A alternativa ao capitalismo em Marx

June 7, 2017 | Autor: João Peschanski | Categoria: Marxism, Socialismo, Marxismo, Theories of Socialism, Alternatives to Capitalism
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A alternativa ao capitalismo em Marx1!

! João Alexandre Peschanski ! ! *

! Há um paradoxo fundamental na tradição marxista. Por um lado, debruça-se de maneira analiticamente minuciosa sobre o desenvolvimento, a dinâmica e as contradições dos capitalismo. Marx mesmo apresenta uma teoria da impossibilidade histórica a longo prazo do capitalismo. Para ele, o capitalismo tende a se autodestruir, na medida em que enfraquece seus mecanismos de reprodução e alimenta a capacidade das forças sociais que o antagonizam. Na teoria marxiana, portanto, a trajetória capitalista está estruturalmente determinada e se coloca para o futuro um modo de produção alternativo. Mas, por outro lado, Marx e a tradição que funda não se preocuparam geralmente em teorizar a alternativa a ser construída, as condições de sua viabilidade. Em “Glosas marginais ao ‘Tratado de Economia Política’ de Adolph Wagner”, de 1881, Marx diz explicitamente que nunca se dispôs a teorizar um “sistema socialista”: “Segundo o senhor Wagner, a teoria do valor de Marx é ‘a pedra angular de seu sistema socialista” (p. 45). Como eu nunca construí nenhum ‘sistema socialista’, trata-se, evidentemente, de uma fantasia dos Wagner, Schäffle e tutti quanti”2. ! ! As “Glosas sobre Wagner” são reveladoras, na medida em que, por mais que não tenha pretendido publicá-las, Marx faz nesse texto, o último que escreveu sobre economia antes de morrer3, um recorrido dos principais pontos de sua teoria. Ele restabelece a importância da teoria do valor em sua análise do capitalismo e rejeita a ideia de que a teoria do valor tenha um caráter universal -- para ele, é um mecanismo

1

Rascunho. Versão revisada e editada publicada em Margem Esquerda, v. 25.

*

Doutorando em Sociologia pela University of Wisconsin-Madison. Professor de Ciência Política da Faculdade Cásper Líbero. 2

Karl Marx, “Glosas marginais ao ‘Tratado de Economia Política’ de Adolph Wagner”, trad. Evaristo Colmán, Serviço Social em Revista 13:2, Londrina, jan./jun. 2011, p. 170. 3

Cf. Terrell Carver, Marx: Later Political Writings (Cambridge, Cambridge University Press, 1996). Vale notar que, no prefácio da edição francesa de 1969 do primeiro volume de O capital, publicado pela Garnier-Flammarion, Althusser escreve que as “Glosas sobre Wagner” e Crítica do Programa de Gotha são as únicas obras de Marx em que, mais maduro, rompe de fato com qualquer influência de Hegel. A marca disso, na perspectiva de Althusser, é o abandono do voluntarismo, em especial na célebre frase de Marx no texto de 1881: “meu método analítico [...] não parte do homem, senão de um período social concreto”, em Karl Marx, “Glosas marginais...”, cit., p. 176.

específico do capitalismo4. A noção de socialismo das “Glosas sobre Wagner” é negativa, ou seja, define-se pelo não-capitalismo, onde as relações de trabalho não são determinadas pelo valor. Isso denota, por um lado, que o socialismo se origina de uma superação do capitalismo, isto é, sua negação5 e, por outro lado, que o modo de produção que surge dessa negação tem uma qualidade diferente, sua própria dinâmica, seus próprios mecanismos de reprodução. O entendimento dessa alternativa, qualitativamente diferente do capitalismo, surge portanto como uma tarefa analítica importante a ser cumprida, mas permanece ausente do esforço teórico central de Marx.! ! A falta de teorização positiva do socialismo da parte de Marx pode ter sido uma forma de distanciar-se dos socialistas utópicos. Segundo ele, as descrições da alternativa por vir, elaboradas por socialistas como Henri de Saint-Simon, Charles Fourier e Robert Owen, são tão fantásticas quanto inócuas, em especial porque marginalizam analiticamente o antagonismo de classe e a ação revolucionária6. Contra os socialistas 4

