“A América Latina existe?”: A construção de identidade(s) a partir de um paradoxo.

June 30, 2017 | Autor: Fernanda Castro | Categoria: Latin American Studies, Latin American literature, Latin America, Isabel Allende, Identidade Nacional
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Seminário América Latina: Cultura, História e Política - Uberlândia - MG – 18 a 21 de maio de 2015

“A América Latina existe?”: A construção de identidade(s) a partir de um paradoxo. Fernanda Bom-Fim de CASTRO1

RESUMO

Este trabalho tem como objetivo analisar como são construídas as identidades nacionais e de uma suposta identidade latino-americana, dentro do paradoxo da existência da América Latina, a partir da historiografia e da literatura. O presente trabalho está dividido em duas partes: a primeira abrange a discussão dos textos de Adauto Novaes, Darcy Ribeiro, Emir Sader e Leslie Bethell; a segunda parte é analise do romance autobiográfico de Isabel Allende Meu País Inventado, que tem como objetivo compreender a construção da identidade chilena e como a América latina se insere neste constructo.

PALAVRAS-CHAVE: América Latina, Identidade, Literatura.

UMA AMÉRICA LATINA PARADOXAL

As discussões que permeiam o que é a América Latina são muitas, mas isso não significa que são conclusivas, a busca por definição parte de limites geográficos à origem da palavra, passando pelos usos e desusos do termo. Enquanto alguns autores afirmam a existência de uma América Latina, outros negam, bem como definem seu

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Graduanda em Licenciatura e Bacharelado em História pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU), email: [email protected].

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espaço geográfico, ora para definir todos os países abaixo dos Estados Unidos, ora como sinônimo de América do Sul, mas que nem sempre incluem o Brasil nesta definição. A partir dessas dificuldades entendemos que a América Latina em si, é um paradoxo, criando assim uma necessidade de debate a cerca do assunto, suscitando algumas perguntas pertinentes para a problematização: O que é a América Latina? Quem é essa América Latina? Quais são os usos e desusos do termo? E como essa (in) definição é percebida dentro da construção das identidades “latino-americanas”. Para tentar responder estas perguntas, as discussões serão feitas a partir das teses defendidas por Adauto Novaes, Darcy Ribeiro, Emir Sader e Leslie Bethell. Na segunda parte do trabalho o romance da escritora chilena Isabel Allende, “Meu País Inventado”, será nosso guia para compreender as questões que giram em torno das construções das identidades latino-americanas e chilena, bem como entender o papel da literatura nesta construção. O uso desta obra literária se justifica pela forma que Isabel Allende constrói sua narrativa a partir do golpe e da ditadura militar ocorrida no Chile, em que a autora busca definir a sua própria identidade dentro de uma certa “América”. A primeira tese a ser apresentada é do historiador Leslie Bethell, em seu texto “O Brasil e a idéia de „América Latina‟ em perspectiva histórica”, o autor busca a origem do conceito “América Latina”, identificado como de origem francesa e que este era utilizado pelos intelectuais franceses, para justificar a dominação do imperialismo francês sobre o México, argumentando sobre a existência de uma suposta afinidade lingüística e cultural entre os povos “latinos” (BETHELL 2009, p.290). Apesar de o autor identificar o conceito como de origem francesa, ele procura identificar outras origens, bem como quais foram os primeiros escritores e intelectuais a utilizarem o termo como José Maria Torres Caicedo, Francisco Bilbao e Justo Arosemena. Entre os intelectuais de 1850 e 1860, Bethell mostra que existia uma idéia de “consciência e identidade hispano-americana/latino-americana comum que supera os „nacionalismos‟ locais e regionais” e que a América Latina era totalmente distinta dos Estados Unidos, o qual era seu inimigo (Bethell 2009, p. 292), porém o uso dessa expressão pelos intelectuais do século XIX, não incluíam o Brasil, que para estes era distinto em demasia com o resto da América espanhola, a diferença geográfica, cultural, linguística, instituições políticas e uma sociedade baseada na agricultura e escravatura, apartavam assim o Brasil dos outros países latino-americanos. Segundo Bethell, o interesse de escritores e intelectuais brasileiros sobre a América Latina,veio tardiamente e quando se referiam ao Brasil “ não pensavam na América 2

