A análise indicial na organização de documentos imagéticos não orgânicos

May 30, 2017 | Autor: P. Gomes Pato | Categoria: Arquivologia, Semiotica, Ciências da Informação e Documentação
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A análise indicial na organização de documentos imagéticos não orgânicos

Doutor em Ciência da Informação
Faculdade de Ciência da Informação da Universidade de Brasília

RESUMO
Este artigo aborda a problemática referente ao tratamento de registros fotográficos não orgânicos custodiados por Centros de Documentação. Elenca as diretrizes básicas fundamentais para a caracterização de documento arquivístico. Propõe uma leitura de imagens baseada no conceito de índice elaborado por Peirce.
PALAVRAS-CHAVE – arquivo; índice; fotografia.

ABSTRACT
This article discusses the issues concerning the treatment of photographic records for non-organic under custody by documentation centers. It lists the basic guidelines for the characterization of fundamental document archival. Proposes a reading of images based on the concept of index compiled by Peirce.
KEYWORDS – archive; index; photograph

Introdução
Neste artigo abordamos uma questão que se apresenta frequentemente aos arquivistas e instituições, e mesmo a pessoas que buscam organizar suas "memórias fotográficas" ou apenas bisbilhotar a vida alheia congelada em papel ou vislumbrada em pixels. Registros fotográficos, quando apartados de sua origem, ou seja, que perderam sua identidade, organicidade, sua "relação natural entre documentos de um arquivo em decorrência das atividades da entidade produtora" (ARQUIVO NACIONAL, 2005, p. 127), representam um desafio quanto à organização. O Centro de Documentação (CEDOC) da Universidade de Brasília (UnB) é uma das instituições que enfrentam este desafio, qual seja o de organizar uma massa heterogênea de registros fotográficos, alguns produzidos pela Universidade na consecusão de suas atividades, outros oriundos de aquisições ou doações. O arquivista, frente a essa massa documental que parece não se enquadrar nos princípios arquivísticos tradicionais, e mesmo o leigo buscam, cada qual à sua maneira e de acordo com seu viés, quer profissional ou mnemônico, algum recurso para ordenar o caos. Possivelmente o leigo curioso e sem intimidade com aquela parentada antiga e distante registrada com seus impecáveis e aparados bigodinhos, chapéus estranhos e até um ou outro suspensório, posando apoiados em pequenos carros com rodas que mais parecem de bicicletas, apelará para a "tia Cotinha" ou mesmo a "vó Ofélia" para tentar estabecer alguma ordem e sentido aos registros desalinhados, desconectados e praticamente "ilegíveis". Mas, e o profissional, como deve proceder em situação semelhante? Ou essa não é uma atividade compatível com as atribuições do arquivista? Deve-se tratar o que há de informação presente nas imagens ou apenas rechaçá-las em função da perda de sua organicidade, de seu valor como documento arquivístico clássico?
Reafirmar a importância da informação na atualidade é ecoar um sem número de autores e reiterar o óbvio, e os registros fotográficos são fontes de informação preciosa para variadas atividades, profissionais ou não. Mas, como afirma Herrera (1993), falar de informação ou suporte, quando nos referimos a arquivos, não é exatamente a questão, mas sim:
[...] conhecer esses documentos e essa maneira de armazenamento [novas tecnologias] para estabelecer sua exata semelhança ou desemelhança com os documentos de arquivos – no sentido mais rigoroso do termo – e a necessidade ou conveniência de optar por essa via de conservação ou armazenamento para marcar bem sua relação com os arquivos – cuja primeira identidade vem da vinculação institucional e não da qualidade de sua informação, nem do suporte que o contém (HERRERA, 1993, p.7, tradução, comentários e grifos nossos).

