A AMBÍGUA ASCENSÃO POLÍTICA DAS \"PESSOAS SIMPLES\"

May 27, 2017 | Autor: M. Campos Dos Santos | Categoria: Revolutions, Fascism, Racism
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A AMBÍGUA ASCENSÃO POLÍTICA DAS "PESSOAS SIMPLES". Essa semana escutei o diálogo entre duas senhoras, brancas e bem burguesas, sobre a vitória de Trump nos EUA. Eram pessoas bem informadas e "cosmopolitas", talvez professoras universitárias aposentadas, já haviam viajado bastante, uma delas ainda trazia um leve sotaque europeu de origem, talvez alemão. Tipo de pessoas que se sentem mais à vontade falando da política e da cultura da Europa que do Brasil. Logo de início ficou claro que elas preferiam não só Hillary, mas Obama mesmo, a Trump, cuja eleição elas viam como um escândalo. A observação que mais me chamou a atenção foi da senhora com sotaque, que em determinada altura disse "as pessoas simples, apesar de tudo, possuem um grande poder, que não percebemos". Segundo ela, haviam sido essas pessoas "simples", ou seja, não sofisticadas nem cosmopolitas, ou simplesmente provincianas, as responsáveis pela eleição de Trump. De fato, Trump teve votação significativamente maior nas cidades pequenas e áreas rurais, e entre aqueles que freqüentam a igreja com mais regularidade e prestaram o serviço militar. As votações por grau de escolaridade foram mais equilibradas, mas Clinton teve ampla vantagem entre os pós-graduados (consultem os dados em http://www.nytimes.com/ interactive/2016/11/08/us/politics/election-exit-polls.html, por exemplo). As senhoras falaram também da questão racial, mas parece que não viam grande relevância nesse aspecto. A observação interessante sobre isso veio mais uma vez da com sotaque, que disse não acreditar muito na proposta de Trump de expulsar todos os imigrantes ilegais (e talvez até

alguns dos legais), opinando que há empregos (ela citou a "criadagem" dos hotéis e a limpeza urbana, pelo que lembro) que "americano nenhum aceita hoje em dia", e os EUA precisam de imigrantes para preenchê-los. Referia-se, claro, a estadunidenses brancos. Pois eu acho que aí faltou sofisticação em sua análise. Talvez o que ela afirmou fosse verdade nos EUA e na Europa até a passagem dos anos 1980 para 1990, mas desde então a depressão econômica prolongada e o aumento da desigualdade nos centros do capitalismo mudaram os termos da equação. Existe hoje nessas regiões uma vasta camada de pessoas brancas empobrecidas, cuja "simplicidade" as impede de conseguir empregos nos novos ramos "sofisticados" da economia (tudo o relacionado à informática e mídias digitais, turismo, serviços pessoais especializados, etc), ao mesmo tempo que sua origem étnica as faz achar indigno disputar empregos "pesados e sujos" com os imigrantes. É um imenso barril de ressentimento. Mas essa camada veria com bons olhos um processo em que duas coisas acontecessem simultaneamente: 1) os valores de supremacia branca (e também masculina e cristã) fossem recuperados e tornados mais significativos que as distinções sociais de emprego e renda; 2) os imigrantes fossem expulsos, ou limitados de tal forma a trabalhar, de modo que empregos "pesados e sujos" voltassem a ficar disponíveis. Me parece que esse tipo de expectativa explica boa parte do fortalecimento do fascismo no "1o Mundo". Mas, e quanto ao Brasil? Sem dúvida a questão étnica aqui também existe, o racismo da polícia é tão evidente (e bem mais letal) quanto nos EUA, mas não vejo a existência, ao menos em larga escala, de uma ampla camada branca

