A água em imaginários e perceção do Gerês.pdf

May 30, 2017 | Autor: Joaquim Sampaio | Categoria: Perception, Water, Space, Imaginary, Public Policy
Share Embed


Descrição do Produto

TERRITÓRIOS DE ÁGUA | WATER TERRITORIES ___________________________________________

A ÁGUA EM IMAGINÁRIOS E PERCEÇÃO DO GERÊS

WATER IN THE IMAGINARY AND PERCEPTION GERÊS

Joaquim Sampaio Centro de Estudos em Geografia e Ordenamento do Território - CEGOT, Portugal, [email protected] RESUMO Os imaginários da antiga província do Minho, no noroeste português, foram sucessivamente associados a paisagens verdejantes, com a omnipresença da água. Turistas e residentes secundários procuram o Gerês onde a paisagem verde é mais verde e a presença de água toca os vários sentidos. O visitante é impelido a contemplar estas paisagens de água, a beber, a mergulhar, a ouvi-la murmurar de fontes e cascatas. Para além de reminiscências filogenéticas, tem havido um processo de produção de imaginários que tem valorizado espaços ricos em água, nomeadamente com narrativas sobre espaços rurais bucólicos e puros, em oposição a espaços degradados e poluídos, por isso impuros, das cidades. Em discursos de visitantes, o Gerês surge como um espaço idílico, puro, regenerador, onde o elemento água é fundamental na perseguição e recriação destes imaginários, alimentando mitos que se associam à saúde e bem-estar. O estudo baseia-se em 102 entrevistas realizadas a residentes secundários do Gerês, demonstrando-se que a produção do espaço apresenta uma relação estreita com a geografia da perceção. Palavras-chave: Gerês, Imaginários, Perceção, Água ABSTRACT The imaginaries of the old province of Minho in the Portuguese northwest were successively associated with green landscapes, with the omnipresence of water. Tourists and second home residents seek Gerês where the green landscape is greener and the presence of water touches several senses. The visitor is compelled to contemplate these water landscapes, to drink, to dive, to hear it murmur from fountains and waterfalls. In addition to the phylogenetic remnants, there has been an imaginary production process that has valued rich spaces in water, in particular with the production of narratives about bucolic and pure rural areas, in contrast to degraded and polluted spaces, and therefore impure, cities. According to visitors, Gerês is as an idyllic space, pure, regenerative, where the water element is critical in the pursuit and recreation of this imaginary world, feeding myths that are associated with health and wellness. The study is based on 102 interviews with second home residents, demonstrating that the production of space has a close relationship with the geography of perception. Keywords: Gerês, Imaginary, Perception, Water 542