Para responder às questões apontadas por Herrera, adiante confrontaremos os princípios arquivísticos com a condição desses registros fotográficos custodiados pelo CEDOC da UnB buscando estabelecer se é ou não conveniente tratá-los como documentos de arquivo. Quanto à responsabilidade pelo tratamento desses registros fotográficos e pela informação, valemo-nos de Herrera (1993). Segundo a pesquisadora, o trabalho com esse tipo de registro não pode ser atribuição de um único profissional, mas deve ser enfrentado multidiscplinarmente por arquivistas, museológos, documentalistas e bibliotecários, além de ser determinado pela produção e finalidade dos registros fotográficos. Portanto, esse é um dos pontos de vista a orientar este trabalho, o de considerar a necessidade de um olhar multidisciplinar para desvelar aspectos das fotografias que possibilitem rearticulá-las às suas origens e finalidades. Para isso, é necessário buscar elementos que façam emergir algo que restabeleça sua organicidade, ao menos em parte, introduzindo alguma ordem no caos. Interessa-nos discutir possíveis formas de análise conteudística e suas consequências para a organização desses registros fotográficos. Para tanto, avançamos um pouco além do que propõe Herrera, pois entendemos a necessidade de participação de outros profissionais além dos citados, dependendo dos registros fotográficos em análise.
Figura 1Tendo por objeto o tratamento de documentos fotográficos não orgânicos em entidades custodiadoras, nosso objetivo neste capítulo é apresentar uma proposta de leitura de imagens fotográficas que possibilite estabelecer, a partir de elementos referenciais e indiciais presentes nessas imagens, a época da produção, o local, séries, coleções. Essa leitura aproxima o arquivista – ou qualquer outro profissional - do detetive, do microhistoriador e mesmo do paleontólogo ou médico. Para isso, iremos trabalhar em uma perspectiva que busque nas fotografias "fios indiciais" que possibilitem a reconstrução da teia característica de sua urdidura, sua produção e sentido inicial. Estamos cientes da limitação do método, pois alguns elementos não são passíveis de aproximação fiel, como, por exemplo, a intencionalidade do autor, ou mesmo a autoria. São fartos os exemplos históricos de como a fotografia foi (e é) utilizada ideologicamente vinculando-a a uma legenda tendenciosa, como o caso da retirada americana de Saigon (Figura 1). Segundo Barrowclough (2009), o registro do fotógrafo Van Es mostra pessoas em fuga pelo telhado da alegada embaixada americana na cidade. Era, na verdade, um prédio que abrigava funcionários da CIA a poucos quarteirões de distância. Em 2005, Van Es escreveu no The New York Times: "Uma das imagens mais conhecidas da guerra do Vietnã mostra algo diferente do que quase todo mundo acha que ela faz." Ou seja, uma farsa, embora vinculada a um mesmo contexto de produção e registro, a derrocada final dos norte-americanos no Vietnã. Entendemos que uma análise indicial atenta poderia restabelecer a verdade dos fatos.

Figura 1
Imagens são caracteristicamente polissêmicas, e sua leitura depende de condições pessoais, culturais e históricas. Como afirma Lopez (2000, p. 102):
[...] em documentos imagéticos isolados, a eloquência observada nos documentos típicos de arquivo é perdida, sendo mister recuperá-la através de informações complementares, tanto do titular como de outros documentos que se referiram à produção e à utilização primeira da imagem. O simples fato de uma imagem isolada normalmente não veicular uma informação precisa obriga-nos a recorrer a outros elementos para compreendê-la.