“‘Esta teoria só leva em consideração, de modo demasiado unilateral este elemento determinante do valor’ //1. Primeira redundância: a teoria é falsa porque Wagner possui uma ‘teoria geral do valor’ com que esta não coincide e porque, portanto, seu ‘valor’ encontra-se determinado pelo ‘valor de uso’, como atesta, por exemplo, o salário do professor; [...] //, ‘senão que, além disso, como Schäffle em sua Quintessência e principalmente em seu Corpo social, demonstrou já de um modo magnífico e certamente definitivo (!) não corresponde tampouco às condições que necessariamente teriam que dar-se no estado social hipotético de Marx’//, ou seja, no estado social que o senhor Schäffle teve a amabilidade de estruturar por mim, que se converte no ‘estado social de Marx’ (não naquele estado em que a Marx atribui a hipótese de Schäffle). //‘Isto pode comprovar-se de modo claro no exemplo do trigo e de outros artigos semelhantes, cujo valor de troca, dada a influência das colheitas variáveis com uma demanda quase igual, num sistema de ‘taxas sociais’, teria também que regular-se necessariamente de outro modo que pelo simples custo’. //Cada palavra uma asneira. Em primeiro lugar, eu não falei em parte alguma em ‘taxas sociais’, para investigar o valor me ative concretamente às condições burguesas, sem aplicar esta teoria do valor a um ‘estado social’ que sequer me incomodei em construir, uma vez que o senhor Schäffle o fez por mim”, ibidem, p. 172-3. Esta versão é um pouco modificada em relação à edição da Serviço Social em Revista, pois incorpora os padrões de editoração da publicação alemã, disponível em: http:// www.marxists.org/archive/marx/works/1881/01/wagner.htm. As referências ao texto de Wagner estão entre aspas; os comentários de Marx são precedidos e encerrados com a marca //. 5

Vale notar que, apesar de o socialismo ser definido como a negação do capitalismo, Marx, por mais que tenha oposto capitalismo e socialismo em vários textos, assinala aspectos positivos do capitalismo que devem permanecer no socialismo e que fazem, segundo ele, com que o socialismo deva ser precedido pela expansão capitalista: o desenvolvimento das forças produtivas, a emancipação individual, a capacidade de mobilizar eficientemente recursos para a produção em larga escala, a criação de incentivos para a inovação, a hostilidade em relação a tabus, superstições e tradições. Sobre os aspectos positivos do capitalismo para Marx, cf. Duncan Foley, Understanding Capital (Cambridge, Harvard University Press, 1986), p. 160-2. O desenvolvimento do capitalismo leva à formação e expansão do proletariado, o sujeito que historicamente se coloca como força para a superação do capitalismo e criação de uma sociedade que leve universalmente ao fim da exploração e opressão. Em vários textos, Marx aliás diz que os comunistas agem para a construção do sujeito revolucionário: “Chamamos comunismo o movimento real de abolição da situação atual das coisas”. Isso faz sentido na medida em que, para Marx, o proletariado, após a superação do capitalismo, não se torna uma nova classe dominante; a transição do capitalismo para o comunismo é o fim das classes. 6

Karl Marx e Friedrich Engels, “O socialismo e o comunismo crítico-utópicos”, em Manifesto Comunista (trad. Álvaro Pina, São Paulo, Boitempo, 1998), p. 65-8.

utópicos, Marx e Engels enfatizam a teoria do desenvolvimento e da configuração da luta de classes, enquanto os socialistas utópicos “continuam a sonhar com a realização experimental das suas utopias sociais: instituição de falanstérios isolados, criação de colônias no interior, fundação de uma pequena Icária --- edição em formato reduzido da nova Jerusalém --, e para dar realidade a todos esses castelos no ar vêem-se obrigados a apelar para os bons sentimentos e os cofres dos filantropos burgueses”7. Para Marx, os modelos sociais elaborados pelos socialistas utópicos não consideram as condições de superação do capitalismo na formulação de uma alternativa, isto é, o impacto da negação do modo de produção vigente na construção do qualitativamente novo8. O principal foco da teoria marxiana sobre a alternativa ao capitalismo é a construção do sujeito e da etapa da negação do capitalismo. É o que transparece na definição do socialismo científico -- com origem na obra de Marx --, que Engels escreve: ! Revolução proletária, solução das contradições: o proletariado toma o poder político e, por meio dele, converte em propriedade pública os meios sociais de produção, que escapam das mãos da burguesia. Com esse ato redime os meios de produção da condição de capital, que tinham até então, e dá a seu caráter social plena liberdade para impor-se. [...] À medida que desaparece a anarquia da produção social, vai diluindo-se também a autoridade política do Estado. Os homens, donos por fim de sua própria existência social, tornam-se senhores da natureza, senhores de si mesmos, homens livres. A realização desse ato, que redimirá o mundo, é a missão histórica do proletariado moderno. E o socialismo científico, expressão teórica do movimento proletário, destina-se a pesquisar as condições históricas e, com isso, a natureza mesma 7 8

Ibidem, p. 67-8.

