A alteridade

June 14, 2017 | Autor: Pedro Janja | Categoria: Fernão Mendes Pinto
Share Embed


Descrição do Produto

Eu sei que Ele sabe que Eu sei que Ele sabe que Eu sei

A ALTERIDADE EM PEREGRINAÇÃO DE FERNÃO MENDES PINTO O humanismo Quinhentista e a problemática do Encontro

A ALTERIDADE EM PEREGRINAÇÃO DE FERNÃO MENDES PINTO, OU "EU SEI QUE ELE SABE QUE EU SEI QUE ELE SABE"

SUMÁRIO PALAVRAS PRÉVIAS GRAVURAS

I. INTRODUÇÃO 1.1 Afinal quem é Fernão Mendes Pinto? 1.2 O universo cultural Quinhentista português

2. O CAPÍTULO CCXXIII 2.1 Resumo 2.2 A "voz" do narrador 2.3 A literariedade como critério de verdade no discurso literário 3. CONCLUSÃO 3. 1 O topos alteridade como estratégia literária do humanismo Quinhentista. 3.2 O eu despojado. Como conhecer o eu através do outro.

1

Resumo Quando Fernão Mendes Pinto regressou a Lisboa depois de 21 anos de deambulações pelo Oriente, em 1558, começou a escrever Peregrinação. Já tinha morrido há 31 anos quando o livro foi editado em Portugal pela 1ª vez. Contra todas as perspectivas o mesmo foi um êxito editorial tendo nesse mesmo século conhecido 19 edições em 6 diferentes línguas. Lisboa tinha-se transformado numa cidade cosmopolita e ousada. O Humanismo revigorado pelo renascimento deu voz a uma classe mercantil empreendedora que se não contentava com as fantasias delirantes dum mundo temeroso do desconhecido proposto pela inteligência Medieval. Fernão Mendes Pinto fala do Outro sem as lentes destorcidas da superioridade nem os preconceitos do exotismo o que justifica, num século dominado pela problemática do Encontro, do Contacto e da Comunicação, a procura que o livro teve. O capítulo CCXXIII é paradigmático do posicionamento de Fernão Mendes Pinto marcado pela exigência de se perfilar como “testemunho duma viragem protagonizada pela deambulação do Homem no cenário novo do Mundo que faz explodir as fronteiras geográficas e do saber" liberto dos preconceitos ditados pela relação de dominação que impunha uma hierarquização de superioridade do Eu em relação ao Outro. Palavras-chave: Alteridade, Encontro; Humanismo; Estratégias de Credibilidade

2

PALAVRAS PRÉVIAS A 26 de Março comemorou-se o Dia do Livro Português data proposta pela Sociedade Portuguesa de Autores em virtude de nesse dia de 1487 ter sido impresso o primeiro livro em Portugal. O primeiro livro escrito em português só seria impresso em 1497. Muitos livros entretanto fizeram entrada em cena nas letras e alguns com bastante êxito editorial como, no séc. XVI, ocorreu com Imagem da Vida Cristã de Frei Heitor Pinto. Mas gostaríamos de aqui e agora falar de Peregrinação de Fernão Mendes Pinto. Em que dá conta de muitas e muito estranhas coisas que viu e ouviu no reino da China, no da Tartária, no do Somau, que vulgarmente se chama Sião, no do Calaminhão, no de Pegú, no de Martavão e em outros muitos reinos e senhorios das partes Orientais, de que nestas nossas do Ocidente há muito pouca ou nenhuma notícia. Este é o título da 1ª edição da obra de Fernão Mendes Pinto que rapidamente viu dezanove edições consecutivas em seis línguas diferentes faladas na Europa: em 1614 em português, em 1620 em castelhano, em 1628 em francês, em 1652 em holandês, em 1653 em inglês e em 1671 em alemão. Este êxito editorial, longe de todas as expectativas, deveu-se, a nosso ver, ao facto de se lhe reconhecer um diálogo implícito com a História despreconceituoso e exemplarmente exercitado pela problemática do Encontro, do Contacto e da Comunicação. Fernão Mendes Pinto fala-nos da alteridade com a autoridade de quem denuncia a falácia da “descoberta” de um “outro” órfão do palco da história mostrando-nos que nesse encontro todos se conhecem: Eu sei que Ele sabe 3

que Eu sei que Ele sabe que Eu sei. Esta capacidade de ver o Outro sem preconceitos não teve grandes seguidores por parte de um Ocidente de matriz judaico-cristã que assumiu de preferência uma violenta atitude proselitista.