Entendemos que Lopez (2000) referencia sua observação baseado em um viés arquivístico, ou seja, as imagens fotográficas são eloquentes dentro de determinado arquivo no qual estejam organicamente inseridas. Porém, a polissemia característica das imagens, e particularmente das fotográficas, possibilita muitas outras leituras quando desvinculadas de um arquivo qualquer que seja. "A mudez de uma imagem isolada em relação aos dados sobre sua origem permite que ela seja transposta para outros contextos sem maiores problemas", esclarece Lopez (2000, p. 102). Daí que, para recompor sua organicidade, é necessária uma análise pontual e detalhada que possibilite restringir a polissemia e recortar sentidos, tirar da mudez a imagem isolada. E é esse o nosso objetivo neste trabalho, buscar ouvir as vozes "ocultas" nas imagens.
Por documento fotográfico vamos considerar, genericamente, registros realizados com equipamentos fotográficos analógicos ou digitais, sem entrar no mérito sobre essas diferentes possibilidades de captura, uma vez que na atualidade é discutida a pertinência de se denominar o registro digital como "fotografia", escrita da luz.
Conteúdo fotográfico e arquivologia, um relacionamento impossível?
Não há univocidade quanto ao conceito de arquivo, que se altera em função de mudanças políticas, culturais e sociais, uma vez que arquivos são reflexos das sociedades que os produzem e os utilizam. Fatores tais como a finalidade dos arquivos ou os suportes utilizados já foram considerados como definidores de arquivo. Hoje, não o são mais (RODRIGUES, 2006). Assim, não é nosso intuito polemizar sobre definições do que seja ou não arquivo. Vamos considerar, antes, princípios gerais e elencar as características intrínsecas para podermos situar nosso objeto de análise, o tratamento de documentos fotográficos não orgânicos recebidos por instituições, tendo por base o caso do CEDOC da UnB.
O princípio da proveniência, ou princípio do respeito aos fundos, estabelece que o arquivo produzido por uma entidade coletiva, pessoa ou família não deve ser misturado aos de outras entidades produtoras (ARQUIVO NACIONAL, 2005, p. 136). Enquanto certos conjuntos documentais são coleções de itens selecionados previamente, o conjunto de documentos que forma o arquivo são acumulados naturalmente por meio do fluxo da sua produção e recepção por um único sujeito, seja uma entidade coletiva ou uma pessoa. Os documentos são acumulados à medida que são produzidos em decorrência de atividades necessárias para a realização da missão do seu produtor (RODRIGUES, 2006).
O princípio do respeito à ordem original afirma que o arquivo deve conservar o arranjo dado pela entidade coletiva, pessoa ou família que o produziu (ARQUIVO NACIONAL, 2005, p. 137). A ordem original seria aquela na qual os documentos de um mesmo produtor estão agrupados conforme o fluxo das ações de sua produção ou recebimento. Logo, se o documento corporifica as ações que ocorrem em um fluxo temporal, a ordem original, ou melhor, a ordem dos documentos em correspondência com o fluxo das ações é indispensável para se compreender essas ações e, conseqüentemente, para entender o significado do documento (RODRIGUES, 2006).
O princípio da integridade arquivística, ou integridade do fundo, é decorrente do princípio da proveniência e consiste em resguardar um fundo de misturas com outros, de parcelamentos e de eliminações indiscriminadas (ARQUIVO NACIONAL, 2005, p. 108).
Vinculados a esses princípios básicos, temos três características intrínsecas aos arquivos: a singularidade do produtor do arquivo, a filiação dos documentos às ações que promovem a missão definida e a dependência dos documentos dos seus pares.
A singularidade do produtor do arquivo é função do respeito à proveniência. Assim, um conjunto de documentos que foram produzidos e recebidos por distintos sujeitos não se constitui em um arquivo. A relação entre o produtor – entidade, pessoa ou família – e o arquivo é quem fornece a identidade do conjunto de documentos e sua singularidade é indispensável. Portanto, "a singularidade do produtor determina, também, a singularidade do próprio arquivo" (RODRIGUES, 2006, p. 107).
