A Análise do Discurso no Brasil Hoje: entre heranças, novos destinos, outros limites. Versão Beta, São Carlos, v. 61, pp. 29-42, 2010.

July 27, 2017 | Autor: Lucas do Nascimento | Categoria: Análise do Discurso
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A Análise do Discurso no Brasil Hoje: entre heranças, novos destinos, outros limites

Lucas do Nascimento1 Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Linguística – UFSCar. CAPES. E-mail: [email protected] [...] o risco evocado de uma vizinhança flexível de mundos paralelos se deve de fato à diversidade das condições supostas com essa inscrição: é a dificuldade – com a qual é preciso um dia se confrontar – de um campo de pesquisas que vai da referência explícita e produtiva à lingüística, até tudo o que toca as disciplinas de interpretação: logo a ordem da língua e da discursividade, a da “linguagem”, a da “significância” (Barthes), do simbólico e da simbolização... (PÊCHEUX, Michel. (1983). Papel da Memória).

Com o objetivo de esboçar heranças, métodos e objetos da Análise do Discurso no Brasil, passaremos a caracterizar as suas relações na trama da história para apontarmos os novos destinos a que a AD se lança e limites necessários que se constroem a esse campo teórico.

linguística), Bopp (o organismo linguístico), Humboldt (a antropologia linguística), Schleicher (a linguística histórica), etc. Todavia, é com o CLG que a linguística espalha-se no Leste-Europeu pelos mais correntes Círculos da época (Moscou, São Petersburgo, Praga, Viena, Copenhague) entre os anos de 1920 a 1940. É, então, ao meio do estruturalismo Francês, da pós 2ª Guerra Mundial (1939-1945) e pós Maio de 19682, em dadas conjunturas teórico-políticas, que queremos pensar, aqui, a ciência da linguagem – atraída na Alemanha, na França3, etc. – como um dos espaços que levou Michel Pêcheux a elaborar, inicialmente, uma teoria dos processos ideológicos calcada no objeto “discurso”, tendo no tempero, ainda, mais duas pitadas: a do marxismo (materialismo-histórico) e a da psicanálise (subjetividade). Certa teoria de “entremeio” centrada na tríplice aliança Saussure-Marx-Freud, como demonstrou estudos de Gregolin(2004) em Foucault e Pêcheux na Análise do Discurso: diálogos & duelos . Pêcheux, propôs a Analyse du Discours, conforme sua tese "Analyse Automatique du Discours4" de 19695,

Na Ordem do Olhar, na Política do Pensar No quadro de constituição e de desenvolvimento da linguística moderna, dado o começo do século XX, o qual a marca como ciência, o Cours de Linguistique Générale (tradução brasileira Curso de Linguística Geral), do suíço F. Saussure, vem ao mundo científico para nunca mais os estudos / acerca da linguagem ser menos alusivos as já ciências estabelecidas na modernidade. Claro, não nos esqueçamos das clivagens marcadas no início do século XIX, dos estudos do método histórico-comparativo, com suas singularidades epistemológicas, como os trabalhos de Schlegel (a gramática comparada), Grimm (a lei da fonética), Rash (a mudança

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Orientando da Profa. Dra. Vanice Sargentini.

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Lembrança de uma data marcada por “revolução” estudantil, manifestação rebelde – gritos, pedras, incêndios – contra as tradições fortes vigentes na poderosa Sorbonne. Paris foi cenário de militantes esquerdistas contra o positivismo assombrador... visavam, eles, sobretudo, querer um real diferente, algo não redundante ao logicismo. A manifestação teve como influência as idéias de duas figuras de intelectuais francesas: Althusser e Lacan... Jakobson tem grande influência de fazer chegar as idéias de Saussure à França. É da América que ele faz isso, pós fugir das perseguições em que sobrevive na sua migração para os Estados Unidos... (GREGOLIN in FONSECA-SILVA & SANTOS, 2005). Esse texto foi publicado em francês com o título Towards an Automatic Discurse Analysis e traduzido em edição brasileira GADET, F. & HAK, T. (Orgs). Por uma Análise Automática do Discurso: Uma