4

5

6

7

8

9

10

11

A ALTERIDADE EM PEREGRINAÇÃO DE FERNÃO MENDES PINTO OU “EU SEI QUE ELE SABE QUE EU SEI QUE ELE SABE".

INTRODUÇÃO 1.1. Afinal quem é Fernão Mendes Pinto? Se Fernão Mendes Pinto aprendeu a ler na escola, em casa dos pais, ou noutro sítio qualquer não sabemos. Nem sequer sabemos a data certa do seu nascimento! "Parece", como muito costuma dizer o próprio, que terá nascido entre 1509 e 1511 em Montemor-o-Velho. Mas, para ler a sua obra, para a fruirmos, essas minudências não nos interessam. Afinal, o autor de Peregrinação sai de Lisboa para o Oriente em 1537, regressa em 1558 e só depois desta data é que começa, seguramente, a escrever a sua obra como pelas coordenadas linguísticas somos informados: "com outras muitas diversidades de ervas e flores que não há nesta nossa Europa."1 Os "trabalhos e perigos da vida que passei no decurso de vinte e um anos”2 nas partes do Oriente, são, de modo eficiente, "não como devo, senão como entender”3, tratados em Peregrinação. Mas, antes de tratarmos aqui o que nos propusemos, comecemos por citar Vítor Manuel de Aguiar e Silva, Maneirismo e Barroco na Poesia Lírica Portuguesa, Coimbra, Centro de Estudos Românicos, 1971:

1

Fernão Mendes Pinto, Peregrinação, versão de Maria Alberta Menéres, Lisboa, Ed. Afrodite, (1971), 1980, p. 448 (O negrito é nosso). 2

Idem, p. 2.

3

Rebecca Catz, Cartas de Fernão Mendes Pinto e outros Documentos, Lisboa, Ed. Presença, 1983, p. 40.

12

"Em todo o processo de criação literária – e na obra que daí resulta – há a considerar uma dipolaridade (sic) fundamental: por um lado, as estruturas genéricas de teor linguístico e literário que o autor encontra dominantes na sua época, com as quais estabelece variáveis relações de aceitação ou conflito, mas que de qualquer modo o condicionam como escritor [...]; por outro lado, [...] encontra-se a capacidade inventiva e criadora do escritor [...].”4

Ancorados pois nesta asserção, somos levados, por um lado, a saber qual o universo cultural português do século XVI e, por outro lado, como Fernão Mendes Pinto actualiza a comunicação literária através do seu discurso em Peregrinação.

4

Apud Buescu, Literatura Portuguesa Medieval, Lisboa, Uaberta, 1990, p. 159.

13

1.2. O universo cultural Quinhentista português. Vejamos como poderemos caracterizar o universo cultural português do Séc. XVI. Vejamos então que Lisboa encontra Mendes Pinto quando chega a 5 de Outubro de 1558: Gil Vicente morre em 1536 mas grande parte da sua obra é editada, por iniciativa de seu filho Luís Vicente, em 1562. A vida cultural de Lisboa está marcada pelo seu teatro de tal maneira que as representações teatrais saem para fora dos salões aristocráticos, tendo, em 1558, o Hospital de Todos os Santos obtido o privilégio exclusivo de conceder essas representações e tendo-se construído em 1591, em Portugal, dois edifícios próprios para as representações cénicas, em pedra e alvenaria. Com Gil Vicente, a crítica social humorística encontra curso que havia de ter larga fortuna descobrindo formas de tornear as censuras mais rígidas, apesar de o "Índex português de 1581 manda[r] vigiar cuidadosamente as peças teatrais, proibindo especialmente as críticas a pessoas eclesiásticas?"5. Sá de Miranda, introdutor do Renascimento em Portugal, acabara de morrer, no seu auto exílio no campo, embandeirando a aurea mediocritas, condenando os costumes fáceis e moles, a riqueza ganha na aventura com desprezo da trabalhosa mas sadia vida do campo, dando uma imagem sombria da sociedade portuguesa em desagregação. António Ferreira, nascido em 1528, teorizador do Classicismo em Portugal, paladino de uma espécie de nacionalismo linguístico, também ele censura, a par de Sá de Miranda, o gosto pela riqueza em detrimento dos valores que afinal foram a base para atingir essa riqueza. 5

António José Saraiva, História Ilustrada das Grandes Literaturas, Literatura portuguesa, vol. I, Lisboa, Estúdios Cor, 1966, p.66.