TERRITÓRIOS DE ÁGUA | WATER TERRITORIES ____________________________________________

1. INTRODUÇÃO: IMAGINÁRIOS E PERCEÇÃO DA ÁGUA NA PRODUÇÃO DO ESPAÇO

Todos os espaços são mentalmente significantes, traduzindo aspetos funcionais, simbólicos e temporais que adquirem sentido (Bailly e Ferrier, 1986). Significantes porque a realidade do sujeito se faz pela perceção: o mundo existe antes do sujeito, mas é pelo sujeito que se toma consciência do mundo (Merleau-Ponty, 1945). A perceção depende da estrutura filogenética e ontogenética do ser humano, de idiossincrasias individuais e aprendizagens coletivas que nos acompanham desde sempre e são transmitidas geracionalmente. A água é um elemento universal de cultura. As sociedades dependem da sua presença, ligação uterina com a Mater Natura, cordão umbilical que não foi possível cortar. Porque seja abundante ou porque a sua ausência sublinhe a sua necessidade, a água integra construtos de representações sociais e de perceções produtores de espaços percebidos, concebidos e vividos (Lefebvre, 2000). Carl Jung defende que o sistema psíquico, tal como o corpo, tem uma pré-história anatómica de milhões de anos, apresentando formas estruturais do fundamento instintivo que pré-existem relativamente à consciência. Os arquétipos são, assim, estruturas do inconsciente que acompanham a humanidade, gerando imagens, símbolos que nos aparecem em sonhos ou na nossa imaginação e presentes já nos primórdios da nossa espécie. Desta forma, o inconsciente coletivo precede a consciência, associado a uma estrutura psíquica organizadora de complexos míticos, de representações coletivas (Jung, 1986). A sobrevivência da espécie depende da água, elemento estruturante transversal a todas as sociedades, imprescindível à condição de se viver. Dependente desta condição, a água faz parte do inconsciente coletivo. O consciente coletivo desenvolve-se a partir de representações sociais, conceitos, preposições e explicações adquiridos na vida quotidiana no decurso da comunicação interpessoal (Moscovici, 1981), formas de conhecimento socialmente elaboradas com objetivos práticos, contribuindo para a construção de uma realidade comum a um conjunto social (Jodelet, 2001), realidades significantes comuns construídas e partilhadas. Esta consciência partilhada é transmitida pelas artes, saberes e práticas, chegando aos nossos dias por testemunhos tão antigos como as Tábuas mesopotâmicas. Neste domínio, a água associa-se a representações como: fonte de vida, reprodução e regeneração, em oposição ao deserto, à morte; elemento purificador, de meditação e de luz, mas também de medos e trevas; calma, inspiradora e terapêutica; agitada e inconstante; potenciadora de paz e prosperidade, mas também de instabilidade e guerras, associando-se a uma geografia do poder, muitas vezes, uma relação entre opressores e oprimidos. A água é um símbolo incontornável na produção do espaço. Elementos geográficos como rios, mares e lagos, estados atmosféricos com chuva ou nevoeiro e muitas outras situações do ciclo hidrológico têm sido sujeitos a processos de mitificação, transformados em narrativas imbuídas de simbolismo coletivo. A verdade dessas narrativas é a verdade dos mitos, apresentando-se como real e sagrada, servindo de modelo à estrutura social. Aqui, o espaço profano é abolido, assim como o tempo profano (Eliade, 1992). A explicação mitificada aceita-se como verdade purificada, eternizada, imbuída de uma certa magia, simplificada, abolindo a complexidade dos atos humanos e suprimindo toda a dialética (Barthes, 543

TERRITÓRIOS DE ÁGUA | WATER TERRITORIES ___________________________________________

2007). A bênção do Nilo fecunda o deserto, o Ganges é purificador, tal como o Jordão, transportado para a pia batismal. A água fresca e pura de cada fonte não mata somente a sede, é símbolo de rejuvenescimento e de limpeza do espírito. Quando, em 1622, Henri Peacham defendeu que o verdadeiro gentleman deveria saber nadar, o reverendo William Clarke, em 1736, evocou os seus prazeres de verão passados em Brighton, e o doutor Richard Frewin enviou doentes a banhar-se em Southampton e a beber água de mar, em 1748 (Corbin, 1990), estavam a inaugurar novas representações sociais que viriam originar fenómenos geográficos tão importantes como a vilegiatura marítima. O que começou por ter uma função terapêutica de poucos, hoje, assume contornos massificados, sobretudo, associados ao lazer, com implicações importantes na estrutura económica, social e ambiental. Este tipo de consciente coletivo tem a capacidade de transformar espaços anónimos, colocando-os no mapa de lugares cintilantes, tornando-os procurados, desejados, passando a constar de roteiros de ritualizações cada vez mais globalizadas. À funcionalidade da água, para beber, primeira necessidade relacionada com este elemento vital, cozinhar e todas as necessidades domésticas , transportar, e produzir (rega, indústria, energi -se com a perceção da paisagem in situ, com a literatura, pintura, fotografia, imagens do mundo eletrónico, como da TV ou do computador. A produção do espaço procura elementos estéticos de waterfront, tal como muitas cidades ribeirinhas; edifícios, praças e jardins integram espelhos de água, cascatas e fontes; para além de canais escavados, outrora para deleite da nobreza em passeios de jardins de palácios, soluções urbanísticas desafiam a imaginação, não faltando repuxos tecnicolores ao som de sinfonias de Beethoven ou Mozart. A função terapêutica, de ingestão de água, de banhos de termas, de mar, etc., acrescenta imaginários fortes, relacionados com a saúde e bem-estar. Tanta água utilizada, em diversos fins, origina águas com cheiros desagradáveis, sujas, impuras. Os esgotos e águas pestilentas originam repulsa, querem-se longe para não provocarem doença, ao contrário de imaginários atrativos: ao simbolismo relacionado com a funcionalidade, estética e saúde, surgem também geografias simbólicas da água associadas à qualidade de vida, lazer, magia e espetacularidade. A sacralização da água pura, intrínseca à natureza humana, tem produzido representações, registos in illo tempore, sublinhados pela mitologia grega, pelos romanos, por rituais religiosos, artistas românticos, naturalistas, ideais ambientalistas... A água, elemento estruturante da natureza, como terra, fogo e ar, é governada sob o olhar atento de Posídon, povoada por sereias e ninfas, tágides que Camões celebrou; banhos públicos romanos, turcos a oriente, e termas curavam, relaxavam e socializavam; são pedidos desejos com moedas atiradas para fontes. A água associa-se à produção de memórias, compõe paisagens bucólicas, idílicas, pitorescas, apresentase símbolo perfeito de formas de ver o mundo (Schama, 1995). Mas a perfeição do ciclo hidrológico, sem chuvas ácidas e rios que correm eternamente para o mar, só pode existir no mundo das formas de Platão. Nos últimos dois séculos e meio, a humanidade tem assistido a representações de perda da natureza, motivadas por novas relações com o meio. Mares 544