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articulada em i. análise de conteúdo e teoria do discurso, ii. descrição de um dispositivo de análise automática do processo discursivo, e iii. perspectivas de aplicação da análise automática de discurso, para romper com a concepção de linguagem que permeava muitos estudos até o momento, como a problemática estruturalista6 de “espiritualismo filosófico adepto de uma concepção religiosa da leitura:” da hermenêutica literária, da concepção fenomenológica (projeção do sentido sobre a matéria verbal; de uma consciência-leitora instalada numa subjetividade interpretativa sem limites), das múltiplas formas de análise de conteúdo, do objetivismo quantitativo... O método automático, portanto, foi pensado pela objetividade de um processo funcionando por si mesmo assim eliminando as evidências subjetivas da leitura, vigentes da “estrutura subjacente” do corpus textual estudado (PÊCHEUX et al, 1982). Sem dúvidas, hoje muito se avançou sobre esse olhar, descaracterizando o automatismo, e muito o próprio fundador retificou e re-elaborou. Pretendemos neste trabalho ousar iniciar a incumbência anunciada por Pêcheux em Paris, em abril de 1983: de ser “preciso um dia se confrontar até tudo o que toca as disciplinas de interpretação”. É chegado o momento de se confrontar com a relação dialogada entre o discurso, a semiologia e a história7 no estranho

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introdução à obra de Michel Pêcheux. Tradução de Bethania S. Mariani et. al. Campinas, SP: Unicamp. A partir de 1966 foi presidido à construção do dispositivo AAD – Análise Automática do Discurso – editado em 1969 pela Dunod, primeiro programa informático “operacional” em 1971 (PÊCHEUX et al, 1982, p. 253). Contra essa problemática estruturalista de espiritualismo filosófico dominante da época, “o estruturalismo filosófico dos anos 60 partia em guerra contra essas diversas formas (espontâneas ou científicas) de evidência empírica da leitura, com suas bandeiras de conceitos tais como “leitura de sistemas” e “teoria de discurso”, e palavra de ordem como “ajuste de eficácia de uma estrutura sobre seus efeitos, através de seus efeitos” (PÊCHEUX et al, 1982, p. 254). Segundo Pêcheux, essas bandeiras foram erguidas por nomes como Lévi-Strauss, Foucault, Barthes, Althusser... Marx, Nietzsche, Freud e Saussure. Essa articulação foi tema – A Ordem do Olhar: Discurso, Semiologia, História – de discussão no II Colóquio Internacional em Análise do Discurso (CIAD) nos dias 16, 17 e 18 de setembro de 2009 na Universidade Federal de São Carlos, UFSCar, São

8 espelho da Análise do Discurso tendo assim o simulacro de calcar um atravessamento na estranha história da Análise do Discurso. A reflexão tomará um percurso metodológico localizado nesses dois trabalhos referidos, o primeiro de Michel Pêcheux em seu prefácio na obra francesa de Courtine (1981)8, tese deste autor voltada ao “discurso comunista endereçado aos cristãos”; e, o segundo, de Jean-Jacques Courtine, cujo prefácio foi escrito para a recente obra de Piovezani (2009)9, tese em solo brasileiro. A Análise do Discurso na f(r)esta da História A Análise do Discurso, AD francesa, como é chamada, surge na década de 1960 e pode ser vista como uma ciência transdisciplinar que aborda (o que?) discursivamente em torno da questão da ideologia e, em particular, da leitura dos discursos ideológicos, sugerindo olhares, interpretações e refletindo sobre os textos/discursos inseridos em conjunturas históricas. Essa área do conhecimento tem interesse por discursos produzidos no interior das Formações Discursivas, em que os sujeitos produzem enunciados que revelam não só uma posição sócio-histórica mas também cultural (dada pelas condições de produção). Uma Formação Discursiva (FD), por sua vez, seja na interpretação de M. Pêcheux (um conjunto de regras anônimas que definem o que deve e o que não se pode dizer em determinado lugar/tempo), ou na visão de M. Foucault (um conjunto de enunciados que mantêm uma regularidade e uma dispersão), pode ser