14

Frei Heitor Pinto, monge de S. Jerónimo, autor de Imagem da Vida Cristã (1563-1572), que foi o maior êxito editorial do séc. XVI, exprimindo-se numa prosa poética, rica em imagens originais, marca a transição do Humanismo para o barroco seiscentista. Samuel Usque, em Ferrara, editara em 1553 a sua célebre Consolaçam às Tribulaçoens de Israel. “Pela marca do estilo bíblico, pelas descrições paisagísticas, pela abundância de alegorias, pela adjectivação colorida e pitoresca, a prosa da Consolaçam é única em Portugal no século XVI [...].”6 (São, aliás, Imagem da Vida Cristã, Consolaçam às Tribulaçoens de Israel e Peregrinação, as três obras que na linguagem e estilo se propõem realizar a maleabilidade e ductilidade próprias da prosa do vindouro século XVII, em Portugal).

Séc. XVI aliás, citando Leonor Buescu, “marcado pela conciliação de modelos (herança medieval com a herança clássica) e compromisso ético, mas também testemunho duma viragem protagonizada pela deambulação do Homem no cenário novo do Mundo que faz explodir as fronteiras geográficas e do saber"7. Por outro lado, convoquemos de novo a carta de Fernão Mendes Pinto, atrás citada, (cfr. n/nota nº 3), desta vez para fazer notar que nos situamos, face a Peregrinação, longe da perspectiva do documento histórico, sem deixar de reconhecer, contudo, como nos ensina Bakhtine, que toda a obra literária é um cronótopo, isto é, mantém um diálogo implícito com a História8. Diálogo este exemplarmente exercitado por aquilo que Maria Leonor Buescu considera a problemática-chave na Peregrinação: "problemática do Encontro, do Contacto e da Comunicação, com três graus possíveis no frente a frente de duas entidades humanas – indivíduos ou grupos – envolvidas no processo do Conhecer e do Reconhecer: acções transitivas, cujo objecto é, respectivamente, o Outro e Si Mesmo (quer sob a forma do Eu ou do Nós, como individualidades singular ou 6 7 8

Idem, p. 77. Cfr. Maria Leonor Carvalho Buescu, Literatura Clássica Portuguesa, Lisboa, UAberta, 1990, pp 87-88. Cfr, Carlos Reis, O Conhecimento da Literatura - Introdução aos Estudos Literários, Coimbra, Almedina, 1995, p. 85.

15

colectiva).”9 O Encontro com o Outro, marcado por encenações, por gestos, por rituais, por sons, por silêncios, por olhares, multiplica-se na vária Literatura de Expansão, após Gomes Eanes de Zurara o ter ensaiado na Crónica dos Feitos da Guiné. Mas, se subjaz nesses encontros uma equivalência hierárquica, embora marcada por uma "relação vindoura de dominação" na Peregrinação, pelo contrário, podemos estabelecer uma tipologia diferenciada segundo um esquema tricotómico. Assim, no dizer de Leonor Buescu: a) “O Eu (ou o protagonista identificado com o eu narrador assumido como um nós) apresenta-se com um estatuto de predominância em relação ao Outro. b) O Eu apresenta-se em relação ao Outro, em termos de estatuto, igual. c) Como terceira possibilidade tipológica, o Eu é, em termos de estatuto, inferior em relação ao Outro: “é esta situação, aliás que, se intentarmos uma sondagem de frequência, se me afigura como predominante.”10 É também para nós esta terceira possibilidade que tentaremos abordar lendo o capítulo CCXXIII, ao mesmo tempo que nos propomos descobrir nele a capacidade inventiva e criadora do escritor. Parece-nos um capítulo exemplar cuja chave reside na farsa apresentada aos portugueses, em que a Princesa "representa" a "representação" que o Português "representa" de si, tentando vender uma imagem que ele sabe impossível de cotejar com o referente real, porque tem consciência de se estar a produzir o contacto primordial pelo que é informação em primeira mão tudo o que disser. Só que: - O Outro sabe e o Eu (narrador) sabe que o Outro sabe! 9

