-se continuidade as atividades realizadas no Liceu. Mantido pelos seus discípulos, é possível afirmar que, mesmo sem a presença de Aristóteles, o Liceu seguiu em uma considerável ampliação dos estudos das problemáticas e teses propostas pelo seu fundador – tendo Teofrasto (287 a.C.) como figura central deste processo. Ainda que sofrendo alterações de acordo com as novas escolas e vertentes de pensamento, eram frequentes o recurso à filosofia aristotélica nos debates entre estoicos, epicuristas e céticos, principalmente sobre as categorias da física e metafísica. Verifica-se, então, que teses sobre a física e a metafísica aristotélicas estavam mais de acordo com a proposta das escolas helenísticas que aquelas apresentadas pelo filósofo da Academia. A observação da diferença entre as teses defendidas pelos dois grandes mestres gregos parecia exigir, dos filósofos anteriores, um posicionamento entre as duas posturas. Porém, o que se pretende destacar é que, a evidência de uma distinção e distanciamento da compreensão platônica e aristotélica de realidade vai se configurar de um modo distinto nas escolas platônicas tardias. Uma tendência de conciliação entre o pensamento platônico e aristotélico passa a existir sob o interesse de parte dos neoplatônicos presentes nos centros de estudos de Atenas e Alexandria. Tal conciliação vai originar, mais que um novo aristotelismo, um platonismo com marcado traços aristotelizantes, algo que está vinculado à emancipação do cristianismo.

3.

O processo de emancipação do cristianismo e a filosofia grega

Tendo como marco da emancipação a conquista de Alexandria, os cristãos iniciaram o processo de difusão de suas doutrinas em um ambiente que abrigava diferentes culturas sendo, ao mesmo tempo, o centro da cultura helênica. A fim de consolidar o pensamento cristão e, além disso, no intento de firmar suas bases diante de um ambiente tão miscigenado, o cristianismo em vias de expansão utilizou a filosofia grega como meio de fundamentação de suas teses. Nada mais viável que buscar, em pensadores com grande reconhecimento na esfera do saber, as bases para afirmar que em nada o pensamento cristão era contrário ao pensamento anterior. Como vem a afirmar Justiniano, posteriormente, os filósofos gregos nada mais eram que “Cristãos antes de cristo”79, uma vez que, o que os gregos buscavam, em meio as discussões mantidas nas escolas filosofias, era o mesmo que os cristãos objetivavam encontrar no tempo, a saber: o Logos80.

79

Cf. BOEHNER, Philotheus, GILSON, Etienne. História Da Filosofia Cristã: Desde as Origens até Nicolau de Cusa. 7a ed. Trad. Raimundo Vier. Rio de Janeiro: VOZES, 2000. p.30. 80 Como pode ser lido em João 1:14 da Biblia.

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Diante desse silogismo, para o pensador cristão, resulta que o caminho percorrido em busca do Logos se identifica com a via que leva a vida em Cristo. Dois meios para chegar a uma mesma realidade suprema, a realidade divina. Os filósofos gregos, em especial, Platão e Aristóteles, nada mais realizaram que uma preparação para a vinda de Cristo. Observase, portanto, uma insistente tentativa de cristianizar o pensamento clássico, logrando, de igual maneira, o fim da conflito entre razão e fé, algo que os filósofos medievais não pouparam esforços para provar. A doutrina cristã, de acordo com esta compreensão, consistiria na continuidade do pensamento grego. Não há, pois, nada de incorreto ou impróprio fazer uso do pensamento filosófico grego (ou cristianismo pré-cristo) para servir de base racional para a cristandade, com o Logos encarnado. A união que se forjou entre o pensamento cristão e a filosofia grega proporcionou, ao mesmo tempo, uma maior propagação da reflexão filosófica desenvolvida na Academia e no Liceu e, o que não era difícil de prever, uma adaptação aos propósitos teológicos. O fato é que diferentes os povos, uma vez convertidos ao cristianismo, foram, aos poucos, conduzidos à aprendizagem da língua grega com o propósito de ler o Antigo Testamento e as interpretações realizadas pelos Padres da Igreja. Esta exigência resultou num contato com os escritos científicos e filosóficos gregos e, como a história se repete, se expandiu, desde a Síria, para outros povos igualmente conquistadores: os árabes. Ou seja, com a tomada da Síria, bem como da antiga província romana da Palestina, os árabes tiveram acesso aos postulados filosóficos e teológicos concentrados num território cristão que reunia, em um mesmo espaço, as igrejas melquitas, jacobitas e maronitas. Ao mesmo tempo em que a Síria apresentava uma situação destacada, Jerusalém abrigava, ao mesmo tempo, cristãos e judeus na Alta Mesopotâmia e no Iraque, ambos parte do Império Persa. Possuindo o centro religioso mais importante de Mesopotâmia, neste ambiente eram desenvolvidas atividades culturais ao mesmo tempo em que era estimulado o contato com as obras filosóficas gregas, principalmente aquelas de Aristóteles e Galeno. Sendo o idioma presente nas sagradas escrituras e, por isso, fundamental para quem se convertia à fé cristã, era possível ter acesso aos textos gregos, não somente a respeito da filosofia, senão, também, daqueles que versam sobre a medicina. Por essas razões, em meio às leituras realizadas na Escola de Edessa, na Mesopotâmia, fundada em 363, as obras gregas foram sendo traduzidas para o siríaco. Assim, uma vez que, em 489, foi declarado o fechamento da Escola, os professores migraram para a Pérsia e se fizeram presentes nas escolas de Nísibis e Gundishapur. No entanto, a migração dos que se dedicavam aos estudos da filosofia grega demonstra uma outra face, desta vez, nada harmônica, da relação existente entre a o Cristianismo e o pensamento pagão. Na Síria, o considerável número de adeptos ao cristianismo crescia na mesma proporção que a violência sofrida pelos pagãos. Entre os século IV e V, foram inúmeras as torturas e os templos pagãos destruídos; como evidencia Siniossoglou:

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In his Historia Ecclesiastica Theodore describes the destruction of the temple of Zeus at Apamea by Maternus Cynegius and the fanatical Christian bishop Marcellus, who also carried out systematic 'depredations' inside the territorium of the city (…) Rabbula (c.350-436). ‘A fanatical Christian who persecuted all those who had other ideas’, He ordered the monks to search ‘in every place’ and destroy by fire heretical books and bookcases81.

A luta promovida pelos cristãos contra o paganismo resultou em perseguições, torturas e vários exemplos de banimento na Síria, principalmente nas regiões de Batnai, Harran e Edessa. Nesta região, se encontravam, reunidos, um elevado número de bibliotecas e estudos da filosofia grega. Para melhor ilustrar o ocorrido, ainda com Siniossoglou, tem-se: Harran resisted successive persecutions and Christianization to the point that Thābit ibn-Qurra, one of the most important astronomers of the ninth century and translator of Euclid and Archimedes, could proudly argue that ‘this blessed city hath never been defiled with the error of Nazareth’. Similarly, Apamea was one of the last strongholds of Hellenic philosophy, having been associated with such prominent figures as Posidonius, Numenius, Amelius, Iamblichus and Sopatros and maintaining its own Platonic School82.

Os textos filosóficos passaram a ser, paulatinamente, compreendidos como leitura proibida. Por isto, a fim de garantir a manutenção dos estudos, algumas mudanças começaram a ocorrer, principalmente entre os séculos V e VI. Em Atenas, uma tendência filosófica mais sistemática começou a ganhar espaço, de forma que a finalidade das reflexões não era mais a metafísica, mas a teologia. Tanto quanto possível, o pensamento clássico era convertido em uma contribuição para o cristianismo, de modo que inclusive as alegorias platônicas foram sendo interpretadas a partir da proposta de formulação de uma doutrina teológica e princípios divinos. Proclo, para citar um caso, elaborou um tratado teológico, A teologia Platônica, no qual se dedicou a organizar um número de axiomas teológicos com base nas obras de Platão 83. No que respeita as escolas neoplatônicas, presentes no ambiente cristão, seguia-se a tradição, seja em Alexandria ou em Atenas, de comentar e tentar articular os pensamentos de Platão e Aristóteles84. Mas, devido à compreensão de que servia aos interesses das doutrinas pagãs, o neoplatonismo foi, do mesmo modo, expulso das escolas alexandrinas ao mesmo tempo em que aumentavam, neste ambiente, as discussões acerca de Aristóteles. De modo semelhante,

81

SINIOSSOGLOU, Niketas. Plato and Theodoret: The Christian appropriation of Platonic Philosophy and the Hellenic intellectual resistance. Cambridge: University of Cambridge, 2008, p.35. 82 Op. cit., p.38. 83 Sobre a atenção destinada, entre os alexandrinos, a uma leitura teologizante dos diálogos platônicos e a interferência da filosofia aristotélica neste processo, afirma Vallat : “les Alexandrins faisaient de la lectura des oeuvres d’Aristote la nécessaire introduction à l’étude des dialogues de Platon. Il convenait selon eux de partir de l’Organon et de son introduction, l’Isagoge, pour finir avec le Parménide où ils voulaient voir, à la suite de Syrianus et Proclus, le traité par excellence de la théologie platonicienne, c’est-à-dire de la vraie théologie » VALLAT, Philippe. Farabi et l’École d’Alexandrie: Des premisses de la connaissance à la philosophie politique. Paris: VRIN, 2004. p.43. 84 D’ANCONA, Cristina. Greek into Arabic: Neoplatonism in translation. In. ADAMSON, Peter, TAYLOR, Richard. Arabic Philosophy. (Org.) Cambridge: Cambridge University, 2005, p.17.

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na Síria, a rejeição ao neoplatonismo se justificava pelo fato de ele ser, como define Siniossoglou, “the renovated paganism of the Syrian, Egyptian or Arab” 85, uma forma de aceitação de todos os cultos, numa convivência pacífica, dividindo o um mesmo espaço, e mesclado com as vertentes morais e espirituais presentes nos textos gregos. Tem-se, pois, como resultado de todo esse processo, uma tendência à redução dos estudos de Platão vinculada ao ambiente cristão em que eram realizados tais estudos. Seguindo com D’Ancona, tem-se que: Especially after 529, the date of ban on public teaching by philosophers of pagan allegiance, it would have been daring give courses on the ‘theological’ dialogues by Plato, whose interpretation, especially after Proclus, was strongly committed to polytheism86.

. Para, então, evitar as repressões, foi gradual a mudança de foco presente nos estudos neoplatônicos, tornando-se cada vez mais aristotélicos que platônico. Constata-se que até os primeiros anos do século III só havia, entre os gregos, as escolas platônicas de Alexandria e Atenas, ainda que possam ser citados os menos expressivos centros de Apamanea e Pergamo. Neste período, na escola de Alexandria, se mantinham presentes as tendências de conciliação entre as filosofias platônicas e aristotélicas. Portanto, os que ainda seguiam os estudos do platonismo, nessa escola, se convertiam, aos poucos, aos estudos de Aristóteles. Já no que respeita à escola de Atenas, nela se conserevava, durante o século II e III, a ideia de um platonismo misto com Plotino (205-270 d.C.) e Porfírio (232-304 d.C), Jamblico (245-325 d.C) e Proclo (412-485 d.C.), o que conduziu à morte do platonismo ateniense. Por fim, em ambiente cristão, um dos poucos lugares em que ainda esteve presente o pensamento platônico foi a corte de Khusraw I (531-579 d.C). Nela, que se situava em território persa, é possível constatar a presença de Simplício (490-560 d.C), Damascius (458-538 d.C) e outros cinco filósofos atenienses durante um período de, aproximadamente, um ano 87. De acordo com estudiosos, Khusraw I possuía um grande interesse na filosofia grega, de modo que traduziu as obras de Platão e Aristóteles para estudos próprios88. Sem dúvida, seu principal interesse, como cristão, era a filosofia aristotélica, em especial, a lógica, mas também não desconsiderou o já desgastado paganismo platônico, como o de Simplício 89. Salvo tais exceções, o que se observa é a real recusa ao pensamento puramente platônico. O que poderia resistir se configurava como um Platão teologizado ou aquele que cede espaço para os estudos da lógica aristotélica. 85

SINIOSSOGLOU, op.cit., p.37. D’ANCONA, Cristina. Greek into Arabic: Neoplatonism in translation. p.17. 87 Tais filósofos permaneceram na Pérsia de 532 a 533 d.C. quando, sob o tratado de “paz eterna’ firmado entre os bizantinos e os persas, retornaram a Bizâncio. No mesmo período em que os Platônicos regressaram a Bizâncio, houve, por parte de Justiniano, uma recepção dos cristãos nestorianos para a participação de uma conferência em que se discutiriam temas relacionados à teologia. Sobre este assunto, vale a leitura biográfica de Damascio e Simplício presente em LARDNER, Nathaniel. Testimonies of ancient heathens. Vol. VIII. London : Joseph Ogle, 1829. 88 Sobre este tema, C.f. A D’ANCONA , op. cit.,p.18. 89 C.f. PETERS, E.F. op. cit., p.22. 86

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4.

Conclusão

Assim, tendo em vista o exposto, tem-se que, com a tomada de poder do povo grego, por parte dos Macedônios, aos gregos não resta outra alternativa do que repensar o modelo de vida de que tanto se orgulhavam e do qual estavam habituados. Inseridos em um sistema político famoso por ser considerado o berço do modelo ocidental de democracia, os cidadão gregos se viram na necessidade de reestruturar sua identidade devido à nova configuração política a que estavam submetidos. Não cabia mais, ao homem grego, a tomada de decisão sobre a própria vida e, o que era compreendido como sinônimo, sobre os rumos da polis do qual era parte, membro. Uma nova forma de encarar o seu ser social resultou numa exigência de reformular a compreensão que tinha de si mesmo, o que veio a resultar na formulação de uma configuração de pensamento filosófico distinto do que se encontrava até o momento. Tem-se, então, uma reformulação das doutrinas filosóficas que, exatamente no confronto com o contexto que se apresentava, foi induzida a mudar o foco de uma análise social ou com base em categorias universalizantes para buscar princípios que pudessem reestabelecer uma nova identidade. Qual identidade? A de indivíduo, desprovido de outra função uma social que não seja a de súdito. Refugiado em si mesmo, tem-se o segundo movimento realizado pelo homem grego: a inversão em um homem religioso que busca, em uma realidade extramundo, o significado para o mundo em que está inserido. Seria, assim, o cristianismo uma saída para um de perda de identidade e consequente sentimento de desilusão? O fato é que, diante do fanatismo cristão cada vez mais crescente, a filosofia grega, pagã, não vê alternativa senão adequar-se aos propósitos desta ordem que se emancipava. Mesmo com a resistência de alguns centros e migração de professores, o legado deixado deste período é, além de uma memória recheada de dolorosas imagens, uma total mudança de paradigma e referencial reflexivo. Aristóteles teve que, por meio de seus discípulos e amantes de sua filosofia, sobreviver a todo esse contexto por meio de obras escondidas ou tendo seu legado filosófico reduzido ao estudos da lógica. Platão, então, com uma sorte um pouco pior, não somente teve suas leituras reduzidas senão também sob a roupagem das teorias de seu discípulo. Diante disso, fica mais compreensível as razões pelas quais os árabes, posteriores herdeiros da cultura grega, conheceram a filosofia do estagirita a partir de um viés neoplatônico. Referências Bibliográficas

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B-LEARNING NAS REDES SOCIAIS: ESTUDO DO SEU POTENCIAL NA INCLUSÃO DE ESTUDANTES SURDOS NO ENSINO SUPERIOR Liliane Brito de Melo Bolsita do Programa Ciência sem Fronteira/CNPq/BRASIL, modalidade Doutorado Pleno no exterior Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Amazonas – Brasil Universidade do Minho – Portugal [email protected] Dra. Maria João Gomes Universidade do Minho – Portugal [email protected] Resumo: O e-Learning vem confirmando-se como influente modalidade de ensino na eliminação de barreiras à formação académica e profissional de pessoas com necessidades educativas especiais. Neste artigo apresentamos a caracterização do uso de redes sociais na Internet por parte de pessoas com surdez ao nível do Brasil, através de investigação por inquérito, onde foram exploradas questões relativas ao uso ou não da internet, dispositivos de acesso, formas de uso, frequência de acesso, uso de redes sociais e atividades realizadas no espaço virtual. Após trinta dias de aplicação do questionário participaram 24 pessoas com surdez severa, sendo 75% de origem congénita; 62,5% são homens; 33% com idade entre 30 e 39 anos; 45% alfabetizados em língua portuguesa escrita e 77% em Libras, seis com pós-graduação e seis oralizados. Palavra-chave: b-Learning; educação inclusiva; pessoas com surdez; e-inclusion Abstract The e-Learning, as an inclusive form of educational technology in teaching, has being a strongest ally to overcoming the barriers to disabled people’s education. This paper presents a characterization of the use of social networks by people with deafness, that living in Brazil, through survey research with questions about the use or not of web, internet access devices, access frequency, and their activities in the virtual space. After thirty days of application, 24 deaf people participated, 75% of them has congenital origin; 62.5% are men; 33% between 30 and 39 years old; 45% literate in Portuguese written language and 77% knows how to communicate in Brazilian sign language (Libras). Six of them are graduated and six knows how to speak to communicate. Key words: b-Learning, inclusive education, deaf people, e-inclusion

