A ANCESTRALIDADE MOÇAMBICANA: O PAPEL DA MEMÓRIA NA NARRATIVA DE MIA COUTO

July 6, 2017 | Autor: Silvania Cápua | Categoria: Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa, Mia Couto, Memoria Colectiva
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Anais Eletrônicos do IV Seminário Nacional Literatura e Cultura São Cristóvão/SE: GELIC/UFS, V. 4, 3 e 4 de maio de 2012. ISSN: 2175-4128

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A ANCESTRALIDADE MOÇAMBICANA: O PAPEL DA MEMÓRIA NA NARRATIVA DE MIA COUTO Silvania Cápua Carvalho (UEFS) 1 INTRODUÇÃO Este artigo resulta de algumas considerações contidas na dissertação – Narrativas da Ancestralidade Moçambicana: o mito feminino das águas em “O outro pé da sereia”–, defendida em 2011, no mestrado do Programa de Pós-Graduação em Literatura e Diversidade Cultural (PPGDLC), da Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS). Este estudo objetiva identificar as experiências culturais do continente africano a partir do país Moçambique, retratado na obra do escritor Mia Couto em “O outro da sereia” (2006). Para tanto, busca-se compreender a ancestralidade relacionando-a com o sentimento de pertencimento presente no pós-colonialismo. Pretende-se comprovar a importância da sabedoria dos antepassados dos habitantes dos sertões africanos, que compõem as narrativas da ancestralidade moçambicana. Desta forma, está implícita uma discussão em torno de memória, seja para tratar de pertencimento ou para se referir ao apagamento de uma memória colonial.

2 MOÇAMBIQUE: O PAPEL DA MEMÓRIA PARA O APAGAMENTO CULTURAL

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Na constituição do romance O outro pé da sereia (OPS), o escritor moçambicano evidencia dois momentos da história do continente africano por meio de seu próprio país: o ano de 1560, século XVI e o ano de 2002. Essas duas balizas históricas serão utilizadas para, a partir de um cotejo entre os eventos significativos daquelas duas realidades, fazer uma discussão da importância contraditória da cultura, ao mesmo tempo fonte de memória, de garantia do pertencimento, e quando na sua função de apagamento, caminho para o esquecimento. As revelações da força da natureza nos romances coutianos ressaltam o princípio da criação, tendo o elemento feminino como o centro da narrativa. O principal destaque é a figura da sereia e sua viagem pelas mãos da personagem feminina, na representação do poder feminino. Além disso, a emancipação das mulheres revela, no decorrer do romance, sua condição na sociedade rural do país recém-independente. Moçambique tem que ressurgir das cinzas, das guerras civis, da pólvora que contamina o “sangue” de seus habitantes e, ao mesmo tempo, prepara-se para um “processo civilizatório” com a invasão da globalização que refaz as identidades coletivas, ainda não estabelecidas em tal sociedade. Por outro lado, o escritor, através de suas personagens, utiliza o discurso para demonstrar a memória coletiva; e, busca na tradição oral da comunidade rural de Moçambique o projeto da sua narrativa, que é evidenciar a “escrita das margens” e das pessoas excluídas como velhos e mulheres. Mergulhar na cultura de matriz africana é mergulhar completamente na

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família de nossos ancestrais, compreender nossas raízes, e de como a forma cultural africana estruturalmente é ética, sensível, sutil e causal. Experimentando as teias teóricas de acadêmicos comprometidos com esta origem a fim de mobilizar novos leitores sobre a importância destes estudos culturais, lança-se mão da ancestralidade como uma ferramenta de análise do romance OPS. Esta obra religa territórios, sentimentos, sensações, pensamentos, mitos e fábulas. Além de experiências e sínteses decorrentes de contatos e trocas teóricas no decorrer das leituras, a Filosofia da Ancestralidade emerge como operador de leitura e de considerações acerca do papel desta categoria para percorrer as estruturas do romance. A tese da Ancestralidade é a arte de tecer teias teóricas permeadas da arte de experimentar, com Oliveira (2007) não é diferente. Este autor busca a construção de sua Pedagogia do Encantamento utilizando a história e experiência de um outro: Norval Cruz, protagonista da obra Filosofia da Ancestralidade de Oliveira (2007). Este autor tem sua preocupação voltada para a valorização e o respeito da matriz africana no Brasil (OLIVEIRA, 2001). Portanto, como intelectual e acadêmico visa contribuir na formação das novas gerações de pensadores sobre a ancestralidade presente em nossas veias e cultura. O pensador Oliveira (2001) dedica-se, especificamente, ao discurso religioso afro-brasileiro, concebendo-o como categoria fundamental na articulação da experiência, contribuindo para um novo olhar acadêmico sobre a ancestralidade.

