A Ambiguidade da Anistia no Brasil: Memória e Esquecimento na Transição Inacabada

September 27, 2017 | Autor: J. Moreira da Sil... | Categoria: Transitional Justice, Justiça De Transição, Justiça De Transição No Brasil
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Ambiguidade da Anistia no Brasil: Memória e Esquecimento na

Transição Inacabada



José Carlos Moreira da Silva Filho

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1. Introdução A anistia no Brasil, especialmente quando considerada em relação à ditadura civil-militar ocorrida de 1964 a 1985, é um tema cercado de ambiguidades, contradições e mal-entendidos. Ora vista como uma conquista fruto da movimentação popular, ora tida como uma imposição dos militares e dos setores sociais que apoiavam a ditadura, de um lado é o marco da redemocratização brasileira, de outro é o entrave que estimula a impunidade e a continuidade da prática de crimes por agentes estatais, ora promove a reparação e o reconhecimento, ora dá continuidade à estigmatização dos grupos resistentes ao regime autoritário. Aponta igualmente para políticas de esquecimento e para políticas de memória. Nos últimos anos o tema da anistia esteve firmemente presente na pauta política nacional, suscitando acirrados debates nas arenas jurídica, política e midiática. Boa parte das discussões, contudo, perderam-se em meio aos desvãos e à complexidade inerente ao tema, alimentando a confusão ainda presente para grande parte da população quando o assunto é anistia. A verdade é que o Brasil vem experimentando desde os últimos anos                                                                                                                 Este artigo é fruto de projeto de pesquisa desenvolvido pelo Grupo de Pesquisa Direito à Memória e à Verdade e Justiça de Transição, com sede no Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUCRS. O projeto de pesquisa, do qual resultou este artigo, obtém auxílio financeiro do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq e conta com bolsa de iniciação científica da Federação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio Grande do Sul FAPERGS e do CNPq. Este artigo é uma versão reformulada do artigo de mesmo nome publicado no Relatório Azul 2011 da Comissão de Cidadania e Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul. Doutor em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná - UFPR; Mestre em Teoria e Filosofia do Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC; Bacharel em Direito pela Universidade de Brasília - UnB; Professor da Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUCRS (Programa de Pósgraduação em Ciências Criminais – Mestrado e Doutorado - e Graduação em Direito); Bolsista Produtividade Nível 2 do CNPq; Conselheiro da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça; Membro-Fundador do Grupo de Estudos sobre Internacionalização do Direito e Justiça de Transição – IDEJUST. ∗

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da ditadura civil-militar diferentes processos de anistia e diferentes entendimentos sobre o seu significado. O propósito deste texto é o de auxiliar no necessário esclarecimento do tema, destacando os capítulos principais dessa longa e inacabada história da anistia e da transição política brasileira. 2. A Luta pela Anistia em 1979 Em primeiro lugar, é importante que se diga que a anistia sempre foi uma demanda presente ao longo do período ditatorial, mas foi especialmente na segunda metade da década de 70 que a bandeira pela anistia aos que eram perseguidos políticos pelo Estado brasileiro foi deflagrada de modo amplo por diferentes e representativos setores da sociedade brasileira. No ano de 1975 é desencadeada a campanha pela Anistia, com o lançamento do Manifesto da Mulher Brasileira pelo Movimento Feminino pela Anistia (MFPA). Este movimento começa forte em São Paulo, conduzido por D. Terezinha Zerbini, e, de São Paulo, espalha-se por todo o país. Era o ano internacional da mulher e foi principalmente pelo protagonismo das mulheres, esposas de maridos desaparecidos, presos ou foragidos, irmãs, amigas, militantes, que se deu início a uma das mais belas movimentações políticas da sociedade civil brasileira. No Rio Grande do Sul, por exemplo, constituiu-se o segundo núcleo do MFPA, sob a liderança da socióloga Lícia Peres1, que se desdobrou em atividades de conscientização social, galvanizando setores organizados como a igreja, os estudantes, os políticos e a população de um modo geral2. Em 1978, criam-se os Comitês Brasileiros de Anistia (CBA's), que tiveram                                                                                                                 1

Como a própria Lícia Peres conta, foi instada por Dilma Roussef a organizar um núcleo feminimo de luta pela anistia no Rio Grande do Sul (PERES, Lícia. Movimento feminino pela anistia no Rio Grande do Sul. In: PADRÓS, Enrique Serra; BARBOSA, Vânia M.; LOPEZ, Vanessa Albertinence; FERNANDES, Ananda Simões (Orgs.). A ditadura de segurança nacional no Rio Grande do Sul (1964-1985): história e memória. Porto Alegre: CORAG, 2009. v.4. p. 103). 2 Um episódio que ilustra bem a forte atividade desse núcleo ocorreu durante o velório do exPresidente João Goulart em São Borja. Mila Cauduro, a vice-presidente no núcleo gaúcho colocou a faixa da Anistia sobre o caixão de Jango. A foto tirada percorreu o mundo todo. Na missa de 30 dias da sua morte , a igreja da Matriz em Porto Alegre estava lotada, com grande aglomeração de pessoas em torno da escadaria. Mila gritou a palavra "Anistia", que contagiou a multidão e acabou por provocar uma repressão imediata e brutal por parte da polícia de choque (Ibidem, p.110).

atuação decisiva na mobilização da opinião pública em prol da libertação dos presos políticos e do retorno dos exilados. No Rio Grande do Sul, o CBA foi presidido por Raquel Cunha e atuou em conjunto com o MFPA. Ficaram célebres as vitoriosas campanhas desenvolvidas pela libertação de Flávio Koutzii, Flávia Schilling e Flávio Tavares3. É preciso entender que no contexto de mobilização nacional pela anistia o próprio regime militar dividia-se entre uma linha dura e uma linha favorável ao abrandamento do autoritarismo tendo em vista uma passagem controlada à democracia formal. Portanto, havia um importante flanco a ser explorado entre os próprios apoiadores da ditadura. A mobilização dos movimentos e comitês pela anistia foi decisiva para fortalecer os setores da ditadura favoráveis à abertura, ainda que "lenta e gradual". O trabalho político corajosamente desenvolvido pelos movimentos e comitês pela anistia espalhados por todo o Brasil, além de darem um belo exemplo de engajamento e mobilização popular, já preparando o terreno para a campanha das Diretas, conseguiu minar os setores mais radicais da ditadura 4 , de resto já enfraquecidos pelo próprio desgaste do regime autoritário, e garantir um ambiente político propício ao máximo de liberdade possível naquele contexto. Este "máximo" foi aquele demarcado pela aprovação da Lei de Anistia em agosto de 1979. 3. A Anistia de 1979 como exercício de esquecimento: que acordo foi esse? A Lei 6683/79 foi, portanto, fruto de uma batalha política que instantaneamente beneficiou milhares de pessoas, permitindo o retorno dos exilados e a progressiva libertação dos presos políticos. Também representou a quase irreversibilidade do processo de abertura democrática                                                                                                                 3

Especificamente sobre esta campanha e amplamente sobre a movimentação popular em prol da anistia na segunda metade da década de 70 ver o aprofundado e detalhado estudo de Carla Rodeghero, Gabriel Dienstmann e Tatiana Trindade: RODEGHERO, Carla Simone; DIENSTMANN, Gabriel; TRINDADE, Tatiana. Anistia ampla, geral e irrestrita: história de uma luta inconclusa. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2011. 4 De todo modo, não conseguiu impedir que esses mesmos setores, representados pela chamada "linha dura", obtivessem uma grande vitória na Lei de Anistia de 1979 ao terem a garantia de que os seus crimes não seriam investigados e de que por eles ficariam completamente impunes os seus autores e mandantes.

no país. Paradoxalmente, e apesar de tudo isto, a Lei de Anistia foi também o passaporte dos agentes da ditadura para uma transição na qual nenhum dos seus crimes viria a ser investigado e punido. A anistia fez parte de um projeto cuidadosamente delineado por estrategistas do regime, comandados pelo arquiteto intelectual da ditadura, o General Golbery do Couto e Silva. Fazia parte desse plano o esfacelamento das forças políticas de oposição, que àquela altura, apesar de todos os esforços dos governos militares em sentido contrário, haviam se agrupado em torno do MDB5. Também figurava no roteiro manter um forte silêncio sobre os fatos não esclarecidos ao longo de décadas de repressão estatal, como a localização dos corpos dos desaparecidos políticos, questão até hoje não solucionada. Nenhuma política consistente de reparação às vítimas da ditadura foi implementada naquele momento, o que só viria a acontecer mais de 20 anos depois. Nenhuma espécie de expurgo administrativo e judicial foi feito. Os juízes e promotores que forneceram todo o apoio jurídico necessário à judicialização da repressão, fazendo vistas grossas às insistentes denúncias de tortura e tentando legitimar juridicamente o que era indefensável, continuaram em seus cargos. Os agentes policiais e os militares que tomaram parte na prática de crimes contra a humanidade também se mantiveram incólumes em suas funções públicas e os que não faleceram continuam até hoje recebendo pensão ou aposentadoria fornecida pelo Estado. O negacionismo quanto aos crimes de tortura e a outras graves e sistemáticas violações de direitos humanos, ou então o discurso de que era justificável o injustificável em nome do combate ao comunismo internacional, ganhou razoável espaço, até o presente, na sociedade brasileira, no âmbito midiático e na cultura institucional dos órgãos de segurança pública brasileiros, em especial as forças armadas. Na prática, portanto, a anistia de 1979 funcionou muito mais como uma política de esquecimento do que de memória 6 , embora tenha sido                                                                                                                 5

ALVES, Maria Helena Moreira. Estado e oposição no Brasil (1964-1984). 3.ed. Petrópolis: Vozes, 1984. p.269-270; SKIDMORE, Thomas. Brasil: de Castelo a Tancredo. 8.ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. p.427-428. 6 Ver contraponto mais detalhado entre a Anistia de 1979 e a Anistia constitucional de 1988 regulamentada na Lei 10.559/2002, na qual se demarca o papel de esquecimento da

importante para o momento político da transição brasileira. É sintomático que, no ano de 2009, quando a Lei fez o aniversário de 30 anos, os meios de comunicação tenham silenciado a respeito e, com exceção de alguns eventos pontuais7, a data tenha passado em branco. Uma vez feitas as ressalvas sobre o significado de conquista que a anistia de 1979 assumiu, sobre o intenso envolvimento popular e sobre a importância em se apoiar os setores da ditadura que planejavam o seu próprio fim, ainda que tranquilo e seguro, é preciso repudiar fortemente a ideia de que o período de abertura “lenta e gradual”, comandado pelo ditador Ernesto Geisel representou um manso ou “suave” abrandamento do regime ditatorial. Do mesmo modo, é imperioso mostrar que não houve, de fato, nenhum acordo real em torno da Lei de Anistia de 1979, e, por fim, era do interesse do próprio regime ditatorial promover a anistia naquele contexto8. É bem verdade que no ano de 1974 iniciou-se um processo que iria evidenciar de modo crescente a insatisfação social com a continuidade do regime de força. Nas eleições ocorridas neste ano a vitória do MDB, o partido de oposição controlada, foi expressiva, o que se deu, entre outros fatores, pelo forte envolvimento do clandestino Partido Comunista Brasileiro. Naquele momento quase todas as organizações que opuseram resistência armada ao regime ditatorial haviam sido massacradas9.                                                                                                                                                                                                                                                                                                                             primeira e de resgate da memória da segunda, em: SILVA FILHO, José Carlos Moreira da. Dever de memória e a construção da história viva: a atuação da Comissão de Anistia do Brasil na concretização do Direito à Memória e à Verdade. In: PADRÓS, Enrique Serra; BARBOSA, Vânia M.; FERNANDES, Amanda Simões; LOPEZ, Vanessa Albertinence (Orgs.). O Fim da Ditadura e o Processo de Redemocratização. Porto Alegre: CORAG, 2009. p. 47-92. (A Ditadura de Segurança Nacional no Rio Grande do Sul.1964-História e Memória1985, v.4). 7 Entre tais eventos, cito a comemoração dos 30 anos da Anistia que foi promovida pela Comissão de Anistia no dia 22 de Agosto de 2009 no Arquivo Nacional do Rio de Janeiro, com sessões de homenagem a ex-perseguidos políticos e, em especial, aos presos políticos que fizeram Greve de Fome Nacional pela Anistia ampla, geral e irrestrita. No âmbito acadêmico, a data foi contemplada com Seminários e eventos ocorridos em diferentes Instituições de Ensino Superior brasileiras, tais como: PUC-Rio, UERJ, USP, UNICAMP e UnB. 8 Neste ponto do artigo, sirvo-me dos apontamentos já externados em: SILVA FILHO, José Carlos Moreira da . O Julgamento da ADPF 153 pelo Supremo Tribunal Federal e a Inacabada Transição Democrática Brasileira. In: Wilson Ramos Filho. (Org.). Trabalho e Regulação - as lutas sociais e as condições materiais da democracia. Trabalho e Regulação - as lutas sociais e as condições materiais da democracia. Belo Horizonte-MG: Fórum, 2012, v. 1, p. 129-177. 9 Esclarece Jacob Gorender que quando “o general Ernesto Geisel tomou posse da Presidência da República em março de 1974, a guerrilha urbana se extinguira e a guerrilha