A filiação do documento à ação que o produziu ou recebeu se dá em função do respeito à manutenção da ordem original, ou respeito à proveniência interna. Essa filiação do documento à atividade que o gerou fornece a ele identidade individual e em pequenos grupos. O documento corporifica a ação e, portanto, o que o identifica é a ação que o gerou (RODRIGUES, 2006).
A dependência do documento dos demais, criados em função de uma mesma missão geradora, se baseia no princípio de integridade ou indivisibilidade. A realização da missão de uma entidade, pessoa ou família é um processo constituído por diversas ações que geram documentos. Caso se mantivesse apenas um ou outro documento e se eliminassem os demais, esse documento seria apenas um documento que pertenceu ao arquivo daquele produtor, não se poderia considerá-lo o arquivo do seu produtor (RODRIGUES, 2006).
Portanto, considerando-se esses princípios e características como imprescindíveis ao tratamento dos arquivos, parece claro que a dispersão de documentos pode comprometer a inteligibilidade dos arquivos, conforme alertam Lopez (2000) e Rodrigues (2006). Analisando o tema de nosso artigo sob a luz desses princípios norteadores da arquivologia, podemos afirmar que é extremamente difícil, na maioria dos casos, restabelecer um ordenamento arquivístico aos registros fotográficos custodiados pelo CEDOC da UnB.
Em função da coexistência de diferentes grupamentos de registros fotográficos oriundos de fontes diversas e sem limites claros, o princípio da proveniência não é respeitado, ocorrendo uma relativa mistura que, em muitos casos, inviabiliza estabelecer a figura do produtor. O princípio do respeito à ordem original, ou seja, a conservação do arranjo dado pela entidade produtora, e o princípio da integridade arquivística, que consiste em evitar misturas entre diferentes fundos, parcelamentos ou eliminações indiscriminadas, também não são observados. Esses registros fotográficos são armazenados dispersos em caixas ou pastas, tendo sido manipulados inúmeras vezes por diferentes pessoas e de forma inadequada, o que compromete o arranjo original nos casos onde havia algum ordenamento, além de possibilitar a indesejada mistura documental.
Além disso, a singularidade do produtor do arquivo, ou seja, a relação entre o produtor e o arquivo e que possibilita a identidade de um conjunto de documentos e sua singularidade, é muitas vezes prejudicada em função da impossibilidade de se estabelecer o produtor desses registros fotográficos. A filiação do documento, função do respeito à manutenção da ordem original, também é afetada. Nesse sentido, Rodrigues (2006) afirma que um documento adquirido ou produzido e recebido por motivos alheios às funções, atividades ou tarefas do sujeito que o acumula não se define como documento de arquivo. E esse parece ser o caso do CEDOC UnB, que vem recebendo e acumulando lotes de registros fotográficos oriundos de fontes diversas, nem sempre vinculadas à Universidade. O quadro geral desses registros fotográficos também afronta a característica intrínseca dos arquivos que é a dependência do documento, ou seja, sua relação com os demais documentos criados em função de uma mesma missão geradora e que se baseia no princípio de integridade ou indivisibilidade.
Concluímos, portanto, que o tratamento a ser aplicado a esses registros fotográficos não pode se apoiar nos princípios estabecidos pela arquivologia. Na perspectiva dessa disciplina, o conteúdo informacional do documento fotográfico não é relevante per se. Sua importância se deve ao relacionamento estabelecido com os demais documentos partes de um determinado arquivo. Reiterando essa afirmação, Lopez (2000, p. 107) diz:
A contextualização dos documentos de arquivos em suas funções produtoras se impõe não por uma obediência cega aos princípios da arquivística, mas por uma questão de lógica. Apenas a contextualização é capaz de garantir, ao mesmo tempo, unicidade e organicidade, permitindo identificar e atribuir sentido mais preciso aos documentos e, por extensão, à informação ali presente (a cena retratada em uma imagem fotográfica, por exemplo).