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Espanhola – de fato, não se consideravam parte da „América Latina‟ -, e sim na Europa [...], em casos mais raros, na América como um todo, incluindo os Estados Unidos” (BETHELL 2009, p.93), somente nos finais do século XIX e começo do XX é que se começou a se pensar no Brasil dentro de uma América Latina, dentro do pensamento do pan-americanismo, o que acontece com o surgimento dos Estados Unidos como potência militar e a expansão do seu comércio. O Brasil, ao contrário dos outros países ao sul do Estados Unidos, não o via como inimigo, e segundo o autor, era mais favorável à ideia do pan-americanismo2 do que às repúblicas hispanoamericanas[...] Paralelamente, o Brasil tinha mais ambição do que as repúblicas hispano-americanas em desempenhas um papel internacional além do hemisfério, em prol disso, buscou e assegurou o apoio norte-americano. (BETHELL 2009, p. 298)

Para Bethell, o Brasil só passa a fazer parte da “América Latina”, quando os Estados Unidos e o restante do mundo, consideram “O Brasil parte integrante de uma região chamada Latin America, começando nos anos de 1920 e 1930 [...] quando ao mesmo tempo governos e intelectuais hispano-americanos passaram a incluir o Brasil no seu conceito de „América Latina‟” (BETHELL 2009, p. 306). O papel do Brasil, supostamente dado pelos Estados Unidos, era de que o país era uma potência no hemisfério sul, e sendo assim deveria agir como um “xerife” dentro desta “América Latina”. Mesmo que alguns intelectuais identificavam o Brasil como parte integrante da América Latina, alguns continuavam a considerar “que „América Latina‟ era sinônimo de América Espanhola, que o Brasil não pertencia à „América Latina‟ e que os brasileiros não eram essencialmente „latino-americanos‟ (BETHELL 2009, p.313). A relação do Brasil com a “América Latina/”Latin America”, segundo Bethell, mudou somente após ao fim da Guerra Fria, em que as mudanças no cenário político e econômico mudaram em todo mundo, e essencialmente no Brasil. A partir dos governos de Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva, o país se aproximou e estreitou a relação com os países vizinhos, e se afastando do Estados Unidos, mas sempre identificando a “América Latina” como América do Sul, sendo assim o Brasil assume um suposto papel de potência regional. Segundo Bethell, nas primeiras décadas

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Pan Americanismo - no dicionário: “1. Doutrina que defende a união ou aliança política de todos os países da América. 2. Cooperação das nações americanas entre si, em todos os assuntos de natureza política ou econômica "pan-americanismo", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 20082013, http://www.priberam.pt/dlpo/pan-americanismo [consultado em 10-06-2014].

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do século XXI, nas pesquisas de opinião do Centro Brasileiro de relações Internacionais no Rio de Janeiro, o termo “América Latina” não aparece nos índices. Bethell, em seu texto percorre o caminho da origem do termo (origem francesa) até o seu (des)uso no século XXI. Da “América Latina” que identificava a América Espanhola, a transformação em “Latin America” que inclui o Brasil, ao passo que depois torna-se sinônimo de “América do Sul” e assimilação pelos intelectuais e políticos brasileiros, e por fim o seu esquecimento. Sendo assim, o termo perdeu sua utilidade, se é que segundo Bethell, algum dia tenha existido. Ao contrário de Leslie Bethell, o antropólogo Darcy Ribeiro, em sua obra “A América Latina Existe?”, afirma a sua existência nas primeiras linhas do seu texto: “Existe uma América Latina? Não há dúvida de que sim. Mas é sempre bom aprofundar o significado desta existência” (RIBEIRO 2010, p. 23).