Além da vitória eleitoral, no ano de 1975, como já relatado, é desencadeada a campanha pela Anistia, com o lançamento do Manifesto da Mulher Brasileira pelo Movimento Feminino pela Anistia. Surge também com vigor a mobilização sindical capitaneada pelos operários e metalúrgicos do ABCD paulista. A União Nacional dos Estudantes e as Uniões Estaduais dos Estudantes são recriadas. E, em 1978, criam-se os Comitês Brasileiros de Anistia, que tiveram atuação decisiva na mobilização da opinião pública em prol da libertação dos presos políticos e do retorno dos exilados. A esta altura a resistência armada havia sido brutalmente eliminada. A repressão passou então a mirar preferencialmente nos setores de resistência não armados, especialmente o Partido Comunista Brasileiro e o que havia sobrado do PCdoB após a Guerrilha do Araguaia, desarticulando completamente sua alta direção, prendendo e assassinando seus membros. O episódio mais emblemático dessa perseguição ficou conhecido como o “massacre da Lapa”, ocorrido em dezembro de 1976, na cidade de São Paulo. Agentes do Exército assassinaram três dirigentes do Partido: João Baptista Franco Drummond, Ângelo Arroyo e Pedro Pomar. Outros seis militantes foram presos, cinco deles torturados sistematicamente durante semanas10. Ao longo do ano de 1975, em todo o país, o então Ministro da Justiça, Armando Falcão deflagrou uma verdadeira caça aos comunistas. Dez dirigentes do PCB que caíram nessa ofensiva, inclusive, integram a lista de desaparecidos políticos brasileiros, como é o caso de David Capistrano da Costa. De 1977 a 1981, registra Heloísa Greco, aconteceram cerca de 100 atentados por todo o país, sem que tenha havido qualquer apuração de responsabilidades 11 . Os episódios que ficaram mais conhecidos foram a bomba que vitimou a secretária da OAB, Lyda Monteiro da Silva, em agosto de 1980 e a bomba no Riocentro, em abril de 1981. Durante o governo                                                                                                                                                                                                                                                                                                                             do Araguaia agonizava” (GORENDER, Jacob. Combate nas trevas – a esquerda brasileira: das ilusões perdidas à luta armada. 2.ed. São Paulo: Ática, 1987.p.232). 10 Para mais detalhes sobre o episódio ver: POMAR, Pedro Estevam da Rocha. Massacre na Lapa: como o Exército liquidou o Comitê Central do PCdoB – São Paulo, 1976. 3.ed. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2006. 11 GRECO, Heloísa Amélia. Dimensões fundacionais da luta pela Anistia. 2009. 456f. [Tese de Doutorado] – Curso de Pós-Graduação das Faculdades de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte. 2003. p.53.

ditatorial de João Batista Figueiredo bancas de jornal eram incendiadas para impedir a circulação das publicações de esquerda, e enquanto isto o então presidente recebia a visita do genocida Jorge Videla, um dos ditadores da cruenta ditadura civil-militar argentina, hoje condenado à prisão perpétua. Ambos cordialmente afirmavam em Brasília, em comunicado conjunto, que: “Onde havia caos, hoje há ordem”12. O terrorismo de Estado também continuava ativo nos assassinatos do jornalista Vladimir Herzog e Manoel Fiel Filho nas dependências do DOI;CODI em São Paulo. Denúncias de torturas de operários e militantes tornam-se conhecidas 13 . No final de 1978 acontece em Porto Alegre o célebre seqüestro dos uruguaios Lilian Celiberti e Universindo Dias 14 , no contexto da Operação Condor15. A tentativa de realizar o III Encontro Nacional de Estudantes em Belo Horizonte, em junho de 1977 e a sua realização clandestina na PUC-SP são violentamente reprimidas em uma operação comandada pelo Secretário de Segurança Antonio Erasmo Dias. Vê-se, portanto, que o ambiente estava longe de ser “suave” ou propenso a acordos nos quais pudesse haver um mínimo de igualdade e proporção entre as partes. Como já assinalado, as eleições de 1974 manifestaram uma expressiva vitória do MDB 16 . Isto trouxe um grande enigma à ditadura Geisel, que pode ser resumido na singela pergunta: como                                                                                                                 12

MARCELO, Carlos. Renato Russo: o filho da revolução. Rio de Janeiro: Agir, 2009. p.175. GORENDER, op.cit., p.233. 14 Ver o minucioso relato de Luiz Cláudio Cunha, o jornalista responsável pela denúncia do seqüestro: CUNHA, Luiz Cláudio. Operação Condor: O seqüestro dos uruguaios – uma reportagem dos tempos da ditadura. Porto Alegre: L&PM, 2008. 15 Em outro artigo, se faz referência sucinta à Operação Condor: “Os governos ditatoriais latino-americanos nesse período possuíam polícias políticas e uma verdadeira rede de informações e operações conjuntas destinadas a prender e eliminar qualquer um que fosse suspeito de ser integrante da resistência ao regime de exceção. A conhecida Operação Condor, idealizada pelo Coronel Manuel Contreras, chefe da DINA (a polícia política de Pinochet), estendeu seus tentáculos por todo o continente, prendendo, matando e seqüestrando pessoas à revelia das fronteiras e dos sistemas jurídicos” (SILVA FILHO, José Carlos Moreira da. O anjo da história e a memória das vítimas: o caso da ditadura militar no Brasil. In: RUIZ, Castor Bartolomé (org.). Justiça e memória: por uma crítica ética da violência. São Leopoldo: UNISINOS, 2009. p.124-125). 16 Segundo Skidmore, ao criar uma atmosfera menos rigorosa para a atuação da imprensa, Geisel contribuiu para o aumento da tendência de mobilização da opinião pública contra o regime ditatorial. “Geisel estava ajudando a sociedade civil a despertar novamente, mas não estava preparado para ouvir o que a voz da sociedade tinha para dizer” (SKIDMORE, op.cit., p.369). 13

ganhar as próximas eleições17? A “solução” encontrada foi fazer uso dos poderes ilimitados concedidos pelo AI-5. Em janeiro de 1976, Geisel utilizou o AI-5 para cassar os mandatos de dois deputados estaduais paulistas acusados de terem recebido apoio de comunistas. Em seguida, foi a vez de três deputados federais, e entre eles o deputado Lysâneas Maciel do MDB. Mas nada disto se compara ao que ocorreu em 01 de abril de 1977. O ditador Geisel simplesmente impôs uma Emenda Constitucional através do AI-5 pela qual o Congresso é fechado. O pretexto que utilizou para isto foi a oposição do MDB a um projeto de reforma judiciária patrocinado pelo governo. O MDB alegava que não fazia o menor sentido a reforma sem a revogação do AI-5 e da Lei de Segurança Nacional18. Assim, fazendo uso do AI-5, Geisel baixou o que ficou conhecido como o “pacote de Abril”. O pacote consistiu em uma série de reformas constitucionais no campo eleitoral com o indisfarçado objetivo de tornar a ARENA, partido de suporte da ditadura militar, imbatível nas próximas eleições, a saber: passa a ser exigida apenas a maioria simples; todos os governadores e um terço dos senadores seriam escolhidos indiretamente, nas eleições de 1978, por colégios eleitorais estaduais que incluíam os vereadores, o que bastava para assegurar com folga a vitória da Arena nestes colegiados; os deputados federais teriam o seu número demarcado com base na população e não no total dos eleitores registrados, o que na prática aumentava o número de parlamentares relacionados às regiões do país nas quais o apoio à ditadura era maior. Como “cereja do bolo” o pacote incluiu também a criação de um sistema de justiça interno às Polícias Militares, antes vinculadas à esfera civil dos governos estaduais. Com isto, a atuação dessas polícias ficou imune ao controle jurisdicional civil. Por fim, acresça-se a tudo isto a existência, desde 1976, da chamada Lei Falcão, que restringia o acesso ao rádio e a televisão dos candidatos. Permitia-se apenas a imagem sem som do candidato19.                                                                                                                 17

Como explica Skidmore, o grande temor de Geisel eram as eleições para governadores em 1978, que seriam, em princípio, diretas e que provavelmente seriam ganhas de modo maciço pelo MDB (Ibidem., p. 372-373). 18 Ibidem., p.373. 19 Esta lei foi solicitada pelo governo ditatorial ao Congresso de 1976. A estratégia do MDB, naquele momento, era parecer ponderado aos olhos da ditadura para que assim as eleições

Após esta súbita e autoritária mudança das regras do jogo, Geisel “reabre” o Congresso no dia 15 de abril. Contudo, já em maio do mesmo ano, a censura é estendida a todas as publicações importadas, e em junho o mandato do líder do MDB na Câmara, Alencar Furtado, é cassado e o deputado é privado por dez anos dos seus direitos políticos20. Como conclui Heloísa Greco em sua análise, “o efeito principal destas iniciativas é a garantia de fluidez na tramitação dos decretos-leis e das emendas constitucionais, o que permitiria ao governo prescindir da edição de novos atos institucionais”21. Após essas salvaguardas é que em outubro de 1978 a Emenda Constitucional 11 declara extintos os Atos Institucionais. Por outro lado, o estado de sítio é incorporado à Constituição e, da tranqüilidade de um Congresso manietado e desfigurado, no qual nunca passaria qualquer projeto contrário à vontade do governo ditatorial, surge a nova Lei de Segurança Nacional (LSN), promulgada em 17 de dezembro de 1978. Compensando a desaparição dos Atos Institucionais, a nova LSN, entre outras proezas, atribui poderes quase ilimitados ao Ministro da Justiça para censurar todo e qualquer material que seja considerado ofensivo à segurança nacional (art.50); responsabilização criminal de jovens de 16 anos (art.4); a instituição da figura da “comunicação reservada ao juiz”, pela qual se permite a continuidade da incomunicabilidade e das prisões clandestinas (art.53); criminalização de qualquer tipo de vínculo com instituições estrangeiras consideradas ameaçadoras à segurança nacional (art.12); proibição de divulgar fato ou notícia que possa, de algum modo, “indispor ou tentar indispor o povo com as autoridades constituídas” (art.14)22. Observa Heloísa Greco que este esquema todo “proporciona ao general Geisel dispositivos legais, burocráticos e militares de tal ordem, que ele passa a se qualificar como aquele que logrou a maior concentração de poderes entre todos os generais-presidentes do período da ditadura militar”23.                                                                                                                                                                                                                                                                                                                             de 1978 ocorressem conforme o previsto, na relativa convicção de uma vitória nas urnas populares (Ibidem., p.370-374). 20 Ibidem, p.374. 21 GRECO, op.cit., pág.59. 22 Ibidem., p.60-61. 23 Ibidem., p.61-62

Nunca é demais destacar que a máquina de moer dissidentes políticos continuava em funcionamento, bem estruturada, e a Doutrina de Segurança Nacional (DSN) continuava a conduzir os destinos políticos predominantes do país. Basta dizer que todo esse processo de distensão, como já se registrou acima, fazia parte de um plano engendrado pelo cérebro da DSN: Golbery do Couto e Silva. A Anistia, inclusive, fazia parte desse planejamento, assim como a abertura ao pluripartidarismo. A intenção era manter intactos os princípios e diretivas da DSN em um ambiente político razoavelmente “democrático”. O pluripartidarismo, ademais, poderia servir para desarticular o MDB, partido que havia ameaçado a hegemonia da ARENA nas eleições de 197424. Por todo o exposto, pode-se notar claramente que o ambiente no qual se deu a proposição e a votação da lei de Anistia em 1979 estava longe de ser manso e propenso a um “suave compromisso”25. A violência continuava em ação, as prisões arbitrárias e clandestinas, a tortura, as cassações políticas e a censura. As regras do jogo legislativo haviam sido mudadas bruscamente, de maneira ilegítima e manipulada para que os resultados das votações que interessavam à ditadura fossem sempre ao seu favor, como aconteceu visivelmente na votação da lei de Anistia em 1979. Ao se examinar todo o processo de votação e promulgação da lei de Anistia é que se pode ter noção mais cabal da inexistência de um acordo que mereça este nome. Apesar de toda a mobilização social em prol da Anistia, o governo Figueiredo agiu, desde o início como se não existisse nenhum outro interlocutor além dos setores ligados à própria ditadura. Quando o ditador Figueiredo encaminha para o Congresso o Projeto de Lei da Anistia (PL 14/1979) em 27 de junho de 1979, realiza concomitantemente uma grande cerimônia transmitida em cadeia nacional, e na qual inclusive chora. Tudo parece ser uma concessão magnânima do governo, ou como batizou o Ministro Celso de Mello em seu voto na ADPF 153 uma “medida excepcional fundada na indulgência soberana do Estado”, ou ainda, como registrou o Ministro Marco Aurélio no mesmo julgamento, “um ato de amor”.                                                                                                                 24