Voltamos, então, à nossa questão inicial: como tratar "documentos" fotográficos não orgânicos em entidades custodiadoras. Com são poucos os elementos externos a esses registros, devemos nos voltar para a análise de seus conteúdos informacionais em busca de indícios que possam indicar suas identidades, suas vidas pregressas. Esse viés da busca informacional nos aproxima do conceito de informação-como-coisa, de Buckland (1991), na qual o termo informação é atribuído aos objetos, sendo tangível. Ao relacionar informação-como-coisa com "evidência", Buckland (1991, p. 353, grifo nosso, tradução nossa) afirma que "é possível aprender através do exame de vários tipos de coisas. Na seqüência desse aprendizado, textos são lidos, números são calculados, objetos e imagens são examinados, tocados ou percebidos". Afirma ainda que o termo evidência é adequado porque denota algo relacionado à compreensão e que, se encontrado e corretamente compreendido, pode mudar um saber, uma crença qualquer que diga respeito a algum assunto. Se alguma coisa não pode ser vista como evidência, então é difícil entender que possa ter alguma relação com informação.
A definição de "evidência" proposta por Buckland (1991, p.353, tradução nossa), baseada no Oxford English Dictionary (1989), como sendo "uma aparência de que inferências podem ser esboçadas, uma indicação, marca, sinal, fala, traço", pode ser relacionada à nossa proposta de leitura de imagens, qual seja buscar indícios e sinais que revelem elementos (informações) aparentemente ocultos. Ou seja, a evidência, ou índice segundo a semiótica, como possibilidade informativa presente nas imagens.
Índice, o signo como pista
A história da fotografia é marcada por fases nas quais conceitos e atributos sofreram revisões. Segundo Dubois (1994), podemos apontar três fases principais quanto à percepção e uso da imagem fotográfica. Na primeira, a fotografia se apresenta como espelho do real, reprodução mimética da realidade, representação fiel em função de sua semelhança com o referente, sendo relacionada por Dubois ao ícone de Peirce. Para a semiótica, o ícone vincula-se estreitamente ao referente, a coisa representada por semelhança e reconhecimento. Nesse sentido, a fotografia digital do meu rosto apenas me representa, é ícone de mim, mas obviamente não me substitui como ser total e unificado. É o vínculo entre a imagem e o respectivo referente.
Na segunda fase, a fotografia se apresenta como transformação do real, ou seja, a visão ingênua de espelho fiel do real é abandonada em função de sua possibilidade manipuladora, de sua codificação cultural e ideológica, apresentando um sentido simbólico pelo viés da semiótica. O fotógrafo tem a possibilidade de apresentar seu viés ideológico por meio da "realidade" aparente do registro. O ato de enquadramento, de recorte do visível pela seleção consciente do fotógrafo, introduz um ponto de vista particular que se articula com elementos da realidade social.
Finalmente, no terceiro estágio a fotografia passa a ser percebida como traço do real, como índice de algo. Remete ao ícone (referente), mas apenas por alusão. O índice liga-se à coisa, como a fumaça ao fogo ou o estampido ao tiro. Na fotografia, a imagem vincula-se ao objeto retratado. Assim, afirma Dubois (1994, p. 53), "a foto é, em primeiro lugar, índice. Só depois ela pode tomar-se parecida (ícone) e adquirir sentido (símbolo)". Porém, é necessário observar que nossa proposta de leitura indicial não se baseia na perspectiva da fotografia como índice da realidade. Interessa-nos a presença de índices no interior da fotografia, signos que remetem a outros signos e revelam conexões que possibilitam a compreensão do registro fotográfico.
As relações dialéticas e dialógicas nas práticas sociais – a experiência mundana –, perpassadas pela assimilação da língua e dos códigos que ocorre no convívio social, nas trocas simbólicas mediadas pelos diversos meios de comunicação e pelo sistema escolar, ampliam crescentemente nossa percepção de mundo e as possibilidades de construção de sentidos. A compreensão, o estabelecimento de relações de causa e efeito, a busca do sentido das coisas - o entendimento do mundo natural, ou mesmo sobrenatural, dos artefatos criados pelo homem e do próprio ser – formam a base de nossa existência. Nessa perspectiva, as articulações simbólicas que ocorrem na mente e são referenciadas nas diversas linguagens tendem a atingir estágios de maturidade crescentes em função do incremento continuado dos inúmeros possíveis sentidos que emergem das interações sociais, culturais e contextuais. Nossa visão de mundo é, em certa medida, mutante e as informações dele advindas estão em permanente choque com nossos valores, princípios e certezas, tensão que reconfigura continuamente nosso conhecimento sobre esse mesmo mundo e as coisas que nos rodeiam.
Por esse viés, e na perspectiva da semiótica de Peirce, o que era indicial (sensação) em um primeiro momento, pode se apresentar, em seguida, como simbólico. Assim como ocorre com as palavras, entendemos que os índices são "signos puros" abertos a qualquer significado e sentido que os indivíduos em suas práticas sociais necessitem produzir. Peirce (2008, p. 67) afirma que "uma batida na porta é um índice. Tudo o que nos surpreende é índice, na medida em que assinala duas porções de experiência". Assim, um forte relâmpago indica um acontecimento violento, mas cujo desdobramento, ou seja, sentido, somente se dará em função da ligação com outras experiências. Uma sequencia de batidas na porta pode trazer felicidade ou terror, dependendo do contexto, da força empregada, etc.