TERRITÓRIOS DE ÁGUA | WATER TERRITORIES ____________________________________________

interiores secam, rios também, barragens alteram a natureza. O desenvolvimento urbano e tecnológico, novas consciências de privação de água por milhões de pessoas e problemas de gestão de recursos hídricos intensificaram ideais de renaturalização do ser humano, crítica direta aos modos de vida das sociedades industriais e pós-industriais. Este cenário de imaginários de perda, limitações e traumas conduziram à instituição do Dia Mundial da Água, à década da água Water for life e outras iniciativas de conservação e valorização deste recurso, aclamando o direito à água (UN, 1995, 2010). Organizações internacionais, países, associações de desenvolvimento ou de defesa do ambiente têm sido produtos e produtores de representações sociais que colocam a água no centro das preocupações humanas. Estes imaginários interferem na perceção. Para muitos, a água com cloro da rede pública que sai das torneiras não é suficientemente boa para se beber; toalhas freáticas de muitas regiões agrícolas, industriais ou urbanas não reunirão a qualidade que se pretende. Enfim, há uma necessidade de se procurar espaços onde o ser humano encontre a natureza idealizada. O culto da água fresca e pura a sair de fontes e a correr por riachos e ribeiros ultrapassa a satisfação das necessidades do dia-a-dia. Há impulsos que conduzem este amor pela água a espaços que ofereçam magia e realização pessoal, que refresquem o corpo e a alma, renovem o visitante do paraíso. Aqui, não têm lugar os horrores, as cheias, a poluição. Para além da comunhão com a natureza, há um reencontro interior, uma ascese. A geografia simbólica destes espaços é forte e tem a capacidade de transformar e melhorar quem os procura. A busca da natureza perdida traz consigo a consciência da necessidade de se reparar os danos à Mater Natura, de garantir o efeito do cordão umbilical e a ligação espiritual dos rios Jordão e Ganges, num renascimento batismal que pode ser repetido eternamente. 2. OBJETO E MÉTODO DE ESTUDO

O Gerês, área montanhosa do noroeste de Portugal Continental, na transição com o nordeste transmontano e Espanha, tem sido sujeito a processos de mitificação desde os tempos romanos. Mas foi a procura termal iniciada em finais do século XVII que inaugurou uma nova fase. Na segunda metade do século XIX, este espaço montanhoso era visitado por aquistas, botânicos, geólogos e outros estudiosos da natureza geresina, turistas e peregrinos de centros religiosos como a Senhora da Abadia e São Bento da Porta Aberta. A estância termal de montanha cresceu, a oferta hoteleira aumentou, nomeadamente com hotéis de primeira categoria, e a sua fama fezse notar no país e no estrangeiro. As barragens da Caniçada, construída entre 1946 e 1954, e de Vilarinho das Furnas, inaugurada em 1972, e o Parque Nacional da Peneda Gerês, criado em 1971, dinamizaram imaginários de uma área de natureza de excecional qualidade, pela sua diversidade e preservação. Hoje, este espaço é procurado por aquistas, mas a maior parte visita-o por outros motivos, sobretudo, para passar momentos que a montanha e as aldeias têm para oferecer (Sampaio, 2013).