Ribeiro, parte da questão

geográfica para a sociopolítica, em que na primeira há uma continuidade continental, aspecto que nunca foi fator de unificação devido às diferenças de colonização das quais as sociedades latino-americanas nasceram, e na segunda nacionalidades singulares. O autor

segue

sua

tese

apontando

as

semelhanças

e

as

diferenças

que

aproximam/distanciam essas diferentes nacionalidades. Reduzindo a escala, segundo o autor é possível “distinguir duas categorias contrastantes. Um conteúdo luso-americano concentrado todo no Brasil e um conteúdo hispano-americano que congrega o restante. As diferenças entre uns e outros são pelo menos tão relevantes como as que distinguem Portugal da Espanha. Como se vê, pouco significativa [...] (RIBEIRO 2010, p.25).

A questão racial e de origem dos povos, aparece com destaque no texto de Ribeiro, na fala sobre semelhanças e diferenças, dá destaque ao elemento indígena e negro, mas apenas dentro do aspecto importante dentro da mestiçagem e do processo de branqueamento e incorporação destes mestiços na sociedade destes países latinoamericanos. Darcy Ribeiro ressalta e indica a importância das semelhanças e não das diferenças, destes países que segundo ele, são uniformes sem pertencer a uma unidade. Darcy Ribeiro defende o uso da expressão “América Latina” em oposição aos angloamericanos, em que na defesa de uma América Latina, ressalta os antagonismo culturais e socioeconômicos. O autor dando ênfase a discussão de quem é esse povo latinoamericano, vai da obra Utopia, de Tomas Morus, passando por todas as fases e aspectos da conquista da América, até a formação desse povo. Para Ribeiro, Uma característica singular da América Latina é sua condição de um conjunto de povo intencionalmente constituídos por atos e vontades alheios a eles mesmos. [...] [o que]

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nunca preocupou os governantes, foi o destino da população original, que aqui se encontrou e a que ela sucedeu, totalmente refeita. O povo sempre foi, nesse mundo nosso, uma mera força de trabalho, um meio de produção, primeiro escravo; depois assalariado; sempre avassalado. [...] Somos a resultante de empreendimentos econômicos exógenos que visavam saquear riquezas, explorar minas ou promover a produção de bens exportáveis, sempre com o objetivo de gerar lucros pecuniários. Se dessas operações surgiram novas comunidades humanas, isto foi resultante ocasional, não esperada e até indesejada. Nascemos de fato, pela acumulação de crioulos mestiçados racial e culturalmente, que se multiplicaram [...] Um dia essa mestiçaria foi chamada a virar um povo-nação que queria a independências.[...] Nunca chegamos a ser nações organizadas como quadro dentro dos quais o povo vive seu destino [...] O povo, primeiro era gentio pagão que só existia como matéria-prima [...] Depois, foi a negraria escrava importada como uma força energética que se queimava [...] Hoje, é a massa excessiva de gentes escuras, mestiços de índio e de preto, meio envergonhados de suas caras contrastantes com os padrões europeus de beleza e dignidade. (RIBEIRO 2010, p. 59,60,61)

A partir, desta origem e formação dos povos latino-americanos, o autor diferencia os povos da América , em quatro configurações a partir do processo de formação: Os povos testemunho, povos novos ( o resultante das três raça, que formam a população da América Latina), os povos transplantados ( América Saxônica e Canadá – no caso do continente americano) e os povos emergentes; configurações essas que corresponde ao modo de “fazimento da população e da nacionalidade” (RIBEIRO 2010, p. 66). Esses novos países formados por esses povos novos, que pode ser denominado por América Latina, segundo Ribeiro, se vê sempre como inferior, sempre olhando para a Europa, com seus olhos voltados para o atlântico e se esquecendo dos seus vizinhos de continente. Sendo assim, é preciso buscar uma identidade própria – a latino-americanae se assumir como um povo novo. As outras duas teses sobre o que é essa tal de “América Latina”, pertencem há uma mesma obra, “Oito visões da América Latina”, sendo o primeiro texto de Adauto Novaes, “Perto de um mundo distante”; e o segundo de Emir Sader, “Encontros e desencontros”. Adauto Novaes, filosofo e jornalista, em seu texto “Perto de um mundo distante”, introduz a temática do livro que foi organizado por ele. Novaes parte do pressuposto de que os latino-americanos se desconhecem e se desprezam, além de exaltar a importância de iniciarmos as discussão sobre o que é “América Latina” a partir das diferenças e dos diferentes mitos de origem e heróis “nacionais”. Sendo assim o autor prega pela multiplicidade de visões e seus paradoxos a cerca da definição de “América latina”.