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As observações da trajetória do personagem Norval Cruz geram a seguinte conclusão de Oliveira (2007, p. 5):

[...] É do encontro entre corpo e ancestralidade que se faz o tecido desse livro. Teço na epiderme dessas folhas o corpo ancestral que, espero, envide outras perspectivas para a educação. É aí que se opera minha terceira conversão que, no fundo, redunda em síntese: de filósofo/antropólogo em educador.

A sedução dialoga com o romance OPS e, também, com o leitor, pois na figura mítica da sereia, chamada pelos povos de origem bantu de Kianda, habita o imaginário dos escravos da nau, os homens do continente da porção mais oriental africana: Moçambique, beirada pelo Oceano Índico. A sedução: “[...] é a peça que se pretende obra-de-arte, mas ao pretender-se criação artística, tem o desejo implícito de comunicar com a fome o que está implícito em seu conteúdo” (Id-Ibidem, p. 11). Mia Couto afirma que a escrita do romance torna o ato de escrever sobre o seu país: “[...] uma atitude que, em si mesma carrega uma proposta ética e estética” (Id-Ibidem, p. 11). A narração de Couto (2006) é apenas uma representação da realidade moçambicana, e a interação dos leitores vai além do pensamento, vibra na alma, cujos ancestrais clamam por alter-conhecimento, ou seja, o conhecimento do Outro. Conhecendo o outro, a interação com o mundo e consigo mesmo gera um movimento. Esta busca dos ancestrais constitui-se um devir. Devir-sagrado, deviranimal, devir-planta, devir-mineral, devir-tempo são nuances de uma ecocrítica

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implícita na escrita do ficcionista/biólogo moçambicano, estabelecendo uma interação. O mosaico de vozes silenciadas do continente africano agora tem sua expressão através da textura do romance OPS, concordando com a afirmação de que a interação: “[...] é muito mais que pensamento. [...] O pensamento é memória como uma forma de ordenamento da cultura, mas a cultura, pensada aqui como movimento, é muito mais do que mero ordenamento lógico. Ela é um mosaico perceptivo” (Id-Ibidem, p. 63). Há uma prevalência da sensibilidade conferida pelos ancestrais da Mama África no sangue que percorre as veias de todos os povos. Nos brasileiros, ela se manifesta nos estudos antropológicos de Oliveira (2007), ao questionar o leitor: “[...] Quem não sente paz ao abraçar um tronco? E não é qualquer paz. É uma serenidade que se movimenta lenta e pesada como as águas profundas do oceano” (Id-Ibidem, p. 72). Tal sensibilidade está presente também na narrativa coutiana, na qual a força da natureza surpreende na linguagem cheia de lirismo e nas descrições da paisagem da savana africana, seja no emboeiro, na msassa. Oliveira (2001) diz em sua narrativa: “[...] quando abraço uma árvore, é ela quem me abraça. É ela e todos os que moram nela” (Id-Ibidem, p. 73). Deste modo, a vibração nela contida está tecida na sua superfície rugosa que demonstra o seu tempo de vida, tecendo a rugosidade de seu rosto: “[...] que é o rosto do tempo e da ancestralidade que habita a selva” (Id-Ibidem, p. 73).

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As teias são como traços culturais repletos de singularidades, como defende Oliveira (2007, p. 82): “[...] as teias são também elas dinâmicas e se movimentam incessantemente em suas singularidades”. Na voz do protagonista de Filosofia da Ancestralidade: “a Terra dança. O rio dança. O vento dança. A árvore dança. Dançam os animais; a terra dança. Dançar a vida. A vida é dança!”. Com esse olhar, observase que cada componente da trajetória de Mwadia, canoa, rio, emboeiro das matas, os animais de Zero Madzero, todos transcendem a simples condição de signos, tudo faz parte de tudo. Todos os seres vivos, a natureza, o homem é parte de algo maior. Pelo fio da narrativa de OPS é possível uma aventura entre o real: a história da colonização lusitana no Reino do Império Monomotapa e a cultura de seus ancestrais. O caleidoscópio de personagens históricos e ficcionais do romance é que proporciona a imagem da cultura moçambicana, a qual se apresenta no viés de Oliveira (2007, p. 86), de maneira: “[...] multifacetada e multicolorida, o caleidoscópio da teia-da-aranha dá conta de que o real é uma superposição de olhares e que a cultura é uma variação de lentes”. A descoberta da verdade é vinculada a uma mera conjectura, de fato: “[...] o tecido do real não é um só” (Id-Ibidem, p. 86). O resgate do círculo da ancestralidade, antes vazio com o desaparecimento do baú e da santa, é retomado pelas mãos de um ser que habita o mundo dos vivos, Zero Madzero que, por sua vez, retoma a energia primordial da Terra ao retirar a Santa da lama do rio. Renasce a: “[...] pulsação de onde nasce a matéria do mundo. O que dá o conteúdo às teias que tecem o mundo é pura energia. É a não matéria. Pulsação que movimenta o