O conteúdo da crítica real aos socialistas utópicos se perde na oposição -- eloquentemente útil, mas analiticamente desastrada -- entre socialismo utópico e científico, exposta por Engels no panfleto de 1880 Do socialismo utópico ao socialismo cientifico (trad. José Braz, disponível em: www.marxists.org/ portugues/marx/1880/socialismo/index.htm). Diz o texto de Engels: “Pretendia-se tirar da cabeça a solução dos problemas sociais, latentes ainda nas condições econômicas pouco desenvolvidas da época. A sociedade não encerrava senão males, que a razão pensante era chamada a remediar. Tratava-se, por isso, de descobrir um sistema novo e mais perfeito de ordem social, para implantá-lo na sociedade vindo de fora, por meio da propaganda e, sendo possível, com o exemplo, mediante experiências que servissem de modelo. Esses novos sistemas sociais nasciam condenados a mover-se no reino da utopia; quanto mais detalhados e minuciosos fossem, mais tinham que degenerar em puras fantasias”. A crítica marxiana aos socialistas utópicos não é pelo detalhe e pela minúcia dos modelos que criam, mas pelo desprendimento teórico em relação às condições de produção e reprodução do capitalismo, das quais Marx identifica a forma de superar o capitalismo. Negar a teorização de uma alternativa socialista, fundamentada em uma compreensão analítica do modo de produção capitalista e das possibilidades de superá-lo, é o mesmo que definir o marxismo como uma detalhada e minuciosa análise da impossibilidade do capitalismo e, ao mesmo tempo, como uma teoria explicitamente voluntarista do socialismo.

desse ato, infundindo assim à classe chamada a fazer essa revolução, à classe hoje oprimida, a consciência das condições e da natureza de sua própria ação.9! ! O socialismo científico se coloca como “expressão teórica do movimento proletário” e, portanto, analisa os mecanismos de produção e reprodução do capitalismo para superá-los. A noção positiva de socialismo na perspectiva marxiana está vinculada à ideia de que é preciso corrigir a irracionalidade e a arbitrariedade do mercado, que resultam do processo de exploração, da competição e do trabalho alienado10. Aliás, a questão do trabalho alienado está na base da primeira exploração mais aprofundada de Marx sobre a questão da alternativa ao capitalismo. Nos Manuscritos econômicofilosóficos, de 1844, ele se opõe à ideia de igualdade dos salários como mecanismo central da alternativa ao capitalismo, defendida por Proudhon. Para Marx, o que os trabalhadores recebem decorre diretamente de o capitalista ter a propriedade dos produtos do trabalho. Diz:! salário e propriedade privada são idênticos, pois o salário (onde o produto, o objeto do trabalho, paga o próprio trabalho) é somente uma consequência necessária do estranhamento do trabalho, assim como no salário também o trabalho aparece não como fim em si, mas como o servidor do salário.11! A alternativa marxiana ao capitalismo considera a relação direta do trabalho com seus produtos, isto é, de quem detém a força de trabalho com a produção. No capitalismo, o trabalho é alienado na medida em que o trabalho, como atividade humana, se torna

9

Idem, “O materialismo histórico”, em Do socialismo utópico ao socialismo cientifico, cit.

10

Essa ideia está claramente exposta em Karl Marx, “Comments on James Mill, Éléments d’économie politique”, da primeira metade de 1844, disponível em: www.marxists.org/archive/marx/works/1844/ james-mill/index.htm (em inglês). Peter Hudis, Marx’s Concept of the Alternative to Capitalism (Leiden, Brill, 2012) sugere que se trata da primeira obra em que Marx aborda a questão da alternativa ao capitalismo. 11

Karl Marx, Manuscritos econômico-filosóficos (trad. Jesus Ranieri, São Paulo, Boitempo, 2004), p. 88.