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Carlos, São Paulo. Destaco, ainda, que a temática referida foi ofertada em disciplina no Programa de Pós-Graduação em Linguística da UFSCar, no 2º semestre do presente ano, cujo privilégio tive de participar. Síntese da tese de doutorado “Alguns problemas teóricos e metodológicos em Análise do Discurso: o discurso comunista endereçado aos cristãos”, defendida em 1980, na Université de Paris X/Nanterre. Uma versão deste texto foi publicada em francês COURTINE, Jean-Jacques. Le discours communiste adressée aux chrétiens. Langages. Paris, n. 62, 1981. Texto traduzido em edição brasileira COURTINE, J.J. Análise do Discurso Político: o discurso comunista endereçado aos cristãos. São Carlos, SP: EdUFSCar, 2009. PIOVEZANI, Carlos. Verbo, Corpo e Voz: dispositivos de fala pública e produção da verdade no discurso político. São Paulo: UNESP, 2009.

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entendida como um agente regulador de enunciados do arquivo. Falar da saúde do ponto de vista da medicina é diferente de falar da saúde do ponto de vista da beleza. Encontramos assim, tanto uma dispersão/regularidade como um poder/não-poder dizer que irá determinar as condições de produção e circulação enunciativas. Considerando que nenhuma produção de sentido escapa ao social e ao histórico, temos, então, no panorama da AD, um quadro onde todo enunciado, seja qual for a sua materialidade, pode ser teorizado e analisado com a abordagem discursiva e conforme as pretensões do dispositivo de análise. Estabelecendo os propósitos inicias da AD, desde suas primeiras manifestações em 1960, auge da crise das idéias de Saussure; e sua fundação sobre os três pilares teóricos das principais áreas de confronto: linguística, marxismo, e psicanálise (Saussure, Marx e Freud), vêem-se sua evolução e sua superação de conceitos, por exemplo, nas fases de “tateamento” e “desconstrução”. Na AD2 e na AD3, como as chama Pêcheux em Análise do discurso - Três Épocas (1983[1997], p. 311), alguns conceitos esfumam-se e produzem recusas a aspectos estruturalistas da AD1. A AD trilhou, e ainda trilha, pelas contribuições da teoria do sujeito de Foucault, até os caminhos mais recentes de investigação do discurso de diversas materialidades, com as relações teóricas a partir de J. Davallon, R. Barthes, F. Deruelle e J-J. Courtine, entre outros. Assim, um dos maiores benefícios desse estudo histórico dos caminhos da AD, a saber, foi a oportunidade de visualizar pontos de convergência entre epistemologias tradicionalmente vistas como opositoras. Enxergar a correspondência entre conceitos do Círculo de Bakhtin e a AD, por exemplo, favorece uma perspectiva muito válida em que se é possível repensar o vício das “etiquetas” que, não raramente, aparecem nos trabalhos envolvendo o discurso. Ao estudar a história da AD na França, entendem-se como os caminhos da pesquisa estão intrinsecamente vinculados aos fatos sociais daquele país e como os acontecimentos, muitos deles trágicos, nortearam as tendências dessa área de estudos. A própria trajetória dos teóricos pioneiros e mentores dos primeiros trabalhos se mostra turbulenta, instável, o que faz necessária, vez ou outra, a revisão de teorias, conceitos e tendências. E isso é fazer ciência; é fazer os

