A Allgemeine Geschichtswissenchaft de Johann Martin Chladenius ou os fundamentos da ciência histórica alemã

June 1, 2017 | Autor: Julio Bentivoglio | Categoria: Teoria da História, Chladenius, Historiografía y filosofía de la historia alemana
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A Allgemeine Geschichtswissenchaft de Johann Martin Chladenius ou os fundamentos da ciência histórica alemã. Julio Bentivoglio PPGHIS-UFES/ DEPHIS-UFES

Boa dia a todos. Antes de mais nada gostaria de agradecer o amável convite que me foi feito pelos organizadores deste simpósio. É para mim uma honra e se reveste de um significado muito especial estar em Goiânia. Uma honra porque este evento precede a vinda de um dos mais importantes estudiosos da teoria da história – pelo qual nutro profunda admiração – e que também estará aqui no final desta semana: Jörn Rüsen. Sinto-me orgulhoso pelo convite, afinal poderiam estar aqui teóricos da história de maior envergadura e notoriedade que eu. Além disso, voltar à UFG reveste-se de uma importância ímpar para mim: foi nesta universidade que comecei minha carreira e aqui que teve início meu interesse pela teoria da história. Sinto-me no dever de citar três nomes que são diretamente responsáveis pelas minhas incursões no campo desde então. A eles minha sincera gratidão. Luiz Sérgio Duarte, presidente da banca do concurso de teoria da história nos idos de 2003, que ao lado de seus pares acreditou que um especialista em história do Brasil no século XIX fosse capaz de pensar e pesquisar teoria da história. Carlos Oiti Berbert Jr., amigo e interlocutor privilegiado com o qual tive o prazer de trabalhar e prosear durante dias a fio na cidade de Catalão e em momentos rápidos durante congressos. E por fim, ao meu querido amigo e também padrinho do meu filho Luca, Cristiano Arrais, do qual tenho a satisfação de contar sempre com o companheirismo e o diálogo, fundamentais no universo acadêmico, onde frutificam vaidades e disputas. Se cheguei aonde pude, divido os méritos com este amigo. Com ele, criamos em 2006 um boletim de História – Emblemas, que existe ainda hoje e que foi o instrumento responsável por alavancar minha carreira. Foi ali onde tudo começou. E é este amigo generoso que tem brindado com seus preciosos conhecimentos minhas incursões em torno da teoria da história. Como vêem, devo muito a estes seus mestres e, também sou muito grato à UFG, casa onde despertou meu interesse pela

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historiografia alemã oitocentista e onde trabalhei de 2003 a 2008. Penso que aqui gestamos um caminho bastante fértil na teoria da história brasileira. De qualquer modo divido com estes amigos os poucos méritos que até agora angariei em minha jornada, bem como os eximo da responsabilidade futura por, talvez, terem criado um monstro. Confesso: em minha jornada em torno da teoria da história tenho, na medida do possível, em oposição à pretensa hegemonia das interpretações historiográficas francesas, notadamente da chamada Escola dos Annales, apresentado e discutido méritos e questões da rica ciência histórica alemã que se constituiu durante o século XIX. Tenho ainda combatido duramente uma leitura equivocada que associa muitos historiadores germânicos daquele tempo ao positivismo legada, sobretudo, por leituras apressadas e ideologicamente comprometidas, oriundas tanto do interior dos Annales, como também de expressões do marxismo. Do mesmo modo tenho rechaçado o reducionismo que muitas vezes circunscreve esta historiografia alemã à obra de Leopold von Ranke. Se citei alguns colegas aqui da UFG, com os quais divido minhas poucas realizações na área é para dizer que foi aqui que conheci, pude ler e também discutir autores como Rüsen, Gumbrecht e Koselleck, que depois me levaram aos historiadores oitocentistas. Ironicamente, lembro de ter sugerido a Arrais e a Oiti que lessem Antoine Prost. Que bela retribuição... Mas, foi aqui que travei contato com aqueles autores e percebi a lacuna existente a respeito da história alemã durante o oitocentos. A esta presença da historiográfica alemã recente nos cursos de história eu notava um vazio em relação ao século XIX. Vieram daí minhas leituras de Droysen e de Gervinus que resultaram nas traduções para a editora Vozes, mas também de Humboldt, Ranke e Sybel. Em todos eles direta ou indiretamente eu encontrava referências aos pensadores do século XVIII, em todos eles havia a marca de Chladenius. Veio daí o mote para esta conferência. Para mim o encontro com a obra de Chladenius representa o encontro com uma das bases fundamentais da ciência histórica alemã. Assim, desejo falar um pouco sobre quem foi este pensador alemão, bem como apresentar, em linhas mais gerais, sua Algemeine Geschichtswissenchaft. De antemão registro um sincero agradecimento a Sara Baldus, tradutora e amiga em todos estes projetos que gentilmente cedeu sua tradução desta obra para eu mostrá-la a vocês, em primeiríssima mão. Como se trata de um alemão arcaico, impresso em letras