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O sociólogo e cientista político, Emir Sader, em seu texto “Encontros e desencontros”, parte do pressuposto de que o Brasil não se vê como um país latino-americano: “Vista do Brasil, a América Latina não existe. Existe a Argentina, existe o México, existe Cuba e, principalmente os Estados Unidos [...] Em nossa identidade não se inclui ser um país “latino-americano” (SADER, NOVAES 2006, p. 177). Segundo Sader, a referência da construção da identidade brasileira, tem seus pés cravados na Europa, que se justifica pelas particularidades da nossa colonização, sendo o escravismo essencial par definir nossa identidade. Além disso, o fato como se deu a nossa independência, sem lutas ou guerra de independência, se difere dos demais países que compõe a América Latina, nos quais após romper os laços coloniais e se transpondo para republicas ex-escravitas, o Brasil continua sob o regime imperial e escravista. Segundo Sader, o Brasil passa a pertencer à “América Latina”, a partir do golpe de 1964 e da ditadura militar que se seguiu nos anos posteriores, ditaduras que também ocorreram nos outros países da América Latina. O olhar sobre o pertencimento a essa América Latina, muda no início do século XXI, quando a ALCA e o Mercosul, passam a assimilar a economia destes países, em que o Brasil aparece com destaque, sendo assim “O Mercosul representaria, pela primeira vez, abrir um caminho e um espaço para a construção coletiva da identidade latino-americana” (SADER, NOVAES 2006, p.183). A partir dos apontamentos destes quatro autores podemos identificar como a América Latina é percebida pelos intelectuais brasileiros. Entre uma existência externa (no qual não se inclui o Brasil) a uma identificação e assimilação a partir de diferentes marcos históricos e geográficos (América latina como sinônimo de América do Sul).

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América Latina é múltipla, e os olhos que se dirigem para ela podem ter visões muito diferentes. Para decifrar esses olhares, é preciso antes de tudo entender de onde a América Latina é olhada. (SADER, NOVAES 2006, p. 188).

Ao passo que Leslie Bethell e Emir Sader, discorrem sobre a inexistência de uma “América Latina”, que pode ser identificada também como América do Sul, o primeiro defende que o Brasil passou a se inserir num contexto de “América Latina” após a Guerra Fria e com os governos de FHC e Lula, e o segundo, a partir do golpe de 64 e da criação da ALCA e do Mercosul e que defende também uma multiplicidade de “Américas Latinas”. Darcy Ribeiro e Adauto Novaes, defendem a existência de uma

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“América Latina”, o primeiro exaltando as igualdade, o segundo acreditando que só é possível criar e entender uma América Latina a partir das diferenças. É impossível chegar a uma conclusão sobre o que é a América Latina, a cada teses que prova sua existência, existe uma que diz o contrário, criando assim um paradoxo que interfere na criação das identidades “nacionais” e porque não continentais e regionais. A partir das teses destes intelectuais brasileiros, podemos compreender a dificuldade de se criar uma identidade latino-americana, e como a identidade nacional do Brasil se insere nesse contexto. Sendo assim a segunda parte deste trabalho consiste na análise do romance biográfico de Isabel Allende “Meu País Inventado”, que tem como objetivo compreender a construção da identidade chilena e como a América latina se insere neste constructo. ISABEL ALLENDE E SEU “PAÍS INVENTADO” “Várias vezes me vi forçada a partir, rompendo laços e deixando tudo para trás, para começar de novo noutro lugar; fui peregrina por mais caminhos do que os que a memória me consente. De tanto me despedir secaramse-me as raízes e tive de gerar outras que, à falta de um lugar geográfico onde se fixarem, o fizeram na memória; mas, cuidado!, a memória é um labirinto onde espreitam minotauros” (ALLENDE, 2003)