Cfr Maria Leonor Carvalhão Buescu, "A Peregrinação de Fernão Mendes Pinto ou as Alternativas do Olhar", in Ensaios de Literatura Portuguesa, Lisboa, 1985, p. 37. 10

Idem, p. 41

16

1.3. Como já dissemos, este nosso trabalho será feito tendo por base a leitura literária do capítulo CCXXIIl. Para o realizarmos lemos Peregrinação de Fernão Mendes Pinto, em versão para português actual de Maria Alberta Menéres, das Edições Afrodite de 1980. Como leituras auxiliares, para além de outros comentários, queremos realçar: "A Peregrinação de Fernão Mendes Pinto ou as alternativas do olhar", lição de Maria Leonor Buescu; " Fernão Mendes Pinto e o romance picaresco" de António José Saraiva, 2° volume, Para a História da Cultura em Portugal; e "Para uma Nova Leitura de Peregrinação de Fernão Mendes Pinto (o narrador autobiográfico: situação, estatuto e competência)", "O Descobrimento da China: Estratégias Discursivas da Descrição na Obra de Fernão Mendes Pinto" e A Peregrinação de Fernão Mendes Pinto - Apresentação crítica, selecção, resumos, glossário e sugestões para análise literária de João David Pinto-Correia. Para além de outras leituras que fizemos e apresentamos em bibliografia no fim deste trabalho. Por último queremos referir que a respeito das citações e demais organização da superfície textual seguimos a obra do Professor Soares Carvalho, Metodologia nas Humanidades.

17

18

O CAPÍTULO CCXXIII 2.1. Resumo. "Como chegámos ao reino do Bungo e do que lá passámos com el-rei"11. O resumo: A sete de Maio de 1556, os portugueses saem de Lampacau com destino a Fuchéu para se encontrarem com o rei do Bungo tendo por missão fazer-lhe presente uma carta do vice-rei pedindo-lhe o seu favor na acção de evangelização do Pre. Belchior. Escolhido o narrador para embaixador desta missão, inicia-se todo o processo de aproximação/preparação desse encontro: 1. Como "as agulhas aqui neste clima nordestearam [...] perdeu o piloto toda a estimativa da navegação" e foi com "enfadamento e risco de nossas fazendas e vidas, porque toda aquela costa estava levantada contra o rei do Bungo, nosso amigo" que reconheceram o erro da rota, mas, por "misericórdia de Deus", lá conseguiram aportar a Fuchéu "que é a metrópole do reino do Bungo". 2. O narrador desembarca para procurar contacto com o rei do Bungo. E assim parte em embaixada, com mais quatro companheiros, avistando-se com o "capitão de Canafama, o qual me recebeu com mostras de muito gasalhado, que algum tanto me aliviou do receio que levava", pediu-lhe que os levasse a el-rei, "o que ele logo fez muito mais largamente do que eu pedia." 3. Ao outro dia, chega a Fingau e contacta, por um mensageiro japonês que o acompanha, o Capitão de Osquy, comunicando o seu desiderato –

11

Todas as citações que fazemos neste ponto 2.1 são de Fernão Mendes Pinto, Peregrinação, Cap. CCXXIII, Lisboa, Ed. Afrodite, 1980.

19

embaixada ao rei do Bungo. Este capitão "me respondeu logo por seu filho", que mandara avisar el-rei "à ilha de Xeque, para onde fora antemanhã, com muita gente, a matar um grande peixe a que não sabia o nome," e, enquanto esperam resposta de el-rei, manda hospedá-los "em um pagode a que chamavam Amidanxó, onde dos bonzos dele fomos banqueteados esplendidamente." 4. Sem demora, el-rei, logo que soube, despachou "um seu camareiro muito privado, que se chamava Oretandono," que, com a solenidade própria dum mensageiro real para com um dignatário, lhes entregou uma carta, "a qual dizia assim: Estando eu agora ocupado num trabalho de muito meu gosto [...] venhas tu logo [...] porque tu vires, e eu matar este peixe, será meu gosto perfeito." 5. Embarcam logo e chegam à ilha e verificam que o tal «grande peixe» era uma baleia, coisa que nunca teriam visto por ali. Morta a baleia e trazida para a praia, o rei fica tão satisfeito que distribui benesses por todos "e a mim me recebeu com a boca muito cheia de risos, e me perguntou miudamente por muitas particularidades, a que eu respondi acrescentando muitas coisas que me perguntava, por me parecer que era assim necessário à reputação da nação portuguesa, [...] porque [...] tinham para si que só o rei de Portugal era o que com verdade se podia chamar monarca do mundo, tanto em terras, como em poder e tesouro, e por esta causa se faz naquela terra tanto caso da nossa amizade." 6. Rapidamente, o rei sai da ilha para Osquy, chega a casa e conta, muito contente, como tinha morto a baleia, omitindo a ajuda que os seus companheiros lhe terão dado, "que este prejudicial vício da adulação é tão natural das cortes e das casas dos príncipes, que até entre o barbarismo da gentilidade lhe não faltou seu lugar." 20