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góticas setecentistas eu jamais me aventuraria a esta empreitada, reconhecendo minhas limitações face ao idioma e à sua compreensão naquele contexto, louvo e agradeço a iniciativa daquela tradutora. Devo dizer, sem nenhum exagero, que Chladenius (1710-1759) representa para a teoria da história alemã o mesmo que Voltaire para a dos franceses; sua obra fundadora trouxe princípios elementares revolucionários que foram utilizados e desenvolvidos sistematicamente pelas gerações subsequentes. Mas, enquanto o mérito daquele francês foi ter pensado uma história dos costumes e forjado o conceito de filosofia da história, bem ao sabor do otimismo iluminista vigente, o segundo nos oferece uma sistemática exposição da natureza de um saber que ainda não havia se tornado uma ciência, a qual ele preconiza explicitamente. Um conhecimento que estava circunscrito aos estudos filosóficos e ainda fadado a hibernar no interior dos gêneros literários. Chladenius realizou um esforço epistemológico inaugural ao precisar conceitos, indicar procedimentos de pesquisa e investigação, e enfim, localizar objeto, método e uma natureza para os estudos históricos. Seu intuito original era de que a História pudesse ser aplicada a várias ciências, e não sem exagero, podemos vislumbrar em sua Ciência Histórica Geral elementos que assinalam o nascimento da ciência histórica moderna pari passu a um entendimento radical da historicidade do ser e do próprio pensamento. Teólogo de formação, Chladenius foi também autor de obras significativas para o pensamento alemão oitocentista, que tratam desde questões confessionais até discussões sobre a retórica e a história. Realizou inicialmente seus estudos em Coburg, formou-se em Wittenberg. Foi professor em Leipzig e em seguida transferiu-se para a Universidade de Erlangen onde permaneceu pelo resto de sua vida. Em estudos, há forte presença da filologia e da exegese bíblica de orientação luterana, mas também uma influência decisiva do pensamento de Leibniz (1646-1716) e de Christian Wolff (1679-1754). Podese dizer que em sua Ciência Histórica Geral, Chladenius deu os primeiros passos para a constituição da história como um conhecimento autônomo, visto combater o pirronismo histórico arraigado de seu tempo e restringir o otimismo excessivo do racionalismo hermenêutico wolffiano. De todas suas contribuições, uma das maiores trata do conceito de ponto de vista (Sehepunkt) como um elemento central para a compreensão das diferentes narrativas e descrições do