9 sentidos falarem sentidos. É evidente o caráter heterogêneo, às vezes contraditório, das teorias ao longo das últimas décadas do século XX, décadas que assistiram a várias (re)leituras de métodos da nova ciência que veio tentar resolver o problema da insuficiência do método estruturalista em crise. Desde as idéias revolucionárias de Althusser e da Análise Automática do Discurso, de Pêcheux (1969), a AD se mostra um saber em movimento, inquieto e em recodificação, como a própria orientação natural da linguagem. Ao passo em que estudamos o desenvolvimento da AD na França, direcionamos a reflexão acerca de um fato importante para os estudantes brasileiros dessa ciência: a introdução e o desenvolvimento da AD em nosso país. Mais ainda, a possibilidade do reconhecimento da existência de uma “AD do B”, nas palavras de Gregolin (2008)10, uma Análise do Discurso do Brasil com a singularidade da sua recepção e das formas de circulação, possibilitando a constituição dessa disciplina com “rosto” brasileiro. Como e quando foi possível manifestar o interesse pelos estudos do discurso num país em que, no auge do florescimento da revolucionária ciência, vivia sob o regime da ditadura militar que reprimia tão veementemente as novas idéias, principalmente de uma área do saber engendrada sob a luz de idéias marxistas e ideológicas? De fato, observando o histórico muito recente da AD no Brasil, percebe-se um envolvimento tardio, em que várias idéias, para nós, inovadoras, já estavam sendo revistas no berço da AD na França, como fez Pêcheux no Anexo de Les Vèritès de La Palice (Paris, Maspero, traduzida por Semântica e Discurso: uma crítica à afirmação do óbvio, 1988), escrito em 1978, publicado em edição inglesa em 1982, cujo título é “The French Political Winter: Beginning of a Rectification”, e na conferência Le Discours: Structure or Événément?, proferida em 1983 na Universidade de Illinois Urbana-Champaign. A AD chega ao Brasil ainda nos anos finais de 1960 e início de 1970 em torno da figura, apagada e esquecida, de Carlos Henrique de Escobar no contexto acadêmico da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), em 10

Ver GREGOLIN, M. R. No diagrama da AD Brasileira: heterotopias de Michel Foucault. In: NAVARRO, P. (Org.). O Discurso nos Domínios da Linguagem e da História. São Carlos, SP: Claraluz, 2008. p. 23-36.

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pleno período ditatorial, como demonstra Gregolin (2006) em seu texto “Tempos brasileiros: percursos da Análise do Discurso nos desvãos da história”, publicado em Percursos da AD no Brasil. E alguns anos mais tarde, chega ao espaço acadêmico da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) na figura de Eni P. Orlandi, grande difusora e continuadora em terra Brasileira, como demonstra as disciplinas ministradas nesta Instituição, fins dos anos 70 e início dos anos 80. Assim, observando esses dois contextos, francês e brasileiro, fica claro que na França a AD talvez sempre apresentasse caráter mais ideológico, politizado e caráter sociológico, enquanto que no Brasil a AD figura como ciência privilegiando o estudo da linguagem, o que em sua implantação caracteriza-se pelo veio da linguística nos cursos de Letras. A saber, analisar as principais áreas de confronto da AD, já que esta configura, como dissemos, a reunião de saberes transversais que se conjugam e ajudam a olhar os sentidos de textos, conforme certos objetivos estabelecidos pelo analista e de acordo com as particularidades de um corpus, dão-se prioridade, então, às duas principais vizinhanças teóricas, áreas do conhecimento, sobre as quais se erigiu a Análise do Discurso. Além da Linguística, as Ciências Sociais foram alvo de estudo em que as principais teorias sócio-históricas, as de Althusser e de Foucault, tiveram sidas discutidas, analisadas, comparadas e relativizadas por Pêcheux. Em seguida ao estudo das teorias sócio-históricas, o pensar sobre fenômenos da psicanálise, da filosofia e, mais especificamente, sobre as teorias do sujeito, para as quais Foucault certamente tenha trazido grande contribuição, com a superação das dogmáticas idéias do assujeitamento cego e suas discussões sobre os “feixes de saberes” que constituem, nas práticas, o sujeito contraditório. Enfim, analisar as teorias linguísticas propriamente ditas, já que, sendo o signo linguístico a base material para qualquer forma de análise, delega-se à linguística o papel de área privilegiada pela AD. Refletindo sobre as teorias de Pêcheux e de Foucault, o discurso tem a materialização inscrita da linguagem na história, no papel da memória, na realização prática da linguagem em materialidades diversas produtoras de sentido. A pensar sobre outras materialidades, além, claro, das historicamente privilegiadas materialidades verbais. De fato, por