O romance autobiográfico Meu País Inventado3, de Isabel Allende, publicado no ano de 2003, tem como tema a busca e a construção da identidade da autora, a partir de um Chile “inventado” e dentro de uma América (Latina), passando por outros temas como o machismo entre os chilenos, o feminismo e a revolução sexual dos anos 1970, racismo, geografia, religião e família. O tema e o termo América Latina são recorrentes em toda a obra. O livro de Allende parte de dois pontos principais: o golpe militar chileno de 1973 e de sua vida como imigrante desde a sua infância até a sua fixação nos Estados Unidos no ano de 1987 – “Contudo, e muito a contragosto, deambulei por cinco continentes e ainda por cima coube-me ser auto-exilada e imigrante” (ALLENDE 2003). Sobre o seu sentido de identidade a autora diz: Se até há pouco tempo me tivessem perguntado de onde sou, teria respondido, sem pensar muito, que não sou de sítio nenhum, ou latino-americana, ou talvez chilena de 3

A edição de Meu País Inventado utilizada neste artigo é uma versão digital e não possuí paginação, por tanto as referências relacionadas ao livro aparecem como (ALLENDE 2003), pois na ABNT ainda não possui uma norma especifica para referenciar obras digitais.

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coração. Hoje, porém, digo que sou americana, não só porque assim o testemunha o meu passaporte, ou porque essa palavra inclui a América de norte a sul, ou porque o meu marido, o meu filho, os meus netos, a maioria dos meus amigos, os meus livros e a minha casa estão no Norte da Califórnia, mas também porque ainda não há muito um atentado terrorista destruiu as torres gêmeas do World Trade Center e a partir desse momento algumas coisas mudaram. Não se pode permanecer neutral numa crise. Esta tragédia confrontou-me com o meu sentido de identidade; descubro que hoje sou mais uma dentro da variegada população norte-americana, tanto como antes fui chilena. Já não me sinto uma estranha nos Estados Unidos. (ALLENDE, 2003) Ao ver o colapso das torres, tive a sensação de haver vivido esse pesadelo de forma quase idêntica. Por uma arrepiante coincidência - karma histórico - os aviões sequestrados nos Estados Unidos despedaçaram-se contra os seus objetivos numa terçafeira, 11 de Setembro, exatamente o mesmo dia da semana e do mês - e quase à mesma hora da manhã - em que ocorreu o golpe militar do Chile, em 1973. Este último foi um ato terrorista orquestrado pela CIA contra uma democracia. [...]Nessa longínqua terçafeira de 1973 a minha vida despedaçou-se, nada voltou a ser como antes, perdi o meu país. A terça-feira fatídica de 2001 foi também um momento decisivo, nada voltará a ser como antes e eu ganhei um país. (ALLENDE, 2003)

Segundo Allende, mesmo com intento de escrever de forma linear, o desenvolvimento da história se dá de forma circular, em que os temas vão e voltam em sua história: Tenho andado a divagar mas devo retomar o fio, se é que há algum fio neste vaguear. É assim a nostalgia: uma lenta dança de roda. As recordações não se organizam cronologicamente, são como o fumo, tão cambiantes e efêmeras que, se não forem escritas, desaparecem no esquecimento. Tento organizar estas páginas por temas ou por épocas, mas isso torna-se para mim quase um sacrifício, visto que a memória vai e vem, como uma interminável banda desenhada de Moebius. (ALLENDE, 2003) [...]no lento exercício da escrita lidei com os meus demônios e obsessões, explorei os recantos da memória, salvei do esquecimento histórias e personagens, roubei vidas alheias e com toda essa matéria-prima construí um sítio a que chamo a minha pátria[...]Não acreditem em tudo o que digo, pois tenho uma certa tendência para exagerar e, tal como preveni no princípio, não consigo ser objetiva quando se trata do Chile. Para ser mais exata: digamos que quase nunca consigo ser objetiva [...] O ofício da literatura definiu-me: palavra a palavra criei a pessoa que sou e o país inventado em que vivo. (ALLENDE, 2003)