SKIDMORE, op.cit., p.427. Como afirmou Eros Grau em seu voto na Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental N°153 (ADPF 153) julgada no STF. A discussão em torno desta Ação será mais detalhada no item 6 deste artigo. 25

Toda essa “generosidade”, porém, não impediu que fosse bloqueada a participação de qualquer outro ator institucional, inclusive dos próprios parlamentares da ARENA, na elaboração do projeto

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. Tamanho

desprendimento, igualmente, não logrou incluir na Anistia aqueles que foram condenados por terem participado diretamente da resistência armada27 28 e também esteve presente no veto final do presidente à expressão “e outros dispositivos legais” que constava no caput do Art.1º da Lei, mantendo apenas a Anistia para os punidos com fundamento em Atos Institucionais e Complementares. Isto afastou da Anistia, por exemplo, todos os professores demitidos e os alunos expulsos pelo Decreto Lei 477/69. Por fim, a “generosidade” foi tão vasta que se encarregou de inserir na lei uma definição ambígua e obscura da expressão “crimes conexos”, ou no dizer de alguns dos julgadores do STF na ADPF 153, uma “interpretação autêntica” do próprio caput do art.1º feita no § 1º do mesmo artigo. Foi uma forma engenhosa de garantir a impunidade dos criminosos de Estado sem ao mesmo tempo admitir que os mandantes e os agentes do governo ditatorial tenham cometido tortura, assassinato, desaparecimento e outras vilanias flagrantemente ilegais até para o simulacro de legalidade da ditadura. A interpretação esdrúxula, sacramentada pelo Supremo Tribunal Federal foi “enfiada goela abaixo” da sociedade brasileira, dos juízes, parlamentares e juristas de um modo geral, em uma época que, como o próprio Sepúlveda Pertence reconhece, em parecer que produziu naquele ano, qualquer possibilidade de excluir expressamente os torturadores da Anistia era                                                                                                                 26

GRECO, op.cit., p.231-232. O projeto foi elaborado pelo Ministro-Chefe da Casa Civil, Golbery do Couto e Silva, pelo líder da Arena e Ex-Presidente do Senado, Petrônio Portella, pelo Chefe do SNI, Octávio Aguiar de Medeiros, pelo Chefe do Gabinete Militar, Danilo Venturini e pelo Secretário Particular do Presidente, Heitor Ferreira (MEZAROBBA, Glenda. Um acerto de contas com o futuro: a Anistia e suas conseqüências: um estudo do caso brasileiro. São Paulo: Associação Editorial Humanitas; FAPESP, 2006. p.38). 27 Embora muitos tivessem sido indultados no final daquele mesmo ano e outros tivessem a sua pena reduzida pelo Superior Tribunal Militar, o fato é que ficaram de fora da Anistia, o que na prática significou que muitos saíram da cadeia em liberdade condicional, tendo que se apresentar periodicamente às autoridades constituídas e não podendo se ausentar inclusive do próprio estado no qual se encontravam. 28 Curioso é que a justificativa apresentada para excluir os condenados da Anistia é que os “terroristas” teriam se envolvido em ações que não seriam simplesmente contra o regime, mas sim “contra a humanidade” (Ibidem., p.39). Na verdade, a definição consagrada no direito internacional para “crimes contra a humanidade” não abriga atos de resistência diante da tirania, mas sim atos que se dão em meio a uma política de sistemática eliminação de parcela da população civil, que no caso da ditadura civil-militar brasileira era deflagrada pelo regime contra todos os que coubessem nos contornos frouxos da categoria “subversivo”.

inegociável pelo governo. Não há outra palavra para descrever tal medida senão a palavra “auto-Anistia”. O projeto de lei, assim delineado, foi enviado para o Congresso, onde foi formada uma Comissão Mista para a sua análise. Apesar da surpreendente presidência da Comissão Mista exercida por Teotônio Vilela, com visitas aos presídios e declarações favoráveis aos presos políticos, a Comissão já havia sido montada com uma folgada maioria da ARENA sobre o MDB: 13 contra 9, sendo que um destes 9 só votava em caso de necessidade de desempate, visto que era o presidente da Comissão Mista. Durante o período em que a Comissão funcionou todas as tentativas de polemizar e discutir, empreendidas pelos membros filiados ao MDB, foram sucessivamente ignoradas pela maioria arenista, o que se evidenciou por fim no substitutivo do relator Ernani Satyro (sem dúvida, uma verdadeira sátira aos processos verdadeiramente democráticos), da ARENA: uma reprodução fiel do projeto enviado pelo governo, com a exceção de ter ampliado o prazo da Anistia de 28 de dezembro de 1978 para 27 de junho de 197929. A esta altura é importante lembrar que o verdadeiro protagonismo na bandeira da Anistia ampla, geral e irrestrita esteve com os movimentos populares pela Anistia. Contudo, suas reivindicações não podiam ter outro canal senão a oposição consentida naquele momento, ou seja o MDB. Este, por sua vez, revelava-se muitas vezes um verdadeiro campo minado, já que muitos dos seus parlamentares haviam sido cassados e outros apresentavam uma posição moderada, insuficiente para dar vazão a todas as questões desejadas pelos movimentos de Anistia brasileiros30. A questão da Anistia                                                                                                                 29

GRECO, op.cit., p.236-239. Esclarece ainda a historiadora Heloísa Greco que “o substitutivo do relator incorpora in totum não só o espírito mas a própria letra do projeto do governo cujo princípio se mantém incólume, acolhendo parcialmente apenas emendas inócuas de redação, 67 de um total de 305. O resultado de todas as votações é o infalível 13 a 8, sempre a favor da ARENA, garantindo a rejeição de todas as emendas que poderiam afetar ou mesmo tangenciar o disposto no projeto de lei enviado ao Congresso Nacional pelo presidente da República” (grifos da autora). 30 Por exemplo, nas manifestações parlamentares por ocasião da discussão da Lei de Anistia em 1979, muitos deputados do MDB utilizaram a palavra “terrorista” para se referir a quem se envolveu na resistência armada, e passaram a defender a anistia recíproca. Nenhuma das duas atitudes expressava o pensamento que estruturou a atuação dos CBA’s, muito pelo contrário (RODEGHERO, DIENSTMANN e TRINDADE, op.cit., p.160-162). De todo modo, a defesa da anistia recíproca neste contexto cerca-se de maior complexidade, na medida em que havia diferentes concepções de anistia em duelo. Para maior detalhamento desta questão, ver: RODEGHERO, DIENSTMANN e TRINDADE, op.cit. e RODEGHERO, Carla

transformou-se realmente em um fato de conhecimento massivo da população quando ela foi abraçada por autoridades como Teotônio Vilela e por instituições admitidas pelo governo como a OAB, a ABI, e a CNBB. Antes da Comissão Mista ter aprovado o substitutivo de Satyro, formou-se uma Frente Parlamentar pela Anistia, apoiada tanto pelos CBA’s como pelos presos políticos, no sentido de elaborar um substitutivo do MDB para confrontar o projeto do governo31. Naquele momento, as chances, por mais improváveis que fossem, estavam em se formar uma forte coesão em torno desse substitutivo. Surgiu então a Emenda n.7 de 9 de agosto de 1979, assinada por Ulisses Guimarães (presidente do partido), Freitas Nobre (líder da minoria na Câmara) e Paulo Brossard (líder da minoria no Senado). Dalmo Dallari e José Paulo Sepúlveda Pertence participaram ativamente da sua redação. Entre os pontos altos do substitutivo do MDB estavam: a Anistia para todos os perseguidos políticos, inclusive para os condenados por participação na resistência armada; a rejeição explícita da Anistia recíproca, ainda que não mencionasse a apuração e a responsabilização pelos crimes de lesa-humanidade; a matrícula de estudantes punidos e a instauração de inquérito para apurar os desaparecimentos políticos. O substitutivo foi assumido como fruto da decisão unânime do MDB tanto no Senado como na Câmara. Todavia, como já se registrou, prevaleceu o placar estático de 13 a 8, pelo substitutivo de Satyro. Para fazer frente a esta situação, a estratégia imaginada pelos movimentos pela Anistia era que o MDB, na ocasião das votações no Congresso, rejeitasse o projeto do governo e trabalhasse em um projeto substitutivo próprio que incorporasse as demandas dos movimentos. Contudo, muitos parlamentares do MDB entenderam que a batalha havia sido perdida na Comissão Mista e que o melhor que tinham a fazer agora era apoiar o projeto do governo que, bem ou mal, trazia vários benefícios, ainda que parciais. No dia da votação da lei, dia 22 de agosto de 1979, cerca de 800 soldados à paisana estavam desde a madrugada ocupando quase a totalidade dos lugares nas galerias. Os militantes pela Anistia, contudo, não                                                                                                                                                                                                                                                                                                                             Simone. A anistia entre a memória e o esquecimento. In: História Unisinos, São Leopoldo, vol.13, n.2, p.131-139, maio-ago 2009. 31 GRECO, op.cit., p.241.

esmoreceram e, finalmente, por volta das 14h, depois de muito protesto e gritaria, conseguiram que os soldados saíssem das galerias. A segurança reforçada no ambiente coibia a todo o instante as manifestações dos militantes, apreendendo faixas e cartazes. Na véspera, uma bomba havia explodido na rampa do Congresso durante uma manifestação em prol da Anistia ampla, geral e irrestrita. A ordem do Planalto era bem clara: o substitutivo de Satyro deveria ser votado na mesma forma que ele chegou ao Congresso Nacional, caso contrário Figueiredo vetaria toda a lei32. Apesar de todo o cenário até aqui apresentado, o empenho dos movimentos pela Anistia surtiu um efeito importante: a aprovação do projeto do governo foi muito menos fácil do que se imaginava. Alguns parlamentares arenistas, inclusive, demonstravam claramente a intenção de rejeitar o substitutivo de Satyro. Explica Greco, citando fontes da imprensa da época, que tais parlamentares foram “chamados à responsabilidade” pelo líder do partido na Câmara, o deputado Nelson Marchesan, que inclusive lançou mão de um recurso regimental pelo qual os deputados que desrespeitassem as diretrizes partidárias poderiam perder o seu mandato33. Após a votação, colheu-se o seguinte resultado: em votação preliminar, o substitutivo do MDB é derrotado por 209 votos a favor contra 194 desfavoráveis 34 (entre estes os votos de 12 arenistas dissidentes); a aprovação do substitutivo de Satyro ocorre em bloco, pela votação dos líderes dos dois partidos, ou seja, não foi nominal. Porém, houve a discordância silenciosa de 12 dos 26 senadores e a declaração de voto contrário de 29 dos 189 deputados do MDB. Tais manifestações não puderam ser formalizadas, pois, repita-se, a votação foi em bloco, sem votação nominal.