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mundo. Portanto, do ponto de vista como um aspecto decisivo para a História e para o pensamento. Chladenius é o sobrenome latinizado Johann Martin Chladni, que nasceu em Wittenberg em 17 de abril de 1710 (celebraram-se seus 300 anos de nascimento neste ano de 2010) e faleceu em Erlangen a 10 de setembro de 1759. Era filho do professor de teologia e prelado Martin Chladen; descendia de uma família de origem húngara e freqüentou a Academia de Coburg, onde estudou matemática, história, filologia e teologia. Em 1729 foi promovido a professor auxiliar e em 1731 obteve o grau de professor sob a supervisão Johann Matthias Hase (1684-1742), cujos estudos cartográficos haviam precisado a correta representação da geografia de muitos territórios não somente europeus, mas de várias partes do globo, inclusive a África, indicando corretamente latitudes e longitudes. Entre 1740 e 1741, Hase ofereceu um curso de Geografia e História amparados numa discussão de base cronológica, ou seja, acompanhando a evolução dos estudos nessas áreas ao longo do tempo. Chladenius lecionou durante dez anos em Wittenberg até ser convocado para assumir uma cadeira na Universidade de Leipzig, onde se tornou, em 1742, professor extraordinário da disciplina Antiguidades Cristãs, dedicando-se a estudar a história da Igreja e do pensamento cristão. Em 1747, Chladenius foi nomeado diretor e pedagogo na Academia de Coburg e no ano seguinte foi convocado para a cadeira de teologia, poética e retórica na Universidade de Erlangen, onde se tornou, em 1756, próreitor. Suas duas maiores referências teóricas são, como indiquei anteriormente, a filosofia monadológica e racionalista de Gottfried Leibniz – não por acaso contingência, determinação e lógica estão intimamente presentes em seus trabalhos – e o racionalismo hermenêutico de Christian Wolff. Tentou aliar os princípios metodológicos deste último à suas convicções religiosas. Wolff é visto como um dos fundadores da nova hermenêutica – método que posteriormente seria desenvolvido por Schleiermacher – postulada como uma interpretação profana tal como adotada por Chladenius, que se contrapunha à exegese bíblica e à filologia dos textos clássicos da Antiguidade greco-romana, orientando-a, sobretudo, para a compreensão de textos e documentos históricos. Ambos, Wolf e Schleiermacher, mas também Chladenius, podem ser considerados como precursores de uma análise compreensiva da autoria e dos testemunhos.

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No início de sua carreira, Chladenius apresentou um estudo pioneiro de hermenêutica em língua alemã situando-se ao lado de Johann Jacob Rambach (1693-1735) por compartilhar uma determinada leitura romântica desta técnica de compreensão dos textos na qual o intérprete via-se como capaz de compreender melhor o pensamento de um autor do que ele próprio. Diferenciava-se, contudo, das ideias de Johann Conrad Dannhauer (1603-1666), Christian Thomasius (1655-1738) e Johann Heinrich Zopf (1721-1791) neste campo, ao distinguir as tarefas da hermenêutica e das disciplinas congêneres (filologia, exegese, paleografia), prenunciando uma consciência histórica moderna, visto propor a utilização de alguns princípios metodológicos que seriam decisivos para a futura teoria da história, nos quais a hermenêutica exerceria um papel-chave, no esclarecimento de pontos obscuros e como auxiliar da crítica documental. Devo lembrar que não havia ainda, naquela altura, a Historik (teoria da história), mas apenas Histories e, mais propriamente, histórias universais. Em Chladenius a hermenêutica se constituiu em uma ferramenta poderosa, ao lado da lógica; devendo ser entendida como um alicerce sob o qual deveriam se elevar todas as ciências, que precisavam destituir-se de suas orientações exclusivamente teológicas. Não por acaso esta hermenêutica passou a ser denominada de hermenêutica profana. Embora não fosse historiador e tampouco tenha escrito obras de história, somente a discussão que promoveu sobre esse uso inovador da hermenêutica, tornou-o um de principais teóricos da história na Alemanha, visto basear o estudo do passado na pesquisa empírica, na crítica documental e no recurso à compreensão (Verstehen). Destaco ainda que sua Ciência Histórica Geral revela o quanto as narrativas são marcadas por um perspectivismo – pela presença dos pontos de vista que precisam ser detectados e problematizados pelos estudiosos em sua busca da certeza histórica. Em seu tratado geral da ciência histórica Chladenius oferece aos leitores temas que estão, ainda hoje, no cerne do debate histórico. O que é um evento? O que são circunstâncias? Que tipo de testemunhos e divulgações são dignos de crédito? O que é uma história? O que é uma narrativa? As coisas futuras devem ser objeto da investigação histórica? Estas e várias outras questões são discutidas, tratando tanto da heurística – indicando o caminho da crítica documental e sua aplicação para os estudos históricos – quanto da sistemática,