INTRODUÇÃO

Nos dias atuais, termos como acessibilidade tornaram-se necessários e importante, uma vez que pressupõem que a ponte para a inclusão social é a acessibilidade a bens e serviços, educação e trabalho, e à vida em sociedade. A acessibilidade em seus princípios básicos recomenda a flexibilidade para atender diferentes necessidades, situações e preferências, o que remete a percepção de que a falta de acesso leva a exclusão. Os desafios apresentados àqueles que têm necessidades educativas especiais vão desde a mobilidade, passa pela comunicação e alcança ao convívio escolar, fatores que influenciam a permanência e o sucesso destes alunos no ambiente académico, e tem reflexo direto no processo de ensino e aprendizagem, assim como na compreensão e interpretação textual da língua escrita. Este estudo se debruçará no universo das pessoas com surdez, tomando como premissa a importância da educação a distância, particularmente nas suas dimensões atuais no domínio do b-

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Learning, como um novo contexto educacional com potencial para consolidação da Educação Inclusiva. AS PESSOAS COM SURDEZ E A INCLUSÃO DIGITAL

A pessoa com necessidades especiais (PNE), devido a uma condição diferenciada da maioria dos indivíduos da sociedade, têm sua participação na vida social dificultada por confrontos diários, a começar pelo preconceito que resulta na diminuição das relações sociais, limitando o contacto ao ambiente familiar. Segundo Aranha (1995), o movimento pela integração do PNE é um produto de nossa história que cria em nós a necessidade de apreender seu significado real a fim de efetivá-lo como instrumento de transformação da sociedade. A Secretaria de Educação Especial do Ministério da Educação do Brasil (SEESP/MEC), objetivando a uniformização terminológica e conceitual para identificação de PNE, propõe as seguintes características referentes às necessidades especiais dos alunos com deficiência auditiva (Brasil, 2005): Deficiência Auditiva - Perda total ou parcial, congénita ou adquirida, da capacidade de compreender a fala por intermédio do ouvido, manifestando-se como: 

Surdez leve / moderada: perda auditiva de até 70 decibéis, que dificulta, mas não impede o indivíduo de se expressar oralmente, bem como de perceber a voz humana, com ou sem a utilização de um aparelho auditivo;



Surdez severa / profunda: perda auditiva acima de 70 decibéis, que impede o indivíduo de entender, com ou sem aparelho auditivo, a voz humana, bem como de adquirir, naturalmente, o código da língua oral. Tal fato faz com que a maioria das pessoas com surdez opte pela língua de sinais, ou linguagem gestual.

No Brasil, aproximadamente 9,7 milhões de pessoas declaram ter deficiência auditiva, 5,1% da população, destes aproximadamente 344 mil são pessoas com surdez severa/total (IBGE, 2013). As pessoas com surdez são percebidas como uma comunidade bilinguística, uma vez que fazem uso de língua gestual, reconhecida em muitos países como língua própria e oficial, essa diferenciação linguística os define como pessoas que se comunicam e interagem de forma efetivamente visual, e essa identificação cultural e linguística reflete-se numa forma diferenciada de compreensão do mundo a sua volta (Bisol, Valentini, Simioni, & Zanchin, 2010). O impacto e o crescimento no uso das tecnologias de comunicação e informação em rede aumentam a possibilidade de aceder e participar nas comunidades online, também reconhecido como um direito de cidadania. Perceber, identificar e caraterizar a presença e interação nos espaços virtuais dos diferentes grupos e comunidades torna-se condição para o melhor uso desses espaços numa perspetiva de potencialização das tecnologias digitais como geradoras de novos espaços de inclusão, e não como fonte de exclusão (Gomes, 2008).

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Com base na perspectiva conceitual de que a inclusão de pessoas com necessidades educativas especiais no ambiente virtual precisa valorizar a questão social e humana, novas terminologias tem surgido, a exemplo da e-inclusion que evidencia a importância de entrelaçar as tecnologias de informação e comunicação (TIC) nos sistemas e processos sociais onde estão inseridas essas pessoas. A e-inclusion refere-se a ativa participação, individual e comunitária, em todas as dimensões da sociedade do conhecimento e na economia através do acesso às TIC e do grau de contribuição dessa TIC na equalização e promoção da participação nos diversos níveis das atividades sociais, sejam eles, trabalho, cultura, política, relações sociais etc. (Bianchi et al, 2006). A influência da web no processo de socialização online tem sido verificada em estudos sobre a inclusão social de pessoas com surdez, apontando como instrumentos facilitadores da socialização, a escrita de blogs e a participação em redes sociais virtuais (Passerino, Montardo & Bez, 2007; Horst & Vieira, 2008; Bisol, Bremm & Valentini, 2010; Montardo, 2010; Barbosa, Prates & Correa, 2011). O e-Learning vem confirmando-se como influente modalidade de ensino na eliminação de barreiras à formação académica e profissional de pessoas com necessidades educativas especiais, parte integrante do contingente de excluídos “educacionais”. As tecnologias de informação

e

comunicação

transformaram-se

num

elemento

mediador

da

necessária

transversalidade da Educação Especial, além de fator influente no movimento de aproximação entre indivíduos que carecem de condições especiais de aprendizagem. Quando a aprendizagem é mediada por computador assume o termo geral de aprendizagem eletrónica – electronic learning, e-learning – sendo que dentro das suas metodologias de ensino e de aprendizagem podem estar as tecnologias de internet e multimédia que funcionando sobre redes de comunicações permitem assumir o e-learning como uma modalidade de educação a distância, também chamado por muitos autores de educação online. Se combinada com o ensino presencial passa a ser designada por blended learning ou b-learning, que resulta do inglês, designando uma mistura de metodologias de ensino, uma aprendizagem mista (Peres e Pimenta, 2011).

A PRESENÇA DE PESSOAS COM SURDEZ NA INTERNET

Tendo como horizonte e preocupação, a problemática da inclusão de pessoas com surdez em contextos sociais, académicos e profissionais, esta investigação tem subjacentes dois objetivos principais: caracterizar o uso de redes sociais na Internet por parte de pessoas com surdez, ao nível do Brasil com enfase nos moradores da região norte; e, caraterizar a importância das interações em redes sociais virtuais, entre estudantes com surdez e estudantes ouvintes, participantes de cursos em modalidade b-Learning a ser realizado em parceria com o projeto de

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inclusão escolar do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Amazonas – IFAM, o Projeto Curupira. A pesquisa em andamento foi estruturada em dois Estudos, A e B, com previsão de conclusão para Outubro de 2015. O estudo A tem dimensão exploratória e descritiva, e consiste num estudo de tipo “survey” com pesquisa através de questionário online. O estudo B consistirá em um estudo de caso, permitindo uma pesquisa qualitativa. Neste artigo apresentaremos o estudo A que encontra-se em execução. Como objetivos específicos dessa etapa foram propostos: 

a identificação das principais redes sociais na internet utilizadas por esses indivíduos;



a verificação da frequência dos mesmos no acesso a internet;



a caracterização dos tipos de recursos da web utilizados;



a identificação da existência de relação social entre pessoas com surdez e pessoas ouvintes através da internet.

METODOLOGIA

O método escolhido para essa etapa é a investigação por inquérito, dessa forma foi planejado um questionário para a coleta de dados que fundamentem as respostas necessárias para se atingir os objetivos em questão. As etapas estabelecidas para a construção desse instrumento foram (Aaker et al, 2001): 

Planejamento do que será mensurado na pesquisa, a fim de clarificar os objetivos, determinar o assunto e definir o que vai ser perguntado.



Dar forma ao questionário: definir os formatos adequados aos conteúdos das perguntas.



Cuidados com a redação das perguntas: avaliar a facilidade de compreensão, os conhecimentos e as habilidades necessárias para responder o questionário; e, o tempo gasto para responder.



Definição do sequenciamento e da aparência do questionário, agrupando perguntas em subtópicos buscando harmonia para o questionário.



Pré-teste e correção dos problemas.

Nesse contexto, ficou definido como tema principal do questionário “a presença de pessoas com surdez na internet”, onde foram exploradas questões relativas ao uso, ou não, da internet e seus dispositivos de acesso, as formas de uso, a frequência de acesso, o uso de redes sociais e as atividades realizadas no espaço virtual, além da caracterização do participante.

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O universo de pesquisa, do tipo universo inquirido (Hill & Hill, 2012), é formado por pessoas com surdez residentes na região Norte do Brasil que tem acesso a internet. A previsão para o alcance da divulgação é em torno de 10% do Universo de pessoas com surdez que se enquadram no perfil delineado que, considerando os dados apresentados na Tabela I, assumiremos ser 100 pessoas. Esses números foram obtidos através da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicilio – PNAD, realizada no Brasil em 2011, que apresenta a estatística de pessoas conectadas a internet, definindo que 42,8% da população, com idade igual ou superior a 10 anos, já tem acesso internet. Tendo em conta esse dados, e a definição do universo de pesquisa a ser explorado, determinamos o tamanho da amostra.

Tabela I – Dados demográficos da população de pessoas com surdez no Brasil

Estados da região Norte do Brasil

Dados estratificados

N. de pessoas com surdez

% em relação ao total regional

% de pessoas com acesso internet (42,8%)

Universo da amostra por estado (~ 10%)

Amazonas

5.429

19

2.323

232

Pará

11.284

49

4829

482

Rondonia

1.754

10

751

75

Roraima

561

3

240

24

Acre

1.189

5

509

51

Tocantins

1.974

11

845

85

Amapá

830

4

355

36

Total da população de pessoas com surdez na região 23.021 Universo da amostra (total) 985 Norte Fonte: Censo demográfico brasileiro de 2010 e Pesquisa Nacional de Amostra Domiciliar (2011)

O conteúdo das questões foi definido visando medir variáveis qualitativas e quantitativas das respostas dadas, sendo assim as questões foram apresentadas sob forma de resposta fechada, com perguntas específicas e factuais. Optou-se por questões com respostas prédeterminadas com a finalidade de facilitar o entendimento do inquérito resultando em resposta diretas, além de não comprometer o tempo gasto ao responder o questionário. Quanto ao formato das respostas optou-se por questões de múltipla escolha e dicotómicas. A literatura científica (Bisol et al, 2010) relata as dificuldades na trajetória escolar das pessoas com surdez que resultaram em deficiências de linguagem, na falta de habilidades lógicas, em problemas de compreensão em leitura e na dificuldade de produção de textos. Seguindo esses pressupostos, também, foi cuidadosa a escolha das palavras em busca de adequar o vocabulário usado em função de possíveis restrições da língua portuguesa escrita pelos respondentes.

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A divulgação foi feita através das redes sociais com a intermediação de profissionais (intérpretes de Libras) e voluntários que trabalham ou tem relação direta com pessoas com surdez. Esta escolha baseia-se na premissa da confiabilidade, ou seja, pressupõese que o envio do questionário por intermedio de alguém do círculo de amizade da pessoa com surdez interfere positivamente na decisão de participar da pesquisa.

RESULTADOS

A disponibilidade do questionário prevista é de três meses, mas os dados ora recolhidos já mostram resultados significativos. Após trinta dias de aplicação do questionário participaram 24 pessoas com surdez severa, dentre estas 75% declararam a origem da deficiência auditiva como congénita, o restante deficiência adquirida, por acidente ou doença; a maioria dos respondentes é do sexo masculino, 62,5%. Quanto a faixa etária, observou-se a forte presença de pessoas com idade entre 30 e 39 anos e os 40 e 49 anos. Figura I – Estratificação dos dados por faixa etária dos participantes da pesquisa

Quanto a escolaridade, declararam-se alfabetizados em língua portuguesa escrita, 45% dos participantes. Contudo, alguns não se comunicam em Língua brasileira de sinais – Libras, visto que declararam serem alfabetizados em Libras 77% dos participantes. Chamou-nos a atenção a quantidade de pessoas com escolaridade em nível de pós-graduação, seis indivíduos ou 25% da amostra. Também, seis foi o quantitativo de participantes que se declararam oralizados, ou seja, com capacidade de se expressar por linguagem falada. O dispositivo mais usado para acesso a internet é o telefone celular (smartphone), seguido pelo computador portátil (Notebook). O que reafirma o exposto por Santos (2010) sobre a importância do uso da comunicação móvel, especialmente, através do uso de SMS ou mensagens via aplicativos da web.

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Figura II – Utilização de dispositivos de acesso a internet

13% 33% Celular Notebook

22%

Computador Tablet - IPad

32%

Quando a informação trata dos locais de acesso a internet o que se observa é a utilização prioritária em casa, seja a sua própria ou a casa de familiares/parentes, em seguida aparecem o local de trabalho e os shopping centers, ver figura III, demonstrando a busca por locais com livre acesso a internet (free wi-fi). Quanto ao período do dia em que este acesso ocorre, o mais citados foi o período noturno, porém uma outra alternativa dada foi igualmente citada (37%), “o dia todo”. Estes dados relativos aos locais de acesso, associados à informação quanto ao período do dia que esse acesso a internet ocorre, complementam-se e validam a evidência da importância da comunicação remota para esse grupo. Figura III – Identificação dos locais de acesso a internet

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Na praça / rua

2%

No trabalho

14%

Na escola

7%

Na igreja

5%

No shopping

12%

Na casa de familiares

24%

Na associação de surdos

5%

Em casa

31% 0%

5%

10%

15%

20%

25%

30%

35%

Os dados relativos as atividades mais desenvolvidas apresentam uma uniformidade e diversificação na apropriação das oportunidades apresentadas na web, conforme apresentado na figura IV. No cruzamento dos dados, através da leitura individualizada das respostas observa-se que o uso do correio eletrónico (e-mail), por exemplo, é mais efetivo entre os participantes que se declararam alfabetizados em língua portuguesa escrita e com ensino superior, assim como as atividades de estudo e pesquisa. Apesar de existente, podemos considerar baixa a incidência de atividades voltadas a sociabilidade virtual, tais como a busca por novos amigos ou relacionamentos amorosos. Figura IV – Atividades mais executadas na internet 18% 16% 14% 12% 10% 8% 6% 4% 2% 0%

Os resultados a cerca da sociabilidade virtual são evidenciados, também, nas respostas a questão “Com quem você tem mais contato pela internet?”. O resultado retrata o uso da comunicação virtual prioritáriamente entre as pessoas com surdez e seus familiares,

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comportamento semelhante as relações sociais presenciais. O contato com pessoas menos próximas, como os colegas de trabalho ou escola, tem baixa frequência. Conforme exposto na figura V.

Figura V – Círculo de relações sociais online

A investigação aprofunda-se na busca de informações sobre a convivência com pessoas ouvintes, e a questão “Como você se comunica na internet com ouvintes?”, que oferece como alternativas às respostas, os nomes das redes sociais mais usadas pelo público em geral, apresenta dados que afirmam a superioridade da rede social Facebook, e a ausência em redes como o Orkut e o Twitter. Também, é evidente o crescimento das atividades nos aplicativos sociais Whatsapp e Skipe. Vale salientar o registro, apesar de baixo, de respondentes que declaram não se comunicar virtualmente com ouvintes. Ver figura VI. Figura VI – Canais de comunicação com pessoas ouvintes

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O tamanho da amostra ora apresentada, ainda, é pequena mas já apresenta respostas importantes para a compreensão e o reconhecimento da presença virtual das pessoas com surdez, através das suas atividades e relações sociais. Acredita-se que os dados serão validados com o alcance da meta traçada de um mínimo de 100 respondentes, proporcionando a oportunidade de delinearmos a caracterização do usuário da internet com surdez residente da região norte do Brasil. REFERENCIAS

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NOTAS SOBRE A DINÂMICA SÓCIO-ESPACIAL DA CITRICULTURA: BRASIL E ESPANHA NO COMÉRCIO MUNDIAL DE CÍTRICOS Fernando dos Santos Sampaio Bolsista CAPES, processo número 17663/12-1 Universidade Estadual do Oeste do Paraná – Brasil Universitat Autònoma de Barcelona - España Email: [email protected] Resumo A citricultura brasileira e espanhola tem se destacado a nível mundial. O artigo discutirá os problemas que se refere às peculiaridades espaciais da produção de cítricos no Brasil e na Espanha, mostrando que as características geográficas da produção e comercialização são fundamentais para explicar as diferenças entre a citricultura desses dois países. A interpretação da dinâmica atual da citricultura espanhola e brasileira passa pelo entendimento de sua gênese e desenvolvimento no âmbito da divisão territorial do trabalho na qual está inserida, bem como das peculiaridades geográficas em cada um desses países. Podese destacar alguns pontos que marcam a diferença entre a citricultura dos dois países, são eles: a concentração espacial da produção e sua dinâmica, a escala e escopo da produção e o papel da logística para o comércio mundial das frutas, além do papel da industrialização e do capital comercial na organização do espaço citrícola. Resumen La citricultura española y brasileña se ha destacado en nivel mundial. El problema a tratar se refiere a las particularidades espaciales de la producción de cítricos en Brasil y España, lo que demuestra que las características geográficas de la producción y la comercialización son clave para explicar las diferencias entre la citricultura de los dos países. La interpretación de la dinámica actual de la citricultura española y brasileña requiere una comprensión de su génesis y desarrollo de la división territorial del trabajo en el que opera, y las particularidades geográficas de cada uno de estos países. Se puede destacar algunos puntos que marcan la diferencia entre la industria de los cítricos de los dos países, que son: la concentración espacial de la producción y su dinámica, la escala y el alcance de la producción y el papel de la logística en el comercio mundial de frutas, además del papel de la industrialización y la capital comercial en la organización del espacio de cítricos.