                                                                                                                32

Ibidem, p.254. Ibidem, p.255. 34 A Arena, graças ao pacote de abril de 1977, possuía a maioria numérica no Congresso. Eram 231 deputados da Arena contra 189 do MDB. Eram 41 senadores arenistas contra 26 emedebistas. Tal maioria era ainda fortalecida pelo recurso aos 22 senadores biônicos. Ou seja, qualquer “deslize” contrário aos interesses do governo ditatorial seria “sanado” no Senado. É de se mencionar também que havia um outro substitutivo, votado na sequência, que previa a anistia aos condenados na luta armada, mas mantinha a anistia aos agentes da ditadura. Era o substitutivo Djalma Marinho, derrotado por 206 votos contrários e 201 votos favoráveis. 33

Este

foi,

portanto,

o

“acordo”

no

qual

a

sociedade

“falou

altissonante”35. Não havia possibilidade de qualquer tipo de barganha ou jogo de influências que conseguisse afastar a intenção do governo de se autoanistiar ou de restringir a Anistia aos perseguidos políticos. Caso ocorresse a improvável conversão de um número maior de deputados arenistas, das duas uma: ou o senado biônico reverteria o resultado ou o ditador Figueiredo simplesmente vetaria o resultado na sua totalidade. Afinal, que acordo foi este? 4. A Anistia a partir da Constituição de 1988: o surgimento de uma anistia pela memória A Emenda N° 26 de 1985, aprovada já no governo Sarney, teve como missão central a convocação da Assembléia Nacional Constituinte36 , mas trouxe também uma série de disposições relacionadas à anistia, buscando ampliar a abrangência da anistia de 1979, incorporando estudantes, dirigentes sindicais, servidores e empregados civis. Manteve, porém, o seu caráter ambíguo ao reproduzir no texto a referência da anistia aos “crimes conexos”, o que na prática significava manter a impunidade para os agentes públicos que cometeram crimes contra a humanidade. Registre-se aqui a preferência pelo termo “ambígua” para caracterizar a anistia aos ditadores e seus sequazes e não “bilateral”, pois, para utilizar corretamente este último termo, haveria que se pressupor a existência de dois lados, como ocorre em uma guerra entre dois exércitos inimigos. O que se teve durante as ditaduras civis-militares latino-americanas, que se                                                                                                                 35

Como registrou a Ministra Carmem Lúcia em seu voto da ADPF 153. No caso brasileiro, a Constituinte acabou sendo um Congresso Nacional Constituinte, já que os militares temiam perder o controle do processo de transição caso houvesse a eleição para uma Assembléia específica para elaborar a Nova Constituição (ZAVERUCHA, Jorge. Relações civil-militares: o legado autoritário da Constituição brasileira de 1988. In: SAFATLE, Vladimir; TELES, Edson [Orgs.]. O que resta da ditadura - a exceção brasileira. São Paulo: Boitempo, 2010. p.44-45). A solução encontrada foi híbrida. Por um lado, como expressão das forças de oposição à ditadura, não aceitou que a tarefa consituinte fosse passada a um Congresso eleito na vigência da ditadura, por outro, como resultado das pressões das forças pró-ditadura, vetou-se a eleição de uma Assembléia Constituinte "pura". Assim, nas eleições gerais de 1986, os parlamentares eleitos, além das funções inerentes ao mandato, acumularam a missão de elaborar e aprovar a nova Constituição do Brasil. 36

alastraram com o beneplácito estadunidense durante a segunda metade do século passado, foi a perseguição desigual e brutal de cidadãos nacionais pelo seu próprio Estado37, justamente aquele que tinha o dever maior de protegê-los. Um crime incestuoso portanto, agravado pelo fato de que se estabeleceu a partir da tomada golpista do poder, com a destituição de um presidente eleito pelo voto popular e com a flagrante violação maciça da Constituição democrática de 1946 e dos direitos fundamentais que lhe davam sustentáculo. A ambiguidade da anistia brasileira que aqui se quer destacar, além de se apresentar no contexto da Lei 6683/1979, recoloca-se a partir do processo constituinte que culminou na promulgação da Constituição Republicana de 1988.

Como destaca de modo perspicaz Cristiano Paixão38, a partir das

eleições de 1986 e mais intensamente com a instalação da constituinte tornou-se nítida a disputa em torno do significado da Constituição, seja no conflito em torno dos procedimentos adotados pelos constituintes para elaborarem o texto, seja nos esforços de defini-la como o resultado de uma ruptura ou de uma continuidade com o regime de força. Alguns, como os juristas Manoel Gonçalves Ferreira Filho e José Carlos Moreira Alves, declararam à época que a Constituição consagraria os ideais revolucionários de março de 1964, já outros, como Ulysses Guimarães e Mário Covas, fizeram questão de assinalar a Constituição como um marco de repúdio e ruptura à ditadura que se encerrava 39 . O sentido da Constituição,

especialmente

no

que

se

refere

aos

seus

marcos

principiológicos e à sua raiz identitária, já começou em franca disputa, e como se viu recentemente no julgamento da ADPF 153, assim continua. A ambiguidade da anistia a partir do processo constituinte é fruto da própria ambiguidade deste processo. Por um lado, a constituinte representou uma rica mobilização de setores populares e de grupos organizados da                                                                                                                 37

Para uma análise introdutória sobre a vertente criminológica que se debruça sobre os Crimes do Estado articulando-a com os marcos teóricos da justiça de transição, ver: SILVA FILHO, José Carlos Moreira da . Crimes do Estado e Justiça de Transição. Sistema Penal & Violência, v. 2, p. 22-35, 2010. 38 PAIXÃO, Cristiano. A constituição em disputa: transição ou ruptura? In: SEELAENDER, Airton (Org.) História do Direito e construção do Estado. São Paulo: Quartier Latin, 2012 (no prelo). 39 Ibidem.

sociedade civil que surpreenderam o forte controle do processo de transição política praticado pelos militares e demais setores de apoio à ditadura. A mobilização e os procedimentos adotados ao longo do processo constituinte permitiram que os movimentos sociais e amplos setores populares verdadeiramente participassem e interferissem no resultado final. Foi o que se viu, por exemplo, na questão indígena 40 , nos direitos dos trabalhadores (especialmente no tocante à sindicalização e ao direito de greve), na questão ambiental, na ampliação do rol de direitos fundamentais e na sua blindagem via cláusulas pétreas, na explícita abertura ao direito internacional dos direitos humanos, à questão urbana (de modo ainda tímido); à abolição da desigualdade no tratamento dado aos filhos e às entidades familiares, ao novo papel atribuído ao Ministério Público, aos princípios que regem a Administração Pública, entre outros. Por outro lado, algumas questões-chave permaneceram intocadas ou abordadas de maneira muito tímida ou insuficiente, como ocorreu no caso da reforma agrária, da segurança pública e das forças armadas41. Diante do contexto ainda delicado do processo de redemocratização42, os movimentos sociais que atuaram no processo constituinte, bem como outras forças políticas de repúdio à ditadura, e até mesmo os setores organizados em torno dos que foram perseguidos politicamente, não investiram nesses temas, em especial no relativo à estrutura repressiva e militarizada dos órgãos de segurança pública e da manutenção das forças armadas como uma espécie de poder moderador43.                                                                                                                 40

Ver o belíssimo trabalho de Rosane Freire Lacerda sobre a inédita história de mobilização dos indígenas brasileiros ao longo do processo constituinte, suas vitórias e também os discursos que contra eles se insurgiram: LACERDA, Rosane Freire. Diferença não é incapacidade - o mito da tutela indígena. São Paulo: Baraúna, 2009 (ver sobretudo o terceiro capítulo, intitulado "A subida da rampa do Congresso Nacional: o protagonismo dos povos indígenas no processo constituinte - 1985/1988)". 41 Afirmam João Gilberto Lucas Coelho e Antonio Carlos Nantes de Oliveira, em sua análise da Constituição de 1988, escrita logo após a sua promulgação, que: "Desde a Proclamação da República, o papel institucional dos militares é tema de tratamento constitucional e grandes debates. A nova Constituição mantém este papel, em suas linhas gerais. Apresenta pequeno avanço em relação a situações anteriores" (COELHO, João Gilberto Lucas; OLIVEIRA, Antonio Carlos Nantes de. A nova Constituição - avaliação do texto e perfil dos constituintes. Rio de Janeiro: Revan, 1989. p.45). 42 Importante não esquecer a forte repressão praticada pelos militares durante a campanha das Diretas e especialmente na votação da Emenda Dante de Oliveira em 1984. 43 O artigo 142 da Constituição estatui que as forças armadas "destinam-se à defesa da pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem". Ainda que este artigo tenha mencionado que a garantia da lei e da ordem se dá por

Assim, com a chegada da Constituição de 1988 as grandes pautas políticas nacionais de repúdio ao autoritarismo cederam espaço às demandas setorizadas dos emergentes e renovados movimentos sociais. É como se houvesse um campo de força barrando a discussão política e jurídica sobre as contas não pagas da ditadura e seus efeitos devastadores. Os movimentos populares, outrora unidos em torno de pautas políticas comuns, fragmentaram-se e passaram a se concentrar em seus objetivos específicos, o que embora tenha trazido o amadurecimento e aprofundamento das suas demandas, evitaram a confrontação mais direta com o recém findo regime ditatorial. Apesar desse silenciamento contextual sobre a ditadura, que ainda fumegava em suas cinzas, é digno de nota o fato de que a nova base fundamental do ordenamento jurídico brasileiro, em nenhuma das suas centenas de disposições normativas, repetiu a referência aos “crimes conexos”. Por outro lado, no Artigo 8º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias o constituinte firmou, com clareza inequívoca, que a anistia era devida

aos

que

exclusivamente

“foram

política,

atingidos, por

atos

em

decorrência

de

exceção,

de

motivação

institucionais

ou

complementares”. Aqui finalmente é expurgado do cenário jurídico brasileiro                                                                                                                                                                                                                                                                                                                             iniciativa dos poderes constitucionais, fica no ar saber-se o que satisfaz a condição deste acionamento. A Lei Complementar n.69, de 1991 definiu que cabe ao Executivo o direito de pedir a intervenção interna. Outra pergunta que pode ser feita: o que representa a violação da ordem? Quais pessoas definirão isto? De todo modo, não creio que o Art. 142 esteja a legitimar a possibilidade de um Golpe de Estado, como argumenta Zaverucha em seu texto (ZAVERUCHA, Jorge. Relações civis-militares, p.49), ainda que sempre seja possível encontrar malabaristas do direito autoritário dispostos a endossar interpretações deste calibre quando lhes é conveniente. Porém, o Art. 142, em conjunto com os demais dispositivos constitucionais que tratam do tema, não demarca um estatuto suficientemente subordinado das forças militares ao poder civil e à democracia. Mantém-se ainda uma forte militarização das forças de segurança no país, aplicando ao policiamento interno, do qual participa ostensivamente a polícia militar, o mesmo caráter de combate ao inimigo que predominou ao longo da ditadura. Mantém-se, igualmente, a justiça militar. A legislação que regula a vida militar, como o Código Penal Militar, por exemplo, vem dos anos ditatoriais. De todo modo, é sintomático que na primeira versão apresentada do Art. 142, quando não se atribuía aos militares o papel de garantidores da lei e da ordem, o Ministro do Exército à época, General Leônidas Pires Gonçalves, tenha ameaçado zerar todo o processo de redação constitucional e o então Presidente da Comissão de Organização Eleitoral Partidária e Garantia das Instituições (que era encarregada dos capítulos ligados às forças armadas e à segurança pública), Senador Jarbas Passarinho, o mesmo que endossou o AI-5 mandando às favas os escrúpulos, tenha dito que a esquerda queria se vingar dos militares e deles retirar a responsabilidade pela ordem interna (Ibide, p.50). Diante da pressão, os constituintes voltaram atrás e fizeram o texto citado acima. Não há no Brasil, portanto, até os dias atuais, uma clara separação entre a polícia, que por vocação deveria cuidar da segurança interna, e as forças armadas, vocacionadas para os conflitos externos.

o monstrengo esquizofrênico da anistia aos crimes conexos, ao menos no texto constitucional. Todavia, a inatividade das autoridades institucionais e dos movimentos sociais, com exceção do corajoso e persistente esforço dos amigos e familiares de mortos e desaparecidos políticos, contribuiu para manter viva, isolada, segura e esquecida esta criatura aberrante, que foi vividamente ressuscitada pelo Supremo Tribunal Federal em 2010 no julgamento da ADPF 153. Alguns Ministros44, sabedores de que o texto constitucional de 1988 não traz qualquer fundamento ou menção de uma anistia aos agentes da ditadura, invocaram e defenderam a estranha tese de que a constituinte que produziu a Constituição de 1988 não era plenamente soberana, estando adstrita aos limites estabelecidos pela Emenda Constitucional Nº 26/1985, mesmo sendo esta uma emenda à "Constituição" de 1967, forjada e imposta em pleno regime autoritário. Veja-se, portanto, que, ao contrário do que foi argumentado no julgamento da ADPF 153, a anistia aos agentes da ditadura não foi recebida pelo texto constitucional de 1988. Por outro lado, também não foi expressamente repudiada. De todo modo, ao não mencionar o tema e ao assinalar o forte repúdio à tortura, considerada crime inafiançável e insuscetível de graça ou anistia 45 , a partir dos seus princípios e direitos fundamentais, a Constituição revela-se um local muito pouco confortável para abrigar a anistia aos crimes conexos entendida como a anistia aos crimes dos agentes da ditadura. Há uma evidente contradição principiológica e valorativa no argumento de que a Constituição brasileira de 1988 endossa a anistia a tais crimes. Além de excluir da sua apreciação a anistia aos crimes da ditadura, o Artigo 8º do ADCT lançou as bases de uma verdadeira política de reparação                                                                                                                 44