Devido a essa falta de linearidade, o tema do golpe de 1973 e da ditadura chilena se apresenta de forma constante no texto, e com certa freqüência relacionando o Chile com os outros países latino-americanos, que sofreram processos semelhantes na mesma temporalidade. o Chile não foi um caso isolado, a longa noite das ditaduras cobriu boa parte do continente durante mais de uma década. Em 1975, metade dos latino-americanos viviam sob algum tipo de governo repressivo, muitos apoiados pelos Estados Unidos, que acumulam um triste recorde na derrubado de governos eleitos por seus povos e no apoio a tiranias que jamais seriam toleradas em seu próprio território, como as de Papa Doc no Haiti, Trujillo na República Dominicana, Somoza na Guatemala e vários outros. (ALLENDE, 2003)

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No Chile evita-se falar do passado[...]Acredita-se que rebuscar muito o passado pode «desestabilizar» a democracia e provocar os militares, receio infundado, porque a democracia se fortaleceu nos últimos anos - desde 1989 - e os militares perderam prestígio. Além disso, já não estamos no tempo dos golpes militares. Apesar dos seus múltiplos problemas -pobreza, desigualdade, crime, droga, guerrilha - a América Latina optou pela democracia e, por seu lado, os Estados Unidos começam a admitir que a sua política de apoio a tiranias não resolve nenhum problema, só cria outros.O golpe militar não surgiu do nada; as forças que apoiaram a ditadura estavam ali, mas não tínhamos dado por elas. (ALLENDE, 2003) Estávamos em 1975. O país que escolhemos para emigrar foi à Venezuela, uma das últimas democracias que restavam numa América Latina sacudida por golpes militares e um dos poucos países onde podíamos conseguir vistos e trabalho. (ALLENDE, 2003)

Neste ponto, parece que Isabel Allende corrobora com o pensamento já apresentado do sociólogo Emir Sader, em que este discorre sobre a suposta existência de uma unidade latino americana, em que o Brasil se insere a partir do contexto das ditaduras. Aspecto importante a ser observado na obra de Isabel Allende, é o modo como ela descreve o que é ser chileno e que a partir destas características, reconheceria seu “compatriota” à distância. As características citadas por Allende não são apenas físicas, mas também o modo de agir e pensar, além da interferência da classe social a qual a pessoa pertence4 : Quem somos nós, os chilenos? Para mim é difícil nos definirmos por escrito, mas com um único olhar sou capaz de distinguir um compatriota a cinquenta metros de distância. [...] com sua inconfundível maneira de caminhar e seu sotaque levemente cantado. [...] somos tenazmente parecidos; compartilhamos o mesmo idioma e temos costumes semelhantes. As únicas exceções são a classe alta, que sem muitos desvios descende de europeus, e os indígenas, aimarás e alguns quíchuas no norte, e mapuches no sul, que lutam para manter suas identidades em um mundo no qual é cada vez menor o espaço deles. (ALLENDE, 2003) Nós, os Chilenos, temos os olhos bem treinados para determinar a classe à qual pertence uma pessoa pelo aspecto físico, cor da pele, maneirismos e, especialmente, pela forma de falar. Noutros países o sotaque varia de um lugar para outro, no Chile muda segundo o estrato social. Normalmente também podemos adivinhar de imediato a subclasse; subclasses há umas trinta, segundo os diferentes níveis de jargão, arrivismo, afetação, dinheiro recém-adquirido, etc. (ALLENDE, 2003)

A construção da identidade chilena na obra de Isabel Allende perpassa por três aspectos, que aparecem na discussão já feita na primeira parte do trabalho: o país (aqui trocando Brasil por Chile) com os olhos voltados para a Europa e as costas para o continente;

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Ou pertencia, pois para Allende, após a queda do regime militar e o processo de redemocratização, fizeram com que estes aspectos se tornassem muito fluidos.