coisificado12. Ou seja, na perspectiva de uma alternativa ao capitalismo a abolição da propriedade privada não basta -- por mais que seja imprescindível, diz Marx em vários textos posteriores --, pois: (1) o foco da luta socialista não é contra a propriedade privada em si, mas contra a forma burguesa de apropriação privada dos meios de produção; e, (2) se podem realizar outras formas de impor a alienação do trabalho, a capacidade de uma classe dominante, mesmo despojada do controle privado dos meios de produção, de explorar os trabalhadores, o que também tem de ser evitado. A superação do capitalismo supõe, de maneira geral e expansiva, a abolição da auto-alienação humana e, de maneira positiva, a apropriação humana de sua humanidade. Trata-se, portanto, do “retorno pleno, tornado consciente e interior a toda riqueza do desenvolvimento até aqui realizado, retorno do homem para si enquanto homem social, isto é, humano”13.! ! O Manifesto Comunista retoma os argumentos principais dos Manuscritos sobre a alienação do trabalho no capitalismo, mas desenvolve a análise do sujeito e das políticas pós-revolução de superação do capitalismo. No fim do capítulo 2, “Proletários e comunistas”, Marx e Engels expõem, em linhas gerais, “a primeira fase da revolução operária”, em que o proletariado se eleva a classe dominante e intervém para abolir o capitalismo. São dez medidas, a serem aplicadas nos países mais avançados14, que respondem à expectativa de Marx e Engels de que, num contexto de agudização das

12

Na célebre passagem dos Manuscritos: “[...] O trabalho não produz somente mercadorias; ele produz a si mesmo e ao trabalhador como uma mercadoria, e isto na medida em que produz, de fato, mercadorias em geral. Este fato nada mais exprime, senão: o objeto (Gegenstand) que o trabalho produz, o seu produto, se lhe defronta como um ser estranho, como um poder independente do produtor. O produto do trabalho é o trabalho que se fixou num objeto, fez-se coisal (sachlich), é a objetivação (Vergegenständlichung) do trabalho. A efetivação (Verwirklichung) do trabalho é sua objetivação. [...] A objetivação tanto aparece como perda do objeto que o trabalhador é despojado dos objetos mais necessários não somente à vida, mas também dos objetos do trabalho. Sim, o trabalho mesmo se torna um objeto, do qual o trabalhador só pode se apossar com os maiores esforços e com as mais extraordinárias interrupções. A apropriação do objeto tanto aparece como estranhamento (Entfremdung) que, quanto mais objetos o trabalhador produz, tanto menos pode possuir e tanto mais fica sob o domínio do seu produto, do capital”, ibidem, p. 80-1. 13 14

Ibidem, p. 105.

“1. Expropriação da propriedade fundiária e emprego da renda da terra para despesas do Estado./ 2. Imposto fortemente progressivo./ 3. Abolição do direito de herança./ 4. Confisco da propriedade de todos os emigrados e rebeldes./ 5. Centralização do crédito nas mãos do Estado por meio de um banco nacional com capital do Estado e com o monopólio exclusivo./ 6. Centralização de todos os meios de comunicação e transporte nas mãos do Estado./ 7. Multiplicação das fábricas nacionais e dos instrumentos de produção, arroteamento das terras incultas e melhoramento das terras cultivadas, segundo um plano geral./ 8. Unificação do trabalho obrigatório para todos, organização de exércitos industriais, particularmente para a agricultura./ 9. Unificação dos trabalhos agrícola e industrial; abolição gradual da distinção entre a cidade e o campo por meio de uma distribuição mais igualitária da população pelo país./ 10. Educação pública e gratuita de todas as crianças; abolição do trabalho das crianças nas fábricas, tal como é praticado hoje. Combinação da educação com a produção material etc.”, Karl Marx e Friedrich Engels, Manifesto Comunista, cit., p. 58.

lutas de classe na Europa e iminência de processos revolucionários15, o proletariado se torne a classe dominante e destrua “violentamente” o direito de propriedade e as relações de produção burguesas. Por mais que sejam “insuficientes e insustentáveis”, essas medidas são “indispensáveis” para que desapareça “a antiga sociedade burguesa, com suas classes e antagonismos de classes, e [surja] uma associação na qual o livre desenvolvimento de cada um é a condição para o livre desenvolvimento de todos”16. ! ! As medidas revelam os mecanismos que, para Marx e Engels, produzem e reproduzem o capitalismo e como superá-los. Enfatizar a reprodutibilidade do capitalismo subentende que existem mecanismos sociais que o mantêm relativamente estável ao longo do tempo, por mais que se sustente em arbitrariedades e ineficiências. Da mesma maneira, uma alternativa ao capitalismo tem de desenvolver mecanismos que permitam que se reproduza e não entre em contradição com os princípios morais que levaram a sua construção17. Do ponto de vista político, a construção de modelos teóricos de alternativas mais eficientes do que o capitalismo serve de base de justificativa para o período de desorganização da economia e das instituições18, com consequências drásticas na população, que deve provavelmente se seguir à tomada do poder político pelo proletariado19. A construção de indicações teóricas e práticas sobre a alternativa ao capitalismo, por mais que sejam incertas, já que não têm como considerar todas as contingências futuras, se torna um instrumento importante para a organizar a derrocada do sistema vigente, na medida em que, ao desenvolver modelos sociais al-

15

Sobre o contexto em que Marx e Engels escrevem o Manifesto, cf. Michael Levin, “‘The Hungry Forties’: The Socio-economic Context of the Communist Manifesto”, em Mark Cowling (org.), The Communist Manifesto: New Interpretations (Edimburgo, Edinburgh University Press, 1998). 16

Karl Marx e Friedrich Engels, Manifesto Comunista, cit., p. 58-9.