Como foi o caso de Gilmar Mendes e de Eros Grau em seus votos. No Art. 5º, XLIII a Constituição estabelece esta condição, complementada pela Lei 9.455/97. Importa mencionar, além disso, o Art. 5º, §4º que reconhece a submissão do Brasil ao Tribunal Penal Internacional. O Tratado de Roma penetra a ordem jurídica interna brasileira por força do Decreto Legislativo Nº 4.388/2002, estabelecendo explicitamente que a tortura praticada de forma sistemática a parcelas da população civil, ou seja, como prática de um crime contra a humanidade é imprescritível. Por fim, a Constituição demarca no Art. 5º, XLIV que "constitui crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático". Ora não foi exatamente isto que fizeram os militares golpistas de 1964, com o apoio de grupos civis? 45

aos ex-perseguidos políticos. Porém, como era de se esperar naquele ambiente ainda mutilado politicamente, contaminado pelo esquecimento forçado e seguido de perto pelo autoritarismo, a lei regulamentadora dessa política de reparação sinalizada pelo texto constitucional só viria à luz mais de 20 anos depois, mais precisamente em 2001. Os

anistiandos

brasileiros,

organizados

em

Associações

representativas, finalmente conseguiram se articular o suficiente para pressionar o governo Fernando Henrique Cardoso a regulamentar o Art.8° do ADCT via Medida Provisória, a MP N° 2.151 de 2001, com a participação do então Ministro da Justiça José Gregori. Registre-se que o mesmo governo já tinha o mérito da instauração da Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos e do reconhecimento oficial da prática do desaparecimento forçado por parte do Estado brasileiro na Lei N° 9.140 de 1995, o que também foi o resultado da decisiva mobilização dos amigos e familiares de mortos e desaparecidos políticos46. Posteriormente, a MP N° 2.151/2001 foi convertida na Lei N° 10.559/2002, que instituiu a Comissão de Anistia47. A nova lei de anistia, além de prever direitos como a declaração de anistiado político, a reparação econômica, a contagem do tempo e a continuação de curso superior interrompido ou reconhecimento de diploma obtido no exterior, institui a Comissão de Anistia, vinculada ao Ministério da Justiça, e que fica responsável pela apreciação e julgamento dos requerimentos de anistia48. Observando a atuação da Comissão de Anistia, desde a sua criação, e, especialmente, durante o segundo mandato do Presidente Lula, a                                                                                                                 46

Importante também mencionar os esforços de diversas Comissões especiais formadas nos diferentes Estados da Federação com o intuito de fornecer reparações civis aos que sofreram sevícias e maus tratos nas mãos dos agentes da ditadura. No Rio Grande do Sul, por exemplo, a Comissão especial foi instituída em 1997, durante o Governo Britto através da Lei N º 11.042/97. 47 Nesta altura sirvo-me de alguns apontamentos já registrados em: SILVA FILHO, Dever de memória e a construção da história viva, p. 82-84. 48 A Comissão é composta hoje por 25 Conselheiros e Conselheiras escolhidos e nomeados pelo Ministro da Justiça, e liderados pelo Presidente da Comissão de Anistia, também escolhido pelo Ministro. Dos membros da Comissão um necessariamente representa o Ministério da Defesa e outro representa os anistiandos. Os membros da Comissão possuem, quase todos, formação jurídica, e, de um modo geral, atuam na área dos direitos humanos. Os Conselheiros não recebem pagamento pelo seu trabalho, considerado, de acordo com a lei, de relevante interesse público. O conselho funciona como um tribunal administrativo, mas a responsabilidade final da decisão é do Ministro da Justiça, completando-se o processo de anistia apenas após a assinatura e publicação da Portaria Ministerial.

condução do Ministério da Justiça por Tarso Genro e a presidência da Comissão por Paulo Abrão Pires Junior, percebe-se uma radical mudança na concepção da anistia como política de esquecimento. Em primeiro lugar, ao exigir a verificação e comprovação da perseguição política sofrida49, a lei de anistia acaba suscitando a apresentação de documentos e narrativas que trazem de volta do esquecimento os fatos que haviam sido desprezados pela anistia de 1979. Passa a ser condição para a anistia a comprovação e detalhamento das violências sofridas pelos perseguidos políticos. Nas sessões de julgamento da Comissão de Anistia, os requerentes que estão presentes são convidados a se manifestarem, proporcionando em muitos casos importantes testemunhos, que são devidamente registrados. Os autos dos processos contêm uma narrativa muito diferente daquela que está registrada nos arquivos oficiais. Os processos da Comissão de Anistia fornecem a versão daqueles que foram perseguidos políticos pela ditadura militar, contrastando com a visão, normalmente pejorativa que sobre eles recai a partir dos documentos produzidos pelos órgãos de informação do período. Durante a gestão de Tarso Genro no Ministério da Justiça e de Paulo Abrão Pires Junior como Presidente da Comissão de Anistia, a Comissão passou a implementar políticas de memória. Umas das mais expressivas e que vem alcançando grande repercussão nacional são as Caravanas da Anistia. Nelas, a Comissão se desaloja das instalações do Palácio da Justiça em Brasília e percorre os diferentes Estados brasileiros para julgar requerimentos de anistia emblemáticos nos locais onde as perseguições aconteceram, realizando os julgamentos em ambientes educativos como Universidades e espaços públicos e comunitários50. Durante esses julgamentos, todos os procedimentos, inclusive os debates e as divergências entre os Conselheiros e as Conselheiras, são                                                                                                                 49

Em seu art. 2º, a Lei 10.559/2002 prevê ao todo 17 situações de perseguição por motivação exclusivamente política que justificam o reconhecimento da condição de anistiado político e os direitos dela decorrentes. Aqui estão prisões, perda de emprego, ser compelido ao exílio, ser atingido por atos institucionais, entre outras situações. 50 Até outubro de 2012, 63 Caravanas foram realizadas em todo o Brasil. Uma descrição de todas as Caravanas realizadas de 2007 a 2010 pode ser vista em: Ações Educativas da Comissão de Anistia - relatório de gestão 2007-2010. Brasília: Ministério da Justiça, 2010. Para as Caravanas mais recentes, inclusive com vídeos, entrevistas e transcrição de depoimentos, ver o Blog do Ministério da Justiça no site: http://blog.justica.gov.br.

realizados às claras, diante de todos os presentes e contando sempre com o testemunho emocionado de muitos anistiandos e anistiandas. Esses testemunhos expressam de modo cristalino as características do testemunho como ligação entre memória e história. A experiência das Caravanas da Anistia permite que se vivencie algo insubstituível: testemunhar o testemunho. A narrativa do sofrimento é quase impossível, mas, como disse Adorno, é a condição de toda verdade51. É a possibilidade de recolocar no plano simbólico a violência negada e repetitiva. O momento alto das Caravanas e de todas as sessões de apreciação de requerimentos de anistia, o que já indica a mudança de sentido da anistia a partir das práticas da Comissão e do que estabelece o texto constitucional, é o pedido formal de desculpas em nome do Estado brasileiro aos que por ele foram perseguidos no passado52. Tal pedido é formulado de viva voz pelo                                                                                                                 51

ADORNO, Theodor W. Dialectica negativa. Tradução de Alfredo Brotons Muñoz. Madrid: Akal, 2005. p.28. 52 Diante disto e de tantas outras ações que vem sendo desenvolvidas pela Comissão de Anistia soa no mínimo incompreensível a crítica feita por Glenda Mezarobba de que o fato de a Comissão ser chamada de Comissão de "Anistia" seja o suficiente para desacreditar as suas ações. A autora parece não perceber o aspecto libertário e memorialístico presente na palavra "anistia" e o seu caráter historicamente ambíguo no Brasil, assinalado neste artigo. Ela ainda afirma o seguinte: "Como se pode conceber que tais perseguidos precisem, ainda hoje, ingressar no órgão instalado no Ministério da Justiça com um pedido de anistia política e, em caso de tal pedido ser aceito, aguardar pela publicação da 'concessão do benefício' no Diário Oficial da União, exatamente como era no governo do general João Baptista Figueiredo, depois da aprovação da anistia? Por que as vítimas, e não o Estado, têm de pedir perdão pelos sofrimentos que lhes foram impingidos? Isso sem mencionar as recémcriadas Caravanas da Anistia, parte integrante de um projeto de educação em direitos humanos da comissão, cuja proposta é percorrer todos os estados do país, difundindo 'conhecimento histórico' e buscando mobilizar a sociedade para o tema, inclusive com o julgamento de casos, algumas vezes na presença do próprio ministro da Justiça. Se em sentido amplo o significado da anistia é esquecimento, o que seria isso, senão a permanência da lógica do arbítrio, da falta de memória, da omissão, ainda que em sua concepção os objetivos a serem realizados possam ser outros?" (MEZAROBBA, Glenda. O processo de acerto de contas e a lógica do arbítrio. In: SAFATLE, Vladimir; TELES, Edson [Orgs.]. O que resta da ditadura - a exceção brasileira. São Paulo: Boitempo, 2010. p.117). Ora, pressupõe-se que todo o pesquisador quando se debruça sobre um fato da realidade que estuda busque fazê-lo aproximando-se deste fato. Diante das observações feitas pela autora, é possível deduzir que não ocorreu, no seu caso e com relação às Caravanas da Anistia, tal aproximação. Para começar, quem pede perdão, como já foi mencionado, não são as vítimas e sim o Estado. Em segundo lugar, a anistia da qual trata a Lei N° 10.559/2002 e a Constituição em seu Art. 8° do ADCT não é a anistia penal, volta-se para o aspecto da reparação. Tanto a Lei N° 6683/1979 como a EC N° 26/1985, além de tratarem da anistia penal, também estabeleceram, ainda que de modo restrito, o direito à reparação, o que ajuda a explicar porque o tema da reparação ficou vinculado ao tema da anistia. Porém, a Constituição de 1988 desvincula a reparação da idéia de "crime político" e a aproxima do conceito de "perseguição política", mudando radicalmente o sinal. O fato de esta reparação, que não é só econômica, mas é também moral, ser chamada de "anistia" não a torna algo arbitrário e tampouco a vincula à noção de esquecimento. O significante anistia comporta outros significados, especialmente em um país como o Brasil, no qual o termo tem

Presidente da sessão ao comunicar o resultado de deferimento do pedido e integra o texto do voto vencedor. 5. A Comissão de Anistia e as críticas aos valores das reparações Desde a sua criação a Comissão de Anistia sempre sofreu ataques da imprensa questionando os valores pagos a título de reparação. O problema não é o questionamento em si, visto que é obviamente saudável que se debata democraticamente os critérios adotados para aferir os valores reparatórios, mas sim o modo desrespeitoso e mal informado pelo qual, em muitas ocasiões tal questionamento é feito. Utiliza-se aqui como exemplo a cobertura dada pelo Jornal O Globo53 no lançamento do Projeto Caravanas da Anistia, ocorrido na sede da Associação Brasileira de Imprensa (ABI) no Rio de Janeiro no dia 04 de abril de 2008, e em especial às reparações que foram concedidas aos jornalistas e cartunistas Ziraldo e Jaguar.                                                                                                                                                                                                                                                                                                                             experimentado flagrante ambiguidade. Quanto ao reclamo de Mezarobba de que o procedimento da concessão da reparação seja igual ao da época de Figueiredo, importa dizer que o Estado não deve mesmo conceder de ofício tal reparação. É um direito do experseguido político querê-la ou não, havendo até mesmo os que a repudiam. E é claro que o pedido deverá ser analisado e, caso concedido, que a decisão seja publicada mesmo no Diário Oficial da União, como o devem ser todos os atos públicos. Basta lembrar que cerca de 34% dos pedidos feitos à Comissão foram indeferidos, e que muitos não guardavam qualquer relação com a perseguição política praticada na ditadura. Por fim, as aspas que a autora coloca na expressão "conhecimento histórico", atribui uma conotação pejorativa às Caravanas da Anistia, o que é grave caso nos lembremos de que nelas o ponto alto é justamente o testemunho dos que foram perseguidos politicamente. Figuras como Clara Scharf, Teodomiro Romeiro dos Santos, Gilney Vianna, João Vicente Goulart Filho, Joseph Comblin, Rose Nogueira, Alípio Freire, Maurice Politti, Perly Cipriano, Suzana Lisboa, Iara Xavier Pereira, Raul Pont, Hildegard Angel, Carlos Eugênio da Paz, Denise Crispim, e tantos outros já deram seu testemunho em Caravanas que reunem jovens, adultos e idosos em locais públicos e espaços educativos. Afirmar que estes e tantos outros testemunhos não contribuem para divulgar conhecimento histórico sobre a ditadura é no mínimo estranho. 53 Em pesquisa feita no Jornal O Globo, de 2001 a 2010, sobre a repercussão das atividades da Comissão de Anistia foi possível constatar também que embora as críticas quanto aos valores e critérios praticados pela Comissão fosse uma constante nas notícias, houve uma incidência ainda maior de notícias destacando o papel político exercido pelos requerentes ou a perseguição que eles sofreram, resultado que surpreendeu a expectativa inicial da pesquisa. De um modo geral, a maior parte das notícias que destacavam a polêmica sobre os valores e critérios também fazia uma referência ao reconhecimento da perseguição sofrida e da militância exercida (Ver: SILVA FILHO, José Carlos. A Comissão de Anistia e a Concretização da Justiça de Transição no Brasil - Repercussão na Mídia Impressa Brasileira - Jornal O Globo - 2001 a 2010. In: SILVA FILHO, José Carlos Moreira da; TORELLY, Marcelo Dalmás; ABRAO, Paulo (Orgs.). Justiça de Transição nas Américas - olhares interdiscilinares, fundamentos e padrões de efetivação. Belo Horizonte: Forum, 2013. prelo).