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ao discutir procedimentos analíticos, hermenêuticos e lógicos a serem empregados para se perscrutar a intenção e o sentido das ações humanas, a fim de definir níveis de probabilidade e o grau da certeza em História. Do mesmo modo ele não se esqueceu de outra dimensão fundamental da História: a escrita, dedicando muitas páginas do livro ao problema da narrativa. Obra

fundamental

na

história

da

historiografia,

a

Allgemeine

Geschichtswissenchaft não tem até agora nenhuma edição publicada fora da Alemanha. A tradução que uso foi feita por Sara Baldus para celebrar os 300 anos de nascimento de seu autor e na tentativa de publicá-la para os leitores brasileiros. Este livro, editado pela primeira vez em 1752, completará 260 anos em 2012. Não foram poucos os historiadores e teóricos da história na Alemanha que reconheceram sua dívida e o papel referencial para com esta obra de Chladenius: Wilhelm von Humboldt (1767-1835), Leopold von Ranke (17951886), Johann G. Droysen (1808-1884)1, Georg G. Gervinus (1805-1871), Wilhelm Dilthey (1833-1911) e, mais recentemente, Hans-Georg Gadamer (1900-2002) e Reinhart Koselleck (1923-2006), para citar alguns. Para este último, Chladenius teria demonstrado como seria impossível ao historiador uma neutralidade absoluta bem como a necessidade de submeter os testemunhos existentes à crítica, visto desde a Antiguidade os historiadores destacarem os primeiros testemunhos, se possível oculares, face a divulgações escritas posteriores. Com efeito, Chladenius havia inovado ao destacar a simultaneidade de testemunhos diretos e indiretos no tempo, pois As histórias futuras e as histórias passadas são determinadas por desejos e planos, assim como pelas questões que surgem de hoje. Do ponto de vista da teoria do conhecimento, o espaço contemporâneo da experiência torna-se o centro de todas as histórias.2

Ou seja, Chladenius põe por terra uma epistemologia antiga que tornava a história um saber exemplar –magistra vitae – inaugurando uma percepção moderna deste conhecimento, articulando-o mediante pontos de vista

Droysen o manifesta explicitamente indicando literalmente Chladenius e sua contribuição para a crítica documental, ao lado de Niebuhr. Ver DROYSEN, J. G. Manual de teoria da história. Petrópolis: Vozes, 2009. 2 KOSELLECK, R. Futuro passado. Rio de Janeiro: Contraponto, 2006, p.168. 1

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específicos3. Para ele, seria necessário tratar cada testemunho, não somente a partir de sua relatividade, mas também por sua contraditoriedade. Ranke a seu modo, manteve a agenda de Chladenius ao confessar que “tudo se interpenetra: estudo crítico das fontes autênticas, interpretação apartidária, representação objetiva; a meta é a presentificação da verdade completa (...) pois a verdade só pode ser uma”4. Em estudo recente Achim Saupe denominará esta postura de detetivesca, pois o historiador lida com os vestígios como um verdadeiro detetive5. Gervinus também seguiu este princípio, buscando uma história mais imparcial e apartidária6. Nas palavras de Ranke ele: repetiu freqüentemente sua opinião segundo a qual a ciência penetra a vida. Com efeito, mas, para tal, a ciência não pode, de modo algum, deixar de ser ciência. Não se pode atribuir à ciência o ponto de vista que se adota na vida, pois, assim, a vida estaria interferindo na ciência e não a ciência na vida.7

Mas, foi Koselleck que aquilatou como nenhum outro a importância do pensamento de Chladenius para a ciência histórica moderna, embora tenha se enganado – a meu ver – ao dizer que para aquele autor a história e sua representação são coincidentes8, afinal Chladenius reconhecia que a imagem original dos eventos sempre seria fragmentada nas inúmeras interpretações e narrativas proferidas sobre eles, seja pelas testemunhas, seja por terceiros, seja pela historiografia. Seu fundamento teórico acerca do ponto de vista permanece praticamente insuperável para a história ao revelar que a crítica das fontes possui um valor intrínseco que não pode ser simplesmente modificado a belprazer, por comprometimentos ideológicos ou partidarismos dos historiadores. A partir de Chladenius, os historiadores passaram a ter mais certeza

sobre

o

fato

de

que

podem

vislumbrar

na

verossimilhança uma forma particular, mas ainda assim histórica, da verdade. Desde então, a posição do historiador