17

Sobre mecanismos teóricos de reprodução sistêmica, cf. David Calnitsky e João Alexandre Peschanski, “Modelos de alternativas ao capitalismo”, Margem Esquerda 17, São Paulo, Boitempo, 2011. Sobre as perversões de modelos realmente existentes de socialismo, cf. Maurício Tragtenberg, Reflexões sobre o socialismo (São Paulo, Editora Unesp, 2008). 18

Para uma descrição e análise de quatro propostas recentes de reorganizações utópicas radicais da sociedade -- o socialismo de mercado de John Roemer, a sociedade de tempo liberado de André Gorz, a renda cidadã de Philippe Van Parijs e a sociedade lotérica, de Barbara Goodwin --, cf. Luis Felipe Miguel, “Utopias do pós-socialismo: esboços e projetos de reorganização radical da sociedade”, RBCS 21, jun. 2006. 19

Marx e Engels tinham claro que a alternativa ao capitalismo viria por meio de uma transformação revolucionária, em que se rompessem as bases de reprodução do modo de produção. Rejeitavam teorias que colocavam a possibilidade de construir alternativas ao capitalismo dentro do capitalismo, especialmente Proudhon. Mais recentemente, a possibilidade de transformações simbióticas e intersticiais voltou a ser discutida na tradição marxista; cf. Erik Olin Wright, “Alternativas dentro e além do capitalismo: rumo a um socialismo social”, trad. João Alexandre Peschanski, Teoria & Pesquisa 21(1), p. 1-15, jan./jun. 2012.

ternativos, se expande a compreensão do que é possível, potencializando o surgimento de estratégias emancipadoras progressivamente mais ambiciosas20.! ! Algumas das medidas (1, 5, 6 e 7) enfatizam o papel do Estado na transição do capitalismo ao comunismo21. Aqui Marx e Engels estão lidando com a estrutura de propriedade e a determinação do investimento. São dois elementos centrais na problemática da tradição marxista; em especial, a determinação do investimento diz respeito à questão do futuro -- a tradição socialista, na linha marxiana ou outra, considera geralmente que as circunstâncias básicas do futuro coletivo tenham de ser decididas coletivamente. A apropriação privada dos meios de produção surge, nesse sentido, como uma violação desse princípio democrático. No modelo capitalista, por mais que gere arbitrariedades e ineficiências, o controle privado dos meios de produção e a determinação dos investimentos pela classe capitalista operam como um mecanismo de coordenação das atividades econômicas, em que, pelo menos em teoria, os preços se tornam sinais, ou mecanismos, para o repasse de informações e incentivos para que as empresas coordenem suas atividades com base nas demandas por produtos e em que há estímulo para a inovação e crescimento, a partir de mecanismos relacionados ao processo competitivo. As medidas sobre o papel do Estado sugerem que, para Marx e Engels, o Estado, sob o controle do proletariado, tem a capacidade de desenvolver novos mecanismos, substituindo assim a dinâmica capitalista e certamente resolvendo as arbitrariedades e ineficiências que geram22. ! ! As medidas do Manifesto sobre impostos e herança são mecanismos de equalização progressiva de salários e riqueza, consistente com a construção de uma noção radical de igualitarismo. A equalização de salários e riqueza é uma transformação fun-

20

Idem, “Compass Points: Towards a Socialist Alternative”, New Left Review 41, Londres, set.-out. 2006.