7. El-rei do Bungo ceia recolhido com a rainha. 8. El-rei manda-os chamar, à intimidade do paço da rainha, para os presentear com um banquete privado, para "que por amor dele quiséssemos perante ele comer com a mão, assim como fazíamos em nossa terra, porque folgaria a rainha de nos ver." 9. Segue-se o banquete seguido da farsa representada pela princesa e suas amigas. No dia seguinte, deu-se a audiência. Feito este resumo do capo CCXXIII, um dos mais longos da Peregrinação, passemos então à sua leitura literária começando pela abordagem da instância dadora da comunicação literária.

21

2.2. A «voz» do narrador. Segundo a conferência proferida na Sociedade de Geografia de Lisboa, no dia 26 de Outubro de 1983, por ocasião da Sessão Comemorativa do IV centenário da Morte de Fernão Mendes Pinto, Pinto-Correia propõe-nos, "a partir da instância Eu autobiográfico – em deambulação – sempre presente, que constitui o núcleo semântico dominante ao longo do texto, [...] perspectivar a Peregrinação em seis Partes: [...] – na quinta parte, o sujeito-enunciado apaga-se [desta vez] perante as personalidades representantes da fé, nas quais delega o papel condutor da narração: Francisco Xavier e Pre. Belchior. São os caps. 200 a parte do 226." Mas neste cap. CCXXIII, inserido nesta quinta parte, o Eu narrador revela-se assumindo uma feição de narrador autodiegético – "me foi forçoso aceitá-la [a missão], por mo pedirem todos geralmente com muita eficácia"12 – definindo claramente a sua relação com o universo diegético, que passa a ser afrontado e mediado por si, transgredindo o estatuto de sujeito-enunciado dissimulado, próprio da quinta parte como se retira da lição atrás referida. O Eu narrador emerge duma longa situação de apagamento para actualizar, face ao narratário, uma estratégia de credibilidade exercitada pela narrativa pessoal, tal como acontece nas primeira e sexta partes da proposta de Pinto-Correia, acima referida. Estratégia de credibilidade, diferente das muitas outras exercitadas pelo narrador no decurso de Peregrinação, que convoca a analogia ao nível da «voz» da instância da enunciação destes três casos (primeira parte, sexta parte e cap. CCXXIII), para partilhar, neste cap. CCXXIII, a adesão ao facto histórico que as primeira e sexta partes sugerem e o narratário caucionará facilmente, já que as datas historicamente verificáveis, da saída de Lisboa e, vinte e um anos depois, da chegada a Lisboa, o legitimam. Reparemos ainda que, apesar de estarmos em presença duma focalização

12

Cfr. Fernão Mendes Pinto, Peregrinação, p. 935.

22

autodiegética – "me foi forçoso aceitá-la"; "o qual me recebeu com mostras de muito gasalho"; "do que eu pedia"; "e a mim me recebeu"; "me perguntou [...], a que eu respondi"; "e me despediu" – no episódio do banquete ela é contaminada por um narrador homodiegético, que remete o protagonismo para o Nós, reservando ao Eu, diferenciado desse Nós, um papel como que de mestre de cerimónias a chamar-nos a atenção para essa cena – "de que todos estávamos bem corridos, pelo menos os quatro,[ ...] porque eu já em Tanixumá tinha visto outra farsa [...]”13. Cena que a partir do tema "comer com as mãos" se desdobra e, respeitando uma profunda relação de solidariedade, integra a farsa, representada pela princesa e suas amigas, e encerra com "a rainha sua mãe" e ela própria, a rirem-se muito face à ideia de vir a ser rainha de Portugal, como foi sugerido pelos portugueses.

13

Cfr. Fernão Mendes Pinto, Peregrinação, p. 939.