Introdução

A citricultura brasileira e espanhola tem se destacado a nível mundial. O problema que pretendemos discutir se refere às peculiaridades espaciais da produção de cítricos no Brasil e na Espanha, mostrando que as características geográficas da produção e comercialização são fundamentais para explicar as diferenças entre a citricultura desses dois países. Ao se fazer uma comparação entre os dois países devemos levar em conta os aspectos de sua formação sócioespacial, que são fundamentais para o entendimento das peculiaridades do processo de acumulação na agricultura. No caso da citricultura os aspectos ligados às condições naturais são fundamentais para o entendimento de sua dinâmica. No entanto não são apenas as condições naturais que explicam todo o processo é necessário entender o processo de desenvolvimento das relações sociais, na qual a questão agrária e as relações comerciais internacionais são fundamentais. Tanto o Brasil como a Espanha passaram por um processo de modernização da agricultura sob regimes autoritários, a Espanha sob o regime de Franco e o Brasil sob a ditadura civil-militar pós 1964. Em ambos os casos o processo de modernização significou a transformação

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da agricultura em ramos de acumulação do capital comercial e industrial. A diferença nos dois casos está na base de sua formação sócio-espacial, o que levou a Espanha a ter uma característica mais democrática quanto à propriedade da terra, levando a existência de um grande número de pequenas propriedades com características muito diferentes das do Brasil. A grande produção se consolidou muito mais rápido no Brasil, tornando-o o maior produtor mundial de laranjas, as quais em sua maior parte são transformadas em suco voltado ao mercado externo. A Espanha tem a grande vantagem de sua proximidade com o mercado Europeu, o que favorece suas exportações de fruta in natura, já que os transportes a longas distâncias da fruta são caros. A garantia do mercado Europeu não deixa a Espanha em situação confortável, pois os países da bacia do Mediterrâneo, com destaque ao Marrocos, Turquia e Egito passaram a ter uma produção crescente e com preços mais competitivos que o espanhol e, mesmo com o protecionismo da União Europeia, essas frutas entram no mercado europeu com boa competitividade. O caso brasileiro já se dá de forma diferente, pois a laranja é transformada em suco concentrado e congelado, tendo a vantagem de transporte a longas distâncias sem alterar o sabor e qualidade do produto. Também se tem as raízes da formação sócio-espacial como base explicativa da alta competitividade brasileira, pois com a mão-de-obra barata e a concentração de terras que possibilita a grande produção a citricultura brasileira se torna a mais competitiva do mundo.

A modernização da agricultura A modernização da agricultura espanhola90 sob o regime de Franco (1939-75) apresenta várias semelhanças com a modernização agrícola efetuada na ditadura militar brasileira (196484). As duas trazem as características da chamada “modernização conservadora”, ou seja, quando se moderniza a produção agrícola com a adoção do “pacote verde” mas sem alterar as estruturas agrárias existentes. O caráter conservador dessa modernização se mostra presente através de alguns fatores, amplamente citados na literatura 91 brasileira sobre o tema:

90

A base inicial para o entendimento das características da modernização agrícola espanhola vem dos estudos de VIÑAS, 1995; MOLINERO HERNANDO, 2006; CABANA & DÍAZ, 2010. 91 A literatura que trata da modernização da agricultura brasileira é ampla e bem conhecida. Sem dúvida o livro de maior impacto nos estudos em geografia foi o livro de José Graziano da Silva, A Modernização Dolorosa (GRAZIANO DA SILVA, 1981); que deu a tônica às demais discussões nos anos 1980 e 1990. No mesmo período outra obra teve grande impacto: O Cativeiro da Terra, de José de Souza Martins (MARTINS, 1986); este sociólogo teve grande influência nos estudos de muitos geógrafos que buscavam interpretar o mundo rural. Ariovaldo Umbelino de Oliveira, talvez o mais importante estudioso da geografia agrária brasileira das últimas décadas, teve grande influência das análises de Martins (OLIVEIRA, 2001). Cabe ressaltar que o debate sobre a questão agrária brasileira e a modernização da agricultura está longe de ser consensual (GONÇALVES, 2004; SOARES, 1992), em nossa perspectiva nos aproximamos mais das análises feitas pelo grande teórico marxista brasileiro, Ignacio Rangel (RANGEL, 2005), que propõe o

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a) Manutenção ou ampliação da concentração fundiária; b) Manutenção ou aumento da concentração de renda; c) Foco das políticas modernizantes nos setores agroexportadores e nos grandes produtores. Em decorrência destes fatores, uma das consequências apresentadas foi o aumento da pobreza e o êxodo rural. De forma geral esta tem sido a interpretação corrente sobre a modernização da agricultura, não só na geografia, como também em outras ciências que buscam analisar o campo. No entanto, para um melhor entendimento das transformações na organização do espaço, causada pela modernização da agricultura, é necessário considerar algumas questões: a) Uma das características da modernização agrícola é a sua inserção cada vez maior na lógica de produção industrial. Assim, qualquer estudo da agricultura não pode mais entendê-la de forma isolada dos demais setores. Se analisarmos o todo, a manutenção de algumas mazelas sociais no campo teria sido compensada pela melhoria geral das condições de vida nas cidades (barateamento dos alimentos, melhorias de condições de trabalho etc.). b) Grande parte da crítica à modernização agrícola no Brasil foi baseada na concentração das políticas modernizadoras em algumas regiões (Sul e Sudeste) e alguns produtos (soja, laranja, cana, eucalipto, etc.). Tal crítica estaria mais associada ao fato de que a modernização deveria ter sido mais ampla e radical, atingindo mais regiões e mais produtores. Ou seja, é uma crítica ao escopo da modernização e não à modernização em si. c) O Brasil teve sua formação sócio-espacial em grande parte baseada no poder dos senhores de terra. A propriedade fundiária sempre foi uma das principais bases do poder político do Brasil independente (pactos de poder), grande parte do caráter conservador está associado à manutenção da estrutura fundiária pela não realização de uma reforma agrária distributiva. Este caráter conservador está associado às características da formação sócio-espacial, daí as diferenças regionais serem tão marcantes no tocante à agricultura. Ao se analisar uma formação sócio-espacial diferente as características do processo de modernização e de seu caráter “conservador” se manifestarão de forma diferente. O fato de na Espanha já ter havido uma reforma agrária que democratizou em parte o acesso à terra, o que ficou bem evidenciado na Comunidade Valenciana, principal área produtora de cítricos do país, mostra que os resultados da “modernização conservadora” serão diferentes nesses dois países. O avanço das forças produtivas e das relações de produção é considerado um dos pontos centrais para a explicação da sociedade (GERMER, 2009). O papel da técnica, das inovações, da difusão tecnológica e o seu impacto nas formas de organização do trabalho e nas relações jurídico-políticas são fundamentais para explicar a organização do espaço. entendimento da realidade brasileira como uma realidade complexa, na qual os modos de produção se combinam em dualidades que tem sua dinâmica ligada aos ciclos longos da economia mundial.

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No caso da agricultura, a modernização representou um intenso avanço das forças produtivas, que teve papel central na transformação da agricultura rudimentar em uma agricultura integrada ao processo de acumulação industrial. A organização do espaço agrário não pode mais explicar-se por si só, mas necessita de uma explicação mais ampla, na qual esteja inserido em uma lógica que vai além da produção agrícola, que também leve em conta a distribuição, circulação e consumo. Torna-se fundamental, nesta perspectiva, entender o abastecimento e distribuição de alimentos e matérias-primas para poder compreender o real papel da modernização da agricultura e, dessa forma, explicar as contradições entre o seu caráter conservador e progressista. Estudar um setor agrícola que se dinamizou durante o período “modernizante” e tornou-se importante exemplo de industrialização da agricultura, nos possibilita refletir sobre os problemas relativos à “modernização conservadora”. Estudar as características da gênese e desenvolvimento da citricultura na Espanha e Brasil permite verificar o papel dos diversos aspectos da modernização da agricultura inserida em uma lógica mais ampla, ligada ao próprio desenvolvimento geral da sociedade. O estudo comparativo da modernização da agricultura em um setor específico também nos permite verificar as características do desenvolvimento capitalista da agricultura. A forma como se transforma a agricultura está em grande parte associada ao desenvolvimento das forças produtivas, ou seja, ao aumento da técnica e das formas de organização do trabalho e do território, tendo a divisão técnica, divisão social e divisão territorial do trabalho como bases da explicação da organização espacial. A comparação da gênese e desenvolvimento do setor citrícola, na Espanha e no Brasil, nos permite compreender o papel desempenhado por vários fatores fundamentais na organização do espaço agrícola, entre eles: papel das técnicas, inovações, estratégias empresariais, inserção no comércio exterior, entre outros. A produção citrícola tem grande destaque, tanto no Brasil, quanto na Espanha. Em ambos os casos, a “modernização conservadora” foi responsável pela transformação da produção de laranjas em um importante exemplo de agricultura capitalista. Apesar de suas semelhanças a dinâmica territorial da citricultura nestes dois países apresenta características próprias, diferenciando-se em vários aspectos, o que torna necessário entender as causas destas diferenças. Analisar

o

papel

e

o

desenvolvimento

dos

fatores

propriamente

econômicos

(desenvolvimento das forças produtivas, técnicas, organização industrial e agrícola, etc.), históricos (gênese e desenvolvimento da agricultura capitalista), sócio-políticos (relações de produção, papel do Estado e das relações jurídico-políticas) e geográficos (combinações geográficas, formação sócio-espacial, organização do espaço, etc.) é o caminho para a explicação das características do setor citrícola nos dois países.

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Modernização agrícola e citricultura

Muitas vezes, os estudos de geografia agrária ou mesmo de geografia econômica têm levado em conta apenas um olhar para o campo, mostrando a integração com a indústria como uma das características negativas da modernização, pois tornou a agricultura dependente da indústria. No entanto, um dos aspectos centrais a ser considerado é o fato que a modernização não criou apenas uma integração mais ampla entre agricultura e indústria, razão da submissão da agricultura à lógica industrial, mas transformou a agricultura em um ramo industrial. Dessa forma, para entender a agricultura moderna é imprescindível entender a lógica de acumulação industrial, rompendo-se com as divisões setoriais clássicas (setor primário, secundário e terciário), pois na cadeia de produção do agronegócio, tanto a terra, quanto indústrias e serviços estão encadeados no mesmo setor produtivo (GONÇALVES, 2012). O setor agroindustrial é o que nos dá as melhores condições de entendimento da lógica geográfica. A natureza se apresenta, nesse setor, como uma condição fundamental, determinante, porém, não fatalista (ANDRADE, 1980). As inovações técnicas na agricultura surgem com o intuito de “combater” os ditames da natureza, melhorando geneticamente plantas e animais, corrigindo solos, modificando cursos de rios, etc. No entanto, as bases naturais continuam sendo fundamentais: a duração do dia, das estações do ano, a dinâmica climática, etc. trazem vantagens locais para determinadas produções (ESPÍNDOLA, 2011). As combinações geográficas (CHOLLEY, 1964) entre a natureza e a sociedade são muito mais visíveis nos estudos de agricultura (e de sua industrialização) do que nos demais setores industriais. A citricultura é um dos melhores exemplos de transformação de uma agricultura rudimentar em uma agricultura altamente inserida na forma industrial de produzir (MARTINELLI JR, 1987; NEVES e ZYLBERSTAJN, 1995; PAULILLO, 2000). Tem grande importância econômica no Brasil e na Espanha, apesar de apresentar diferenças nas formas de organização do espaço e do seu papel na divisão territorial do trabalho. Mais de dois terços do comércio mundial de frutas estão centrados em quatro produtos: cítricos (laranja e tangerina), banana, uva e maçã (GONÇALVES, 2012). A laranja é a fruta fresca mais comercializada no mundo e sua produção é altamente concentrada. Os dez maiores produtores mundiais respondem por mais de 75% da produção. Se tomarmos por base os 20 maiores produtores essa porcentagem aumenta para 90% (www.fao.org). A vantagem espanhola no comércio de frutas está na proximidade com o altamente exigente mercado europeu, o que leva a necessidade de uma modernização, não apenas na

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produção, mas também e, principalmente, no pós-colheita, como por exemplo a capacidade de renovação varietal, o serviço ao cliente, e a capacidade de entrega em prazos curtos, tornando a exportação praticamente “just in time”, além do uso de protocolos de produção e rastreabilidade. (IZQIERDO, RONCO E CAMMILERI, 2009) O uso do território citrícola nestes dois países tem características diferentes, apesar das muitas semelhanças encontradas no setor produtivo. Desvendar a gênese e desenvolvimento do setor citrícola, associado às condições de “modernização conservadora” da agricultura nestes dois países, é a raiz da explicação de sua organização espacial.

A territorialização da produção de cítricos na Espanha

A Espanha destaca-se como a maior exportadora de frutas cítricas in natura, isso se deve ao grande consumo interno dos outros grandes produtores mundiais (Brasil, EUA, China e Índia). Entre as frutas cítricas, a laranja e a tangerina são as que possuem maior destaque, tanto na produção quanto na exportação. Mais de 60% da superfície cultivada com frutas na Espanha estão ocupadas com cítricos, estando concentradas na Comunidade Valenciana, Andalucía e Región de Murcia, que juntas correspondem a mais de 90% da produção (IZQIERDO, RONCO e CAMMILERI, 2009). O plantio comercial de cítricos se inicia na Comunidade Valenciana já no século XVIII, em 1836 é registrado a primeira exportação de laranjas da região. Aproveitando-se da infraestrutura de exportações de seda que havia entrado em declínio, inicia-se assim uma substituição da sericultura por plantio de cítricos, no qual o capital comercial já existente tem uma importância central. O desenvolvimento das ferrovias é um fator chave para a integração do território, ampliando a divisão territorial do trabalho, na qual a Comunidade Valenciana passa a se especializar na produção de frutas. Em 1851 a laranja ocupava o 23º lugar entre os principais produtos agrícolas de exportação passando para a 5ª posição em 1900. No início do século XX os exportadores valencianos já tem um certo protagonismo, chegando a abastecer 90% do mercado europeu de laranjas antes da Primeira Guerra Mundial. Com a entrada de novos produtores a participação espanhola cai e, nos anos 1960-70 representam apenas 40 a 45% do abastecimento do mercado europeu92. A consequência mais marcante deste processo é a consolidação e fortalecimento de um capital comercial que torna a citricultura uma atividade comercial de grande importância. No entanto alguns problemas vão dificultando a produção na Comunidade Valenciana. Com o aumento da concorrência com outros países da bacia do Mediterrâneo os comerciantes de cítricos tem que criar estratégias que possibilitem a manutenção dos mercados ou a conquista de novos mercados, para tanto é necessário aumentar a produção com redução de custos. Outra estratégia 92

Para maiores detalhes ver BONO (2010).