As experiências mundanas, tanto as coletivas como as individuais, irão definir práticas que possibilitem o trânsito entre o indicial, o percebido e sentido, e o simbólico, o convencionado. Como "os ícones e os índices nada afirmam" (PEIRCE, 2008, p. 70), ou seja, estabelecem uma relação apenas indicativa com as coisas às quais se vinculam, para serem identificados carecem de outro elemento. Esse é o símbolo, regra convencionada (o sistema da língua) que se encontra no lugar do objeto (interpretante), mas o qual não substitui em si, apenas emula. Logo, as experiências sensoriais no contexto social, em interação e diálogo constantes com os valores individuais, definirão os entendimentos sobre os múltiplos aspectos da realidade. Nossa sensibilidade é marcada pelo deslocamento do corpo pelo mundo, e as sensações pelas quais passamos se tornarão, então, emblemáticas – simbólicas – dos vários aspectos desse percurso. Cada indivíduo construirá seu arsenal linguístico tanto pela sensação/sentimento como pelo simbolismo convencionado ou, mais precisamente, pela interação entre ambos.
O índice como fonte de evidências
Indícios, ou índices, são frequentes em nossa rotina. Pouco percebemos conscientemente, mas estão presentes nas mais variadas situações, em nossas comunicações, nas tomadas de decisão, nas avaliações e juízos. Quando afirmamos que é a primeira impressão a que fica, estamos julgando indicialmente. Medimos aparências, posturas, gestos, cacos, ossos enterrados, a condição do tempo e muitas outras coisas utilizando nossa percepção indicial. E isso não é de hoje. Ginzburg (1989), discorrendo sobre o que chama de paradigma indiciário, revela sua remota origem e as aplicações nas artes e ciências. Aponta ainda seu uso nas antigas práticas divinatórias, nas leituras de entranhas de animais, nos sintomas corporais dos doentes, nas revelações psicóticas de pacientes de Freud e mesmo na investigação policial ou nas tramas detetivescas de Arthur Conan Doyle. Essas formas de saber, segundo Ginzburg (1989), eram mais ricas do que qualquer codificação escrita e não eram aprendidas nos livros, mas sim no cotidiano, nos olhares, gestos, nas sutilezas não formalizáveis. "Todas nasciam da experiência, da concretude da experiência". (GINZBURG, 1989, p. 167).
A aplicação desse paradigma nas artes é enfatizada por Ginzburg quando destaca as contribuições de Giovanni Morelli, personagem que desenvolveu um método de análise de obras de arte que "os historiadores da arte falam correntemente ainda hoje." (GINZBURG, 1989, p. 144). Acobertado por pseudônimo, Morelli escreveu artigos sobre a arte italiana em jornais da época (entre 1874 e 1876) nos quais propunha seu método para distinguir obras de arte originais de suas cópias. De acordo com o método, era necessário tirar o foco das características mais vistosas das obras, logo, mais fáceis de serem copiadas por um indivíduo hábil, uma vez que, ao observamos uma imagem, somos atraídos pela configuração geral, negligenciando o pormenor. Ao contrário, a análise devia privilegiar o detalhe "oculto", desprezado, pontos menos influenciados pela escola à qual pertencia o pintor: dedos, lóbulos de orelha, unhas, detalhes que refletiam características únicas de cada autor. Ou seja, indíces impregnados do estilo do pintor, uma alusão única e intransferível, quase uma impressão digital, e subjacentes ao grande tema da obra baseado na estilística das escolas acadêmicas. Os livros de Morelli sobre história da arte eram exóticos, pois apresentavam coleções de desenhos de unhas, dedos, orelhas, registros cuidadosos que traem a presença de um determinado artista, assim como um criminoso é traído por suas digitais. (GINZBURG, 1989). O método morelliano, diferentemente da leitura de sintomas corporais, entranhas de animais ou pegadas na lama, buscava, "no interior de um sistema de signos culturalmente condicionados como o pictórico, os signos que tinham a involuntariedade dos sintomas (e da maior parte dos indícios)" (GINZBURG, 1989, p. 171).
É interessante observar que à época de Morelli o Estado propunha novas formas de identificação pessoal baseadas na fotografia, então nos seus primórdios. Na França, até 1832 os criminosos eram marcados a ferro. Em 1854, o inspetor geral das prisões francesas passou a fotografar a população carcerária, inflingindo uma "nova marca" em substituição ao ferro em brasa. (GUNNING, 2004). Embora esse procedimento fornecesse uma poderosa forma de identificação,
[...] a tentativa de ler os sinais de identidade de uma nova maneira não derivaram inteiramente da introdução da nova tecnologia [...]. O século XIX testemunhou um rearranjo da hierarquia da prova judicial, à medida que o valor antes acordado ao depoimento da testemunha foi substituído pela reputação científica da análise por indícios. (GUNNING, 2004, p. 41, grifo nosso).