Em notícia publicada no dia 05 de abril de 2008, logo após a realização da Caravana, e que traz o título "Criticaram a ditadura e ganharam R$ 1 Milhão"54, não só fez-se uso da pejorativa expressão "Bolsa-Ditadura"55, como também deixou-se de lado a explicação acerca dos critérios para a fixação dos valores. Como se pode deduzir do próprio título da notícia, bem como do seu texto, o que causou perplexidade ao Jornal foi a concessão do retroativo, não propriamente do valor fixado para a reparação mensal, mas na notícia não se fornece uma explicação sobre o que consiste e sobre como é calculado o valor do retroativo. O julgamento dos pedidos de reparação de Ziraldo e de Jaguar marcou, além do lançamento do Projeto Caravanas da Anistia, a comemoração dos 100 anos da ABI. Curiosamente, a própria imprensa, na comemoração dos 100 anos da entidade que a representa, não deu a importância que a ocasião merecia. No Jornal O Globo, por exemplo, mal foi mencionado que a cerimônia também homenageou os jornalistas Davi Capistrano, com a presença de sua viúva, Maria Augusta Capistrano, de 89 anos, e Vladimir Herzog; que o filho de Vladimir, Ivo Herzog, recebeu a placa de Maurício Azedo, presidente da ABI, em reconhecimento ao papel de seu pai na construção da democracia. Disse ele: “A história de Vlado não pertence apenas à minha família, mas ao Brasil. O que aconteceu com ele foi uma vergonha. O reconhecimento do Estado ajuda a não se cometer mais os mesmos erros”56. A indenização que Ziraldo e Jaguar receberam é fruto de um direito de status constitucional garantido pela Lei N° 10.559/2002, a lei que regula a                                                                                                                 54

AUTRAN, Paula; DUTRA, Marcelo. Criticaram a ditadura e ganharam R$ 1 milhão. O Globo, Rio de Janeiro, 05 abr. 2008. Primeiro Caderno, p.18. 55 O termo "Bolsa-Ditadura" surgiu pela primeira vez em texto do jornalista Elio Gaspari publicado no Jornal O Globo em 12 de março de 2008, intitulado: "Em 2008 remunera-se o terrorista de 1968". O texto comentava a reparação recebida por Diógenes Carvalho de Oliveira, apontado como uma das pessoas que teria colocado uma bomba no Consulado Estadunidense em São Paulo e cuja explosão vitimou Orlando Lovecchio Filho, que veio a perder uma perna. O jornalista compara a reparação recebida por Diógenes com uma pensão especial recebida por Lovecchio (que não provém da Comissão de Anistia), sendo esta menor que aquela. Neste texto, mesmo reconhecendo o direito de Diógenes, Gaspari critica a reparação menor recebida por Lovecchio e utiliza pela primeira vez o termo "BolsaDitadura" para se referir à reparação pecuniária determinada pela Comissão de Anistia, demarcando sem dúvida um tom pejorativo para ela (GASPARI, Elio. Em 2008 remunera-se o terrorista de 1968. O Globo, Rio de Janeiro, 12 mar. 2008. Seção Elio Gaspari, p.7). 56 Disponível em http://www.vermelho.org.br/noticia_print.php?id_noticia=33245&id_secao=1. Acesso em 12/10/2012.

anistia política no Brasil, e que, por sua vez, se apóia no Art.8º do ADCT. A Lei prevê que quem perdeu seu emprego ou atividade laboral por ter sido perseguido politicamente pelo regime ditatorial faz jus a uma prestação mensal, permanente e continuada no valor do salário que hoje teria se não houvesse sido demitido ou perdido sua atividade laboral. O valor dessa prestação pode levar em conta os planos de carreira e as progressões e promoções previstas para cada tipo de profissão (funcionários públicos, militares, professores, jornalistas, profissionais liberais, etc). A Comissão de Anistia, como forma de estabelecer valores razoáveis para as indenizações, e a partir do que a própria lei lhe permite 57 , tem adotado de modo predominante desde 2008 o critério médio indicado em planos de cargos e salários estabelecidos em pesquisas de mercado que são atualizadas mês a mês. Importa saber que tanto Ziraldo quanto Jaguar tiveram fechados pelos agentes da repressão jornais e revistas que fundaram e nos quais trabalharam. O valor fixado para ambos, com base na atividade laboral que perderam, foi de R$ 4.375,88 por mês, valor ao qual farão jus mensalmente até o fim da vida. Não é, portanto, um salário exorbitante ou acima da média do que recebem muitos profissionais de classe média no Brasil. O alto valor alardeado pela grande mídia (em torno de R$ 1 milhão) diz respeito ao retroativo. De acordo com o art.6º, parágrafo 6º da Lei N° 10.559/2002, o anistiado tem o direito de receber o retroativo equivalente aos cinco anos anteriores à data de entrada do pedido de anistia, até o limite do dia da promulgação da Constituição Federal de 1988. Esse direito é bem menor do que, por exemplo, alguém que é reintegrado ao serviço público por decisão judicial, pois, neste caso, o reintegrado faz jus ao valor de todos os salários que não recebeu desde a data em que foi exonerado. Acrescente-se, ainda, que somente quando a prestação mensal, permanente e continuada for até o valor de R$ 2.000,00 é que o valor do retroativo será recebido em uma única

                                                                                                                57

O Art. 6º, § 1º da Lei 10.559/2002 prevê expressamente a possibilidade de que o valor da prestação mensal, permanente e continuada seja arbitrada com base em pesquisa de mercado.

parcela, quando o valor ultrapassa tal soma, o retroativo é pago em parcelas diferidas por 9 anos58. Outro aspecto que é sempre bom lembrar é o fato de que, para a grande maioria dos perseguidos políticos pela ditadura militar, a anistia de 1979 nada representou em termos de indenização ou reparação econômica. Os valores dos retroativos hoje são altos porque o Estado demorou mais de 20 anos para pagar a sua dívida com essas pessoas, ou seja, mais tempo do que durou o próprio golpe militar. O que eles hoje recebem de indenização representa, na maioria dos casos, o salário que não ganharam esse tempo todo. O Estado ainda está em mora com muitos perseguidos políticos59 , sendo que muitos deles morreram sem ver a sua anistia reconhecida, sem ter recebido a sua indenização e, o que é pior, sem a sua reabilitação moral diante da sociedade brasileira, que só um instituto como a anistia política pode dar. Em respeito à luta de todas essas pessoas e a toda sociedade brasileira, não se pode admitir expressões ofensivas, maldosas e injustas como “Bolsa-Ditadura”. É bem verdade que ocorreram algumas indenizações cujo valor mensal fixado foi muito alto e acima da média do trabalhador brasileiro. Mas casos como este são isolados e localizados mais ao início das atividades da Comissão. A média dos valores das prestações mensais (quando é o caso de prestação mensal e não de prestação única) é de R$ 2.960,5260. É preciso também saber que, dos requerimentos já julgados pela Comissão de Anistia até o final de 2010, cerca de 34% foram indeferidos. Além disso, 41,33% de todos os requerimentos apreciados pela Comissão até Dezembro de 2010                                                                                                                 58

Conforme estabelecido na Lei 11.354/2006, disponível em http://legislacao.planalto.gov.br/legisla/legislacao.nsf/Viw_Identificacao/lei%2011.3542006?OpenDocument . Acesso em 12/10/2012. 59 Até Dezembro de 2010 foram autuados 68.517 requerimentos de anistia na Comissão de Anistia, dos quais 57.628 foram julgados até Dezembro de 2010. Deste total, até Dezembro de 2010, foram indeferidos 19.603 (34%) e deferidos 38.025 (66%). Dados obtidos em: RELATÓRIO ANUAL DA COMISSÃO DE ANISTIA - 2010. Brasília: Ministério da Justiça, 2010. p.119. 60 Este valor é referente à média de valores de prestações mensais concedidas durante a gestão de Tarso Genro no Ministério da Justiça (2007-2010). Levando-se em conta cada gestão do Ministério desde a criação da Comissão de Anistia, tem-se as seguintes médias de valores das prestações mensais: José Gregori (R$ 5.644,52), Aloysio Nunes Ferreira Filho (R$ 4.049,02), Miguel Reale Júnior (R$ 3.294,13), Paulo de Tarso R. Ribeiro (R$3.861,24), Márcio Thomaz Bastos (R$ 3.935,70). Dados obtidos em: RELATÓRIO ANUAL DA COMISSÃO DE ANISTIA - 2010. Brasília: Ministério da Justiça, 2010. p.120.

foram deferidos mas sem a concessão de qualquer reparação econômica61, visto que a Lei 10.559/2002 prevê outros direitos além desta modalidade de reparação, tais como: a declaração de anistiado político, a contagem do tempo, a reintegração/readmissão de servidores e empregados públicos e a conclusão de curso interrompido por perseguição política em escola ou Universidade pública. Estabelecer um procedimento público mediante o qual o Estado reconheça que errou ao perseguir, torturar, matar e seviciar cidadãos que estavam sob sua custódia, e estabelecer uma indenização para aqueles que foram alvo da repressão estatal, muitos dos quais com vidas destruídas e dilaceradas, é o mínimo que um país que se pretenda uma democracia deve prover, já que, até o presente, não julgou aqueles que torturaram e mataram sob o manto do Estado. Trata-se de um princípio elementar do Direito: quem causou o dano deve repará-lo. E quando o Estado, via legislativo, assume a causação deste dano e indeniza o lesado (em um valor infinitamente menor ao que efetivamente muitos perderam, e com relação a prejuízos de ordem física e moral incalculáveis), sem a necessidade do processo judicial, é sinal de um pacto democrático, de resgate da memória, de reconciliação62 com os erros do passado, e que está firmado na Constituição de 1988. Por outro lado, nenhum dos agentes públicos que cometeram as atrocidades inenarráveis que a Comissão de Anistia lê, ouve e constata em                                                                                                                 61

ABRAO, Paulo; TORELLY, Marcelo D. O programa de reparações como eixo estruturante da justiça de transição no Brasil. In: REÁTEGUI, Félix (Org.). Justiça de Transição - manual para a América Latina. Brasília: Comissão de Anistia, Ministério da Justiça; New York: International Center for Transitional Justice, 2011. p.491. 62 Termos como "reconciliação" e "perdão" provém da esfera religiosa e quando utilizados para o plano político devem ser compreendidos como metáforas relacionadas à esfera pública. O perdão, propriamente dito, assim como a reconciliação, remetem a um plano pessoal estranho ao da política, privativo das vítimas e dos ofensores diretos (Ver: SILVA FILHO, José Carlos Moreira da . Memória e Reconciliação Nacional: o impasse da anistia na inacabada transição democrática brasileira. In: PAYNE, Leigh; ABRÃO, Paulo ; TORELLY, Marcelo D. (Org.). A Anistia na Era da Responsabilização: o Brasil em perspectiva internacional e comparada. Brasília; Oxford: Ministério da Justiça; Oxford University, 2011. p. 278-307). Ao invocar a reconciliação para a esfera pública, quer-se indicar a recuperação da confiança nas instituições públicas que foram cúmplices e permitiram operacionalmente a prática de crimes contra a humanidade, cujas vítimas foram os próprios cidadãos. Em um país como o Brasil, no qual o Judiciário, amplamente cúmplice dos crimes da ditadura, e as forças de segurança, executoras diretas da opressão, continuam a encobrir a gravidade desses crimes e a praticar a tortura sistematicamente, a efetiva reconciliação, possível no espaço público, está longe de acontecer, a despeito de todas as ações de reparação que vem sendo empreendidas pela Comissão de Anistia e pela Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos.

seus requerimentos e sessões de julgamento, perdeu o seu emprego por isto, continuando a receber seus salários e, depois, a sua aposentadoria ou pensão. Certamente se fosse calculado o valor das pensões militares pagas a todos os militares que se envolveram diretamente na prática de crimes contra a humanidade, seja ordenando, executando ou se omitindo, o valor superaria de longe o que o Estado brasileiro vem pagando aos experseguidos políticos. Por outro lado, é também importante saber que a Lei de Anistia de 2002, embora tenha sido, juntamente com a Lei Nº 9.140,1995 que instituiu a Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos, o caminho pelo qual foi possível trazer à tona a discussão sobre as dívidas em aberto da ditadura, também tem as suas imperfeições e incoerências, visto que representa o resultado de um embate político de forças no qual prevaleceu a pressão dos funcionários públicos, dos empregados da iniciativa privada com carteira assinada e os profissionais liberais que conseguirem comprovar o exercício da sua atividade à época da perseguição. Para estes, como já se disse, a indenização prevista (desde que se comprove que a perda do emprego ou da atividade laboral se deu por motivação exclusivamente política) é uma prestação mensal, permanente e continuada que tem como critério para sua fixação o valor do salário que aquele profissional estaria recebendo hoje caso não houvesse sido demitido63, recebendo, ainda, o retroativo equivalente a 5 anos antes da formulação do pedido de indenização, tendo como limite a data de 05 de outubro de 1988. Por outro lado, quem não conseguiu comprovar perda de vínculo laboral por motivação política (porque não era empregado ou funcionário público - sendo estudante, por exemplo), mas foi preso, torturado, monitorado, etc, tem o direito a receber uma indenização em prestação única equivalente a 30 salários mínimos por ano ou fração de ano de perseguição política, até o limite de R$100.000,00. Constata-se com isto que a Lei de Anistia simplesmente reproduz o modelo desigual já existente na sociedade                                                                                                                 63