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utilizada foi a reconversão varietal93, com apoio da Comunidade Econômica Europeia, passou-se a cultivar outras espécies de maior valor o que permite a manutenção de mercados pela qualidade do produto. Assim, muitas áreas de produção de laranjas passam a produzir mandarinas, com maior valor para a comercialização. A pequena propriedade em Valência, criou uma estrutura que dificulta o seu aproveitamento econômico. Grande parte só se sustenta por ser atividade secundária dos seus proprietários que a mantém pelo “amor à terra” fruto de herança familiar e onde trabalham nos fins de semana por hobbie ou pequeno complemento de renda. Muitas vezes essas propriedades vão sendo abandonadas como atividades produtivas. A figura do operário-camponês, ou como é chamada na Espanha, a agricultura em tempo parcial, é muito comum na região. O proprietário da terra é operário em indústrias ou setor de serviços e com isso ele tem renda para garantir sua sobrevivência, a agricultura em tempo parcial possibilita uma renda extra, mas insuficiente para mantê-lo apenas como agricultor. As cooperativas ainda dão um certo fôlego para a pequena propriedade ao possibilitarem a contratação da mão-de-obra para os tratos necessários (poda, uso de defensivos, colheita, assistência técnica etc.), mas os preços pagos são muito baixos e, como não se possui ganhos de escala, algumas vezes negativos. Não chega a se ter uma remuneração da terra e nem do capital. O proprietário é em grande parte um gestor, mas um gestor não especializado. Com o uso do regadio por gotejamento grandes áreas de terras mais baratas na Andaluzia Ocidental foram incorporadas ao cultivo de cítricos, predominantemente laranjas. Lá o cultivo se dá em grandes propriedades e, em alguns casos, diretamente para a produção do suco. Com propriedades grandes se tem o ganho em escala o que torna o produto mais barato aprofundando a crise da produção em Valência. Soma-se a isso o aumento da produção citrícola de Marrocos, com vantagens comerciais com a União Europeia. É o anúncio de uma grande crise da citricultura valenciana, cujos capitais estão sendo investidos na Andaluzia como estratégia de sobrevivência dos grandes capitais comerciais do setor. Assim percebe-se uma reestruturação territorial da citricultura, na qual Andaluzia tem se tornado a principal área de crescimento da produção. Em 1961, Andaluzia representava cerca de 10% da área de produção espanhola enquanto que a Comunidade Valenciana era responsável por mais de 80%. Em 2010, Andaluzia já tinha 40% da área de produção enquanto a Comunidade Valenciana chegava a 50%. A diferença no ritmo de crescimento das duas regiões na produção de laranjas, como demonstrado nas tabelas a seguir, leva a conclusão que logo mais Andaluzia se tornará a principal área produtora de laranjas da Espanha, mudando um pouco a característica de organização do território citrícola, ou seja, a participação das pequenas propriedades com agricultura a tempo parcial será substituída pela grande produção comercial.

93

Ver MAÑÉS y GENOVÉS (1982)

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1 961

1 970

1 980

1 990

2 000

2 010

1 29.730

1 38.309

1 34.533

1 53.631

61.280

1 38.016 1 00.025

95.410

94.848

81.059

76.356

7.760

28.124

25.606

28.517

37.012

61.630

MURCIA

5.540

6.122

4.644

8.549

9.188

10.464

OUTROS

1.432

3.745

4.070

6.395

7.274

5.181

ESPAÑA C. VALENCIANA ANDALUCÍ A

76.012

Fonte: Ministério de Agricultura, Alimentación y Medio Ambiente. (http://www.magrama.gob.es). Org. pelo autor Tabela 1 – Evolução da área de produção de Laranjas em hectares por regiões, Espanha, 1961-2010

1 961 1 ESPAÑA C. VALENCIANA ANDALU CÍA

00%

MURCIA

%

OUTROS

%

1 970

8 1% 1 0% 7 2

1 00% 7 2% 2 0% 4 % 3 %

1 980 1 00% 7 4% 2 0% 4 % 3 %

1 990 1 00% 6 9% 2 1% 6 % 5 %

2 000 1 00% 6 0% 2 8% 7 % 5 %

2 010 1 00% 5 0% 4 0% 7 % 3 %

Fonte: Ministério de Agricultura, Alimentación y Medio Ambiente. (http://www.magrama.gob.es). Org. pelo autor Tabela 2 – Evolução da área de produção de Laranjas em porcentagem por regiões, Espanha, 1961-2010

Os mapas a seguir mostram como esse processo se manifesta espacialmente, sugerindo a nova regionalização da citricultura espanhola. Mesmo ainda sendo a maior produtora, a Comunidade Valenciana vem perdendo espaço para a produção mais comercial de Andaluzia. Os grandes capitais comerciais oriundos de Valencia tem adquirido terras e iniciado uma produção em larga escala, na qual os ganhos de escala a tornam mais competitivas.

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Fonte: Elaborado pelo autor com base nos dados do Ministério de Agricultura, Alimentación y Medio Ambiente (http://www.magrama.gob.es). Mapa 1 – Espanha - Área total de produção de Laranjas por províncias, 1961

Fonte: Elaborado pelo autor com base nos dados do Ministério de Agricultura, Alimentación y Medio Ambiente (http://www.magrama.gob.es). Mapa 2 – Espanha - Área total de produção de Laranjas por províncias, 2010

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Outro fator importante ao se analisar a citricultura espanhola é a estrutura de comercialização. Com uma produção muito fragmentada, os agricultores tem pouca força para negociações, o que levou a uma manutenção dos preços pagos pela fruta mesmo quando seu custo de produção ia subindo. As cooperativas possibilitam uma possibilidade de melhorar o preço da fruta e de conseguir mercados alternativos, como é o caso da indústria de sucos. Outras alternativas como a de fornecimento para nichos de mercados “agroecológicos” tem sido a saída para alguns produtores no entanto pouco mais de 5% do comércio de hortícolas e frutas são feitos dessa forma, através de uma rede de fornecedores próximos com produtos direto do campo e com produção agroecológica. Para o fortalecimento deste comércio é necessário criar a ideia de que o consumo de cercanias, com menor custo energético, menor uso de fertilizantes químicos etc., é muito melhor do que o consumo do que se comercializa nas grandes redes varejistas. Com a crise muitos consumidores que estavam comprando e pagando mais caro pelo produto agroecológico tem voltado a comprar os produtos “normais” e mais baratos. A produção pulverizada contrasta com a estrutura concentrada das grandes redes de comércio e principalmente das grandes redes varejistas, que em última instância é quem tem de fato o controle do mercado. A indústria também é concentrada, mas é um mercado secundário para os cítricos. São somente 5 indústrias de suco na Espanha, a principal produtora europeia, com destaque para a ZVM, Zumos Valencianos del Mediterraneo, empresa que contou com mais de 120 milhões de Euros financiados pela União Europeia a fundo perdido. São apenas 6 grandes envasadoras que fornecem para as grandes redes varejistas altamente concentradas na Europa, conforme tabela abaixo. A estrutura de oligopsônio fica muito clara. Aos agricultores restam poucas alternativas, aos comerciantes busca-se alternativas de plantio próprio, compra de terras em outras regiões, com destaque para Andaluzia, e a mudança varietal, mantendo o produto de alta qualidade que agrada os mercados europeus.

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Países Selecionados 2 000 Suiça Áustria Alemanha França Rússia Espanha Reino Unido Itália Polônia

8 0,7% 7 2,5% 6 6,4% 7 0,0% 6 0,9% 5 2,7% 5 0,6% 6 9,6% 5 1,4%

Participação de Mercado 2 2 005 010 8 9 5,1% 2,1% 7 8 1,9% 4,4% 7 8 2,9% 0,0% 6 7 4,8% 4,7% 5 7 5,1% 4,4% 5 6 6,7% 9,2% 5 6 9,8% 7,9% 6 6 7,5% 7,1% 4 5 1,6% 3,2%

Fonte: Elaborado por Markestrat a partir de Planet Retail - Agosto/2011 Tabela 3 – Concentração na Venda de Alimentos dos 5 principais Varejistas na Europa

As grandes redes varejistas também tem se adequado ao discurso do consumo “sustentável, ecológico, saudável etc”, um dos fatores que se tem como padrão é a rastreabilidade. Ao comprar um saco de laranjas é possível, se necessário, saber quem a produziu. O discurso ambiental é presente em praticamente todas as empresas envasadoras e fabricantes de suco. Oferecer às redes varejistas a rastreabilidade, o produto dentro das normas de produção e mantendo a alta qualidade é requisito básico para a manutenção no mercado. Também é central a complementaridade na produção, ou seja, existir frutas que possam utilizar a mesma infraestrutura no período da entressafra da laranja, no caso andaluz e valenciano essa complementaridade se dá pela produção de “frutas de hueso”, pêssegos, ameias, nectarinas, albaricotes etc. Em ambos os casos as vantagens competitivas estão na redução de custos de transação pós-colheita94 e na manutenção ou ampliação dos mercados existentes que em grande parte estão controlados pelas grandes redes varejistas que impõe seu padrão de qualidade e preços. A questão dos mercados também é central para a explicação dos movimentos territoriais da citricultura espanhola. Segundo dados da FAO (www.fao.org), os maiores importadores mundiais de laranjas frescas são a Rússia, a Alemanha, a França, a Holanda e o Reino Unido, para as mandarinas inclui-se a esta lista os Estados Unidos. A Espanha, em 2011, foi a principal exportadora para a Alemanha, responsável por 75% das importações de laranja deste país, para a 94

Para maiores detalhes sobre a estrutura de comércio das grandes empresas frutícolas ver Gonçalves, 2012.

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França, com 72%, e para o Reino Unido, com 32%. Ainda destaca-se nas exportações para a Holanda, onde tem 22% do mercado, perdendo apenas para a África do Sul que detém 34%. A Rússia consome da Espanha apenas 4% de suas laranjas, tendo o Egito como seu principal fornecedor. O aumento da produção nos países da bacia do Mediterrâneo levou a uma concorrência maior em relação ao consumo de laranjas na Europa. Destaca-se o aumento da produção no Egito, que teve um crescimento de 77% de sua produção entre 1990 e 2012, passando de 1.574 mil toneladas para 2.786 mil toneladas. Também merece destaque o crescimento da produção da Turquia que passou de 735 mil toneladas em 1990 para 1.662 mil toneladas em 2012, um crescimento de 126%. Neste período a produção italiana ficou estagnada e a espanhola aumentou apenas 13%. Com o significativo aumento da disponibilidade da fruta para o mercado europeu as estratégias dos grupos comerciais espanhóis tem se focado em melhorar as condições de logística e de ter uma diferenciação de seu produto baseado na qualidade da fruta. O alto custo da mão-de-obra comparado a países como Egito, Marrocos ou Turquia é uma das principais reclamações dos empresários do setor.

A territorialização da produção de cítricos no Brasil

A industrialização da laranja em larga escala, com vistas ao mercado externo, teve início nos anos 1960 e foi, em grande parte, impulsionada pela demanda americana de sucos, após uma forte geada na Flórida no ano de 1962. Com a geada foi necessário transferir parte do parque produtivo de sucos concentrados para outro país, que apresentasse características de produção de laranjas adequadas para suprir a demanda americana. Neste momento, os dois maiores produtores mundiais de laranja, excetuando-se os EUA, eram o Brasil e a Espanha, no entanto, o Brasil apresentou melhores condições para receber os investimentos na industrialização, inicialmente com capitais norte-americanos, mas nacionalizados na década seguinte. Isso transformou a citricultura brasileira em

um setor voltado

predominantemente para a industrialização. A industrialização da laranja, no Brasil, transformou-o no maior produtor e exportador mundial de sucos, ampliando sua produção agrícola e modernizando toda a cadeia produtiva, que vai desde a produção de mudas de forma especializada, até os mecanismos de transporte mais eficientes, passando por toda a cadeia de produção e processamento da laranja. A produção de laranjas no Brasil é muito concentrada. Mais de 90% da produção brasileira se concentra em apenas quatro estados. O maior produtor é o Estado de São Paulo, responsável por 76,6% do total da produção nacional. Outros estados com produção importante são a Bahia (5,5%), Minas Gerais (4,5%) e Sergipe (4,5%), conforme dados de 2010 da Pesquisa Agrícola

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Municipal do IBGE (IBGE, 2010). A indústria de sucos concentrados é a responsável pela maior parte do consumo da produção e o principal “ator” na dinâmica citrícola brasileira (SAMPAIO, 2009). Diferente do caso espanhol no qual há o predomínio da pequena propriedade, no Brasil são as propriedades com mais de 100ha que respondem pela maior parte da produção. Outro fato que marca a diferença é o destino da fruta, que no Brasil vai predominantemente para a indústria de sucos voltada ao mercado externo. Portanto ao analisar as estratégias que determinam o setor tem-se que levar em consideração a ação das grandes empresas processadoras de suco. Apenas três empresas controlam mais de 80% da produção de sucos, são elas a Citrossuco/Citrovita, Cutrale, Coimbra Frutesp. Desde meados dos anos 1990 uma das estratégias adotadas pelas grandes empresas e ter uma participação significativa de produção própria e de contratos de compra e venda, diminuindo a dependência da compra da laranja no mercado sujeitas às variações de preço de acordo com a safra95.

Considerações Finais

A Espanha destaca-se como a maior exportadora mundial de frutas cítricas in natura, enquanto o Brasil é o maior produtor mundial de laranjas e o maior exportador de sucos concentrados. Em ambos os casos, a atividade citrícola tornou-se altamente moderna e dinâmica, respondendo às leis de acumulação capitalista. Não é possível caracterizar Brasil e Espanha como concorrentes no mercado mundial, ambos atuam em setores diferentes do mercado, mesmo que em alguns momentos haja, de forma secundária, alguma concorrência entre eles. A produção de suco fresco na Espanha ainda é bem pequena perto das exportações de suco concentrado brasileiro para o mercado europeu. A atuação em dois setores de mercado diferentes, suco concentrado e fruta in natura, fez com que esses países adotassem estratégias diferentes de atuação. No caso espanhol isso ficou muito claro na mudança espacial da citricultura que se deslocou da região da Comunidade Valenciana, onde há o predomínio da pequena propriedade para a região da Andaluzia, com propriedades maiores, possibilitando ganhos de escala e adoção de mais tecnologias na produção. As propriedades por demais pequenas acabam tornando-se um impeditivo para a manutenção da atividade citrícola, cuja remuneração para o produtor é relativamente baixa. As estratégias empresariais se dão na logística do pós-colheita e na ação dos capitais comerciais.

95

As práticas monopolistas destas empresas tem sido motivo de contestações por parte dos produtores de laranja. No entanto foram poucas as vitórias dos citricultores em relação á indústria. Para maiores detalhes ver Sampaio, 2009.

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O caso brasileiro a citricultura é comandada pela indústria. Como maior consumidor da produção de laranjas é a indústria de processamento de sucos concentrados e congelados que dá os principais direcionamentos do setor. Além de muito concentrada economicamente a citricultura também é concentrada espacialmente no estado de São Paulo. As estratégias empresariais se dão principalmente pela indústria no tocante a redução de custos de transporte (navios próprios, terminais portuários etc.), na busca de garantir boa parte da matéria prima a partir de produção própria e na sua ação monopolista em relação aos citricultores. A concorrência com os países da bacia do Mediterrâneo é algo que tem se tornado uma preocupação para a citricultura espanhola, visto que vão disputar os mesmos mercados e países como Egito, Turquia e Marrocos tem a vantagem do baixo preço da mão-de-obra, o que os torna mais competitivos. O caso brasileiro a concorrência é relativamente pequena, pois cerca de 85% das exportações mundiais de suco concentrado vem do Brasil. Os Estados Unidos, outro grande produtor tem no mercado interno a maior parte do destino de sua produção.