Assim, essa nova perspectiva de análise baseada em sinais e indícios veio substituir a leitura dos signos convencionais inflingidos aos corpos dos prisioneiros marcados a ferro. A identificação passou a ser abordada como ciência, empregando a observação minuciosa e privilegiando o conhecimento sobre a força bruta, estabelecendo nova configuração às questões judiciais. (GUNNING, 2004).
O paradigma indiciário empregado como sutil forma de controle social, no entanto, guarda em si o germe para dissolver as névoas da ideologia.
A existência de uma profunda conexão que explica os fenômenos superficiais é reforçada no próprio momento em que se afirma que um conhecimento direto de tal conexão não é possível. Se a realidade é opaca, existem zonas privilegiadas – sinais, indícios – que permitem decifrá-la. (GINZBURG, 1989, p. 177).

Para exemplificar a aplicação prática de uma análise sistemática a partir de sinais e índices, como é a nossa proposta e a qual tentamos delinear nas páginas precedentes, vamos utilizar um caso corrente e emblemático mostrado a seguir.



El miliciano de Capa vuelve a ser anónimo
O caso que vamos apresentar demonstra genericamente nossa proposta de análise de imagens, particularmente das fotográficas. Segundo a sinopse do documentário em questão, "La sombra del iceberg, Una autopsia de la mítica fotografía de Robert Capa 'El miliciano muerto'",

Figura 2[...] no início da Guerra Civil Espanhola (1936-1939), o lendário fotojornalista Robert Capa – até então anônimo – registrou a fotografia conhecida como A morte do miliciano, um dos ícones do século XX e símbolo da tragédia em qualquer guerra. Segundo a versão oficial, essa foi a primeira vez na história que se capturou em fotografia o momento da morte em batalha. "A Sombra do Iceberg" é um documentário de longa metragem que questiona, por meio de pesquisa fundamentada, a veracidade da versão oficial e levanta a possibilidade de que a imagem é o resultado de uma grande encenação. (DOMÉNECH; RIEBENBAUER, 2007, tradução nossa)
Figura 2

Os princípios norteadores das investigações sobre a fotografia da figura 2 não estão explicitamente baseados na semiótica ou outro referencial teórico, mas sim em técnicas forenses empregadas por Fernando Verdú, chefe do Departamento de Medicina Legal e Forense da Universidade de Valência, e no conhecimento de especialistas profissionais tais como um astrofísico, um conservador de fotografía, um geodesista, a diretora de fotografía da Christie's na Espanha, os biógrafos do fotográfo Robert Capa e Gerda Taro, entre outros.
Como vimos, a análise busca desvendar a "verdade" oculta contrária à versão oficial sobre o registro de Capa. Segundo os autores (DOMÉNECH; RIEBENBAUER, 2007), a TV espanhola noticiou em 05 de setembro de 2006 que a foto de Robert Capa clicada em 1936 numa colina em Muriano, Córdoba, registra a morte do miliciano Federico Borrell, mais conhecido como Taino. A "identidade" do miliciano foi confirmada oficialmente após quase 60 anos da Guerra Civil. Empar Borrell, sobrinha do miliciano Federico Borrell, afirma que em 1995 foram apresentados à sua mãe alguns clichês sobre a milícia e que a senhora reconheceu no miliciano morto a figura do irmão, Federico Borrel. Como consequência, a mídia passou a veicular a informação de que, finalmente, havia sido identificado o soldado até então desconhecido.
Ao iniciar as investigações sobre a identidade da figura do miliciano, e buscar restabelecer a verdade dos fatos, os pesquisadores do filme consultaram documentos antigos cujas informações não estavam contaminadas pelas afirmações e "verdades" da atualidade, sendo que na época ninguém havia visto a imagem de Capa. A publicação anarquista "Ruta Confederal", do final de 1937 e localizada no Arquivo de Alcoy, contem texto de um amigo de Federico Borrell no qual recorda sua morte: "Le veo tendido detrás del árbol que le servía de parapeto (...) Aún después de muerto empuñaba su fusil." (DOMÉNECH; RIEBENBAUER, 2007). Ou seja, a descrição não corresponde à fotografia de Capa, que registra o momento do tiro e em cuja cena não aparecem as tais árvores que serviam de parapeito ao miliciano, nem tampouco nas fotos que fazem parte da sequência da qual a foto acima é parte. No Arquivo de Alcoy se encontra também uma lista de milicianos referente à semana de cinco de setembro da frente de combate Córdoba. Federico Borrell García aparece com o número 62. Porém, perguntam os investigadores, era realmente Borrell o miliciano reconhecido por parentes depois de transcorridos 60 anos desde a sua morte? Seria suficiente a mera impressão de um parente?
Após analisar provas documentais escritas e desconstruir o depoimento de um ex-combatente que afiançou a identidade do miliciano morto, os investigadores passaram a utilizar elementos indiciais presentes na fotografia de Capa.
Dentre princípios de análise e conclusões, podemos destacar os seguintes, juntamente com as considerações dos pesquisadores. 1. Recorreram ao que chamam de rigor científico. Fernando Verdú, chefe do Departamento de Medicina Legal e Forense da Universidade de Valência, estudou durante meses cópias com alta resolução de todas as fotografías de posse da família Borrell, juntamente com as que são parte da série do miliciano de Capa e que foram descobertas pela equipe de investigação. A conclusão foi clara: "Inicialmente, la impresión, después de haber estudiado todas las características, es que no es la misma persona". Além disso, o perito concluiu que não há uma causa razoável para a morte. Ou seja, do ponto de vista forense, o miliciano pode estar vivo. Verdú questiona também a posição de queda do miliciano, uma vez que essa posição só poderia ser possível em função do disparo de uma arma de grande calibre, equivalente a uma Magnum. E, se assim fosse, apareceria na foto como um impacto frontal. E não há rastro algum disso. 2. Quanto à autoria, os pesquisadores concluem que a foto pode ter sido registrada por Gerda Taro, fotógrafa e companheira de Capa, pois jornais da época certificam sua presença no local. Ambos trabalhavam com duas máquinas que trocavam entre si e cujos rolos de filmes eram enviados para serem revelados na 'Photo Capa'. Portanto, afirmam os pesquisadores, a autoria pode não ser de Capa. 3. Por meio de um estudo astrofísico (o mais rigoroso possível em função da escassa definição das fotografias), foi possível estabelecer a possível hora da realização dos registros fotográficos: às nove horas ou às 17 horas, oito horas antes da versão oficial, período em que não havia combates. 4. Foram identificadas algumas fotografías nunca antes relacionadas com a série do miliciano, e que, quando comparadas à foto do miliciano atingido, aponta para a tese de uma genial encenação. 5. E o mais importante, afirmam Doménech e Riebenbauer (2007),
desvelamos a estrategia del entorno oficial de la Agencia Magnum y el Centro Internacional de Fotografía (ICP) de Nueva York —creado por Cornell Capa en los sesenta para proteger y difundir, entre otras, la obra de su hermano Robert— para evitar que se pueda cuestionar la veracidad de esta mítica imagen.