23

2.3. A literariedade como estratégia de verdade no discurso literário. A diegese, neste grande capítulo que estamos a ler, aparece-nos, pois, muito limpidamente desenhada com o Eu narrador a exercer a função condutora da acção (mesmo quando se dilui no Nós na cena chave do banquete como atrás realçámos). Os agentes (antropomórficos ou não), os eventos hierarquizados pelo tempo e o espaço – elemento estrutural do mundo narrado – isto é, o narrador, os companheiros do narrador, as várias outras personagens que são actualizadas no discurso literário, a carta presentificada pelo camareiro do rei, a rota incerta até ao reino do Bungo, o episódio da caça à baleia, o banquete, a audiência, Fuchéu, Osquy, Fingau, a ilha de Xeque, o gineceu do palácio, relacionam-se entre si autorizando uma sequência narrativa das acções por encadeamento, que, no plano da diegese elege a acção do banquete como função cardeal14 e remete todas as outras acções para funções subsidiárias, como catálises convocadas para "prefigurar, preparar e justificar, na lógica interna da história e relativamente ao horizonte expectacional do leitor, [essa função cardeal]”15. Continuando a desvendar os sentidos ocultos nesta narrativa, percebemos que a rota, o 1º capitão, o 2° capitão e o seu filho, o camareiro do rei, a carta do rei, a caça à baleia, as manifestações de regozijo do rei e, ainda quando o mesmo rei "ceou recolhido com sua mulher e seus filhos”16, funcionam como função dilatória,

não



adiando

o

climax,

como,

exponenciando

a

tensão,

surpreendendo-nos inteiramente, pois somos completamente desviados do desenlace esperado sugerido pelo narrador – a audiência – para um desenlace totalmente inesperado – o banquete – que acaba por ocorrer, sob o comando do Outro, escapando completamente ao controle do Eu narrador. 14

Cfr. Barthes, apud, Aguiar e Silva, Teoria e Metodologia Literárias, Lisboa, Uaberta, 1990, p. 272.

15

Cfr, Aguiar e Silva, Teoria e Metodologia Literárias, Lisboa, Uaberta, 1990, p. 273.

16

Fernão Mendes Pinto, Peregrinação, p. 938.

24

Este capítulo, na sua coerência interna, erige-se como uma peça paradigmática de lição de Barthes, contendo, além das funções principais – o núcleo ou função cardeal e as catálises – já referidas, informações e indícios. Repare-se, por exemplo, como somos informados que a pesca ao grande peixe é de facto uma caça à baleia, informação introduzida no discurso para resolver, linear e topicamente, a falha de conhecimento instalada um pouco antes – "matar um grande peixe a que não sabia o nome”17 – mas não só, informação doutro tipo nos é dada – "que este prejudicial vício da adulação é tão natural das cortes e das casas dos príncipes, que até entre o barbarismo da gentilidade lhe não faltou lugar” – e esta, com artifício subliminar, para o narratário activar quando e se achar necessário ... (Não é nosso propósito, neste pequeno trabalho, abordar a informação subliminar em Peregrinação de Fernão Mendes Pinto, mas, já que falamos nisso, repare-se como, a propósito desta informação sobre o "prejudicial vício da adulação", se instala o desconforto entre o leitor Nós, por saber que os «nossos» são inferiorizados – ridicularizados – não por um rei impoluto e moralmente irrepreensível, mas por alguém que tem as mesmas «nossas» fraquezas, o que rebaixa o Nós ainda mais). Também indícios são activados. "[O]s braços de pau [para substituir as mãos, que pelo uso que lhe davam os portugueses, por certo] haviam sempre de andar fedendo ao peixe ou à carne”, são um indício de que a cena do banquete seguida da farsa, estava cuidadosamente preparada não faltando uma representação cénica, como é óbvio previamente ensaiada, em que se incluíam aqueles adereços (os braços de pau) fortemente simbólicos. As várias sequências que se inter-relacionam por encadeamento, introduzidas por tempos verbais, ou no particípio passado – "Chegada a monção

17

Cfr Idem, p. 936.