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AS FÁBRICAS DE CRIAÇÃO DE BARCELONA. UMA INICIATIVA CULTURAL INCIPIENTE E ELITISTA OU UMA POLÍTICA PÚBLICA INOVADORA COM AFÃ DE TRANSFORMAÇÃO SOCIAL? Pedro Andrés Rothstein Pérez Graduando em Ciências Políticas e da Administração Universidade de Barcelona, Espanha [email protected] Resumo Num contexto cada vez mais globalizado e interconectado, a necessidade de repensar as políticas culturais –seu desenho, implantação, avaliação e impacto- torna-se um imperativo. Desde o âmbito local (e mais próximo à cidadania) surgem propostas ousadas e experiências administrativas novas. No caso de Barcelona, o executivo municipal apoia e impulsiona uma rede de espaços culturais alternativos, -híbridos entre centros de produção, laboratório de investigação e escola de formação no terreno artístico, social e político- também conhecidas como Fábricas de Criação. Destacam por serem gerenciadas por associações do terceiro setor, embora sejam públicas, e boa parte do seu orçamento dependa das arcas do Estado. A questão que paira no ar até que ponto as ‘fábricas’ são redutos isolados e reservados para uma minoria seleta ou realmente são polos democráticos e aglutinadores capazes de canalizar profundas transformações sociais? Palavras-chave: política cultural, fábricas de criação, capacitação comunitária, nova gestão pública, Barcelona. Abstract In an increasingly globalized and interconnected context, the need to rethink cultural policies - their design, implementation, evaluation and impact- becomes an imperative. From a local perspective (and therefore, closer to citizenship) new proposals and administrative experiences arise. In the case of Barcelona, the city’s executive supports and engages a network of alternative cultural spaces, -hybrids between production centers, research laboratories and training school on the artistic, social and political field- also known as Art Factories. They distinguish for being managed by third-sector associations, although they remain public, and much of their budget comes from the treasury. The question that hoves in the air is to what extent the 'factories' are isolated strongholds reserved only for a selected minority or are they really democratic agglutinating poles capable of canalizing deep social changes? Key words: cultural policy, art factories, community empowering, new public management, Barcelona

Introdução

Este artigo é uma versão sintética e resumida do trabalho de final de graduação que apresentei este ano na Universidade de Barcelona, com razão de obter o título de Ciências Políticas e da Administração. O tema escolhido se engloba num marco teórico e analítico do âmbito das políticas públicas e mais especificamente no que se refere a políticas culturais: as chamadas fábricas culturais, fábricas de criação ou espaços intermediários de criação. Meu interesse pessoal provê da minha própria experiência em uma delas, a Nau Ivanow, onde gozo de uma residência artística junto a outros companheiros que formam parte do coletivo teatral nakadaska. Os objetivos desta investigação são, em primeiro lugar, tentar definir o conceito das chamadas fábricas de criação, sabendo que uma de suas características mais idiossincráticas é a heterogeneidade: cada projeto, centro ou iniciativa difere das demais e seria realmente arriscado – senão errôneo- generalizar superficialmente ou tentar encaixar num modelo estanque a espaços tão sortidos. Assim, as perguntas iniciais a responder seriam as seguintes: o que são? Para quê

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servem? Que valores defendem e propagam? Como funcionam e se organizam? O que têm de especial? E finalmente, o que podem chegar a serem as fábricas de criação? Para contestar a todas estas dúvidas, esboçarei um marco conceitual que englobe, por um lado questões gerais sobre as políticas culturais (discussões teóricas e profissionais atuais). Por outro, identificarei os traços mais característicos das fábricas de criação e aplicarei uma possível “categorização” elaborada a partir de um extenso levantamento empírico realizado por Fabrice Lextrait na França, em 2003, sobre o tema (ver Quadro 1). Considero uma ferramenta útil para poder distinguir algumas ramas e será uma base de referência para analisar o caso barcelonês. A metodologia utilizada mistura uma análise comparativa a partir de bibliografia específica e conteúdos disponíveis na internet, com a aplicação de estratégias da chamada ‘nova gestão pública’ para poder descrever, compreender, avaliar, criticar o programa municipal de Fábricas de Criação da prefeitura de Barcelona; reflexionando sobre o seu funcionamento, princípios, valores, missões, dificuldades e desafios e sugerindo possíveis atuações de melhora. Os debates teóricos referentes aos estudos culturais são amplos e correspondem em grande parte a dilemas de marco conceitual e à impossibilidade das ciências sociais de estabelecer consensos e chegar a definições gerais e aplicáveis a todos os casos. Este elemento, sem dúvida enriquece a investigação nesse campo ao mesmo tempo em que dificulta às vezes o trabalho do pesquisador. Escolher definições mais ou menos válidas e aceitáveis dos términos ‘cultura’ e ‘ideologia’ é uma tarefa árdua e capciosa, porém necessária. Para dissipar a polêmica, me remeto a uma generalização sintética e funcional que engloba também a noção de marcos interpretativos: “Cultura como conjunto compartilhado de crenças e formas de ver o mundo, tudo isso mediado e constituído por símbolos e a linguagem, próprios de um grupo ou sociedade. Ideologia seria o conjunto de crenças que servem para justificar ou opor-se a uma ordem política determinada, além de servir para interpretar o mundo do político. Os marcos são metáforas específicas, representações simbólicas e indicações cognitivas utilizadas para apresentar condutas e eventos de forma avaliativa e para sugerir formas de ação alternativas” (Zald, 1999: 371).

Esta acepção antropológica da cultura coloca em destaque o primeiro dilema conceitual em relação às políticas culturais: amplitude de foco da análise. Na medida em que a cultura pode ser entendida como o setor das artes em geral –como tradicionalmente se entende desde uma ótica administrativa- ou bem, podemos nos referir ao fenômeno cultural que abarca os idiomas, o folclore e os costumes de um povo, nação ou região. Se o zoom é demasiado abrangente, tudo pode ser considerado cultural; se o enfoque é estreito demais, corremos o risco de entrar numa bolha desconectada e alheia a outros assuntos que lhe incubem. No que diz respeito a este trabalho me situo num ponto médio que assume a ideia de um setor cultural artístico transversal e plural. O segundo debate vital das políticas culturais refere-se ao acesso à cultura por parte de toda a população – fato que justifica em última instância a intervenção pública neste campo- e que

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se relaciona com a própria evolução do setor público cultural. Por um lado, como bem apontam Matarasso e Landry (2000: 15-17), podemos falar de democratização cultural desde uma perspectiva top-down e centrada no consumo de bens e produtos culturais. Isto é, o Estado os provê diretamente ou indiretamente permeia o acesso da população, a través de medidas distributivas ou assistencialistas. Por outro lado, podemos pensar e defender um modelo de democracia cultural muito mais completo e reivindicativo que não demanda somente o acesso aos bens e produtos senão a inclusão da população –especialmente as camadas mais desfavorecidas e excluídas socialmente- e a possibilidade de participar de todas as etapas do processo criativo, acedendo por tanto aos meios de produção e divulgação. Esta dicotomia é fundamental, já que as fábricas irrompem com essa vocação democrática mais ambiciosa. O terceiro ponto a ressaltar está vinculado aos anteriores e levanta o elemento classista da cultura e da ação cultura. A luta entre uma suposta alta cultura em oposição à cultura popular de massas. A separação entre elitismo cultural e populismo cultural apenas servem para remarcar ainda mais as divisões e as desigualdades pré-existentes e acabam por estigmatizar a cultura (tanto por um lado como pelo outro) e relegar a política cultural a um papel coadjuvante no conjunto da atividade pública. Um dos objetivos das fábricas de criação é precisamente quebrar com essa polarização e desmascarar os estereótipos clássicos através de seus projetos e iniciativas artísticas. Outro assunto recorrente é a ameaça de instrumentalização da política cultural para outros fins que não são necessariamente aqueles professados inicialmente. Muitas vezes é possível distinguir entre a política cultural com tal (política pública setorial e transversal) ou como dispositivo político para outros fins e interesses espúrios. Nesse sentido, Jim McGuigan (2004: 144-45) identifica diferentes níveis de discurso em função do emissor-canal-receptor que se trate: a) um discurso de estado (stating) que coloca o setor público como o principal agente da cultura; b) um discurso de mercado (marketing) que defende as benesses insuperáveis do laissez-faire, laissez-passer como grande motor do setor cultural; c) um discurso potencialmente alternativo (communicating) entre os dois primeiros que outorga à sociedade civil organizada –o chamado terceiro setor- um papel protagonista na defesa de uma maior democratização das comunicações e da cultura. Na visão de Miller e Yúdice (2004:50), “hoje, com estados e mercados que frequentemente se reforçam e se validam reciprocamente, a sociedade civil cultural não religiosa se transformou num novo terceiro setor a cavalo entre ambos, mas em dívida com nenhum deles”. O último elemento polêmico no centro dos debates e práticas culturais é a fronteira entre os setores públicos e privado e os processos de hibridação entre ambos que estão também presentes na conformação e na atividade diária das fábricas de criação. Como reconhece Fabrice Lextrait (2003:183-85), em um estudo realizado na França sobre o tema, no seio destes espaços culturais, se dá uma mistura inédita que confronta aos expertos artísticos e os expertos do cotidiano, entre artistas e a população. O resultado desta hibridação é a conversão das fábricas

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em territórios de experimentação social e notavelmente de experimentações das relações entre individuo e comunidade. E o papel da cultura passa a ser o de despertar e desvelar a criatividade política de cada pessoa, uma vez que apela à alteridade, ao dinamismo, às inquietudes e à instabilidade. A política se transforma em um affaire d’amateurs. Então, o que são as fábricas de criação? Grosso modo, espaços culturais alternativos mais ou menos multidisciplinares, públicos, porém gerenciados por terceiros atores de forma relativamente autônoma que se relacionam intensamente com o entorno onde se encontram, em múltiplas vertentes. Possuem uma vocação política, crítica e participativa intrínseca que será uma das marcas desse tipo de projetos em comparação a outros espaços e centros mais comerciais ou mais instrumentalizados com outros objetivos. Como identificá-las? Observando os seus aspectos mais idiossincráticos. Pese a su heterogeneidade extrema, guardam fundamentos em comum que elencarei a continuação. Primeiro, a metodologia e a filosofia de criação e funcionamento das fábricas representa uma maneira de fazer, de pensar e dirigir os projetos que a diferenciam de outros equipamentos e iniciativas do campo cultural, artístico ou administrativo. Segundo, a autonomia e a interdependência que caracteriza a gestão das fábricas e que serão a fonte mais autêntica de legitimidade política de seus gestores. Terceiro, a concepção mesma do processo criativo baseada em uns enfoques artísticos e culturais alternativos que fogem da lógica estritamente mercantilista e enfatizam a experimentação artística livre e arriscada. Quarto, são entes públicos que se inserem em zonas urbanas degradadas e periféricas com o intuito de estabelecer pontes com a comunidade que paulatinamente aportem novas perspectivas para a mesma e revitalizem a cultura cívica e participativa- um dos combustíveis das fábricas culturais. Quinto, e não menos importante, as fábricas almejam concatenar todos os fatores anteriores para naturalizar uma inóspita e desejada ética da responsabilidade compartilhada e da solidariedade. O marco teórico específico introduzido por Lextrait não pretende etiquetar em categorias pobres de significado, senão ajudar a compreender um fenômeno altamente complexo, novo e pouco estudado. A partir do mapeamento realizado por todo território francês, deixa entrever o que poderiam ser algumas ‘famílias’, ou ‘sequencias de paisagens’ de fábricas de criação (ver Quadro 1) que aplicarei ao programa barcelonês como o objetivo de perceber sua adequação ou não à essa ‘tipologia’ e suas limitações. Ditos ‘pseudomodelos’ (WWW, YYY, ZZZ, XXX) visam refinar a análise e alargar o conceito de ‘fábricas’ do programa Barcelona Art Factories, englobando dinâmicas e ideias que não estão contempladas no caso catalão.

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Quadro 1. Possíveis “famílias” de fábricas de criação WWW Projetos que pela sua definição original ou trajetória histórica reuniram atores diversos em um lugar comum que passa a ser considera como uma plataforma. Outra característica é a presença de disciplinas múltiplas e de todas as funções citadas anteriormente, que conduz à ideia de desenvolvimento cultural. Constituída por projetos diferentes distintos em função das prioridades de cada território, porém que se posicionam de forma similar no panorama cultural local e nacional. O impacto urbano, a abertura e transformação do espaço são evidentes. A gestão costuma ser colegiada ou associativa. Seu principal rasgo é o potencial que a iniciativa representa em termos de motor do desenvolvimento local. ZZZ São projetos nômades, itinerantes pelo território. Postos em prática por um gestor ou por um artista. A natureza destas iniciativas é fruto de um trabalho de produção de ações e intervenções fora do seu âmbito de residência. O tempo, em geral, é definido – o tempo do próprio processo artístico em si. Questionam fenômenos sociais entrosando públicos específicos no seno do processo criativo, ligados à capacidade de responder às suas demandas. Às vezes são os projetos WWW e YYY que impulsionam estas experiências de campo.

YYY A identidade artística é mais forte que o espaço em si, já que a sua existência está vinculada a um artista, um coletivo ou uma disciplina artística determinada ou com a emergência de uma nova estética. A colegialidade também define estes espaços, sendo um dos princípios básicos de funcionamento e gestão. Configuram-se como centros de trabalho e de excelência artística, ao mesmo tempo em que estão abertos à difusão de espetáculos e produtos.

XXX A marca mais singular é a precariedade e a natureza selvagem das suas intervenções. Situamse em uma indefinição institucional que as especificam, lhes dá liberdade, entretanto as mantêm na marginalidade. São projetos centrados no trabalho, embora também reivindiquem questões sociais e políticas e promovem a divulgação dos artistas não integrados nas redes e canais institucionais.

Fonte: Elaboração própria a partir de Lextrait (2003).

As Fábricas de Criação de Barcelona

A consolidação democrática na Espanha foi um período largo e caracterizado pela precariedade institucional, o atraso histórico e as enormes expectativas de uma sociedade ansiosa que havia sido oprimida e coibida por uma ditadura por mais de três décadas consecutivas. A construção de um novo regime democrático e social de direito têm no âmbito cultural uma expressão clara do momento. A herança do franquismo foi um país obscuro, atrasado e retrógado, porém ávido por mudanças. A trajetória do setor público cultural está marcada também pelas constantes disputas políticas do recém-nascido estado das autonomias em torno às competências administrativas. A estruturação de um Ministério da Cultura nos moldes franceses fracassou pela falta de empenho e coordenação política e porque basicamente, a cultura passou a ser uma incumbência das regiões. No caso das comunidades históricas como Catalunha, Galícia e País Basco, a política cultural irá ligada à recuperação do patrimônio nacional (catalão, galego e basco) e a valorização da língua, dos costumes e da cultura tradicional destas localidades. No final das contas, os principais atores públicos que assumiram e responderam as enormes demandas cidadãs no campo cultural foram os poderes públicos locais (Prefeituras e

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Deputações), embora não tivessem os recursos disponíveis nem o imperativo legal para fazê-lo. Assim, a descentralização ocorre sem grandes planejamentos e atendendo às necessidades mais imediatas da população. Barcelona é um exemplo paradigmático, cujo Ajuntament foi governado por forças de esquerdas por mais de 30 anos seguidos e onde houve uma aposta decidida pela cultura, dotando a cidade de uma rede de equipamentos culturais invejável. Em 1999, a secretaria municipal de Cultura lança o seu primeiro plano estratégico com ações e medidas transversais que situam a cultura como um dos eixos principais de desenvolvimento e inovação da cidade. Dito plano será revisado em 2006, quando se incorporaram ‘novos acentos’ ligados às grandes mudanças geradas pela globalização, as migrações internacionais e às novas tecnologias. Nesse novo documento, surge o programa de Fábricas de Criação dentro de um marco mais abrangente conhecido como Barcelona Cidade Laboratório que pretendia estimular todo tipo de experimentações no campo da gestão cultural. O Programa de Fàbriques de Creació do Ajuntament de Barcelona é uma iniciativa do Institut de Cultura de Barcelona (ICUB) que responde a reivindicações de associações, coletivos e artistas que procuravam transformar espaços urbanos abandonados ou em desuso para convertêlos em espaços impulsores de cultura, pensamento e ação crítica. Trata-se, pois, de uma rede de equipamentos culturais públicos, de titularidade municipal e gestão descentralizada localizados em diversas zonas da cidade (ver Figura 1). Oficialmente, o programa se alicerça em cinco pilares fundamentais que o orientam y são transversais a todas às diferentes fábricas. Em primeiro lugar, a excelência e a qualidade, isto é, os centros culturais apostam por uns trabalhos artísticos de alto nível. Em segundo lugar, a integração e a interseção entre as redes artísticas com outros circuitos profissionais, no setor educativo, social, empresarial, acadêmico, político, etc. Em terceiro lugar, a multidisciplinaridade de linguagens, ramas e enfoques. Em quarto lugar, e atrelado aos impactos positivos da globalização (que existem também!), a internacionalização e o caráter multiétnico e multicultural. Em quinto lugar, a hibridação ou fusão entre o setor público e privado (incluindo o terceiro setor) tanto no financiamento como na gestão dos referidos espaços de criação baseada na coresponsabilidade e na confiança mútua. Atualmente, o programa agrega a nove fábricas culturais que coincidem parcialmente com a “tipologia” proposta por Lextrait (ver Quadro 2). Podemos subdividir a rede em função da sua origem e do seu modelo de gestão. Por um lado encontramos aqueles lugares que brotaram a partir de movimentos artísticos e cidadãos que ao longo do tempo e que conseguiram consolidarse como promotores de criação multidisciplinar como são Ateneu 9 Barris, Nau Ivanow, Escocesa e Hangar. Não é casual o fato de que estas quatro se situem em regiões periféricas e afastadas do centro da cidade (Nou Barris, Sant Andreu e Poble Nou, respectivamente) e que históricamente se caracterizaram por serem bairros industriais e operários escassos de serviços públicos e pontos de cultura. Possivelmente se enquadrariam na família XXX, porém com toques de YYY – já

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que todas elas também apostam por uma linha artística predominante. Por outro lado, temos equipamentos de construção recente e que são capitaneados por agentes representativos do seu correspondente âmbito artístico, como é o caso da Central del Circ, La Seca, Graner e Sala Beckett/Obrador. Estas quatro últimas sintonizam com o perfil YYY, embora não se trate de um conceito estanque e fechado, simplesmente denotam uma priorização de uma atividade artística profissional específica – já seja o circo, a dança ou as artes cênicas. E por fim, está também a Fabra i Coats, a única que goza de uma gestão direta 100% municipal e que ostenta a condição de polo central do programa, sendo responsável de coordenar as demais fábricas, dado o considerável tamanho físico de suas instalações e o valor simbólico que representa para os vizinhos de Sant Andreu. Figura 1. Mapa das Fábricas de Criação de Barcelona.