10 muito tempo a AD ocupou-se, e continua a se ocupar, da investigação de objetos constituídos de textos verbais escritos; mas tendência essa foi avançada pelos novos trabalhos ao enxergarem que todo objeto linguístico, seja qual for a sua substância, é passível de análise linguística, até mesmo pelo fato de que toda produção de sentido é constituída em rede heterogênea de objetos (exemplos, o campo da mídia, a publicidade e a propaganda). Faço, aqui, menção a materialidade imagética a começar, por exemplo, pelo estudo descritivo-analítico da tela As meninas ou As damas de companhia, do pintor espanhol Diego Velázquez, analisada por Michel Foucault em 1966 na sua obra As Palavras e as Coisas. Mesmo durante o estudo da teoria de Foucault, em sua análise das representações, lançaram-se, também, outros olhares sobre a imagem. Destaco, aqui, textos de J. Davallon, A imagem, uma arte da memória?, e de Michel Pêcheux, O papel da memória, como manifestações de análise do não-verbal; ambos estudos datados de 1983. De fato, antes mesmo de Foucault, Davallon e Pêcheux, em Retórica da Imagem, Barthes (1964) se ocupou a pensar os vários níveis de leitura da imagem; o analogon e o conotado, o construído e o trabalhado. O que vemos pode ter sido, ao passar pelo filtro da lente, modificado e tomado sentidos diversos conforme o modo de cristalização e o momento de seu reaparecimento. O próprio uso do verbal ao relacionar imagens é uma forma de condicionamento: a palavra pode aparecer direcionando a imagem conforme certos “objetivos inconfessáveis” (processos de Fixação e Complementaridade). Barthes, em sua semiologia e sendo juntamente com Greimas um dos primeiros leitores de Saussure, enxerga a imagem como um signo em que o denotado possui um significante e um significado, mas também com a perspectiva de que o conotado possui a sua significação própria. Isso para a época é um forte pensamento inovador a cerca da Semiologia. Já é uma configuração avante aos estudos saussureanos sobre tal perspectiva, embora, talvez, em Elementos de Semiologia (1977), Barthes tenha aproximado-se mais fortemente aos estudos estruturais saussureanos. P. F-Deruelle, semiólogo, cujas teorias sobre a imagem possuem grandes afinidades com as idéias de Barthes, reafirma, em L’éloquence des Images (1993), a sua capacidade de falar, o seu estatuto discursivo. Afirma que a leitura da