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América latina em oposição aos Estados Unidos e América do Sul como sinônimo de América Latina. Relação Chile x Europa: Para os chilenos, a distância confere uma certa mentalidade insular, e a portentosa beleza do país enche-os de orgulho. Vemo-nos como o centro do mundo – consideramos que Greenwich devia estar em Santiago – e voltamos as costas à América Latina, comparando-nos sempre à Europa. Somos auto-referentes, o resto do mundo só existe para consumir nossos vinhos e formar times de futebol dos quais possamos ganhar. (ALLENDE, 2003) Nós, Chilenos, gostamos dos Alemães pelas salsichas, pela cerveja e pelo capacete prussiano, além do passo de ganso que os nossos militares adotaram nos desfiles; mas na realidade procuramos imitar os Ingleses. Admiramo-los tanto que nos julgamos os Ingleses da América Latina, tal como consideramos que os Ingleses são os Chilenos da Europa. Na ridícula guerra das Malvinas (1982) em vez de apoiarmos os Argentinos, que são nossos vizinhos, apoiamos os Britânicos; e assim a primeira-ministra, Margaret Thatcher, tornou-se amiga de peito do sinistro general Pinochet. A América Latina nunca nos perdoará semelhante passo em falso. Não há dúvida que temos algumas coisas em comum com os filhos da loira Albion: individualismo, bons modos, sentido do fair play, classismo, austeridade e má dentadura. (A austeridade britânica não inclui, claro está, a realeza, que é para o espírito inglês o que Las Vegas é para o deserto de Mojave.) Fascina-nos a excentricidade habitual dos Britânicos, mas não somos capazes de a imitar, porque temos demasiado medo do ridículo; em troca tentamos copiar o seu aparente autocontrole. Digo aparente, porque em certas circunstâncias, como por exemplo um jogo de futebol, os Ingleses e os Chilenos perdem por igual a cabeça e são capazes de esquartejar os seus adversários. (ALLENDE, 2003)

Relação Chile x Estados Unidos: Quando aos quarenta e cinco anos e divorciada de fresco emigrei para os Estados Unidos, obedecendo ao apelo do meu impulsivo coração, a primeira coisa que me surpreendeu foi a atitude infalivelmente otimista dos norte-americanos, tão diferente da das pessoas do sul do continente, que estão sempre à espera do pior. (ALLENDE, 2003) A revolução cubana já tinha dez anos de existência, apesar dos esforços dos Estados Unidos para a destruir, e havia movimentos guerrilheiros de esquerda em muitos países latino-americanos. O herói indiscutível da juventude era Che Guevara, assassinado na Bolívia, cujo rosto de santo com boina e cigarro se tinha transformado no símbolo da luta pela justiça. Eram os tempos da guerra fria, quando uma paranóia irracional dividiu o mundo em duas ideologias e determinou a política externa da União Soviética e dos Estados Unidos durante várias décadas. O Chile foi um dos peões sacrificados nesse conflito de titãs. A administração de Nixon decidiu intervir diretamente no processo eleitoral chileno. Henri Kissinger, responsável pela política externa, que admitia não saber nada sobre a América Latina, considerando-a o pátio das traseiras dos Estados Unidos, disse «não existir razão para ver um país tornar-se comunista por irresponsabilidade do seu próprio povo, sem fazer algo a esse respeito». (Na América Latina circula esta anedota: Nos Estados Unidos não há golpes militares. Sabe porquê? Porque não há embaixada norte-americana.) Para Kissinger, a via democrática para o socialismo de Salvador Allende era mais perigosa do que a revolução armada, porque podia contagiar o resto do continente como uma epidemia. (ALLENDE, 2003)

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América do Sul como sinônimo de América Latina: Sempre que o nosso país foi notícia isso aconteceu por eventos políticos de excepcional importância, salvo quando aparece brevemente na imprensa a propósito de um terremoto. Se me perguntavam a minha nacionalidade, tinha de dar longas explicações e desenhar um mapa para demonstrar que o Chile não ficava no meio da Ásia, mas no Sul da América. (ALLENDE, 2003) Para os Pascuenses, o contacto com a América do Sul foi fatal. Em meados do século XIX a maior parte da população masculina foi levada para trabalho escravo nas guaneiras do Peru, enquanto o Chile encolhia os ombros perante a sorte daqueles cidadãos esquecidos. (ALLENDE, 2003)