Fonte: http://fabriquesdecreacio.bcn.cat/

O Ateneu 9 Barris é um projeto coletivo localizado em um centro cultural público no qual a ação cultural e artística seve como ferramenta de transformação social e é gerenciado com transparência, autonomia e independência. No terreno artístico, pretende potencializar a criação e fomentar a formação artística desde uma ótica não mercantilista, comprometida socialmente, com o objetivo de apoiar a criação jovem e as culturas emergentes, sempre a partir da qualidade e da excelência artística. No contexto sociocultural, anseia fomentar o compromisso social e solidário entre os cidadãos, mediante o estímulo da participação e a dinamização da cooperação entre entidades. A Nau Ivanow é um espaço alternativo de criação especializado nas artes cênicas, uma plataforma de impulso de projetos artísticos, especialmente de jovens criadores, que dá cobertura a todas as fases do processo de criação. Desde o seu nascimento, a Nau aposta pela qualidade na produção cultural em Barcelona, oferecendo espaços e recursos aos criadores e profissionais da cultura facilitando o desenvolvimento dos seus projetos. Além disso, constitui um ponto de

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encontro entre cidadania e artistas, garantindo o acesso dos cidadãos a conteúdos culturais inovadores, ecléticos e de qualidade. A Fabra i Coats (pelo menos o galpão principal do recinto fabril) quer ser um grande container de produção cultural que se caracterize pela transversalidade e pela polivalência. Deverá congregar funções, usuários e disciplinas variadas que garantam uma atividade cultural e criativa destacada, que repercuta local e internacionalmente. Hangar é um centro aberto para a investigação e a produção artística que brinda seu apoio a criadores, artistas e coletivos. O centro oferece um contexto e uns serviços que possibilitam a pesquisa e o desenvolvimento de produções artísticas de forma parcial ou integral, e acompanha os seus resultados incluindo-os em várias redes e plataformas e detecta as possibilidades de ancoragem dos projetos em outros setores. La Escocesa é um centro de produção artística enfocado nas artes visuais, autogerenciado e com vocação pública. Como centro de produção artística, aposta por oferecer aos artistas e coletivos residentes diferentes espaços a preços razoáveis (espaços de trabalho, material para produção, promoção e intercâmbio internacional), favorecendo a sua profissionalização e a melhora de suas carreiras artísticas. La Central del Circ é um centro de criação, treino ensaio, formação contínua e investigação dirigido a profissionais do circo, tanto artistas individuais como companhias. Dentro do programa de Fábricas de Criação, permite que os artistas de circo, treinem, se formem, ensaiem, criem e realizem seus espetáculos. Como plataforma para artistas e companhias emergentes, fomenta a profissionalização dos artistas e a interelação das disciplinas circenses. Por sua vez, a Sala Beckett/Obrador Internacional de Dramaturgia é um espaço de criação, formação e experimentação teatral, dedicado especialmente à promoção da dramaturgia contemporânea, e é ponto de encontro de dramaturgos com outros criadores cênicos, artistas de outras disciplinas e o público em geral. O equilíbrio permanente entre as atividades de formação e laboratório e as de produção e exibição de espetáculos profissionais faz da Sala Beckett e o seu Obrador um lugar particular, a meio caminho entre a escola artística, o centro cultural o teatro comercial. Uma fábrica de criação teatral contemporânea com uma visão atenta sobre o texto dramático e a sua constante atualização. O Graner é um centro de criação e aprofundamento da linguagem do corpo e do movimento. Atua baseado em diferentes linhas de trabalho para incidir no tecido criativo desde diferentes contextos. Os eixos principais são a criação, a internacionalização, o pensamento, a educação e a proximidade. O centro acolhe residências de criadores de dança, desenvolve projetos de cooperação artística com outros agentes culturais e promove a integração do espaço com o bairro, entre outros objetivos. Desse jeito, como centro de criação, oferece a oportunidade de aprender sobre a forma e a prática artística e está caracterizado por uma organização inclusiva e perto do público, com atividades de proximidade. Esta diversificação das linhas de trabalho,

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apoiada por uma comunicação fundamentada na rapidez da rede, permite ao Graner atuar dentro do contexto cultural da cidade e dotado de ferramentas de criação e de difusão de diferentes formatos. La Seca se autodefine como uma fábrica de criação contemporânea dedicada à criação, produção e à divulgação nos âmbitos do teatro, da dança, da magia, do circo e de outras artes cênicas, tanto visuais como musicais. É uma iniciativa do Brossa Espai Escènic, que ademais propõe atividades que incitam o estudo e a experimentação de novas linguagens criativas e programas de formação e reflexão. A priori, o Ajuntament de Barcelona aplica a estratégia do controle, traspassando o poder decisório desde a cúpula para as bases, permitindo a cada fábrica comandar o seus orçamentos e alcançar os seus objetivos gerais e específicos com uma margem de manobra considerável. Obviamente a contrapartida dos gestores terceirizados é uma prestação de contas anual detalhada e pormenorizada em função de indicadores de resultados pactuados previamente. Assim, o ICUB firmou convênios com cada um dos centros atendendo às suas necessidades e peculiaridades e deixando liberdade para os gestores sobre o terreno. Em relação aos pseudomodelos de Lextrait associados ao programa de fábricas, observamos que não existe nenhuma que se enquadre na categoria XXX –a mas precária, marginal e subversiva de todas- o que é sintomático da orientação do programa e sua adequação a uma realidade altamente complexa e desigual. Não há tampouco nenhuma “caravana de criação itinerante” no estilo ZZZ. O que encontramos são oito espaços interessantes e diversos que oscilam entre os perfis WWW e YYY, combinando elementos de ambos. Além disso, o programa prevê um equipamento maior, de mais peso e influencia –uma espécie de ‘mãe-fábrica’- que é a Fabra i Coats, cuja gestão diretamente municipal a distancia da comunidade. Os recentes conflitos com entidades locais e movimentos sociais do bairro não permitem classificá-la em nenhuma das anteriores famílias, trata-se de um caso sui generis que poderia ganhar uma tríade nova e exclusiva só para ela (como KKK, por exemplo).

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Tabela 2. Quadro-resumo das Fábricas de Criação de Barcelona. Entidad e gestora

Gestã o

Finan

Espe

ciamento

cialidade

calização

artística Atene u 9 Barris

Associac

Desce

ió Bidó de Nou

ntralizada,

Barris

associativa

Públic a,

y

privada

y

própria

Famílias” Lextrait

Circo e



Lo

artes

No u Barris

W WW

parateatrais

comunitaria. Nau Ivanow

Fundaci ó Sagrera

Desce ntralizada,

Públic a y própria

cênicas

associativa. Fabra i Coats

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Artes e

Sa nt Andreu

visuais.

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Públic a,

privada

y

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Multi disciplinar.

Sa nt Andreu

------

própria. La Central

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Desce ntralizada

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Circo

e

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e

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Sa nt Martí

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própria.

Y YY

La

Associac ió d’Idees

Escocesa

Desce ntralizada, associativa

Públic a,

e

privada

e

Artes visuais.

Sa nt Martí

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Fonte: Elaboração própria.

Conclusão

Podemos dizer que o programa de Fábricas de Criação de Barcelona funciona, e está crescendo – o que corrobora o seu afã de permanência e expansão. Também é importante dizer que é uma política pública de recente implantação e que não está consolidada por completo, em um processo constante de aprendizagem, construção e remodelação – o que é bom. Existem questões pertinentes sobre a verdadeira essência destes espaços:

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“São catalisadoras da intrínseca potência cultural autônoma da coletividade ou meras disseminadoras de um modelo social que se pretende constituir como hegemônico? Respondem às demandas reais de uma sociedade em transformação, ou são meros simulacros ao serviço de interesses espúrios? São fermentos de inclusão ou operadores de espionagem social? As respostas não podem ser definitivas ainda e esta mesma ambivalência e indefinição devem tomar-se como sintoma de abertura e da existência de um espaço para a negociação. Devemos advertir, sem embargo, que a tradição de instrumentalização da cultura em nossa história recente, assim como a verticalidade institucional com que normalmente se produziu a implantação das políticas culturais no nosso país (Espanha) nos recomenda a estar alertas” (Carrillo, 2008: 13-4).

Gostaria de expressar duas reflexões ao respeito que poderiam ser objeto de um estudo posterior mais detalhado e que são relevantes. A primeira é a capacidade de resistência das fábricas a um contexto adverso de crise econômica e ajustes orçamentários que afetam duramente a cultura a todos os níveis governamentais, o que indica que não é uma iniciativa incipiente e caprichosa de épocas de bonança material. A segunda, se refere ao fato de que numa situação tão complicada e desfavorável como a atual, a existência e permanência destes espaços adquirem um protagonismo maior que dão mais significado à sua luta contra a alienação social e especulação imobiliária, legitimam o seu trabalho diário e justificam a sua razão de ser. A vocação pública e o espírito revolucionário se fortalecem ratificando a hipótese de política transformadora. Contudo, isso não imiscui o programa de problemas e desafios. A missão e os objetivos podem ser explícitos aos olhos e ouvidos da opinião pública. A dificuldade é pô-los em prática, medindo os outputs obtidos a partir dos inputs previstos y revisando o programa em função das demandas e necessidades futuras. Não é fácil medir qualitativamente o impacto das fábricas de criação no entorno e as suas relações com a vizinhança. Para captar o grau de capacitação comunitaria seria preciso levar a cabo uma investigação muito mais profunda e extensa sobre o tema –coisa que pretendo realizar. Embora possamos quantificar o número de espetáculos, residências artísticas, bolsas oferecidas, eventos organizados ou o balanço financeiro, resulta complicado (mas não impossível) traduzir os aspectos subjetivos, o valor público intrínseco agregado pelos centros culturais alternativos. Com o tempo e a experiência, seguramente se encontrarão vias para demonstrar os efeitos positivos invisíveis das fábricas e que estes sejam reconhecidos como tais pela cidadania e pela administração pública. Qual é o futuro do programa? Proximamente se inaugurará a décima fábrica no distrito de Les Corts, um antigo cinema que se transformará num centro experimental dedicado às artes cênicas e à dança. Entretanto, é evidente que apenas na cidade de Barcelona existem diversos outros espaços criativos que poderiam encaixar-se na definição de ‘fábrica’ apresentada pelo próprio programa e que hoje por hoje na formam parte da rede. Quiçá exista certa discriminação seletiva baseada em critérios mais bem políticos e eleitorais que em argumentos técnicos, artísticos ou culturais.

Pode-se dizer que as fábricas funcionam sozinhas, pelas próprias

características que reúnem. A maioria delas já funcionava antes do apoio municipal, que vem a

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ser um complemento. O papel do setor público talvez devesse ser de suporte, como um veiculador que não põe obstáculos e facilita a aparição de cenários propícios à eclosão de novas fábricas. Somado a uma mudança gradual da mentalidade burocrática e política dos administradores e organizações públicas no sentido de aceitar e entender melhor a importância do trabalho pedagógico exercido pelas fábricas.

Nesse caso, a perspectiva poderia vir a ser de

conformar uma grande rede de espaços culturais alternativos autogestionados em toda Catalunha, Espanha ou Península Ibérica que incidisse nas políticas culturais e na cultura política. As relações entre cultura e política são múltiplas. Assim como os elos existentes entre a arte e a democracia. Em definitiva, as fábricas de criação são projetos multidisciplinares, híbridos, transformadores, inovadores, contemporâneos, flexíveis, dinâmicos e transitivos, marcados por uma enorme diversidade, versatilidade e autonomia. São eminentemente políticas. E públicas. Mais vinculadas a verbos que a substantivos: “exceder, destravar, ultrapassar, debater, desbloquear, soltar, libertar, descentrar, descentralizar, desmarcar, distinguir, derrogar...” (Lextrait, 2003: 203). A persistência e proliferação desses espaços parecem indicar não só a sua viabilidade política e técnica, senão a sua relevância histórica e o seu protagonismo na articulação de um discurso cultural e educativo implicado, comprometido y consciente dos enormes desafios que nos enfrentamos neste século e em diante. Estamos em uma nova época da ação cultural que interroga diretamente a definição e o lugar da arte nas nossas vidas e na sociedade. O que está em questão atualmente nestas fábricas de criação é a autonomia da arte e o sentido que esta postura assume, dependendo dos contextos e das épocas. Seria errôneo pensar que este é um movimento passageiro e efêmero ou uma mera etapa do desenvolvimento cultural. Estamos assistindo a combinação de múltiplos fatores e forças, diversas correntes e atores que se reencontram, -numa era de profundas incertezas- cujo fim é repensar e refazer a res publica, devolvendo o poder ao demos.

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HACIA UNA CONCEPCIÓN DIGITAL DEL PROYECTO DE ARQUITECTURA Geraldo Benicio da Fonseca Arquitecto Resumen en castellano El artículo discute innovaciones en procesos técnicos que, desde antes de los años 1980, han impactado a la arquitectura. Espacios de trabajo, bloques, capas, etc. abrieron camino hacia la parametrización y los modelos integrados. Asociados a la conexión en red, a la evaluación de performance, el escaneo 3D y el prototipado rápido, condujeron a la reordenación jerárquica, productiva, conceptual y de contenidos, lo que contribuyó a nuevas experimentaciones y a procesos de trabajo más complejos. Visualizaciones más complejas y nuevos modos de gestión han resultado en más agilidad en la fase inicial de concepción del proyecto, en una percepción renovada de las relaciones espaciales y, finalmente, en una comprensión renovada del trabajo del arquitecto. Estos impactos han contribuido a que, desde fecha reciente, la profesión considere la posibilidad de una concepción del proyecto mediada exclusivamente por recursos digitales. Palabras-clave: arquitectura, digital, representación gráfica, proyecto. Resumo em português O artigo discute inovações em processos técnicos, que têm impactado a arquitetura desde que antes da década de 1980. Workspaces, blocos, layers, etc. abriram caminho à parametrização e aos modelos integrados. Associados à conexão de rede, à avaliação de performance, à digitalização em 3D e à prototipagem rápida, levaram à reorganização hierárquica, produtiva e conceitual, que contribuiu para novas experiências e processos de trabalho mais complexos. Visualizações mais complexas e novas formas de gestão resultaram em mais agilidade na fase inicial do projeto, em uma percepção renovada das relações espaciais e, finalmente, em uma compreensão renovada do trabalho do arquiteto. Esses impactos têm contribuído para que, desde pouco tempo, a profissão considere uma concepção do projeto mediada exclusivamente por recursos digitais. Palavras-chave: arquitetura, representação gráfica, digital, projeto.