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imagem é um cálculo imagético da informação simultânea, diz que a imagem, mesmo encontrando-se isolada do verbal, possui sua narratividade, sua estaticidade e seu movimento. Há, ainda, com o pensamento nas diversas materialidades da linguagem e em uma semiologia histórica ou das sensibilidades, as idéias de J.-J. Courtine. Pesquisador participante do grupo de Pêcheux e investigador na variedade de materialidades linguísticas como os gestos, as posturas, o rosto, o corpo... Embora critique a seleção de corpus de discursos políticos feita por alguns autores e tendo concentrado em estudar o discurso político endereçado aos cristãos, Courtine é o herdeiro francês do legado da AD de Pêcheux e seu grupo. Por motivos de divergências11 teóricas com a AD corrente na França, hoje, com o grupo de Maingueneau e de outros grupos mais preocupados com questões “intra-linguagem”, questões de classificação, Courtine se nega a assumir o rótulo de analista do discurso e lança uma questão de importância universal para os linguistas da atualidade (França-Brasil): o conceito de Linguística, hoje, suporta a AD? Suporta a semiologia? O que fazemos? Linguística? AD? Semiologia? A resposta parece um enigma, mas a própria abordagem de uma “materialidade linguística” parece estabelecer o campo de repouso de investigações nesse sentido. Não fosse a centralização sobre essa materialidade, poderiase confundir com sociologia ou psicologia, mas o estudo de uma forma, de uma cristalização de significados sobre formas de linguagem, tende sustentar a possibilidade de repouso sobre o campo da Linguística. Estendendo as discussões sobre o não-verbal, a refletir sobre o discurso imagético, há questões a cerca de como analisá-lo discursivamente. No cenário latino-americano brasileiro, Escobar, conforme aponta recentes estudos de Kogawa (2009, p. 2), “propunha que se tomasse a materialidade linguística como um modelo a ser expandido para outros campos da produção sígnica, ou seja, já havia uma visada semiológica de base saussuriana integrada ao dispositivo da AD”. Nessa perspectiva, Gregolin (2009, p. 59) lança a belíssima interrogação para a própria epistemologia da AD: “como incorporar a discussão 11

Como registrou na sua conferência de abertura do I Seminário de Estudos em Análise do Discurso (SEAD-2003), em Porto Alegre, Rio Grande do Sul. Ver Courtine 2005, p. 25-32.

11 semiológica sem que se percam o sócio-histórico e a problematização do sujeito – isto é, sem dissipar a base epistemológica fundamental na constituição da análise de discurso?” Para tal pergunta, a resposta aponta para a direção da semiologia no que tange as considerações sobre as principais teorias (sociais, do sujeito e da linguagem) e a possibilidade de leituras da imagem como sendo a representação visual concentrada de muitos significados. As semiologias do não-verbal caracterizam-se, a começar, pela relação entre imagem e memória. Como projetarmos nosso olhar à imagem sendo esta a expressão da memória? E sobre o conceito visual e representativo do acontecimento discursivo e a capacidade que a imagem possui de cristalizar as idéias humanas? Essas são algumas proposições semiológicas, pensadas a partir da memória como o conjunto de conhecimento de certos grupos, pensando em memória social, coletiva, conceito trazido por Pêcheux (1983) a partir da Nova História/História Nova12. Com o novo olhar para o presente e para o passado, com a história moderna ocidental, concebendo a história e suas renovações (continuidades, descontinuidades, desdobramentos), a memória passa, com o surgimento da imprensa, a ser cada vez mais registrada, o que passa a ser uma forma de substituição do modo como os clássicos, por exemplo, guardavam suas memórias (arte mnemônica). A memória, passando a ser inscrita nos arquivos das mídias, muda completamente a sua forma de construção e circulação. Está, nesse ínterim, a imagem, materialidade potencialmente privilegiada na representação discursiva de memórias, quando, na instância de um enunciado, há o “acontecimento discursivo”, o encontro entre um evento e uma memória, a comemoração, a ativação de uma lembrança. Nessa “manipulação” das memórias pelas mídias, as inúmeras lutas discursivas, pensandose nos vários níveis da imagem e em seu poder 12

“Uma ciência em marcha, uma ciência na infância”, como nos falou o mentor desta idéia, Jacques Le Goff, em 1978, na primeira edição de La Nouvelle Histoire. Edição em colaboração com seus dois amigos Roger Chartier e Jacques Revel. Pensamento sobre domínios ou conceitos-chave da Nova História, dentre eles longa duração, estruturas, antropologia histórica, mentalidades, cultura material, marginais, imaginário. Ver Le Goff et. al. ([1978]2005).