Importa esclarecer que a natureza da prestação mensal, permanente e continuada, assim como da prestação única, não é salarial nem previdenciária. É indenizatória. O que tem caráter trabalhista é, tão-somente, o critério escolhido pela lei para a fixação do valor indenizatório.

brasileira, no qual um agricultor, um jornaleiro, um servente, etc ganha muito menos do que um alto funcionário público, um jornalista, um advogado, etc. Um estudante, por exemplo, pode ter oferecido intensa resistência e mobilização política contra a ditadura e receber no máximo R$100.000,00, enquanto um funcionário público ou um bancário, pode não ter tido qualquer mobilização mais expressiva (sendo demitido, por exemplo, porque o seu irmão era filiado ao PCB) e receber um valor muitíssimo maior. Apesar disto, importa lembrar que tais critérios foram definidos em lei, discutida democraticamente e em acordo com as instituições públicas e a Constituição, não são fruto do que a Comissão e seus Conselheiros e Conselheiras acham o mais adequado. A Lei de Anistia de 2002 foi bem mais além do que a de 1979, mas ainda padece de insuficiências e incoerências. Foi aquela possível de se alcançar no momento político em que surgiu. E se ela por um lado perpetua injustiças e desigualdades estruturais do modelo econômico capitalista no qual estamos mergulhados, ela permite, como já se disse, que o Estado brasileiro reconheça publicamente que errou ao perseguir, matar e torturar pessoas que deveria proteger, e por cujos direitos deveria zelar. Permite que o Estado formalize publicamente o pedido de desculpas pela perseguição promovida, com declaração que consta no texto dos votos e que é feita presencialmente sempre que o anistiado está presente à sessão de julgamento. A história dos perseguidos políticos da ditadura civil-militar brasileira está sendo contada agora, nos processos de todos eles. A história contada pelos documentos oficiais de monitoramento já se conhece em parte, embora com lacunas atrozes que se devem ao caráter ainda autoritário das forças armadas, que se negam a divulgar os seus arquivos e a informar a localização dos restos mortais dos desaparecidos políticos. Muitos fatos só estão agora vindo à tona. Se não houvesse a lei da anistia o debate estaria submerso, e se estaria ainda mais distante de uma autêntica democracia. 6. A Comissão de Anistia e o debate sobre a responsabilização penal dos agentes da ditadura

O processo de transição política brasileiro, ainda em curso, teve a peculiaridade de ser capitaneado, ainda que tardiamente, pelos processos de reparação, um dos pilares do conceito de justiça de transição. As Comissões de reparação brasileiras, em especial a Comissão de Anistia, acabaram por inserir em suas atividades a presença de outros dois pilares do conceito (o quarto e último pilar é a Reforma das Instituições Democráticas, ainda pendente de um enfretamento mais direto): a Justiça e o Direito à Memória e à Verdade64. A Justiça diz respeito à responsabilização de caráter penal aos agentes públicos que cometeram crimes de lesa-humanidade. Foi somente após quase trinta anos da edição da Lei de Anistia de 1979 que finalmente o tema do julgamento dos agentes repressores da ditadura brasileira por violações aos direitos humanos e por cometimento de crimes contra a humanidade conseguiu sair do círculo mais restrito dos familares e amigos das vítimas do regime de exceção e dos grupos militantes, alcançando de modo insistente as páginas dos principais jornais do país e a esfera pública institucional. Há um episódio que demarcou claramente esta mudança de cenário65. No dia 31 de julho de 2008 a Comissão de Anistia organizou uma audiência pública no prédio sede do Ministério da Justiça em Brasília para discutir as possibilidades jurídicas de julgamento dos torturadores que atuavam em prol do governo ditatorial. A reação da imprensa foi imediata e incessante, e, apesar da tentativa inicial de desqualificar o debate, pautou o tema com elevada frequência em jornais, revistas e outros meios de massa. Artigos a favor e contra a possibilidade do julgamento eram publicados e não paravam                                                                                                                 64

Também consultar: ABRÃO, Paulo; TORELLY, M. D.; ALVARENGA, R. V.; BELLATO, S. A. Justiça de Transição no Brasil: o papel da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça.In: Revista Anistia Política e Justiça de Transição. Brasília: Ministério da Justiça, n.º 1, p.1221, jan/jun, 2009. 65 Importante também mencionar a corajosa e importante sentença do juiz Gustavo Santini Teodoro, de outubro de 2008, confirmada pelo Tribunal de Justiça paulista em agosto de 2012, e que, embora só tenha efeitos declarativos, foi a primeira manifestação judicial que reconheceu explicitamente um ex-agente público brasileiro como torturador: o Coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, apontado em dezenas de relatos de ex-perseguidos como torturador e que foi comandante da temida Operação Bandeirante em São Paulo na década de 70. É muito pouco para um Poder Judiciário que se pretende democrático e garantidor de direitos fundamentais. O Poder Judiciário, dos três poderes da República, é o mais avesso à discussão transicional, especialmente quando o tema é a responsabilização dos agentes da ditadura.

de surgir nas páginas dos principais jornais do país. Até então este parecia um assunto proibido. O então Presidente do Conselho Federal da OAB, Cezar Britto, compareceu à audiência e meses depois, sob a influência da discussão, mobilizou o Conselho e propôs, com a assinatura de Fábio Konder Comparato, a Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental Nº 153 no STF. Nesta ação a Ordem dos Advogados do Brasil pretendeu que o Supremo Tribunal Federal firmasse uma interpretação restritiva ao Art. 1º, §1º da Lei 6683/79, portanto não se trata de propor a “revisão” ou “anulação” da Lei de Anistia como se alardeou indevidamente na mídia brasileira, mas sim a sua interpretação adequada. A interpretação prevalecente até hoje é a de que ao utilizar a expressão “crimes políticos ou conexos com estes” a lei anistiou não apenas os perseguidos políticos, mas também os agentes públicos que tenham cometido crimes de lesa-humanidade na perpetração dessas perseguições. O intuito da OAB era o de provocar o STF a dizer que a Anistia não deve ser estendida para estes casos. A ação foi interposta em outubro de 2008 e julgada nos dias 28 e 29 de abril de 2010, com o resultado de sete votos a dois pelo indeferimento da ação. Em outro artigo já se teve a oportunidade de comentar longamente esta decisão66. Resumindo brevemente, foi uma péssima decisão, seja pelo resultado, seja, principalmente, pelos seus fundamentos. Destaca-se aqui                                                                                                                 66

SILVA FILHO, José Carlos Moreira da . O Julgamento da ADPF 153 pelo Supremo Tribunal Federal e a Inacabada Transição Democrática Brasileira. In: Wilson Ramos Filho. (Org.). Trabalho e Regulação - as lutas sociais e as condições materiais da democracia. Trabalho e Regulação - as lutas sociais e as condições materiais da democracia. Belo Horizonte-MG: Fórum, 2012, v. 1, p. 129-177. Registre-se ainda alguns episódios contextuais importantes: o Ministro Relator negou pedido de audiência pública formulado pela OAB em 2010; o processo foi posto subitamente em pauta, coincidentemente ou não, com um mês de antecedência em relação à audiência na Corte Interamericana de Direitos Humanos, a propósito do Caso Araguaia, no qual o Brasil figurava pela primeira vez no banco dos réus por crimes cometidos pela ditadura; foi notória a influência e o desejo do então Presidente Lula pelo indeferimento da ação, o que foi representado simbolicamente por um jantar oferecido a todos os magistrados do STF no Palácio do Planalto no primeiro dia de julgamento da ADPF 153; e, o Ministro Marco Aurélio Mello, meses antes do julgamento da ADPF 153 concedeu entrevista em cadeia nacional na qual afirmou que a ditadura foi um “mal necessário”, e que “foi melhor não esperar para ver” o que iria acontecer. A entrevista foi dada ao repórter Kennedy Alencar no programa “É notícia” da Rede TV! E foi ao ar no dia 22 de fevereiro de 2010. O seu vídeo está disponível em: http://mais.uol.com.br/view/e0qbgxid79uv/ditadura-foi-um-mal-necessario-diz-Ministro-do-stf04029C3768D8C14326?types=A . Acesso em 12 de outubro de 2012.

alguns dos mais críticos: incorreu-se fartamente na já comentada falácia do acordo; perverteu-se o lema da anistia (anistia ampla, geral e irrestrita) afirmando-se que o sentido da amplitude, defendido pelos movimentos sociais pela anistia, abarcava também os torturadores (quando na verdade se voltava aos que estavam presos por envolvimento na resistência armada, e que no fim não foram anistiados pela Lei de 1979); comparou-se a anistia brasileira com a sul-africana, esquecendo-se que nesta era condição para a anistia o reconhecimento da autoria da violência praticada; decantou-se candidamente a cordialidade do povo brasileiro como explicação para a nossa anistia “ampla”, classificada pelo Ministro Marco Aurélio Mello como “um ato de amor”; buscou-se vincular, limitar e amordaçar a soberania do legislador constituinte ao que estatuía em termos de anistia a Emenda N° 26/1985, como se a Constituição de 1988 não fosse soberana neste assunto e estivesse materialmente limitada; muito embora não se possa encontrar nenhum caso de conexão na doutrina penal que acolha a ideia de que os crimes praticados pelos agentes da ditadura contra os perseguidos políticos eram conexos aos atos destes considerados como criminosos pela Lei de Segurança Nacional, afirmou-se que se tratava de um novo tipo de conexão penal, criado ali mesmo pela Lei de Anistia de 1979; e, por fim, que durante a ditadura vivíamos uma República, ou seja, que se pode considerar Direito um conjunto esdrúxulo de Atos Institucionais e Leis draconianas infensos a qualquer controle jurisdicional que pervertiam a existência e a interpretação de qualquer outra norma jurídica no sistema. Os maiores absurdos da decisão do STF na ADPF 153, porém, podem ser colhidos no campo do Direito Internacional, especialmente na rotunda ignorância e desprezo que os Ministros e Ministras da corte dedicaram ao Direito Internacional dos Direitos Humanos67: ignorou-se completamente o conceito de “crimes contra a humanidade”, pedra angular da nova ordem internacional que emergiu após a Segunda Guerra Mundial 68 ; ignorou-se                                                                                                                 67

Sobre este ponto, ver especialmente o artigo de Deisy Ventura: VENTURA, Deisy. A interprtação judicial da Lei de Anistia brasileira e o Direito Internacional. In: PAYNE, Leigh A.; ABRÃO, Paulo; TORELLY, Marcelo D. (Orgs.). A anistia na era da responsabilização – o Brasil em perspectiva internacional e comparada. Brasília: Ministério da Justiça; Oxford: Oxford University, 2011. p.308-343. 68 O crime contra a humanidade foi inicialmente definido, no Acordo de Londres de 1945 em seu artigo 6º, como “o assassínio, extermínio, sujeição à escravatura, deportação ou

completamente a jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos, que veda a auto-anistia; projetou-se uma noção fraca e estapafúrdia do costume internacional ao não considerá-lo como fonte do Direito Penal Internacional; desprezou-se a ratificação e a forte atuação da delegação brasileira no Acordo de Londres de 1945; desconheceu-se até mesmo as Convenções de Genebra e a vedação que estas trazem de que, no caso de conflitos internos, os Estados-Parte não podem matar pessoas indefesas, muito menos torturá-las; não se cogitou que a imprescritibilidade dos crimes contra a humanidade é da sua própria natureza, visto que os governos autoritários e suas forças de sustentação nunca investigam seus próprios crimes e atravancam ao máximo sua posterior investigação na transição política; despercebeu-se que a imprescritibilidade destes crimes já estava, na época da ditadura, reconhecida e assegurada em Resoluções da Assembléia da ONU e no costume internacional; e exilou-se a constatação óbvia de que uma junta militar ditadora nunca iria ratificar um tratado internacional de prevenção à tortura. Mais vergonhosa ainda ficou a decisão do STF quando em Novembro de 2010 o Brasil foi condenado no Caso Gomes Lund e registrou-se com todas as letras, e por unanimidade, que As disposições da Lei de Anistia brasileira que impedem a investigação e sanção de graves violações de direitos humanos são incompatíveis com a Convenção Americana, carecem de efeitos jurídicos e não podem seguir representando um obstáculo para a investigação dos fatos do presente caso, nem para a identificação e punição dos responsáveis, e tampouco podem ter igual ou semelhante

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                            qualquer outro ato desumano cometido contra quaisquer populações civis, ou as perseguições por motivos políticos, raciais ou religiosos, quando esses atos ou perseguições forem cometidos na seqüência de um crime contra a paz ou de um crime de guerra, ou em ligação com estes crimes” (GARAPON, Antoine. Crimes que não se podem punir nem perdoar – para uma justiça internacional. Tradução de Pedro Henriques. Lisboa: Piaget, 2004. p.24-25). A partir daí o conceito de crime contra a humanidade obteve um franco desenvolvimento nos Estatutos e nas decisões dos Tribunais Penais Internacionais, passando a figurar como uma categoria cada vez mais autônoma em relação à guerra. É possível, sucintamente, identificar a constância de três elementos que o caracterizam: a) o caráter inumano e hediondo do ato criminoso; b) a enunciação não taxativa da enumeração destes atos; e c) o fato de que sejam praticados em meio a uma política de perseguição geral e sistemática a uma parcela da população civil (INTERNATIONAL CENTER FOR TRANSITIONAL JUSTICE – ICTJ. Parecer técnico sobre a natureza dos crimes de lesahumanidade, a imprescritibilidade de alguns delitos e a proibição de anistias. In: Revista Anistia Política e Justiça de Transição, Brasília, n.1, p.352-394, jan.-jun. 2009. p.356-357).

impacto a respeito de outros casos de graves violações de direitos 69 humanos consagrados na Convenção Americana ocorridos no Brasil .