En la producción literaria más reciente suele predominar la tendencia a vincular la arquitectura a los esfuerzos en el desarrollo de los recursos gráficos digitales. En esta celebración optimista de la presencia digital, la representación gráfica arquitectónica contemporánea estaría vinculada a un “adviento” tecnológico ocurrido en algún momento alrededor de los años noventa. En contra de este abordaje simplificador, el artículo afirma que los adelantos recientes que se hacen notar tanto en la arquitectura como en su representación no tienen causa única, sino que están asociados a una serie de circunstancias (algunas, como la acción de la vanguardia europea de principios del siglo XX, ya bastante antiguas); cada una de ellas ha contribuido al dinamismo y a la complejidad que se hacen cada vez más evidentes a la arquitectura del siglo XX. Del conjunto de condiciones que han afectado el ambiente profesional, teórico e institucional de la arquitectura, se destacan: a) la contestación al vocabulario técnico de representación en uso por la arquitectura y la construcción civil desde el Renacimiento hasta los años 1960; b) la búsqueda de nuevos referentes por parte de la arquitectura más erudita, forzada a la crítica del Movimiento Moderno y al reconocimiento de la convivencia con el mercado; c) la influencia de las neovanguardias arquitectónicas, que intentó superar este impase teórico y conceptual desde el rescate de preocupaciones del mismo Movimiento Moderno, aliado a la atención a los recursos tecnológicos; d) la redefinición del papel del arquitecto en la gestión pública, frente a movimientos sociales emergidos desde la globalización y las nuevas redes de

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comunicación; y e) las transformaciones tecnológicas, cuyos reflejos se hicieron sentir tanto en la industria de la construcción como en las técnicas de representación gráfica aplicadas a la arquitectura. Aceptando el hecho de que el actual predominio de lo tecnológico –y, en particular, de lo digital- tanto en el discurso teórico como en la praxis profesional resulta de circunstancias diversas, este artículo trata de la influencia, en la arquitectura, de algunas de las transformaciones tecnológicas más relevantes. La difusión de los ordenadores personales en el inicio de los ochenta indujo la demanda por aplicativos, a la que la industria informática contestó ampliando la oferta de software gráfico. Este panorama de expansión hizo avanzar el CAD que, difundido desde los Estados Unidos, estuvo enfocado a las ingenierías y al diseño industrial, necesitados de técnicas automáticas, rápidas y precisas de redacción de planos y registro de proyectos. Comparada al dibujo manual, esta primera generación CAD poco tenía a ofrecer a la arquitectura, a parte de la rapidez. No obstante, una rápida evolución hizo con que enseguida estuviera disponible una extensa familia de procesos informatizados de dibujo; muchos de ellos, ya adaptados al proyecto de edificaciones. Hacia la mitad de esta misma la década ya se consideraba la generalización de esta plataforma en el contexto arquitectónico europeo y norteamericano, y su expansión era notable en la América Latina. En aquél momento, esta expansión se condensaba en la denominada “infografía arquitectónica”. El término concierne menos a los recursos disponibles que al concepto de su uso: orientada hacia el diseño bidimensional, y a la impresión de planos, contestaba a necesidades más inmediatas de la construcción que a la exploración de conceptos específicos de la arquitectura. Quizás por esto, la incorporación de recursos no haya sido homogénea en los estudios, ni tampoco en las escuelas (Zaera-Pólo, 2012).

Fig. 1. Presentación de proyecto arquitectónico hecha con un típico aplicativo de renderización basado en el AutoCAD ilustra la reproducción, por medios digitales, del modo de trabajo analógico: basada en la composición desde planos ortográficos, emula los recursos usuales del dibujo manual. Ilustración cedida por la arquitecta Marina S. Dias.

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La mayoría de los arquitectos que trabajaban con ordenadores en esta misma época tendía a considerar la infografía como mero aporte a la eficacia en la realización de operaciones gráficas ya usuales (Sainz & Valderrama, 1992). Como resultado, mismo informatizado, su trabajo se caracterizó por la aceptación -más bien pasiva y no planeada- de las alternativas ofrecidas por la industria, por la transferencia directa de la experiencia anterior en dibujo manual al ordenador, y por la consiguiente conformidad con preceptos anteriores a la difusión de la informática. En esta acepción, el campo de trabajo mostrado en la pantalla del ordenador fue tomado como un “tablero digital” -una “hoja” infinita pero sin profundidad- donde se disponían los elementos de proyecto, de modo análogo a la representación gráfica convencional. Así, mientras los PCs se hacían ubicuos entre los arquitectos, el plano y las secciones siguieron modos típicos de presentación gráfica, y por lo tanto, generadores de contenido formal y técnico, lo que retardó la reflexión sobre una informática propia a la arquitectura. Esta transición resultó por veces en el uso indiscriminado de bibliotecas de elementos prediseñados o la duplicación desnecesaria de partes del dibujo (Mitchell, 2003; Puglisi, 1998), todavía presentes en pleno siglo XXI. A pesar de todo, estas cuestiones resultaron poco significativas frente a las ventajas del CAD, comparado al dibujo manual: la posibilidad de reproducir la realidad que circunda el proyecto; la posibilidad de adecuar el nivel de precisión a la escala; un mejor control del proceso de trabajo y del resultado del proyecto; y la reproductibilidad que ofrece en diversos medios. A los arquitectos –así como al resto de la comunidad involucrada en la construcción- la infografía arquitectónica resultó en productividad y en reducción de plazos y costes de producción del proyecto. A mitad de los años ochenta ya estaban disponibles los modeladores tridimensionales. Su uso en el diseño y en la arquitectura acabó asociándose a la evolución de otros procesos y conceptos informáticos, todos generalizados a partir de la década de 1990. El primer fue la consolidación de los recursos de gestión de archivos gráficos; el segundo, la definición de lenguajes de programación orientados al objeto; y el tercer, el desarrollo de métodos de cálculo de formas complexas. Contestando a la necesidad de eficacia y productividad, los editores de imagen y los sistemas CAD incorporaron recursos avanzados de gestión de archivos gráficos. Se trata, principalmente, de los sistemas de layers, de los bloques de dibujo y de los espacios de trabajo (en lenguaje de programación, los “dominios”). En programas gráficos, los “dominios” permiten visualizar el objeto de modos distintos pero simultáneos. En programas CAD y de modelado, esta percepción de los archivos es hecha por la segmentación en “espacios de trabajo” virtualmente paralelos. El área de trabajo (“model space”) y el área de presentación (“paper space”) son dos modos diferentes de visualización de archivos en la pantalla de un ordenador, usados respectivamente para el diseño de un objeto y para la presentación de los resultados del proyecto.

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El CAD suele recurrir a rutinas de construcción de elementos y a los “bloques” pre-diseñados (Fallon, 1998)96. Los bloques son entidades formadas por información geométrica y numérica codificada en conjuntos de objetos. Correctamente dibujados, pueden tener niveles diversos, separados por capas y adecuados a diversas escalas de visualización. O estar formados por otros bloques, cada uno describiendo una parte del objeto. Los bloques sirven para ahorrar esfuerzo: al actuar sobre una entidad, es posible cambiar de una sola vez todas las partes del diseño en las que esté repetida, lo que resulta en rapidez.

Fig. 2. Izq.: model space del Rhinoceros 5, con su típica distribución en tres planos ortogonales y un modelo 3D. Der.: bloque de escalera hecho en 3dsMax. Imagen del autor.

Otro modo usual de visualizar y gestionar la información que integra un objeto complejo es agruparla en capas (layers). El concepto de capas es usado en el CAD así como en otras plataformas gráficas que gestionan gráficos complejos (como la tecnología GIS o los editores de imagen como el Photoshop)97. En su acepción más simple, el lenguaje de capas interpreta el objeto en proyecto como un conjunto de “láminas” superpuestas y transparentes. En modos de trabajo avanzados, los layers dejan de ser “láminas” bidimensionales, y pasan a ordenar grupos de entidades tridimensionales.

96

En el CAD, estos recursos ya estaban generalizados cerca de 1995 (Fallon, 1998, p.28). En el CAD el uso de layers está institucionalizado desde 1990 (AIA, 1990). El AutoCAD los usa al menos desde su Release 12 (1992). El primer software editor de imágenes a usar layers fue Fauve Matisse (cerca del 1993). El Photoshop (1990, Adobe) los usa desde su versión 3.0 (1994). 97

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Fig. 3. Izq.: típica pantalla CAD de gestión de capas en el proyecto arquitectónico. Der.: visualización del contenido del archivo, separado en planos distintos, cada uno relativo a una distinta capa de información (arquitectura, distribución, iluminación, aire acondicionado). Imagen del autor.

Paralela a la generalización de los recursos de gestión, la difusión lenguajes de programación orientados al objeto (como el C++) fue aprovechada por los desarrolladores que, buscando mercado entre empresas de porte medio o pequeño, dieron énfasis al diseño (y no más al dibujo), a la integración entre representaciones 2D y 3D, y a herramientas más simples e intuitivas. En el sector del CAD, se notó aún una decidida expansión del cálculo por nubes de puntos o por curvas spline, más adecuados al diseño de superficies complejas que la generación anterior, de típica concepción vectorial y “cartesiana”. El resultado fue una espectacular difusión de programas orientados a conceptos tridimensionales (no sólo CAD, sino también de tratamiento de imágenes, diseño gráfico, recursos audiovisuales, modelado y animación), que se ha llamado “la tercera generación” del software gráfico98. Han sido justamente el desarrollo técnico de los espacios de trabajo y de la visualización por capas, su experimentación por parte de la Generación 1.0, y finalmente el uso generalizado de estas estructuras virtuales que contribuyeron para alejar el modo de pensar simplificador asociado a la “infografía arquitectónica”. En este alejamiento, han contribuido a la superación de concepciones culturales predominantes hasta los ochenta. Una de éstas respeta al proceso mental de creación. La mejor explicación encontrada para el pensamiento creativo acreditaba una relación dinámica entre la mente y el ojo; cuya concreción dependía del gesto manual; y su registro, de la materialización en un objeto o un gráfico (el croquis, la maqueta, etc.). En los procesos creativos digitales la operación manual pierde relevancia; y el registro pasa a ser virtual, sin una necesaria existencia material. Los lenguajes de programación orientada al objeto, los métodos de cálculo de formas complexas y los recursos de programación (como los espacios de trabajo y la gestión de capas y bloques) acabarían siendo cruciales en el desarrollo de la parametrización y de los modelos tridimensionales integrados. Se trata de un conjunto de herramientas progresivamente complejas, que han evolucionado en paralelo y que, desde imposiciones de los usuarios, han caminado hacia la integración y la colaboración. Desde estos recursos ha sido posible alcanzar una visualización potencialmente inmediata y simultánea, multiescalar y pluriangular, de diversos contenidos (cada uno con su propio nivel de complexidad, su escala y sus informaciones), o de un mismo objeto desde diversas posiciones y escalas. Esta visión -ampliada flexible y complexa- condujo a los diseñadores a repensar sus conceptos acerca de lo que era y como operaba un proyecto. Así se sentaron las bases técnicas del nuevo modo de pensar, inédito y específicamente digital. En éste, 98

Se trata de Rhinoceros (1994, creado por McNeel como plugin del AutoCAD), 3DStudio (1990, hoy 3DS Max, de la AutoDesk), el Form*Z (1991, auto.des.sys), Softimage (Avid Technology), Alias Sonata y Maya (1998, AliasWaveFront). También el AutoCAD R11 (1990) disponía de modelado de sólidos, mejorado por el sistema ACIS (1992) para competir con modeladores orientados al diseño mecánico (como Pro/ENGINEER, NX, Solid Edge y Autodesk Mechanical Desktop). Aliados a CATIA, SolidWorks (1995, hoy de Dassault Systèmes) y SketchUp (2000), integran lo que se llamó “la tercera generación”, orientada a conceptos 3D.

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los raciocinios que sirven a la exploración conceptual, formal y espacial ya no se aseguran desde la relación entre la mano que hace y el ojo que observa: la mente se relaciona directamente con una estructura digital que es la visualización simultánea del objeto diseñado, de su contexto y del proceso que lo conforma. Una vez disponibles los recursos digitales de descripción de la forma, era posible dar un paso más, hacia el enfoque radical y innovador en el lenguaje del proyecto solicitado por el mercado. La cuarta -y hasta ahora más reciente- generación de herramientas de diseño digital ha estado asociada a tecnologías de comunicación, a recursos multimedios, a la evaluación de la performance técnica y a la fabricación digital, configurando un nuevo estamento a la práctica profesional. El período de los noventa coincidió con el desarrollo de software de comunicación y de control de flujo de datos, que el público asocia a la expansión de la Internet. La misma tecnología sirvió también al desarrollo de las redes locales: simples y de bajo coste, estos sistemas de conexión se tornaron típicos en las empresas de proyectos. Así, al terminar la década, mismo los más modestos estudios de arquitectura disponían de ordenadores eficientes, baratos, interconectados y capaces de comunicación a distancia. Esta facilidad inédita cambió la estructura administrativa y productiva en el interior de los estudios, y las relaciones entre éstos y las demás organizaciones dedicadas a la construcción. Por primera vez en la historia, personas que trabajaban en distintos locales podían colaborar de modo simultáneo en el desarrollo de un proyecto. Enseguida se pasó a pensar en nuevos modos de conectividad, lo que en algunos casos resultó en experimentos de diseño participativo a distancia y en tiempo real. Ejemplo paradigmático de este modo más difuso de pensar la profesión fue el proyecto del FOA para la terminal marítima internacional de Yokohama (1995) cuya gestión fue compartida entre Inglaterra y Japón. La descentralización planteó nuevos temas. Como por ejemplo la reducción de la importancia atribuida a la proximidad entre el arquitecto, sus colaboradores, el cliente y la obra. El profesional encontró más libertad a la hora de decidir donde asentar su local de trabajo, buscar oportunidades de trabajo o elegir un equipo con que compartir responsabilidades técnicas, a la vez que pasó a afrontar la competencia de estudios cada vez más lejanos. Otra consecuencia fue el alejamiento aún más pronunciado entre el centro de decisión (el ordenador del que diseña y decide) y la producción de datos (el ordenador del que calcula y dibuja) (Allen, 2009). Esta separación se contrapone a la posibilidad de un diseño que, operado en red, sea realmente compartido; la paradoja refleja la persistencia y la agudización de un modo de producción del proyecto que, intrínsecamente jerárquico y autoritario, se ha asociado a procesos y sistemas típicos de la Revolución Industrial y del paradigma socio-económico moderno. Más o menos al mismo tiempo que la revolución en las telecomunicaciones tornó posible gestionar proyectos a distancia, otras tecnologías -concebidas para uso en el arte, en el ocio, en

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las ciencias y en las ingenierías- empezaron a ser vistos en la industria y en la universidad, y enseguida fueron aplicadas en la presentación arquitectónica, ampliando posibilidades de relación entre la arquitectura y su objeto de trabajo: desde la visualización del edificio hasta máquinas que transfieren información digital directamente a una maqueta. La visualización se refiere al rendering de la imagen: la ilustración de la forma, de la textura del material y del efecto de luz, en el modelado tridimensional así como en la imagen “plana”. La visualización arquitectónica se ha beneficiado de técnicas avanzadas, desarrolladas para otras áreas profesionales. Una de estas mediaciones es la animación, que trata del movimiento de los objetos, del observador o de la cámara y de la relación entre éstos y el paso del tiempo99. El desarrollo de la animación digital en los años 1980 y 1990 resultó en recursos de modelado útiles en la descripción de formas complejas, no obstante en general carecieren de la precisión adecuada al dibujo técnico de formas arquitectónicas100. A pesar de las dificultades iniciales, la animación está hoy generalizada en la presentación de proyectos, tanto en las escuelas como en el medio profesional; y los recursos disponibles permiten animaciones arquitectónicas de impresionante fidelidad visual. Otra posibilidad innovadora fue la Realidad Virtual (RV). En la RV, la interacción con un modelo 3D en un entorno virtual permitiría acercar el usuario a un concepto espacial antes de su realización, para así experimentar formas, movimiento, proporciones, iluminación y materiales. Actualmente se trabajan otros conceptos, que dispensan la inmersión en un ambiente virtual: se trata de la Realidad Aumentada (RA), que utiliza una mezcla de técnicas de captura de imagen en movimiento, generación de gráficos 3D y referencias espaciales (GPS, por ejemplo) para ofrecer visualizaciones de espacios y objetos virtuales en tiempo real en tablets y smartphones.

Fig. 4. Experiencia de inmersión en ambiente arquitectónico reproducido en RV, y ejemplo de uso del URBASEE Future. En: http://www.urbasee.com/guide.php (acceso 2013).

99

Algunos software se han dedicado al rendering del modelo (por ejemplo el 3Dstudio o el RenderZonePlugin creado para potenciar el Form*Z). Pero otros se ocuparon del tratamiento de imagen: el CorelDRAW (1985) fue un referente, hasta ser suplantado por Adobe Photoshop, Freehand, Illustrator y QuarkXPress, de los noventa. 100 Desarrollada en los noventa, la técnica CGI (Computer Generated Imagery) facilitó la animación en ambientes construidos. Los aplicativos más conocidos son el 3Ds (3DsMax, 1990, Autodesk), el Maya (y el Maya MEL script, 1998, hoy de Autodesk), el Cinema 4D (1993, Maxon) y el Blender (1995, NeoGeo).

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Ha sido notable la migración hacia la arquitectura de software dedicado a la evaluación de la performance técnica. Programas dedicados al diseño náutico o aeronáutico, al test de modelos en túneles aerodinámicos virtuales, y las herramientas de control de variables ambientales (insolación, ventilación, energía etc.) pasaron a ser aplicadas en el perfeccionamiento de la forma del edificio. Estos nuevos usos del software aplicado al proyecto tuvieron su ejemplo paradigmático en las prácticas desarrolladas en el estudio de Frank Gehry (Kolarevic, 2003), pero otros (como Richard Rogers, Foster Asociates, o empresas de consultoría como Ove Arup y designtoproduction) también han sido responsables de avances hoy aprovechados por la profesión.