21

Em Crítica do Programa de Gotha, Marx chamou esse período de transição de ditadura do proletariado. O termo, controverso recentemente, nada mais é do que um sinônimo de governo em que a classe dominante é o proletariado. Não há qualquer referência a um suposto estado de exceção ou terror civil. Para uma discussão aprofundada do uso de ditadura por Marx, cf. Kieran Allen, Marx and the Alternative to Capitalism (Londres, Pluto, 2011), cap. 10. 22

Para uma discussão sobre como a centralização da economia pode resolver as arbitrariedades e as ineficiências das operações econômicas tais quais ocorrem no mercado capitalista de empresas descentralizadas, cf. Paul Cockshott e Allin Cottrell, Towards a New Socialism (Nottingham, Spokesman, 1993).

damentada na criação da igualdade de oportunidade23 -- assim como é a universalização da educação --, etapa inicial de uma noção mais ampla de igualdade, enunciada no famoso princípio do comunismo avançado: “de cada um segundo suas capacidades, a cada um segundo suas necessidades”24. Do ponto de vista analítico, a rejeição do enriquecimento obriga a conceber outros mecanismos institucionais e culturais para estimular pessoas e empresas a trabalharem com intensidade, inovarem e investirem. Nesse aspecto, há uma tendência na tradição marxista a imaginar que o período de transição do capitalismo ao comunismo levará à construção de uma nova mentalidade e cultura social, em que o desenvolvimento de uma sociedade justa, com a colaboração de todos, é visto como um bem a ser consolidado e expandido. De fato, concepções institucionais influenciam disposições e atitudes, mas é improvável que se possa influenciá-las a tal ponto que se possa prever o que se tornarão e que se generalizarão a ponto de nenhum ou pelo menos poucos indivíduos nessa cultura da colaboração optarem por uma estratégia individualista, o que desestabilizaria o sistema25. ! ! A medida que estabelece a obrigatoriedade do trabalho para todos quebra com a distinção existente no capitalismo entre exploradores e explorados, donos dos meios de produção e trabalhadores; na superação do capitalismo, todos se tornam trabalhadores. Essa medida se justifica, em parte, pelo caráter emergencial da transição de um modo de produção a outro, como se viu um período de desorganização, em que a atividade produtiva está possivelmente paralisada. Na lista do Manifesto, aliás, muitas medidas também se justificam pelo caráter emergencial da situação vislumbrada por Marx e Engels, como a confiscação de terras. Além disso, a universalização do trabalho enfraquece o desbalanço de poder que há na exploração no capitalismo, onde, por 23 A noção

de igualdade de oportunidade é insuficiente para definir o igualitarismo democrático. Nessa noção, na medida em que todas as pessoas têm um ponto de partido equivalente que lhes permita, com base em seus talentos e esforços, competir por recursos sociais, a sociedade pode ser considerada justa; a desigualdade de resultado, em que há pobres e ricos, desde que todos tenham tido a mesma oportunidade no início, é consistente com essa noção. As desigualdades de acesso a recursos econômicos, independentemente de quando ocorrem e dos níveis de consumos medianos, geram todo tipo de mazelas sociais. O igualitarismo radical, na linha da tradição marxista, se define pelo princípio da igualdade de acesso, em que todas as pessoas de uma sociedade têm acesso permanente aos recursos suficientes para viver uma vida plena. Na teoria, os princípios de igualdade de acesso e de oportunidade não são mutuamente exclusivos. Para uma defesa profunda do igualitarismo radical na perspectiva marxista, cf. G. A. Cohen, Rescuing Justice and Equality (Cambridge, Harvard University Press, 2008). Vale notar que, apesar da importância na tradição marxista da crítica moral ao capitalismo, para Marx a construção de uma alternativa ao capitalismo não se trata de aproximar o sistema de relações morais de um ideal moral, mas de uma necessidade histórica. 24

Karl Marx, Crítica do Programa de Gotha (trad. Rubens Enderle, São Paulo, Boitempo, 2012), p. 32.

25 A proposta

de socialismo de mercado, de John Roemer, rejeita a tese da “construção de um novo homem” e fundamenta as instituições de alternativa ao capitalismo com base no pressuposto de que os indivíduos no socialismo são utilitaristas, pressuposto comum aos modelos de teoria dos jogos (“A Future for Socialism”, em Erik Olin Wright [ed.], Equal Shares [Londres, Verso, 1996]). Para uma rejeição na tradição marxista do pressuposto ontológico do utilitarismo, até mesmo nas relações capitalistas, cf. Sam Bowles e Herbert Gintis, A Cooperative Species: Human Reciprocity and its Evolution (Princeton, Princeton University Press, 2011).