A Corte Interamericana de Direitos Humanos anotou que a Suprema Corte brasileira em sua decisão na ADPF 153 não realizou o controle de convencionalidade ao qual estaria obrigada, já que é um dos poderes do Estado brasileiro, o mesmo Estado que se vinculou voluntariamente à Convenção Americana e à jurisdição da Corte. Logo, fazendo referência explícita à interpretação chancelada pelo STF à Lei de Anistia, assim declarou a sentença da Corte Interamericana em sua fundamentação: No presente caso, o Tribunal observa que não foi exercido o controle de convencionalidade pelas autoridades jurisdicionais do Estado e que, pelo contrário, a decisão do Supremo Tribunal Federal confirmou a validade da interpretação da Lei de Anistia, sem considerar as obrigações internacionais do Brasil derivadas do Direito Internacional, particularmente aquelas estabelecidas nos artigos 8 e 25 da Convenção Americana, em relação com os artigos 1.1 e 2 do mesmo instrumento. O Tribunal estima oportuno recordar que a obrigação de cumprir as obrigações internacionais voluntariamente contraídas corresponde a um princípio básico do direito sobre a responsabilidade internacional dos Estados, respaldado pela jurisprudência internacional e nacional, segundo o qual aqueles devem acatar suas obrigações convencionais internacionais de boa-fé (pacta sunt servanda). Como já salientou esta Corte e conforme dispõe o artigo 27 da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados de 1969, os Estados não podem, por razões de ordem interna, descumprir obrigações internacionais. As obrigações convencionais dos Estados Parte vinculam todos seus poderes e órgãos, os quais devem garantir o cumprimento das disposições convencionais e seus efeitos próprios (effet utile) no plano 70 de seu direito interno .

Assim, conclui a sentença: O Estado deve conduzir eficazmente, perante a jurisdição ordinária, a investigação penal dos fatos do presente caso a fim de esclarecê-los, determinar as correspondentes responsabilidades penais e aplicar 71 efetivamente as sanções e consequências que a lei preveja .

No momento em que se escreve este artigo, pairam nas mãos do Ministro Luis Fux, substituto do aposentado Ministro Eros Grau, os Embargos                                                                                                                 69

Sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos Caso n.º 11.552 – Julia Gomes Lund e outros vs Brasil. 24 de novembro de 2010. Disponível em: http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_219_por.doc Acesso em 12/10/2012. p.114. 70 Ibidem p.66. 71 Ibidem p. 115.

Declaratórios propostos pelo Conselho Federal da OAB nos quais se pede que o Supremo se manifeste explicitamente sobre a compatibilidade de sua decisão na ADPF 153 com a decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso Araguaia. Em outras palavras, a decisão do STF na ADPF 153 ainda não está finalizada e ainda não transitou em julgado. Caso, o STF teime em persistir no erro da sua decisão e nem o executivo nem o legislativo tomem atitudes que superem este entendimento, o Brasil estará claramente violando suas obrigações internacionais, e passará, como disse Fabio Konder Comparato, a ser um “fora-da-lei” internacional. 7. A Comissão de Anistia e o Direito à Memória e à Verdade Tratando agora das ações da Comissão de Anistia no plano do Direito à Memória e à Verdade é preciso mais uma vez lembrar que os seus arquivos registram a narrativa daqueles que sofreram a perseguição empreendida pelo Estado, afinal, é condição para a concessão da reparação econômica que sejam conhecidos e comprovados os fatos relacionados à perseguição política. E este processo de conhecimento dá-se a partir da iniciativa peticionária dos anistiandos, não se dá por ofício. Porém, almejando a comprovação dos fatos alegados na inicial do Requerimento de Anistia, a Comissão pode, mediante diligências aos órgãos públicos, reforçar o conjunto probatório juntado pelo requerente aos autos. Cada processo que chega ao seu deferimento traz um conjunto riquíssimo de documentos, dentre os quais se destacam as narrativas fornecidas pelos ex-perseguidos políticos. Tais narrativas são ainda reforçadas pelos testemunhos presenciais que muitos dos requerentes fazem na ocasião dos seus julgamentos, todos devidamente gravados. Ora, se é verdade que o campo historiográfico já renunciou acertadamente à ideia de uma história ou narrativa oficial, também é verdade que dentre todas as narrativas existentes sobre violências e tragédias, a narrativa das vítimas ganha precedência, não só por uma questão moral que não pode ser contornada, mas também pelo fato de que a vítima dessas violências tem a capacidade de reconstituir o fio da história, estabelecendo a ponte que o seu

testemunho fornece entre aquilo que é inenarrável ou inominável e a própria realidade72 . Ao abrir o espaço público para essas narrativas a Comissão contribui fortemente para recolocar politicamente no cenário público aqueles que foram expulsos da comunidade política, violados, agredidos e desumanizados. Muito mais relevante do que prover uma reparação econômica, portanto, é realizar uma reparação moral73, calcada na esfera do reconhecimento74, seja do papel político de resistência e do padecimento de violações atrozes, seja do caráter abominável dos atos praticados pelos agentes públicos, e do caráter ilegítimo de um governo ditatorial que adota como política generalizada a prática de crimes internacionais. Não bastasse tal fato, inerente à própria razão de ser da Comissão de Anistia, e as políticas de memória já comentadas acima, foi ela quem, principalmente desde 2007, quando assume sua presidência Paulo Abrão Pires Junior, trouxe para o espaço público e também acadêmico75 do país a                                                                                                                 72

Este paradoxo do testemunho foi mais explorado em: SILVA FILHO, José Carlos Moreira da. O anjo da história e a memória das vítimas: o caso d a ditadura militar no Brasil. In: RUIZ, Castor Bartolomé (org.). Justiça e memória: por uma crítica ética da violência. São Leopoldo: UNISINOS, 2009. p.121-157. Sobre o tema, ver o excelente artigo de Márcio Seligmann-Silva: SELIGMANN-SILVA, Márcio. Narrar o trauma. A questão dos testemunhos de catástrofes históricas. In: UMBACH, Rosani Ketzer (org.). Memórias da repressão. Santa Maria: UFSM, PPGL, 2008. p.73-92. 73 Destacando o aspecto da reparação moral relacionada ao trabalho da Comissão de Anistia brasileira ver: ABRAO, Paulo; TORELLY, Marcelo D. Justiça de Transição no Brasil: a dimensão da reparação. In: SANTOS, Boaventura de Sousa; ABRAO, Paulo; MacDowell, Cecília; TORELLY, Marcelo D. (Orgs.). Repressão e Memória Política no Contexto IberoBrasileiro - Estudos sobre Brasil, Guatemala, Moçambique, Peru e Portugal. Coimbra: Universidade de Coimbra; Brasília: Ministério da Justiça, 2010. p.26-59. 74 A anistia como reconhecimento é trabalhada com profundidade teórica em: BAGGIO, Roberta. Justiça de Transição como reconhecimento: limites e possibilidades do processo brasileiro. In: SANTOS, Boaventura de Sousa; ABRAO, Paulo; MacDowell, Cecília; TORELLY, Marcelo D. (Orgs.). Repressão e Memória Política no Contexto IberoBrasileiro - Estudos sobre Brasil, Guatemala, Moçambique, Peru e Portugal. Coimbra: Universidade de Coimbra; Brasília: Ministério da Justiça, 2010. p.260-285. 75 A composição da Comissão de Anistia, especialmente a partir de 2007, contou com pessoas, tanto no Conselho como na equipe administrativa, fortemente vinculadas ao universo acadêmico. Um dos objetivos declarados do então Ministro da Justiça Tarso Genro era o de explorar as dimensões educativas da Comissão de Anistia. Para isto, nada mais coerente do que designar um professor universitário e pesquisador como presidente da Comissão. As atividades da Comissão nesse campo contribuíram fortemente para trazer um tema até então ignorado para o debate e a pesquisa na área do Direito e para dar um novo impulso a um tema não tão priorizado no campo das Ciências Sociais. Dentre as iniciativas mais importantes no campo do incentivo à pesquisa acadêmica estão: a) a criação de uma Revista científica chamada “Revista Anistia Política e Justiça de Transição”, com todos os números disponíveis digitalmente no site da Comissão de Anistia; b) a criação de uma rede nacional e internacional de estudantes, professores e pesquisadores das mais diversas áreas que se encontram duas vezes por ano para apresentarem trabalhos e discutirem os

discussão sobre o tema da Justiça de Transição. Foi no bojo desta temática que se colocou intensamente no espaço público e midiático brasileiro questões como a punição aos torturadores, a reparação moral às vítimas e a Comissão da Verdade, encampada posteriormente no III Plano Nacional de Direitos Humanos, organizado e construído sob a supervisão da Secretaria Especial de Direitos Humanos. Na prática, tanto a Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos quanto a Comissão de Anistia têm cumprido boa parte das funções de uma Comissão da Verdade, daí porque será decisivo para o bom funcionamento da Comissão da Verdade, instituída pela Lei N° 12.528/2011, que seja aproveitado o acúmulo de informações e a experiência de ambas, promovendo um trabalho conjunto e coeso. 8. Considerações Finais É nitidamente abissal a distância que separa a Anistia de 1979 e a Anistia instaurada com a Constituição de 1988 e regulamentada com a Lei N° 10.559 de 2002. É verdade que ambas surgiram da mobilização dos grupos sociais mais organizados em torno da temática, contudo, enquanto a primeira marcou uma política de esquecimento, a segunda abriu espaço para uma verdadeira explosão de políticas de memória. A anistia no Brasil segue ainda refém da ambiguidade e da própria divisão social ainda presente quando o assunto é ditadura, mas em sua fase mais recente o irregular e tortuoso caminho da anistia conseguiu pautar um amplo debate público sobre a transição brasileira, estimulando as iniciativas sociais, institucionais e acadêmicas em torno da questão. Ainda é difícil saber se todo esse resgate será o suficiente para que realmente se possa avançar rumo à implementação mais ampla de mecanismos transicionais e ao                                                                                                                                                                                                                                                                                                                             temas em comum, chamada de Grupo de Estudos em Internacionalização do Direito e Justiça de Transição - IDEJUST (maiores informações ver http://idejust.wordpress.com/); c) a realização de Seminários e Simpósios por todo o Brasil e em importantes parcerias internacionais (Universidad Pablo de Olavide na Espanha, Universidade de Coimbra, University of Oxford, entre outras); d) o lançamento dos editais “Marcas da Memória”, que apóiam financeiramente projetos culturais no Brasil de resgate da memória política; e) a construção do Memorial da Anistia Política na Universidade Federal de Minas Gerais, que guardará e organizará para a pesquisa os arquivos da Comissão de Anistia.

amadurecimento da democracia brasileira, no qual se possa mudar o sinal da cultura de violência e autoritarismo que ainda impregna fortemente os setores civis e as instituições públicas no Brasil, em especial as que lidam com a segurança, como as forças armadas, policiais e o poder judiciário. Tanto a transição política brasileira como a anistia seguem como tarefas inconclusas.

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