CONCLUSÃO Após os aspectos teóricos e literários serem apresentados e discutidos, pode-se compreender que a questão da América Latina perpassa por vários aspectos, do geográfico, político ao identitário. A imprecisão do que é essa América Latina, nos remete a questão do paradoxo, no qual o ponto de referência para a existência ou não desta América, parte dos referenciais utilizados pelo interlocutor. A obra de Isabel Allende, escrita a partir dos Estados Unidos, em uma tentativa de construção de certa identidade chilena e de uma identidade individual, percorre pelas relações latinoamericanas, sobretudo no momento das ditaduras militares. Ao usar a literatura como fonte neste trabalho não se pode afirmar que os chilenos se enxergam do mesmo modo que Allende, ou que para eles a America Latina exista, mas podemos afirmar que para a autora, tanto o modo de enxergar o povo chileno, como a sua inserção dentro da América Latina, leva a um ponto de encontro no qual ela consegue construir a sua própria identidade. Ao passo que ela constrói e se aproxima destes lugares de fala, Allende também se distancia, e assim consegue construir uma identidade própria no qual se apropria das características que lhe convém. Recitando um trecho que já foi citado acima, fica claro o processo de construção da identidade de Isabel Allende: e até há pouco tempo me tivessem perguntado de onde sou, teria respondido, sem pensar muito, que não sou de sítio nenhum, ou latino-americana, ou talvez chilena de coração. Hoje, porém, digo que sou americana, não só porque assim o testemunha o meu passaporte, ou porque essa palavra inclui a América de norte a sul.

A obra de Allende confunde realidade e ficção, pois como a autora salienta, a memória não é confiável, e mesmo com o tom autobiográfico da obra, o uso da literatura como fonte de compreensão para o paradoxo da América Latina e de suas identidades, pode

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ser questionado, e uma saída para este problema, pode ser explicado por Sandra Pesavento: (...) se o historiador, na sua busca de construção de conhecimento sobre o mundo, quer resgatar as sensibilidades de uma outra época, a maneira como os homens representavam a si próprios e à realidade, como não recorrer ao texto literário, que lhe poderá dar indícios dos sentimentos, das emoções, das maneiras de falar, dos códigos de conduta partilhados, da gestualidade e das ações sociais de um outro tempo? E, no caso, a literatura, como pode deixar de se voltar, também , para o resgate da narrativa histórica que, reconstruindo o passado ou inventando o futuro, persegue a verdade como projeto intelectual, revelando com isto a historicização das formas de uma escritura que busca dar ordem ao mundo? (PESAVENTO 2000, p. 7-8)

A América Latina em seu paradoxo de uma (in)existência não pode ser definida de um único modo, nem explicada por aspectos isolados, das teorias às literaturas. A busca por definição e identificação desta certa América latina deve obrigatoriamente partir das questões gerais para as individuais, dos usos e dos desusos do termo. Não é possível assim, chegar ao uma idéia fechada do que seria essa América Latina.

REFERÊNCIAS ALLENDE, Isabel. O Meu país inventado. 2003. Edição digital disponível em: . Acesso em: 12 de mar. 2014. BETHELL, Leslie, “O Brasil e a idéia de América Latina” em perspectiva histórica. In: Estudos Históricos. Rio de Janeiro, v.22. n.44, julho-dezembro de 2009.

RIBEIRO, Darcy. A América Latina existe? Brasilia:Editora da UNB, 2010.

NOVAES, Adauto. Perto de um mundo distante . In: Oito visões da América Latina. São Paulo: Editora Senac, 2006.

PESAVENTO, Sandra Jatahy (org). Leituras cruzadas: diálogos da história com a literatura. Porto Alegre: Ed. da UFRGS, 2000. Introdução p.7 -8

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