Fig. 5. El proyecto para el Museo Mercedes-Benz, del UN Studio, usó una amplia variedad de recursos en la concepción de la propuesta para el concurso y, después, en el desarrollo del proyecto. Izq.: modelo del conjunto de rampas obtenido por prototipado rápido. Der.: planta típica, obtenida por una máquina CNC. Imágenes cedidas por UN Studio.

Gracias a su capacidad de emular aspectos del movimiento y de la percepción espacial, visual y/o sonora, todas estas mediaciones han estado cada vez más presentes en la presentación del proyecto. Más importante, también han abierto el camino a la exploración de las formas dinámicas en la arquitectura. No obstante, la animación, RV o RA no han estado presentes en la concepción; quizás porque el esfuerzo necesario a su planeamiento inicial se oponga a la espontaneidad propia de la fase más inicial y creativa de la arquitectura. Más suerte ha tenido la fabricación digital -cuyo impacto se hace sentir en el momento de la concepción del proyecto- así como los software de evaluación técnica y de multimedios (como los concebidos para el diseño de videojuegos), cada vez más usados en el desarrollo de escenarios urbanísticos.

Emergencia del diseño paramétrico y del modelo integrado en la concepción.

A pesar de los avances descritos, persistió la percepción de que la gestión y modificación de los proyectos arquitectónicos seguían ancladas a la acción humana, con las consecuentes limitaciones en productividad y precisión. Hasta principios de la década de 1990 las herramientas de modelado disponibles eran insatisfactorias a la concepción: una vez creado el modelo, la carencia de procesos adecuados para modificarlo de modo interactivo resultaba determinante a

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una actividad en la que es usual reelaborar soluciones. Esta realidad se transformó a partir del diseño paramétrico y de los modelos integrados que, contestando a demandas como la racionalización o el dibujo de formas complexas, acabaron aplicados al proyecto arquitectónico. Mismo hoy, programas dedicados al modelado de formas complejas son muy adecuados a la descripción de volúmenes o cáscaras, no obstante carecer de la precisión adecuada a su fabricación. De esto se encarga una rama más técnica del diseño parametrizado aplicado a la construcción civil, dedicada a racionalizar procesos constructivos que necesitan de series repetidas de elementos semejantes, pero no idénticos. La racionalización trata de organizar los miles de componentes de un edificio en grupos de objetos que poseen (por ejemplo) mismo concepto, material y finalidad, pero distintas dimensiones. Estas partes de la construcción poseen parámetros semejantes, pero su “identidad” es expresa en distintas variables numéricas. Los sistemas paramétricos están pensados para describir y ordenar estos grupos de objetos. Difieren del CAD por su capacidad de cambiar la “identidad” de las partes a cualquier momento del proceso de diseño, y por generar versiones distintas del modelo en acuerdo con estos cambios. La parametrización se asoció, aún, a la expansión de los sistemas de cálculo spline en la ingeniería mecánica y aeronáutica a partir de los años 1950. Las curvas definidoras de las superficies continuas de doble curvatura de vehículos y aeronaves han sido descritas por ecuaciones en las que el cambio en el valor de algunas variables redefine la forma de la curva y, en consecuencia, de la forma proyectada. Este proceso de cálculo en el que las variables son expresas de modo paramétrico conduce al modelado paramétrico. En éste el modelo es definido según relaciones variables entre sus propias partes, quedando evidentes las normas de relación entre componentes (las entidades que describen la forma) y la información (los datos). Se trata de una geometría asociativa e interconectada, en la que el interés se desplaza desde la forma hacia las reglas interiores que la conducen101: nueva prioridad, que hizo cambiar la representación digital del proyecto arquitectónico, desde la descripción de formas fijas y explícitas, hacia la notación de modelos dinámicos. La experiencia pionera en el campo de la parametrización de componentes para la construcción parece haber sido el proyecto de ejecución de la Ópera de Sydney (Australia). Su proyecto arquitectónico original, de 1956, es del arquitecto danés Jorn Utzon, pero el desarrollo técnico de las cáscaras de las cubiertas, a cargo de los técnicos de Ove Arup & Partners, necesitó siete años y doce soluciones proyectuales distintas para ser realizado 102. Los procesos desarrollados fueron precursores en el diseño CAD, en el modelado tridimensional y en la parametrización de componentes; sirvieron aún de base para estudios posteriores de fabricación 101

"Son los parámetros de un determinado objeto los que son declarados, y no su forma.” (Kolarevic, 2005, p.251). 102 Las cúpulas están recubiertas por unas 4.000 placas compuestas de cerámica, todas con la misma forma básica, pero distintas dimensiones. También fueron parametrizadas las soluciones de diseño de las fachadas de vidrio de la Opera.

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de componentes por técnicas de control numérico (CNC). Así, la Ópera de Sydney fue fundamental al desarrollo de procesos que serían incorporados por los arquitectos en las décadas de 1980 y 1990, para finalmente llegar a la concepción.

Fig. 6. Ejemplos de parametrización: montaje de las placas de revestimiento de las cubiertas de la Opera de Sydney (1956-1963); estructura de la cubierta de la terminal internacional de trenes Waterloo Terminal (Londres, 1988-1993). En: nsw.royalsoc.org.au (acceso 2013). Foto del autor.

Cerca de 1988 el proyecto paramétrico ganó impulso gracias a los primeros programas comerciales que utilizaban principios como el de la curva de Bézier 103, y así permitían relaciones estables entre los componentes de un diseño, mismo que se cambiaran sus dimensiones. De este período es el diseño de la cubierta de la terminal internacional de trenes Waterloo Terminal (Londres, 1988-1993, arq. Nicholas Grimshaw & Partners). Se trata de uno de los primeros proyectos parametrizados que, enteramente hecho con auxilio del CAD, resultó en un edificio ejecutado. En la terminal, los 36 elementos estructurales que soportan la cubierta curva y los cristales tienen idéntica solución de diseño; sin embargo todos tienen distintas dimensiones. Tanto en este proyecto para Londres como en el precursor para Sydney, la parametrización atendía principalmente a la descripción técnica de elementos constructivos. No obstante, cerca del 1995 las rutinas de parametrización ya estaban generalizadas (Fallon, 1998). El hecho significó un empuje conceptual, aprovechado por arquitecturas más recientes: el equipo encargado de los proyectos de la Sagrada Familia de Barcelona ha explorado de modo creativo el perfil más técnico de la parametrización arquitectónica; y el arquitecto Bernhard Franken obtuvo, en 1999 y gracias a precisos procesos de fabricación orientados por controle numérico, unas superficies de cristal curvadas y perfectamente acabadas, visibles en el pabellón BMW (Frankfurt).

103

Como por ejemplo el Pro/Engineer de la Parametric Technology Corp.

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Fig. 7. El Pabellón BMW (Frankfurt, 1999, arq. Bernhard Franken y ABB Architekten) representa el estado del arte de la parametrización en la década de 1990. Foto del autor.

Hoy se atenta a programas que utilizan el modelado paramétrico vía scripts 104. En esta clase de software, la aplicación del modelo matemático (visualizado por medio de scripts integrados por componentes y datos) genera un modelo paramétrico de trabajo; sus características formales pueden variar simplemente cambiando los valores de los componentes en el modelo matemático. Esta facilidad de manejo contribuyó a su popularidad entre los arquitectos, que los utilizan tanto para generar superficies como para construir algoritmos generativos.

Fig. 8. Script de modelado tridimensional en Grasshopper, y visualización del resultado en la pantalla del Rhinoceros 5. Ilustración del autor.

Una de las herramientas paramétricas más potentes es el modelado de información de construcción (en inglés: Building Information Modeling, o BIM), cuya principal meta es crear un modelo completo de la obra, asociado a datos no gráficos y coordinado entre los diferentes participantes en el proyecto. El concepto BIM considera todo el ciclo de vida del edificio, para disminuir la pérdida de tiempo y recursos en las fases de diseño y de construcción. Este proceso utiliza software de modelado en tres dimensiones y en tiempo real, y produce un modelo digital que abarca no sólo la geometría del edificio, sus relaciones espaciales y su información geográfica, como también cronogramas, cantidades, costes y propiedades de los componentes 104

Como MoI, Maya Mel Script o el Rhinoceros (con su plugin Grasshopper), creados para la publicidad, animación o diseño de producto. El Grasshopper (todavía en versión beta; el primero release es de 2007), ofrece paquetes modulares de herramientas (funciones, operaciones o algoritmos) que permiten crear un modelo matemático de la forma deseada, visualizada en tiempo real en el Rhino.

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del edificio. Toda la información es grabada en una base de datos y está conectada y asociada por links paramétricos. Por esto, modificaciones en cualquiera de estos niveles tienen impacto inmediato en todos los demás. El proceso opera en tiempo real, lo que facilita detectar interferencias en la arquitectura o en las instalaciones. La idea de un modelo CAD integrado no es nueva, y viene de la necesidad de conectar el proyecto a la información en formato de texto y de plantillas. Una vez que los programas de presupuesto y de gestión no suelen ser parte integral del CAD, es usual que se encuentren incompatibilidades en la construcción (por ejemplo, entre los pliegues y los detalles constructivos). Las primeras propuestas de superación de este desfase son de la década de 1980 105; aunque capaces de producir memorias de cálculo estructural, volumetrías y especificaciones de diseño, estos programas no alcanzaban integrar proyectos, planificación y control de obra. Por lo tanto, todavía no podían ser considerados sistemas de modelado integral de la misma. En la actual generación de sistemas CAD/BIM, esta dificultad ha sido superada: ya es posible asociar toda clase de información a la geometría del edificio. Con CAD/BIM, los componentes de una edificación se vuelven objetos digitales tridimensionales, codificados y cuya información es intercambiable con otros aplicativos (como bases de datos u hojas de cálculo). Cada objeto tiene un conjunto finito de parámetros que dictan su forma y sus características; la codificación del objeto tiene que incluir todos estos parámetros, además de la información coherente acerca de los procesos implicados en su creación. O sea, el BIM sólo es una plataforma eficaz si se dedica suficiente atención a los parámetros iniciales de concepción de la arquitectura deseada. Así, su uso en la concepción arquitectónica supone un esfuerzo en concebir un modelo original coherente, así como en actualizar y añadir información al mismo. A pesar de esta complejidad inherente a su desarrollo y aplicación, la difusión del concepto BIM es evidente: tanto en Europa como en EE.UU. y Latinoamérica se acerca el momento en que el concepto BIM será el modo predominante del trabajo con CAD en la arquitectura106. Completado este panorama del origen de las técnicas digitales que influyen en la concepción arquitectónica, se ha constatado un origen fundado en la exploración de recursos técnicos de gestión cuya primera finalidad era la productividad. Enseguida se ha notado un importante desarrollo vinculado a la constante absorción de tecnologías pensadas para otras áreas profesionales, hasta llegar a la actual emergencia de los modelos digitales integrados, asociados a procesos paramétricos y a modos de trabajo que se estructuran en los medios de 105

ARRIS CAD (1984, Sigmagraphics) y Virtual Building (1987, Graphisoft) fueron algunos de estos intentos; SOFiSTiK, CYPECAD o el paquete Object ARX son sus descendientes. 106 En los EE.UU., más de 70% de las empresas de construcción civil ya usan BIM. En Inglaterra, ya es usado por más de 80% de los estudios de arquitectura, y será obligatorio en proyectos dirigidos a una administración pública a partir del 2016. En Brasil, una pesquisa entre 600 profesionales concluyó que en 2018 la plataforma BIM predominará en estudios de ingeniería y arquitectura. Cf.: http://piniweb.pini.com.br/ (acceso 2013); http://construction.com/market_research/default.asp (acceso 2012).

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comunicación. Su presencia desde la concepción hasta la materialización constituye un hecho ineludible y que cambia la naturaleza misma de la construcción y, en consecuencia, el rol del arquitecto en ésta. El diseño por modelos tridimensionales facilitó el entendimiento de los objetos como volúmenes, ya no como elementos organizados desde sus vistas ortográficas. Con la parametrización, la estructura y la forma del edificio podían ser manipuladas sin perder la coherencia entre el conjunto y las piezas de construcción individuales. Los modelos integrados han hecho posible vincular importante cantidad de información a los componentes constructivos, ampliando la capacidad descriptiva del proyecto arquitectónico y multiplicando la posibilidad de experimentación. Asociados a nuevos recursos de representación digital como la evaluación de performance, el escaneo 3D y el prototipado rápido, ofrecen la oportunidad de ver, evaluar y transmitir incluso los conceptos espaciales más tempranos. El cambio llegó a la misma la noción de geometría: antes parte esencial y definidora de la “totalidad” del proyecto arquitectónico, ésta ahora se presenta de modo más relativo, sirviendo como soporte a una realidad espacial y formal mutable. En esta relativización ha sido fundamental el uso del modelo tridimensional: integrado, dinámico y parametrizado, el modelo contribuye a la construcción de un nuevo tipo de “totalidad”, caracterizada tanto por las relaciones orgánicas entre las diversas partes de una arquitectura, como por permitir nuevas relaciones entre esta arquitectura y su contexto. Así arquitectura y contexto se entienden como partes distintas e interdependientes de un “sistema” (Montaner, 2008). La conexión en red y la progresiva familiarización con los espacios de trabajo condujeron a una reordenación de la labor en los estudios. A los cambios en las estructuras jerárquicas y productivas se sumó una inédita flexibilidad en la localización y en la dimensión necesaria a los despachos. En el mismo rumbo, el lenguaje de layers dejó de ser una simple herramienta de ordenación de contenidos, y fue utilizada cada vez más en la estructuración y visualización de distintos niveles de información, lo que contribuyó a procesos de trabajo más complejos, que consideran el objeto desde miradas múltiples y/o simultáneas. Como resultado, el proyecto de arquitectura puede ser gestionado como un hiperdocumento. Al mismo tiempo que se acababa el siglo XX, las condiciones técnicas habían evolucionado hacia un momento en el que los arquitectos tenían a su disposición medios suficientes para la descripción de la forma imaginada, en lugar de restringirse a imaginar formas que se pudieran dibujar. Con el ojo puesto en esta creciente libertad, Branko Kolarevic (2003) notó: For the first time in history, architects are designing not the specific shape of the building but a set of principles encoded as a sequence of parametric equations by which specific instances of the design can be generated and varied in time as needed.

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De la misma manera, ya era posible tanto gestionar el proyecto como un todo como hacerlo a la distancia y en tiempo real. Estas visualizaciones más complejas y ágiles, asociadas a nuevos modos de gestión y a la interacción entre los proyectistas y un modelo virtual, han resultado en más agilidad y diversidad en la fase inicial de concepción del proyecto, en una percepción renovada de las relaciones espaciales y, finalmente, en una comprensión renovada del trabajo del arquitecto. Inédita libertad conferida a la profesión, que se ha lanzado a su desfrute.

Referencias bibliográficas: American Institute of Architects AIA (1990). CAD Layers Guidelines. Washington (EE.UU.): AIA, p.8. ALLEN, Stan (2009). Practice: Architecture,Technique+Representation. New York: Routledge, p.73. FALLON, Kristine K. (1998). Early Computer Graphics Developments in the Architecture, (…). In: IEEE Annals of the History of Computing, Vol.20, no 2, pp.20-29, p.28. FONT COMAS, Joan y otros (2002). “Efectos secundarios de la informatización en (…)”. En: Actas del VIII Congreso de EGA (Barcelona 2002). Barcelona: Depto. Exp. Gráf. Arquit. I/UPC, p.199. KOLAREVIC, Branko (2003). Architecture in the Digital Age. Design and Manufacturing. New York: Spon Press, p.27. KOLAREVIC, Branko (2005). Architecture in the digital age: design and manufacturing. London: Taylor & Francis, p.251. MITCHELL, William, en: TERZIDIS, Kostas. Expressive Form. A conceptual approach to computacional design. London: Spon Press, 2003, p.vii. MONTANER, J. M. (2008). Sistemas arquitectónicos contemporáneos. Barcelona: G.Gili. PRESTINENZA PUGLISI, Luigi. HyperArchitettura. Spazzi nell´età dell´elettronica. Torino: Testo & Immagine, 1998, pp.66, 67. REGOT MARIMÓN, Joaquín, MESA GUALBERT, Andrés (1999). Diseño gráfico. La proyección sobre el plano y el modelado tridimensional. Revista EGA no. 5. Pamplona: Ass. Esp. de Deptos. Univ. de Expresión Gráf. Arquit., p.64. SAINZ, J., VALDERRAMA, F. (1992). Infografía y Arquitectura. Madrid: Ed. Nerea, p.21. ZAERA-PÓLO, Alejandro (2012). Generative Processes and (…). En: The Sniper´s Log. Barcelona: ACTAR, p.165. http://piniweb.pini.com.br/ (acceso 2013). http://construction.com/market_research/default.asp (acceso 2012).

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