545

TERRITÓRIOS DE ÁGUA | WATER TERRITORIES ___________________________________________

Para compreender a importância deste mito na produção do espaço, foi desenvolvida uma investigação que decorreu entre 2011 e 2013. Posteriormente, foram efetuadas algumas atualizações de dados. Este tipo de abordagem releva, por um lado, a importância do simbólico para a análise geográfica e, por outro, a necessidade de integrar análises qualitativas que sejam capazes de chegar mais perto do consciente e inconsciente coletivo, da objetividade e da subjetividade dos fenómenos sociais. O universo estatístico é constituído por 221 residências secundárias (RS), de proprietários que não nasceram em Terras de Bouro/Gerês. A amostra corresponde a 102 RS. Foi aplicada uma entrevista semiestruturada aos seus proprietários, entre agosto de 2012 e fevereiro de 2013, abordando: 1) que imaginários justificam a aquisição destas residências; 2) qual a perceção do espaço destes residentes. Os dados foram sujeitos a metodologias de análise qualitativa. Também foram recolhidos dados junto da população local (residentes, comércio e serviços), em recursos bibliográficos e através da observação direta do espaço estudado. A análise que se pretende fazer aqui tem como objetivos centrais: 1) compreender os imaginários da água associados ao Gerês; 2) compreender a influência desses imaginários na perceção do espaço; 3) inferir esta análise para o debate das políticas públicas. 3. RESULTADOS E DISCUSSÃO: PARA UMA GEOGRAFIA DAS REPRESENTAÇÕES E DA PERCEÇÃO

A amostra de estudo é relativamente homogénea. No conjunto, apresenta níveis de instrução elevados (75% apresentam, pelo menos o 12º ano, dos quais, 48% completaram o ensino superior), profissões qualificadas, com os empresários, gestores, profissões liberais, professores, técnicos superiores e reformados destas categorias a formarem 84% do total, e urbana (só uma parte residual reside ou nasceu em freguesias rurais, 3% e 4% respetivamente). Pelas suas características, nomeadamente pelo elevado poder de compra, apresenta uma aproximação a fenómenos de elitização (Sampaio, 2013). A água é um dos elementos mais marcantes do Gerês, com destaque para os rios Cávado e Homem e para as albufeiras da Caniçada e de Vilarinho das Furnas. Mas a sua presença faz-se notar pelos inúmeros riachos e fontes, por lagoas e cascatas, fotografadas e onde visitantes se banham, nascendo em rochas e um pouco por todo o lado, correndo em valas junto a caminhos. A paisagem verdejante e o ar húmido atestam a sua abundância. Aqui, água é sinónimo de paisagem verde, de frescura e pureza. Quem a bebe ou nela mergulha, associa-a a saúde e bemestar. Considerando as entrevistas, mais de 84% dos residentes secundários apreciam aspetos questionados sobre o que valorizam no Gerês, a água obtém a aprovação de 95% dos entrevistados. Mas há outros momentos em que sublinham a importância deste elemento: 85% valorizam as albufeiras lagoas e cascatas; 24% referem-se à água em memórias positivas com este espaço; a mesma percentagem descreveu paisagens da RS em que era narrativa dominante; 25% 546