Conclusão
Do caso apresentado em linhas gerais para referenciar nossa proposta de leitura de registros fotográficos não orgânicos e sujeitos a tratamento em entidades custodiadoras, podemos tirar algumas conclusões.
A necessidade de equipe multidisciplinar que possa manipular esse material com relativa desenvoltura;
Índices são elementos importantes na investigação. Roupas, estilos arquitetônicos, mobiliário, vegetação, posição solar, topografia, expressões, maneirismos, etc, ajudam a contextualizar o registro e definir sua finalidade;
Conjuntos fotográficos podem ser estruturados em função de características semelhantes apresentadas por registros feitos pelo mesmo profissional e em determinado dia e evento. Preferências de enquadramento, ângulos, pontos de vista, qualidade do material (quando analógico), tema, entre outros, podem indicar semelhanças e possibilitar o agrupamento de fotografias dispersas;
A importância dos documentos escritos como auxiliar na análise de registros fotográficos. Documentos ou inscrições podem direcionar a investigação;
A relevância de depoimentos orais. Embora a pesquisa sobre a fotografia de Capa aponte um possível engano nos depoimentos, eles são importantes na medida em que servem de contraponto a outros elementos.

Enfim, devemos acrescentar que é fundamental a utilização desses pressupostos conjuntamente, de modo a tecer uma trama investigativa que possibilite contrapor situações, indícios e referências. Pensamos que na maioria dos casos seja impossível uma estruturação desse material custodiado de uma maneira coerente, restabelecendo coleções. Estamos cientes da impossibilidade de tratar esses registros fotográficos dispersos como documentos arquivísticos em função da perda dos requisitos mínimos necessários. Logo, devem ser tratados por outro viés, que não o arquivístico. Consequentemente, o tema abordado neste artigo apresenta novos problemas para a arquivologia, se é que há interesse da área nessa questão.

REFERÊNCIAS
ARQUIVO NACIONAL. Dicionário brasileiro de terminologia arquivística. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2005. 232p.; 30cm. - Publicações Técnicas; nº 51.
BARROWCLOUGH, Anne. Fall of Saigon photographer Hugh Van Es. The Times, Londres: 15 mai. 2009. Disponível em: Acesso em: 16 jul. 2011.
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