25

[...]" – ou no gerúndio - ''E continuando por [...]" – e ou locuções conjuncionais temporais ou advérbios - "El-rei, logo que [...]", ''Então uma filha [...]" – vão-se sucedendo a um ritmo relativamente rápido até ao episódio do banquete. Neste momento, a realidade deixa de ser tomada em superfície e detém-se no pormenor, de certo modo exercitando, neste capítulo, as estratégias do Narrador para tornar o seu olhar, e com o dele o nosso, mais aprofundado. Deste modo, origina-se uma sequência longuíssima, que se inicia com "Estando nós […]” na página 939, e termina na página 942, com "[...] se riram muito", que se compraz demoradamente com a farsa representada pela princesinha, que é a sequela do episódio do banquete, confluindo esta estratégia, activada na descrição, com o próprio papel de mestre de cerimónias (como atrás referimos) reservado ao narrador. A sequência seguinte, a última, readquire o ritmo intenso da acção pelo uso criterioso, de advérbios com sentido antitéctico – "logo"/"miudamente" –, de enumeração exaustiva dos assuntos tratados (o que sugere que um número grande de assuntos foi tratado rapidamente promovendo a intensificação do ritmo) e, de construção assindética, – "da vinda dos padres, da tenção do vice-rei, da carta, da nau, das mercadorias [...]" –, precipitando rapidamente a conclusão do capítulo, procurando um eficiente fecho sintáctico já que semanticamente estava esgotado com o fim da sequência da farsa.

26

EU SEI QUE ELE SABE QUE EU SEI QUE ELE SABE 3.1. O Topos alteridade como estratégia literária do humanismo Quinhentista. A visão dos vencidos, de Gomes Banes de Zurara em Crónica da Tomada de Ceuta, no capítulo LXXXVIII, "Como os mouros no outro dia olhavam os muros de Cepta, errezzões que deziam em seu louvor”18 inicia uma longa tradição da alteridade como tópico, que vai fazer fortuna na literatura do séc. XVI. Mas é principalmente em Crónica dos Feitos da Guine que o Outro começará a ser dissecado, como um corpo no teatro anatómico. Na aventura do conhecimento a que o homem de Quinhentos irresistivelmente se entrega, a supremacia do Real, impondo a sua tirania do verosímil, transporta para a literatura uma atitude de denúncia do conhecimento Fabuloso do Outro, adoptando a apreensão da alteridade através de modelos descritivos que se vão complexificando à medida que esse Outro vai sendo desvendado. O vestuário/nudez, os gestos, as falas, os rituais, os silêncios, os olhares, as encenações são estratégias, mil e uma vezes exercitadas, duma literatura posta ao serviço da temática do Encontro e Revelação dum cenário novo do Mundo. Em Peregrinação de Fernão Mendes Pinto, o intratexto torna-se então um teatro anatómico em toda a sua plenitude onde o «corpo», o Outro, é completamente

dissecado

ultrapassando

as

constrições

dum

encontro

civilizacional sob a óptica de "uma relação vindoura de dominação”19, para se desvendar dentro do esquema tricotómico referido por Buescu, já atrás por nós citado. Esse esquema, recordamos, estabelece uma tipologia diferenciada, revelando um Outro, complexo, com um estatuto em relação ao Eu de 18

Gomes Eanes de Zurara, Crónica da Tomada de Ceuta, cap. LXXXVIII, apud, Buescu, Literatura Portuguesa Medieval, Lisboa, Uaberta, 1990, p. 161. 19

Maria Leonor Buescu, “A Peregrinação de Fernão Mendes Pinto ou as Alternativas do Olhar”, in Ensaios de Literatura Portuguesa, Lisboa, Ed. Presença, 1985, p. 41.

27

inferioridade, de igualdade mas também de superioridade.

28

3.2. O Eu despojado. Como conhecer o Eu através do Outro. Peregrinação, na qualidade de título da obra literária de Fernão Mendes Pinto, abre à sua volta um complexo campo semântico que nos remete directamente para a literatura de viagens, mas, e fundamentalmente, para a deambulação dum Eu, que vive "trabalhos e perigos de vida"20 por [seus] grandes pecados"21. Este Eu confessional, que desde as primeiras páginas se coloca nas mãos de Deus – "[...] todos estes perigos e trabalhos me quis Deus tirar sempre a salvo e pôr-me em segurança"22 – numa adesão à herança medieval de lição agostiniana, apresenta-se-nos despojado para reduzir o impacto invasor, sempre presente em qualquer acto de Encontro, Contacto e Comunicação. Deste modo, o Eu despojado conquista a adesão do narratário para a verdade do quase mundo que se revela no texto, em que o protagonista é o português padrão, órfão "da autoridade moral da razão cristã"23 que afinal vê irrealizado o fim que justificava os meios (o rei do Bungo, o amigo dos portugueses, não se converteu ao «deus verdadeiro»), restando-lhe a catarse jocosa, que proporciona o episódio do banquete, oferecido pelo rei do Bungo aos portugueses, erigido como espectáculo ameno para deleite da rainha, sua filha e amigas. Este episódio, que o narrador, como um mestre-de-cerimónias, nos presentificou como atrás vimos, revela-nos um Eu através do Outro, por força de se reconhecer, nele, uma identidade tão humanamente marcada (pela igualdade, pela inferioridade e pela superioridade) que nos autoriza a aceitar como legítimo este desnudar do Nós. A alteridade como estratégia literária do humanismo Quinhentista é exercitada em Peregrinação de Fernão Mendes Pinto de tal modo que o Eu se