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ideológico, há sempre a possibilidade (ilusória?) de controlar essas memórias e de estas desempenharem o brilhante papel de fazer naquela falar o corpo que se quer calar [parodiando aqui Michel de Certeau], suposta clivagem entre o discurso e o social. Para além do efeito fim: um novo começo De um modo geral, a Análise do Discurso não poderia ser mais adequada ao pensamento investigativo de orientar-se e caminhar para incorporar-se, no centro de suas discussões e proposições metodológicas, uma semiologia histórica do discurso a fim de possibilitar às análises, as diversas materialidades históricas (verbal: oral, escrito, voz, som, rádio, tv...; nãoverbal: imagem, gestos, corpos, movimentos, olhares, sorrisos...) para, assim, melhor ler (e ver) os funcionamentos discursivos e pensar discursivamente “as redes de imagens que constituem a cultura e o imaginário de uma sociedade” (GREGOLIN, 2008: 21). Daí, portanto, a deriva para a ordem da cultura e a ordem do imaginário no real da língua, da história e do inconsciente... Essas ordens – a da cultura e a do imaginário – não são referidas, por exemplo, no tocante da relação entre “cultura” e “língua” pensada pelo linguista americano S. Z. Harris no seu artigo “Discourse Analysis”, publicado no nº. 13 da Revista Langages, em 1969 (p.13), em “buscar sobre o conteúdo do texto o sentido das palavras escolhidas”, mas, sim, para além dos limites de uma frase. Significa dizer que a linguagem é da ordem da cultura, o que ressalta o aspecto cultural ter, implicitamente, relação com o desenvolvimento histórico, científico (o conhecimento), subjetivo, e, em primazia, com o traço social. Logo, a ordem da cultura e a ordem do imaginário estão no nível do interdiscurso. Essas ordens são constitutivas do interdiscurso, são sempre inscritas no trabalho deste, e, assim, resultantes na constituição/formulação do intradiscurso, isto é, materializadas na sintaxe da língua. Por isso, lembrado por Pêcheux ([1981] 2009, p. 26), todo “estudo discursivo concreto supõe abranger o efeito do real histórico que, no interdiscurso, funciona como causalidade heterogênea, e, ao mesmo tempo, o efeito do real sintático, que condiciona a estrutura internamente contraditória da sequência intradiscursiva” (grifos meus). É no real da língua que a cultura

12 fala da história e neste mesmo real é que o inconsciente fala/é falado no imaginário. Assim, Courtine apreendeu o efeito do real histórico e o efeito do real sintático no “discurso em suas asperezas múltiplas” (FOUCAULT, 1969), em que o áspero foi a existência heterogênea constitutiva de práticas discursivas políticas do comunismo destinadas aos sujeitos cristãos. Daí a divisão do sentido e o enunciado dividido. As asperezas – comunismo vs. cristianismo – são mostradas por Courtine, em análise de discurso, tanto política quanto teoricamente. Propriamente dito, com outras materialidades, é no trabalho sobre a história do rosto (1988) e a história do corpo (2005-2006) que a semiologia (re)vigora e (re)configura os estudos discursivos; algo que já se identifica em trabalho prenunciado (1990) na esteira do discurso político13. Com isso, A semiologia histórica proposta por Courtine nos mostra que, por movimentos de intericonicidade, as imagens travam um embate com a memória, fazem deslizar a tradição e instauram outros sentidos: nessa tensão dialética entre o dado e o novo as significações fulguram como um lampejo que só pode ser apanhado na transitória aparição do acontecimento discursivo (GREGOLIN, 2008, p. 21).