mais que a relação entre o capitalista e o trabalhador seja interdependente26, os donos dos meios de produção têm maior capacidade de obter o que querem em comparação com os indivíduos que vendem sua força de trabalho aos capitalistas. Com essa medida, generaliza-se uma condição, independente da propriedade dos meios de produção: a condição de trabalhador em relação ao Estado, que se torna, portanto, de maneira analítica, uma instituição exploradora, ou seja, que recolhe os resultados da atividade produtiva alheia, nesse caso, de toda a sociedade. A principal preocupação analítica aqui, na medida em que se estabelece a condição universal de trabalhador, é estabelecer os detalhes das relações de trabalho: quem decide o que cada um faz, como se aproveitam as qualificações e competências, como se dá a retribuição pelo trabalho realizado, como se dividem as tarefas socialmente penosas e prazerosas27. ! ! O modo de remuneração do trabalho é um dos temas centrais das análises sobre a alternativa ao capitalismo a partir da Miséria da filosofia (1847), em que Marx critica a proposta de certificados de trabalho, defendida por Proudhon28, em que certificados com o equivalente de trabalho efetuado circulariam como dinheiro29. A partir da rejeição a essa proposta -- que, na leitura marxiana, simplesmente reproduz a produção capitalista, com a determinação do valor pelo tempo de trabalho socialmente necessário30 --, Marx expõe algumas características de sua visão de alternativa ao capitalismo. Ele argumenta que, para um banco poder emitir certificados de trabalho, este seria obrigado a comprar todas as mercadorias produzidas para então vendê-las em troca de certificados. Esse banco se torna então um comprador-vendedor universal31, estabelecendo os preços das mercadorias produzidas e tomando o lugar do mercado, determinando o tempo de trabalho médio necessário para a produção, a média dos meios de produção disponíveis, os tempos de trabalho no agregado e em cada ramo da produção, na medida em que o funcionamento desse banco depende de um panorama institucional e contratual estabelecido e previsível, de tal modo a garantir que as relações de troca ocorram de maneira organizada e confiável, satisfazendo as ne26

O trabalhador, sobre quem pesa a dupla liberdade enunciada por Marx (está livre da propriedade dos meios de produção e está livre para trabalhar para o capitalista ou morrer de fome), precisa do capitalista para ter um salário e atingir os meios de sua subsistência. Mas para garantir e aumentar seu lucro o capitalista também precisa do trabalhador ou, especificamente, precisa que o trabalhador aceite trabalhar e também que se entregue com intensidade máxima a sua atividade produtiva. 27

Para uma engenhosa reorganização da divisão social do trabalho -- com influência do pensamento anarquista --, cf. Michael Albert, Parecon: Life After Capitalism (Londres, Verso, 2003). 28

Marx também descreve e critica nos textos a partir de Miséria da filosofia as teorias dos socialistas John Bray e Louis Darimon, entre outros. 29 A análise

sobre a proposta dos certificados de trabalho permeia os Grundrisse (1858), em especial o capítulo sobre o dinheiro, e, em alguma medida, O capital (a partir de 1867). 30

Para uma análise crítica a partir da leitura marxiana da proposta de Proudhon, cf. Peter Hudis, Marx’s Concept of the Alternative to Capitalism, cit. 31

Duncan Foley, “On Marx’s Theory of Money”, Social Concept 1(1), 1983.

cessidades daqueles que dela participam. A própria existência desse compradorvendedor universal se fundamenta, na visão de Marx, em modificações das relações de produção -- o ponto inicial da revolução do capitalismo para Marx, em contraposição às teorias que vislumbram a revolução do capitalismo a partir da esfera da circulação --, em que a produção material é determinada de antemão (pela decisão consciente dos produtores, a partir de uma instituição democrática de planejamento da produção), não pelas tendências socialmente agregadas da determinação do valor.! ! Nos Grundrisse, Marx diz que, sem levar em conta o valor (o tempo de trabalho socialmente necessário), mas as necessidades e objetivos sociais, as instituições de coordenação da produção distribuem os elementos da produção, organizam as diferentes esferas de produção. Ou seja, a distribuição de produtos é aqui mediada diretamente pela sociedade -- no lugar de mercadorias, diz Marx, colocam-se as atividades na circulação. Isso é na sua própria dinâmica um processo de desalienação, na medida em que não ocorre a mediação pela forma objetificada do valor. A lógica da produção responde tão somente à satisfação das necessidades humanas, o que, segundo Marx, encerra com as perversões vinculadas à acumulação capitalista32; substitui-se aqui a determinação da produção e da vida social pelo tempo de trabalho pelo tempo livre, isto é, o que permite que os indivíduos de uma sociedade tenham a possibilidade de viver vidas plenas33.! ! A Crítica do Programa de Gotha, de 1875, é sem dúvida o texto em que Marx mais discute sua noção de alternativa ao capitalismo. Em contraposição a Ferdinand Lassalle, Marx faz uma defesa mais detalhada de como se daria uma sociedade em que os elementos da produção não são mediados pela forma mercadoria, em que desaparece a separação entre trabalho abstrato e concreto. Uma implicação do desaparecimento da valor, na perspectiva de Marx, é que, simultaneamente, deixa de existir o equivalente universal, a medida universal com a qual se podem estabelecer padrões de troca de todos os produtos. A formulação marxiana nesse ponto não é clara, na medida em que se pode entender que ele rejeita toda forma de mercado ou apenas a for-

32 33

Sobre isso, cf. David Harvey, Os limites do capital (trad. Magda Lopes, São Paulo, Boitempo, 2013).

