A alimentação na cultura popular na Idade Moderna

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A alimentação na cultura popular na Idade Moderna

Josemar da Silva Alves Bonho

Ao estudarmos a alimentação dos tempos modernos podemos vislumbrar
diversas transformações históricas deste período e conhecer suas
consequências, hábitos e influências que perduram até hoje no sistema
alimentar, principalmente do Ocidente. Inicialmente, a conquista dos mares
pelos europeus e a conseqüente integração dos outros continentes a sua rede
comercial terão conseqüências na alimentação ocidental nos séculos XIX e
XX, quando o tomate, a batata, o milho e outras espécies alimentares
americanas passaram a ter um papel importante na agricultura e no regime
alimentar dos ocidentais. No entanto, outros produtos alimentares exóticos
passaram muito mais rapidamente a fazer parte dos regimes europeus, como
veremos a seguir.
A Reforma Protestante destruiu uma regulamentação eclesiástica que
constituía um poderoso fator de unidade da alimentação ocidental na Idade
Média, estimulando a diversificação das cozinhas nacionais. O
desenvolvimento da imprensa acarreta a difusão da cultura escrita que
modifica a função do livro de cozinha e privilegia a influencia de
determinadas cozinhas nacionais em detrimento de outros países da Europa.
Os tratados de cozinhas – ou pelo menos as compilações de receitas
culinárias – não esperaram a invenção da imprensa, uma vez que apareceram
manuscritos em diferentes países da Europa desde o inicio do século XIV,
talvez até desde o fim do século XIII. Essas primeiras compilações eram
técnicas e foram escritas por cozinheiros profissionais. Não só a imprensa
multiplica os exemplares desses livros técnicos, mas eles se diversificam.
Assim, todo um conjunto de livros, poemas e canções dedicadas ao prazer de
comer e de beber, que aparecem durante os três séculos modernos, constituem
o terreno em que floresceu, desde os primeiros anos do século XIX, a
literatura gastronômica classificada como tal.
O crescimento demográfico notado na Europa entre os séculos XI e o
inicio do século XIV foi duramente interrompido pela Peste negra. A
retomada do crescimento demográfico do século XVI e, depois do século
XVIII, acarretou um aumento das terras destinadas aos cereais e um aumento
de seu consumo por parte das classes populares. O crescimento que se deu
nestes séculos acarretou uma retomada do cultivo, aumentando
significativamente as áreas agrícolas. Nas regiões "já ocupadas" da Europa
Ocidental o aumento das terras destinadas ao cultivo de cereais tomou os
espaços de criação de animais, de caça, de coleta, o que implicou uma maior
proporção de grãos na alimentação popular, em detrimento da variedade e
quantidade de carne consumida. Conforme cita Braudel, "para manter o
crescimento demográfico, era preciso substituir parte das pastagens por
campos de cereais e diminuir sensivelmente a carne na dieta popular,
aumentando o consumo de pão". O consumo de carne caiu sensivelmente e essa
degradação da dieta alimentar s agravou nos séculos seguintes atingindo
diversas regiões da Europa. Como sugerem as estatísticas, no inicio do
século XIX a estatura média dos soldados e adolescentes das diversas
regiões seria nitidamente inferior à dos séculos XIV e XV.
Espoliação dos camponeses – A conquista das terras aráveis pelas
elites sociais, em diversas regiões do continente, aumentou a fortuna dos
nobres burgueses, favorecendo o refinamento da gastronomia e das maneiras à
mesa. Essas transformações, por outro lado, empobreceram ainda mais o
regime alimentar camponês. Nas regiões mais ricas e mais bem situadas em
relação aos mercados, nobres e burgueses se apossaram da maioria das
terras, que no fim da Idade Média ainda eram camponesas. Em certos países,
como a França, o desenvolvimento do Estado moderno que, com o aumento
considerável dos impostos, no século XVII, agravou bastante a espoliação
dos camponeses, proletarizando-os, acelerou também a passagem para uma
economia de mercado.
A alimentação camponesa se diferenciava de uma região para a outra,
variando os alimentos consumidos, temperos, modos de preparo, existindo
assim uma cozinha local, como o chucrute na Alsácia. Na Idade Média os
camponeses só usavam condimentos locais, mas há registro do século XVI em
que os camponeses passaram a adotar as especiarias da Índia, a exemplo das
pessoas da cidade. Parece, no entanto, que é a maneira de cozinhar que
contrapõem as cozinhas camponesas às das elites. Na maior parte das regiões
da Europa, é o cozido que as caracteriza, enquanto nas cozinhas
aristocráticas prevalecia o assado, o frito e as carnes com molho. Visto
que a camponesa não é uma cozinheira de tempo integral, ela pode se dedicar
a outras atividades enquanto cozinha o alimento para a família, o que sob
as cinzas ocorre lentamente, sem queimar, dispensando também supervisão
constante.
O pão e os novos alimentos – O pão não era apenas um alimento popular:
era o alimento por excelência. Os nobres e burgueses do fim da Idade Média
e inicio dos tempos modernos o consumiam em quantidades consideráveis. Os
ricos comiam pão branco (de frumento) e os camponeses o pão preto (feito
com outros cereais). O pão dos camponeses acabava sendo mais pesado, grande
e que se comia duro. O problema do pão passou para o primeiro plano no fim
dos tempos modernos, tanto no domínio político como no plano agrícola ou
nutricional. Para resolver esse problema, aconselhou-se a usar a batata
(que poderia se poderia cultivar nos campos em alqueive entre duas
colheitas de grãos e com rendimento duas ou três vezes superior ao do
trigo) para fabricar o pão, a partir daí visto como alimento definitivo do
povo. Só no século XIX a batata será adotada em toda a parte, mas não sob a
forma de pão.
Entre as novas plantas comestíveis que desde antes do século XIX
contribuíram para alimentar uma população européia cada vez mais numerosa.
Além da batata, há também o arroz – bem conhecido desde a Idade Média e
apreciado pelas elites sociais, no fim do século XV é aclimatado na Europa;
o trigo-mouro vindo do nordeste da Europa difunde-se no século XVI nos
Países Baixos, na Alemanha, França e norte da Itália, assim como o milho,
de origem americana como a batata.
Levado para a Europa por Cristóvão Colombo em 1493, o milho aclimatou-
se muito rapidamente: desde os primeiros anos do século XVI, era cultivado
na Espanha, Portugal; em seguida ele entra também na França e na Itália.
Nessa época, só raramente ele substituía os cereais tradicionais nos
campos. É com o crescimento demográfico do século XVIII que agrônomos,
filantropos e proprietários de terras se interessam realmente por essa
planta de rendimento miraculoso. Atraídos por esse rendimento, os
proprietários resolveram cultivá-lo em grandes superfícies, nos campos, e
estimularam os camponeses a consumirem cada vez mais esse alimento barato.
A alimentação dominante nas mesas abastadas é sempre à base de carne
enquanto, nas mesas populares, são os alimentos vegetais – a começar pelo
pão e sopas. No entanto, na segunda metade do século XVI e durante todo o
século XVII o numero de pratos à base de legumes multiplicou-se nos livros
de culinária. Em compensação, foi diminuindo, progressivamente, o consumo
de alimentos ricos em fécula. Enquanto na Idade Média as elites sociais
procuravam os alimentos vegetais mais nutrientes, a partir do século XVI
elas se voltaram para legumes que o são menos; como se, daí em diante, o
objetivo já não fosse alimentar-se, mas diversificar os pratos e satisfazer
o apetite.
Aves e açougue – Na Idade Média, os assados nobres consistiam
essencialmente em aves domésticas e caças, enquanto as carnes de açougue
(bovina preferencialmente) só eram utilizadas para caldo ou para picadinhos
e "sopas". Do século XV ao XVIII começa a se empregar cada vez mais as
carnes de açougue em assados e caldos, sopas e carnes de panela e há um
desaparecimento progressivo nos livros de cozinha e mercados abastecedores
das grandes aves das mesas aristocráticas da Idade Média (albatroz,
cegonha, cisne, garça, pavão, etc).
A fronteira social essencial já não é entre aristocratas que comem
caça e aves e burgueses que consomem carnes de açougue, e sim entre as
elites nobres e burguesas que comem bons cortes de carne e o povo, que fica
com as peças "de segunda". A preocupação com a qualidade dos cortes cada
vez mais constitui um traço do comportamento das elites sociais, e agora é
o povo que recorre aos condimentos fortes para poder engolir as peças
inferiores que lhe restam. Aqui convém destacar que o consumo de carne
atuou na transformação das relações sociais.
Uma transformação está relacionada com a descoberta da América. Na
primeira metade do século XVI chega o peru a Europa, sendo essa ave de
origem americana mencionada nos livros de cozinha com uma freqüência cada
vez maior. A queda do preço dessa carne indica que o seu consumo se ampliou
na sociedade, ao mesmo tempo que conservou uma grande reputação econômica
até o século XX.
O recuo das especiarias – O uso das especiarias orientais havia sido
um dos principais traços de distinção da culinária aristocrática nos
séculos XIV, XV e XVI. No entanto, as especiarias e os condimentos nativos
são muito mais utilizados na cozinha dos séculos XVII e XVIII (manjericão,
tomilho, louro, salsa, cebolinha). Tudo isso era bem mais acessível ao povo
que as especiarias exóticas, pelo menos nas províncias de origem. De modo
que, também nesse aspecto, as distinções entre as classes parecem reduzir-
se.
Bebidas coloniais e açúcar – Os tempos modernos são a grande época das
bebidas coloniais, quando o chocolate (descoberto no México pelos
espanhóis), o café (originário da Etiópia e do Iêmen e introduzido na
Europa pelos turcos) e o chá (vindo da China) são assunto de crônicas,
introduzem-se no regime alimentar e tem um papel determinante no comércio
de longo curso.