Para Courtine Isso implica, ao que me parece, uma inflexão das problemáticas, dos métodos e os objetos que foram aqueles da Análise do Discurso. Esta última deverá, antes de tudo, voltar-se para o estudo do fluxo das formas breves, dialógicas e conversacionais, para os modos personalizados da enunciação, e desconstruir os múltiplos recobrimentos da fala pública... Ela deverá ainda desvencilhar-se do preconceito filológico que a cerceia desde muito tempo e que a levou a privilegiar, de modo quase exclusivo, o domínio das palavras, ao passo que é impensável que pretendamos ainda hoje separá-las das imagens – imagens fixas e imagens em movimento – e que não consagremos ao funcionamento das imagens e à sua relação com o discurso a mesma atenção minuciosa que dispensamos aos enunciados verbais (2008, p. 16-7).

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COURTINE, J.-J. Les glissements du spectacle politique (1990). Tradução brasileira: « Os deslizamentos do espetáculo político » In: GREGOLIN, M. R. (Org.). Discurso e Mídia: a cultura do espetáculo. São Carlos, SP: Claraluz, 2003, p. 21-34.

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Então, é chegado o dia de se confrontar... Logo, é inegável [e irrefutável] a análise do discurso e de discursos proceder da ordem do olhar e de política(s) do pensar imersas na cultura, na língua e na história. Referências BARTHES, R. [1964]. A Retórica da Imagem. In: O Óbvio e o Obtuso: ensaios críticos III. Rio de janeiro: Nova Fronteira, 1990. BARTHES, R. Mitologias. São Paulo: Difel, 1975. BARTHES, R. Elementos de Semiologia. São Paulo: Cultrix, 1977. CERTEAU, M.A Escrita da História. Tradução de Maria de Lourdes Menezes; revisão técnica de Arno Vogel. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008. COURTINE, J-J. Le discours communiste adressée aux chrétiens. Langages. Paris, n. 62, 1981 [Tradução brasileira Análise do Discurso Político: o discurso comunista endereçado aos cristãos. São Carlos, SP: EdUFSCar, 2009]. COURTINE, J-J. HAROCHE, C. Histoire du visage. Exprimer et taire sés émotions (du XVIe siècle au début du XIXe siècle). Paris: Payot, 1988. COURTINE, J-J. Les glissements du spectacle politique. 1990 [Tradução brasileira: Os Deslizamentos do Espetáculo Político. In: GREGOLIN, M. R. (org.). Discurso e Mídia: a cultura do espetáculo. São Carlos: Claraluz, 2004]. CORBIN, A; COURTINE, J-J.; VIGARELLO, G. (Org.). Histoire du corps. V. I. De la Renaissance aux Lumières. V. II. De la Révolution à la Grande Guerre. V. III. Les mutations du regard. Le XXe siècle. Paris: Seuil, 2005-2006 [Tradução brasileira: História do Corpo. 3 vol. Petrópolis: Vozes, 2008]. COURTINE, J-J. A estranha memória da Análise do Discurso. In: INDURSKY, F. & LEANDRO FERREIRA, M. C. (Orgs.). Michel Pêcheux e a análise do discurso: uma relação de nunca acabar. São Carlos: Claraluz, 2005. p. 25-32. COURTINE, J-J. Metamorfoses do Discurso Político. Derivas da Palavra Pública. São Carlos: Claraluz, 2006. COURTINE, J-J. Discursos sólidos, discursos líquidos: a mutação das discursividades contemporâneas. In: SARGENTINI, V; GREGOLIN, M. R. Análise do Discurso: Heranças, Métodos e Objetos. São Carlos: Claraluz, 2008. p. 11-19. COURTINE, J-J. A estranha história da Análise do Discurso. In: PIOVEZANI, Carlos. Verbo, Corpo e Voz: dispositivos de fala pública e produção da verdade no discurso político. São Paulo: UNESP, 2009. p. 11-16.

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PIOVEZANI, Carlos. Verbo, Corpo e Voz: dispositivos de fala pública e produção da verdade no discurso político. São Paulo: UNESP, 2009.

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