TERRITÓRIOS DE ÁGUA | WATER TERRITORIES ____________________________________________

frequentam ou frequentaram as termas, e 53% disseram apreciá-las; 11% escolheram a água como a palavra que melhor representa a imagem do Gerês. O cruzamento de todas estas variáveis permite concluir que 100% da amostra a valorizam. A albufeira da Caniçada foi dos elementos aquáticos mais referidos. Dominou narrativas relativas à perceção da paisagem, influenciou a localização da RS, atraída pelas suas margens, para os seus ocupantes se banharem, poderem andar de barco, pescar, contemplar. A tranquilidade e pureza das suas águas foram perturbadas pelo barulho dos turistas e dos motores dos barcos, e pelo óleo que estes passaram a largar. São imaginários associados ao lazer, mas não foram esquecidos outros, de memórias menos agradáveis para locais que se lembram e contam a residentes secundários como os campos mais férteis daquele vale foram submersos com a construção da barragem. Acompanhando imaginários de submersão, mas desta vez no rio Homem, Vilarinho de Furnas foi das aldeias mais nomeadas. Aqui, os imaginários referidos nas entrevistas são do turista que visita o insólito da aldeia fantasma, agora povoada por peixes, mais visitável e visível quando os níveis da albufeira descem. Nesta Geografia de imaginários espacializados, de elementos aquáticos com nome e lugar, foram indicados muitos outros casos: as cascatas do Arado e do Taiti (da Ermida, para uns, de Barjas, para outros), a fonte da Batoca, referida como tendo água de melhor qualidade, a Mata da Albergaria, num dos trechos do rio Homem e um dos espaços mais nomeados e mais visitados. Muitos outros exemplos foram referidos, cada um com propriedades especiais, de acordo com os imaginários de quem os persegue. Quem toma banho nestas águas, tem sensações de pele macia, de frescura, de pureza. Numa das narrativas, um residente secundário elogiava a água do Gerês, colocando-a entre as melhores do mundo. Sabe do que fala porque a mandou analisar, reconhece-lhe as propriedades bem-fazentes, afirmando: «é melhor que a água do Luso». Colocado desta forma, a comparação daria novo artigo, tratando-se do confronto de dois imaginários titãs. A versão de pureza e rejuvenescimento associados ao Gerês está presente nos imaginários de todos os entrevistados (nalguns casos, mesmo depois de sujeitos ao desencanto). Os que frequentam as termas são um caso específico de representações que se relacionam com a evolução deste fenómeno. Mas há outros tipos que revelam esta visão edénica. Para além da qualidade da água, para se beber, cozinhar e fazer a higiene corporal, justificando os garrafões cheios do precioso líquido que é levado para a residência principal, a geografia da residência secundária está imbuída de um simbolismo enorme que se ajusta a rituais de renovação a partir da água. Consideremos mais dois casos. No primeiro, quando o residente secundário chega à sua casa-paraíso, seja verão ou inverno, mergulha nu num tanque exterior de água fresca corredia. Esta prática revigora-o e tem a perceção de que «corta com a civilização». No segundo exemplo, o casal, com residência secundária na margem da albufeira da Caniçada, mergulha e nada nu nessas águas, sentindo-se livres e renovados. A água é um elemento fundamental na noção de espaço para estes residentes. A residência secundária é a materialização de uma geografia simbólica associada a representações e perceções que evidenciam uma geografia do corpo, negando a dialética clássica entre «res extensa» e «res cogitans». Mais do que a visão galilaica, a revelação do mundo faz-se pelo sujeito, na aceção de 547