20

Cfr. Fernão Mendes Pinto, op. cit., p. 2.

21

Cfr. Idem, p. 952.

22

Cfr. Idem, p. 2.

23

Cfr. Luís Sousa Rebelo, A Utopia Evanescente na Peregrinação de Fernão Mendes Pinto”, in Yvette Centeno, Utopia – Mitos e Formas, Fundação Calouste Gulbenkian – Acarte, Lisboa, 1993, p. 138.

29

revela através do Outro, que afinal tão bem conhece o Eu, e também já perdeu a inocência e sabe disso, tornando o Encontro um encontro de iguais, mas diferentes, isto é: Eu sei que Ele sabe que Eu sei que Ele sabe.

30

BIBLIOGRAFIA GERAL

BUESCU, Maria Leonor Carvalhão, "A Peregrinação de Femão Mendes Pinto ou as alternativas do olhar", (Texto apresentado como lição nas Provas de Agregação na U.N.L., 1984), in Ensaios de Literatura Portuguesa, Lisboa, Ed. Presença, 1985. BUESCU, Maria Leonor Carvalhão, Literatura Portuguesa Medieval, Lisboa, UAberta, 1990. BUESCU, Maria Leonor Carvalhão, r Literatura Portuguesa Clássica, Lisboa, UAberta, 1992. CARVALHO, João Soares, A Metodologia nas Humanidades, Subsídios para o Trabalho Científico, Mem Martins, Editorial Inquérito, 1994. CATZ, Rebecca, Cartas de Fernão Mendes Pinto e Outros Documentos, Lisboa, Ed. Presença, 1983. MACHADO, José Pedro, Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa, Lisboa, Editorial Confluência, (1952), 1967. PINTO, Fernão Mendes, Peregrinação, Selecção, prefácio e notas de Rodrigues Lapa, Lisboa, Textos Literários, 1954. PINTO, Fernão Mendes, Peregrinação, Versão de Maria Alberta Menéres, Lisboa, Ed. Afrodite, (1971), 1980. PINTO-CORREIA, João David, A Peregrinação de Fernão Mendes Pinto, Apresentação crítica, selecção, resumos, glossário, e sugestões para análise literária, Lisboa, Ed. Comunicação, 1983. PINTO-CORREIA, João David, “Para Uma Nova Leitura De Peregrinação De Femão Mendes Pinto (o narrador autobiográfico: situação, estatuto e competência)", Lisboa, Sociedade de Geografia de Lisboa, 1983. PINTO-CORREIA, João David, "O'Descobrimento da China: Estratégias discursivas da descrição na obra de Fernão Mendes Pinto" ,in Arquivos do Centro Cultural Calouste Gulbenkian, Separata do vol. XXXVII, Lisboa-Paris, Fundação Calouste Gulbenkian, 1998. REBELO Luís de Sousa, "A Utopia Evanescente na Peregrinação de Fernão 31

Mendes Pinto”, in Yvette Centeno (cord.), Utopia-Mitos e Formas, (realizado de 17 a 20 de Janeiro de 1990),·Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian - ACARTE, 1993. REIS, Carlos, O Conhecimento da Literatura – Introdução aos Estudos Literários, Coimbra, Almedina, 1995. SARAIVA, António José, Para a História da Cultura em Portugal, vol. 2ª, Lisboa, Publicações Europa-América, (1961), 1967. SILVA, Vitor Manuel Aguiar e, Teoria e Metodologia Literária, Lisboa, UAberta, 1990. Enciclopédia Luso-Brasileira de Cultura da Verbo

32

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.