empobrecida. Inclusive porque, aqui, os brancos propriamente ditos são minoria, como foram desde a história colonial, e, mal ou bem, conseguem manter seus privilégios e domínio econômico e social. O ressentimento branco aqui tem outra natureza, me parece: o temor de que a população de origem africana e indígena, numericamente majoritária, "ascenda" em termos de escolaridade e "sofisticação" e passe a disputar empregos e ambientes sociais que até agora eram quase exclusivos da branquitude. Claro que esse ressentimento dá munição para um movimento fascista, mas não com ampla base de massas como nos EUA ou na Europa. Duas coisas proponho que reflitamos a partir disso. Em primeiro lugar, voltarmos a nos concentrar nas especificidades dos movimentos e regimes fascistas da América Latina, evitando a analogia exagerada com o que acontece na Europa e EUA. Movimentos fascistas de base étnica/racial nunca conseguiram ser muito fortes por aqui. Mesmo o integralismo, o movimento mais forte que reivindicava seu parentesco com o fascismo italiano (principalmente) e o nazismo alemão (com ressalvas), sempre se posicionou abertamente contra o racismo, buscou aproximação inclusive com setores organizados da população negra (a Frente Negra Brasileira) e reivindicava uma simbologia indígena tosca. Se falava em raça, era para glorificar uma suposta "raça brasileira". Por outro lado, as dificuldades em construir uma base de massas mobilizada para o fascismo aqui levou a que os regimes de extrema-direita em praticamente toda a América Latina fossem implantados e mantidos diretamente pelos militares. A casta militar latino-americana sempre foi, principalmente no alto oficialato, dominada por euro-descendentes, e seu domínio político sempre serviu à

defesa dos privilégios da elite branca. Mas os militares e sua rígida hierarquia, e sua mistificação nacionalista, conseguem mobilizar, para a defesa da oligarquia, a base de soldados e suboficiais que, desde os tempos dos capitães do mato, de Henrique Dias e Filipe Camarão, é majoritariamente mestiça, indígena e negra. Quando insisto no caráter militar da base política da família Bolsonaro, é esse quadro mais amplo que tenho em mente. Mas, e aqui entra o segundo ponto para o qual sugiro que reflitamos mais profundamente, para além de um ressentimento branco, existe o ressentimento das "pessoas simples", que transcende e não tem relação necessária com aspectos étnicos. Ser "simples" não significa necessariamente ser simplório, e também não significa ser necessariamente conservador em todos os aspectos. Pelo contrário, foram os "simples" do mundo que deram apoio e sustentação às políticas avançadas do Estado de bem estar social, quando e na medida em que ele funcionou. E os "simples" e provincianos pobres foram força decisiva em momentos revolucionários importantes do passado (os camponeses nas revoluções russa e chinesa, por exemplo). Quando a perspectiva de transformação revolucionária desvanece, e/ou quando as políticas sociais de bem estar são inviabilizadas pela lógica implacável do neoliberalismo, é natural que os "simples" refugiem-se em seus círculos restritos de solidariedade imediata, a família e a comunidade religiosa. E, com isso, sua tendência ao conservadorismo moral e cultural se fortalece. Afinal, a catástrofe social e econômica parece avançar na mesma medida e ao mesmo tempo, que aquilo que é visto como as malditas novidades sofisticadas da época: liberação sexual, afirmação pública da homoafetividade, independência dos

jovens e mulheres, etc. Embora sejam processos independentes e sem relação de causa-efeito, para uma mente "simples" tudo pode ser amalgamado num mesmo avanço da degradação e corrupção do mundo. Movimentos para-fascistas baseados no ressentimento dos "simples", de bases muito mais religiosas que racistas ou mesmo nacionalistas, são uma possibilidade que cresce diante de nossos olhos, mas está longe de ser algo inexorável. Basta lembramos mais uma vez que, ao longo da história, libertar os "simples" de sua pobreza material e cultural sempre foi uma preocupação prioritária dos revolucionários, dos combatentes pela emancipação social e pelo avanço das idéias da humanidade. Se reencontrarmos as motivações e as maneiras de fazer isso, o "poder das pessoas simples" mais uma vez poderá ser fatal para os opressores. Maurício Campos Novembro de 2016

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