TERRITÓRIOS DE ÁGUA | WATER TERRITORIES ___________________________________________

Merleau Ponty (1945). Mas é necessário ir mais longe nas considerações. A perceção é um fenómeno individual. Contudo, conclui-se que há imaginários partilhados por este conjunto social. O mito tem interpretações comuns: o Gerês é bonito, paradisíaco, faz sentir bem. Desconstruindo o mito, poder-se-á dizer que os imaginários são o resultado de um processo associado ao consciente e inconsciente coletivo. O que se procura naquele espaço é a satisfação de necessidades de dois níveis. Por um lado, os entrevistados tinham consciência de uma boa parte associada ao processo de aquisição e uso da residência secundária, mas, por outro, houve aspetos que só tomavam consciência com o decorrer da mesma e referiam, como conclusão: «nunca tinha pensado nisto desta maneira». Em muitos casos, o que a entrevista fez foi trazer para a consciência aspetos que tinham importância na produção do espaço percebido, concebido e vivido, mas que permaneciam no inconsciente. A água é um exemplo paradigmático na geografia simbólica e da perceção. As respostas destes residentes tornam claro que o Gerês, tendo também a versão de inferno, é a versão de paraíso que lhes interessa. Nesta representação, de natureza pura, sabem que podem encontrar tranquilidade, segurança, tempo para a família e para atividades que não conseguem realizar em espaços de rotinização, aliviar o stress, sentir-se bem e rejuvenescidos. Se considerarmos a realidade comum destes residentes percebe-se que resulta de interpretações e simbolizações de uma «lição bem estudada»: a natureza daquele espaço, e a água em particular, é sinónimo de saúde e bem-estar. Pode ter outras leituras, do domínio da estética (a beleza das paisagens), da aventura (as incursões na serra, os mergulhos nas lagoas, sentir a força da queda da água das cascatas) e outros, mas todos concorrem para um mesmo fim, relacionado com uma visão antropocêntrica de um corpo ganhador em perceções que o fazem sentir com mais energia, mais confiante e rejuvenescido. Isto pressupõe um sistema de significação resultante de uma aprendizagem coletiva na forma como o espaço é percebido, concebido e vivido. A simbolização dos objetos e a sua interpretação teleológica é entendida num campo de ação comum, há uma perspetiva sistémica das relações ao nível das representações, com efeitos práticos na forma como cada um operacionaliza na sua realidade, acabando por haver realidades partilhadas. Desta forma, passa-se do entendimento de realidades singulares, de uma ciência idiográfica, para explicações sustentadas em denominadores comuns a conjuntos sociais. 4. UMA VISÃO PARA O DEBATE DAS POLÍTICAS PÚBLICAS

Se o espaço fosse plano e a estrutura social também, a geometria e a aritmética iriam solucionar muitos dos problemas de gestão para tornar as sociedades eficientes. Como isso não acontece, há muito tempo que são ensaiadas soluções que tentam aproximar-se desse objetivo. Mas também é verdade que se trata de uma busca sem fim porque as circunstâncias vão mudando, logo, as ponderáveis também. Os discursos técnicos, científicos e políticos são capazes de se sustentar num sentido e no seu contrário. Os defensores do povoamento disperso, das cidades pequenas ou de média dimensão produzem ciência e práticas com conhecimento validado. O sucesso das 548

TERRITÓRIOS DE ÁGUA | WATER TERRITORIES ____________________________________________

global cities ou as políticas urbanas estarem a ser redirecionadas para o centro da cidade e para maior concentração, apresentam formas diferentes de olhar a organização espacial. A proliferação de discursos do período pós-moderno colocou a análise do espaço num nível de entendimento que não congrega os sentidos. A falência da visão modernista faliu, embora a ressonância desse movimento nunca tenha chegado a desaparecer. Ultimamente, temos assistido à desregulação da vida coletiva, à diminuição de atribuições de competências do estado, ao desmantelamento do estado social, à degradação da administração e dos serviços públicos, à autorregulação dos mercados, à financeirização da economia, ao desemprego, à pobreza (Ferrão, 2015). O diagnóstico das sociedades mais avançadas, que podem ser classificadas de pós-tecnológicas que alcançaram um desenvolvimento tecnológico que garante a sua existência sem recurso a grande esforço muscular e à natureza, e a organização social se relaciona com a terciarização e o consumo , mostra que a evolução não tem conseguido evitar graves crises, não só económicas, mas, sobretudo, sociais. A crise atual das sociedades é, em boa medida, a crise da cidade. A procura de modelos alternativos ao tipo de urbanização, a difusão de imaginários de evasão destes espaços e representações de perda da natureza devem ser refletidos em conjunto com lógicas de produção de espaços verdes urbanos, de rios, frentes de mar, etc. O movimento da sociedade verde, ambientalista, reflete representações de contestação, mas também de apreço, procurando melhorar o bem-estar, mas também de receios, que se relacionam com a extinção da própria espécie. As respostas a isto resultam na procura de soluções alternativas. Os imaginários da água (e da natureza) devem ser integrados neste contexto, conduzindo à questão de se saber até que ponto os ensinamentos dos residentes secundários do Gerês, e outros, são importantes na definição de políticas que produzam cidades mais saudáveis, com propostas de espaços de desrotinização que respondam a estes imaginários. Ninguém pode saber até que ponto a força de um mito pode ir. Mas é possível reinventá-lo e redirecioná-lo. CONCLUSÃO