Que significa o fim do entendimento da história como magistra vitae. Cf. KOSELLECK, R. História, história. Barcelona: Trotta, 2002. 4 RANKE, Leopold von. Deutsche Geschichte im Zeitalter der Reformation. 6.ed. Leipzig, t.1, 1881, p.X (Worwort). 5 SAUPE, Achim. Der Historiker als Detektiv: Historik, Kriminalistik und der nationalsozialismus als Kriminalroman. Bielefeld: Transcript, 2009. 6 Ver minha Apresentação de GERVINUS, G. G. Fundamentos de teoria da história. Petrópolis: Vozes, 2010. 7 RANKE, Leopold von. Georg Gottfried Gervinus. Historische Zeitschrift, n.27, 1872, p.142s. 8 KOSELLECK, R. op. cit., p.169. 3

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deixa de ser um argumento contra o conhecimento histórico, passando a constituir um pressuposto desse conhecimento.9

A leitura de seus princípios gerais da ciência histórica faz saltar aos olhos a influência do pensamento jurídico e teológico setecentista, ao lado, sobretudo, de Aristóteles. Igualmente reflexões que aliam convicções religiosas a um racionalismo notável, tingidas de um otimismo quase romântico em sua defesa da perspectiva interior, do ponto de vista individual e dos nexos que estes estabelecem a partir das experiências vividas. Destas reflexões, seguramente frutificaram os diálogos que posteriormente fariam com o pensamento de Chladenius tanto Fichte quanto de Goethe ou Schiller. Tais motivos indicam sua pertença tanto às raízes do movimento romântico que se constituía quanto da gestação do próprio historicismo10. Mas, a originalidade de suas ideias nos obrigam a manter seu pensamento singular sob distância de rótulos generalizantes, como também de situá-lo, ufanisticamente, como precursor de temas e correntes surgidas posteriormente, tal como seria o caso, por exemplo, do princípio da racionalidade nas ações humanas – tema fundamental da sociologia weberiana, ou o da subjetividade e da percepção interior para a filosofia romântica. Outra contribuição importante nesta obra é a crítica que realiza ao pirronismo reinante, que colocava sob desconfiança os textos históricos de então – como sendo recheados de lendas e imprecisões que vinham sendo sistematicamente postas à prova com as novas técnicas, saberes e descobertas. O século XVIII marcou um período complexo em que algumas narrativas sobre o passado foram vistas com muita suspeição; muitas dúvidas eram lançadas sobre algumas histórias, seja por seu caráter fantasioso, seja porque seus testemunhos

não

eram

mais

confiáveis11.

Contudo,

naquele

contexto

renovavam-se as convicções sobre as histórias de caráter testemunhal, das quais existissem registros de testemunhas oculares, que eram consideradas mais fidedignas. O pensamento de Chladenius moveu-se dentro deste quadro, Ibidem, p.170. O que reforça a interpretação de Cassirer sobre as conexões do romantismo e do historicismo na conquista do mundo histórico. Ver CASSIRER, Ernst. A filosofia do iluminismo. Campinas: Ed.Unicamp, 1992. 11 Essa desconfiança aparece também no início do século XIX, em Schlegel, quando afirma que seria uma ilusão acreditar numa verdade da história, em “estado puro, apenas nos assim chamados autores apartidários ou neutros”. SCHLEGEL, Friedrich. Über fox und dessen historischen Nachlass (1810). In: Kritische Ausgabe. Munique: Pandeborn, t.8, 1966, p.115. 9

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criticamente12. Para ele o ponto de vista dos indivíduos constitui um universo de relatos possíveis, motivados por circunstâncias particulares, que expressam as dificuldades inerentes para todo aquele que deseja encontrar a verdade. A partir dos testemunhos diretos ou de sua divulgação caberia ao historiador encontrar suas relações e circunscrever um determinado evento na temporalidade, observando suas relações, seu início e seu fim, auferindo ainda a certeza nas histórias, eliminando-se afirmações falsas, deturpadoras ou equivocadas frequentes nas memórias e em interpretações subjetivas do passado; não perdia ainda de vista a crítica de uma escrita da história, rigorosamente, neutra ou imparcial. Chladenius sabia que esta meta só poderia ser atingida muito parcialmente. A perfectibilidade das histórias, portanto, deveria partir dessa crítica inicial dos testemunhos e residir na correta urdidura tramada pelo historiador, situado historicamente segundo suas próprias circunstâncias e situando historicamente as circunstâncias das vestígios testemunhais do passado. Na seara aberta por Chladenius, presente-passado-futuro foram integrados, problematizando a consciência histórica e referendando as experiências vividas e representadas pelas narrativas. Com ele a crença numa posição privilegiada da testemunha ocular caiu por terra. A partir de então o passado deveria ser reconstruído mediante a crítica. Em relação à escrita da história, Chladenius ocupa um lugar semelhante ao de Johann S. Semler (17251791), ambos distinguiam entre a história real e sua reprodução narrativa, indicando que o papel do historiador seria sempre o de reelaborar criticamente a historiografia anterior13. Semler foi um crítico mordaz do Novo Testamento e da Bíblia como um todo ao defender a historicidade da produção daqueles textos. Semler representou um esforço em compreender os textos bíblicos com o auxílio da história e das ciências, questionando a doutrina da inspiração e apelando para as contingências da escrita. Em suas palavras, “não podemos traduzir as declarações feitas como paralelas ao tempo presente, pois aquelas escrituras tinham dívida para com aquele momento”. O cristianismo durante o primeiro século foi transmitido oralmente e somente a partir daí passou a ser