Na leitura de Terry Eagleton: “Marx almeja libertar o ‘valor de uso’ dos seres humanos de seu aprisionamento ao ‘valor de troca’. [...] Ao desenvolver minha própria personalidade individual dando forma a um mundo, estou também realizando o que tenho de mais profundo em comum com os outros, de tal maneira que o ser individual e o ser genérico são em última análise o mesmo. Meu produto é minha existência para o outro, e pressupõe a existência do outro para mim. [...] O comunismo é simplesmente o tipo de estrutura política que nos permitiria reapropriar nosso ser confiscado, aqueles poderes alienados de nós pela sociedade de classes. Se os meios de produção fossem coletivamente possuídos e democraticamente controlados, então o mundo que criamos juntos nos pertenceria em comum, e a autoprodução de cada um poderia se tornar parte da auto-realização de todos”, em Terry Eagleton, “Antropologia”, em Marx e a liberdade (trad. Marcos B. de Oliveira, São Paulo, Editora Unesp, 1999), p. 25, 29-30 e 34.

ma capitalista de mercado34. O que é certo é que, na medida em que o equivalente universal deixa de existir, é impossível que os produtos sejam universalmente intercambiáveis. Em contraposição ao capitalismo, onde a troca de produtos sob a forma de mercadorias é generalizada, no máximo na alternativa que Marx vislumbra a troca dos elementos da produção se dá de maneira limitada, subordinada a uma entidade social.! ! Para Marx, no pós-capitalismo não pode haver salário e, na Crítica do Programa de Gotha, estabelece-se uma forma diferente de remuneração, pelo menos numa etapa inicial de socialismo. Nessa etapa inicial, os trabalhadores recebem da sociedade uma compensação pelo esforço individual que realizam, contabilizado com base no total de horas de trabalho de um indivíduo, não do tempo de trabalho socialmente necessário. Aqui, reproduz-se uma desigualdade nas remunerações, na medida em que o número de horas trabalhadas determina o que se recebe da sociedade. Mas na fase mais desenvolvida da alternativa ao capitalismo a remuneração do trabalhador, de acordo com Marx, não deve se basear na produtividade ou qualquer outro tipo de critério ou padrão externo, a não ser a contribuição de horas de trabalho. Na medida em que todo indivíduo de uma sociedade para Marx tem de ter acesso a uma vida digna, independentemente de sua capacidade produtiva, o estímulo à produção não é a subsistência, mas, de maneira mais abstrata, a vontade de produzir para o bem da sociedade, para o autodesenvolvimento. Os produtores, na alternativa de Marx, se associam livremente, onde a liberdade, substantiva, se expressa como condição para uma relação entre sujeitos sociais.! ! O fundamento do socialismo para Marx, na trajetória de sua obra, é uma inversão: no capitalismo, o objeto domina o sujeito; na alternativa, o sujeito se libertou e a produção se torna um processo de autodesenvolvimento humano. O surgimento da alternativa, isto é, a inversão (ou negação de negação), se dá na própria dinâmica do sistema em que o trabalhador está coisificado (na organização e no processo de produção), a partir da crescente capacidade revolucionária do proletariado. A alternativa pós-capitalista tem de romper, de acordo com Marx, com os jugos da exploração, que determinam o sistema de relações sociais, e se estabelecer como uma comunidade de produtores livres35 -- onde a produção é o exercício do desenvolvimento dos talentos e capacidades humanas organizado e a serviço consciente do bem social.

34

Há uma cisão na tradição marxista entres aqueles que inserem em seus modelos socialistas o mercado, como uma instituição eficiente de troca de produtos (os defensores do socialismo de mercado, como Roemer), e aqueles que consideram que o mercado inevitavelmente reproduz as relações capitalistas, como David McNally, Against the Market (Londres, Verso, 1993.) 35

Karl Marx, O capital (trad. Regis Barbosa e Flávio R. Kothe, São Paulo, Nova Cultural, 1996), p. 203.

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