Na Europa, todas essas bebidas coloniais eram consumidas com açúcar ao
passo que em seus países de origem não eram adoçados. Isso indica que o
grande aumento do consumo de açúcar está ligado ao sucesso das bebidas
coloniais em toda a Europa. Esse aumento do consumo de açúcar levou,
durante três séculos, à implementação de grandes plantações açucareiras nas
terras tropicais colonizadas pelos europeus – Madeira, Canárias, Açores e
Brasil nos séculos XVI e XVII, e depois nas Antilhas e outras ilhas no
século XVII -, sistema de produção baseado na escravidão e no tráfico de
negros, que constituem o lado sombrio dessa história.
Limpeza, individualidade e requinte – Evidencia-se neste período não
só uma obsessão pela limpeza, como ainda um progresso do individualismo: o
prato, o copo, a faca, a colher e o garfo individuais na verdade erguem
paredes invisíveis entre os comensais. Na Idade Média, levava-se a mão ao
prato comum, duas ou três pessoas tomavam a sopa numa só escudela, todos
comiam a carne na mesma travessa e bebiam de uma única taça que circulava
pela mesa; facas e colheres, ainda inadequadas, passavam de um conviva a
outro; e cada qual mergulhava seu pedaço de pão ou de carne em saleiros e
molheiras comuns. Nos séculos XVII e XVIII, ao contrário, cada comensal é
dono de um prato, um copo, uma faca, uma colher, um garfo, um guardanapo e
um pedaço de pão. Tudo que é retirado das travessas, molheiras e saleiros
comuns deve ser pego com os utensílios adequados e depositado no prato
antes de ser tocado com os próprios talheres e levado à boca. Cada conviva
é encerrado numa espécie de gaiola imaterial. E isso ocorre dois séculos
antes de Pasteur descobrir a existência dos micróbios e seu papel de
agentes transmissores de doenças.
Parece que as modas afetavam as maneiras à mesa, não sendo essencial a
manutenção de práticas racionais e morais, mas sim o ajustamento aos
procedimentos das elites. Obviamente, tais modas eram lançadas pelo círculo
do rei e dos grandes senhores. Mas sua aceitação não ocorria sem
resistências e algumas nunca chegaram a ser aceitas. No decorrer do século
XVII, porém, tais resistências desapareceram, e os costumes mais distintos
pouco a pouco ganharam força de lei para todos os meios sociais. O simples
fato de algo ser característica dos camponeses e de outras camadas
populares basta para condená-la.
Sem dúvida, não foi por acaso que essas distinções sociológicas se
multiplicaram no momento em que os utensílios de mesa se tornavam mais
complexos. Procura-se a distinção de, adotando-se utensílios aos quais os
pobres dificilmente tinham acesso. Assim como a depuração da língua ou os
progressos da cultura escrita, as novas maneiras de comportar-se à mesa
também ampliaram o fosso entre as elites sociais e as massas populares.
A segregação à mesa – A multiplicidade de recomendações sobre o que
podia desgostar ou repugnar os convivas, sugere que a ampliação do fosso
entre as maneiras populares e as das elites foi acompanhada de uma maior
segregação social dos comensais. Havia instruções para os que retiram os
pratos da mesa para que não despejem as eventuais sobras de uns nos outros
diante dos olhos dos convivas. Por outro lado, recomenda que sempre se
limpe a colher usada antes de servir-se de alguma coisa. E enfatiza que se
deve cuidar de não sujar o guardanapo a tal ponto que pareça um esfregão de
cozinha.
Os ricos fidalgos ingleses do século XVII deixavam cada vez mais de
convidar os vizinhos modestos e pobres para comerem nas suas grandes
festas. Nos banquetes da França, as pessoas importantes comiam em mesas
separadas daquelas dos domésticos. Tudo indica que, tanto à mesa quanto em
outros lugares da vida cotidiana, aumentou a segregação social. Pelo menos
até o início do século XVII nem todas as pessoas sentadas à mesma mesa
comiam os mesmos alimentos ou tomavam as mesmas bebidas, havendo conselhos
para que se estocasse vinho de qualidade inferior para os eventuais
convivas "de pouca monta" e guardasse o bom vinho para si mesmo e para seus
convidados de alta condição.
Conclusão – Verificamos que a mudança dos hábitos alimentares
acompanha as transformações ocorridas nos tempos modernos. Ao mesmo tempo
em que a cidade e o mercado se consolidam como um espaço público aparece
também um espaço privado e individual à mesa, que acabam por definir novas
práticas e costumes. A ascensão da burguesia, e evolução do comércio e uma
cultura diversificada contribuíram para a uma alimentação mais variada e o
simples comer por prazer, diferente da dieta alimentar do medievo
relacionada a saúde.


Referência bibliográfica

FLANDRIN, Jean-Louis. A Distinção Pelo Gosto. In: CHARTIER, Roger (Org.).
História da vida privada. Vol. 3: da Renascença ao Século das Luzes. São
Paulo: Companhia das Letras, 2009. (Coleção dirigida por Philip Ariès e
George Duby)

FLANDRIN, Jean-Louis; MONTANARI, Massimo. História da Alimentação. São
Paulo: Estação Liberdade, 1998.
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