Esforço semelhante foi vivido na França, sobretudo com Jean Mabillon (1632-1707), o fundador da paleografia e da diplomática. 13 SEMLER, Johann S. Versuch einer freiern theologischen Lehart. Halle, 1777, p.9s. 12

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fixado pela escrita. De acordo com Koselleck, Chladenius participa do mérito de revelar que uma fonte não pode dizer nada daquilo que cabe a nós dizer. No entanto, ela nos impede de fazer que não poderíamos fazer. As fontes têm poder de veto. Elas nos proíbem de arriscar ou de admitir interpretações, as quais, sob a perspectiva da investigação de fontes, podem ser consideradas simplesmente falsas ou inadmissíveis.14

A aparente simplicidade das proposições chladenianas oculta um conhecimento amadurecido e firmemente ancorado na lógica, na hermenêutica e na experiência de leituras sólidas, que surgem a todo instante em seu texto, de autores de várias tradições históricas e filosóficas o que evidencia sua erudição e seu estilo elegante. O esforço da tradução e o da minha leitura foram de tentar manter as virtudes e qualidades do pensamento e da escrita de Chladenius, apesar das dificuldades existentes tanto oriundas da distância temporal, quanto do vocabulário empregado por ele, informando sempre que possível em remissões de rodapé os esclarecimentos mais necessários. Em um universo historiográfico dominado pela tradição francesa, como é o caso brasileiro, conhecer obra fundadora responsável por uma verdadeira inflexão na gênese da ciência histórica moderna é uma oportunidade auspiciosa de localizar e refletir sobre o papel da teoria da história na constituição deste saber, bem como de estabelecer relações fecundas entre estas duas tradições decisivas do pensamento ocidental. A Algemeine Geschichtswissenchaft tem a virtude de revelar aos seus leitores como o perspectivismo histórico e a historicidade são aspectos essenciais de nosso campo. Igualmente, pontos de vista e consciência histórica são conceitos que, por sua vez, articulam o debate travado entre os defensores da objetividade e os representantes do relativismo no interior dos estudos historiográficos. Assim, Chladenius continua a figurar como leitura fundamental e obrigatória. Relaciono abaixo algumas das obras mais importantes de Chladenius

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Einleitung zur richtigen Auslegung vernünftiger Reden und Schriften (Introdução à interpretação razoável dos discursos e escritos), 1742.

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Logica practica, 1742.

KOSELLECK, R. op. cit., p.188.

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Logica sacra, 1745.

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Vernünftige Gedanken von dem Wahrscheinlichen und desselben gefährlichen Mißbrauche (Idéia razoável do provável e os abusos perigosos sobre os mesmos), 1748.

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Kleine Sammlung von Betrachtungen (Pequena coleção de reflexões), 1749.

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Opuscula academica varii generis (Opúsculos acadêmicos sobre vários gêneros), 1750.

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Nova philosophia definitive (Nova filosofia definitiva), 1750.

·

Allgemeine Geschichtswissenschaft, worinnen der Grund zu einer neuen Einsicht in allen Arten der Gelahrtheit gelegt wird (Ciência histórica geral. Exposição dos elementos básicos para uma nova visão sobre todos os tipos de saberes), 1752.

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Wöchentliche biblische Untersuchungen…(Estudos bíblicos semanais), 1754.

·

Theologische Nachforscher… (Investigação teológica), 1757.

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