Numa das casas dos antigos poços termais do Gerês podia ler-se a inscrição ÆGRI SURGUNT SANI: os doentes saem sãos. Este, foi o primeiro imaginário associado aos visitantes do Gerês: a água cura. O Gerês pertence ao único parque nacional português, protagonizando o estatuto mais alto da classificação que um espaço natural pode ter. Não rivaliza em altura nem em desportos de inverno com a serra da Estrela, mas beneficia de um estatuto único. Por esta via, pretende-se apresentar como um espaço natural bem preservado e conservado. Residentes secundários e outros visitantes transportam geografias simbólicas que os acompanham na busca de elementos de desrotinização associados a bem-estar e qualidade de vida. A realidade idealizada, determinada por imaginários difundidos ao longo do tempo, tem de cumprir as funções do mito e permitir a realização dos rituais. A necessidade de procurar espaços como o Gerês percorre 549

TERRITÓRIOS DE ÁGUA | WATER TERRITORIES ___________________________________________

dimensões objetivas e subjetivas, relacionadas com o inconsciente coletivo e com representações sociais. A sociedade de consumo e do lazer explora esta condição do ser humano, resultando em relações de oferta e de procura. A interpretação e simbolização do Gerês dos visitantes, turistas e residentes secundários encontram-se próximas de uma visão paradisíaca do espaço, não havendo lugar a perceções negativas; este paraíso é o locus amoenus, esteticamente maravilhoso, purificador e rejuvenescedor. Se surgem perceções negativas, é necessário reparar os danos e salvar o Éden: os resultados da evasão dos espaços do quotidiano têm de justificar o investimento financeiro e afetivo numa residência secundária (ou na deslocação do turista). Este tipo de abordagem metodológica conclui que é possível alcançar-se o nível da explicação se forem considerados conjuntos sociais com características relativamente homogéneas. A compreensão destes imaginários permite melhorar a produção do espaço percebido, concebido e vivido, integrando-a nas políticas públicas. REFERÊNCIAS

Bailly, A e Ferrier J (1986). Savoir lire le territoire: plaidoyer pour une géographie régionale attentive à la vie quotidienne. Espace géographique, nº 4: 259-264. Barthes, R (2007). Mitologias, Edições 70, Lisboa, 315 p. Corbin, A (1990). , Éditions Flammarion, Paris, 407 p. Eliade, M (1992). Tratado de história das religiões, Edições Asa, Porto, 572 p. Ferrão, J. (2015). Governança democrática metropolitana: como construir a "cidade dos cidadãos"? In A. Ferreira, A; Rua, J; Mattos, R. (Eds.), Desafios da metropolização do espaço: 209-224, Consequência, Rio de Janeiro. Jodelet, D (2001). Representações sociais: um domínio em expansão. In Denise Jodelet (Ed.), As representações sociais: 18-44, Editora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. Jung, C (1986). Memórias, sonhos, reflexões, Editora Nova Fronteira. Rio de Janeiro, 150 p. Lefebvre, H (2000). , Paris, Anthropos, 457 p. Merleau-Ponty, M (1945). Phénoménologie de la perception, Gallimard, Paris, 537. Moscovici, S (1981). On social representation. In Forgas (Ed.). Social cognition: perspectives on everyday understanding. Academic Press, London. Sampaio, J (2013). Mitificação do Gerês: a residência secundária e a produção do espaço, Tese de doutoramento, FLUP, Porto, 292 p. Schama, S (1995). Landscape and memory, Harper Perennial, London, 652 p. UN United Nations (1992). Agenda 21, United Nations Conference on Environment & Development, Rio de Janeiro. UN United Nations (2010). The human right to water and sanitation, Resolution 64/292.

550

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.