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existente” (Id-Ibidem, p. 87). Mostra o início da aventura no território da nação moçambicana, do continente onde tudo começou: Terra mãe: Mama África, a mãe da humanidade. A intertextualidade da escrita de Oliveira (2007) com o romance de Mia Couto (2006) está presente no fato de alguns personagens terem como ancestrais o povo Xona, e o protagonista Norval Cruz ser comparado a um guerreio Xona, que está presente na encruzilhada das vozes africanas que brotam de seus ancestrais. O corpo da Santa, a sereia é um microcosmo que remete à religiosidade lusitana, e, ao mesmo tempo, possui o caráter híbrido quando os escravos nela creditam o pulsar da deusa das águas. Ao perder o pé, ao cair no chão, que segundo o escravo Nimi Nsundi foi “por vontade própria” que ela buscou o chão. Ainda que tenha sido assim, tal busca lembra a busca da terra, da origem, do solo, do território: é o retorno a matriz africana que a santa anseia, de acordo com o imaginário dos nativos. É o espírito dos ancestrais que traz a santa de volta ao mundo real, ela é descoberta pelo casal Zero Madzero e Mwadia. O retorno do corpo ancestral: “[...] mesmo o espírito das águas precisa rastejar o chão para se relacionar com o mundo” (Id-Ibidem, p. 99), remete a uma ideia de que o corpo é território da beleza, condição da ética, estética e ontologia. O totem da sereia, em verdade, é o ser que faz a ponte entre o real e o mundo mítico em que tudo é possível e revestido de leveza e densidade sutil. Logo, o corpo pode ser compreendido: “[...] ele inaugura outro modo que ser, outro modo que se conhecer. Pensou-se sempre o corpo. Chegou o

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momento de pensar desde o corpo ou, ainda, de o corpo pensar. Pensamento do corpo imerso na cultura de matriz africana” (Id-Ibidem, p. 100). Na realidade, o corpo na matriz afrodescendente pode ser entendido e estudado a partir dos três princípios fundamentais da cosmovisão africana: diversidade, integração e ancestralidade1. Mia Couto é um narrador onisciente. A fidelidade de sua narrativa é matéria relatada para compor detalhes e nuances da vida e morte de D. Gonçalo da Silveira, bem como a expedição que o levara ao Império Monomotapa. Com base em documentos, tais como: cartas e biografias, o escritor recompõe parte dos episódios históricos, compondo um relato historiográfico sobre o domínio colonial da costa da África Oriental. Evidencia fatos e relatos de viagens das expedições de Vasco da Gama por aquelas terras distantes em 1498 e 1501; informações coletadas que compuseram o repertório ficcional do romance OPS. O narrador de OPS traz a fundamentação da existência entre o abismo da obscuridade e do esquecimento, e somente existindo é que se experimenta a morte, mas sempre existem estratégias de dominá-la. Este era o fundamento da existência do missionário D. Gonçalo da Silveira. Revela o poder de Mwadia de reencontrar o seu passado através da descoberta do baú e seus manuscritos. A imagem da Santa é descrita como a missão na narrativa de fazer com que a imagem de Kianda possa reencontrar o seu passado, voltar ao barro, voltar às suas origens e que a alma de D. Gonçalo possa deixar o mundo dos vivos e retornar, também, para os braços da sua

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mãe d’água. No pensamento africano, a prática de reminiscências do aspecto pessoal, indica que existe também um componente social, o coletivo. Através dos estudos dos personagens e toda a cultura de ambientação da vida, percebemos a sobrevivência do homem no continente africano. Numa lógica transdisciplinar, possibilita o entendimento do mundo exterior e material que se dá em experiências localizadas no espaço e no tempo. A leitura do romance é o ponto de partida e de chegada para a reflexão sobre a ancestralidade. A linguagem da percepção de Mia Couto traz à tona a figura do mito feminino das águas: a sereia, Kianda. Na reflexão de Oliveira (2007, p. 103): “[...] é condição para toda e qualquer reflexão e representação. O corpo é o que somos”. Na linguagem de um jornalista/ficcionista moçambicano: “[...] o corpo fala porque ele é já uma linguagem unificada entre o biológico e o cultural” (Id-Ibidem, p. 103). As narrativas de seus romances produzem a chamada ecocrítica do mundo contemporâneo. Portanto, a Filosofia da Ancestralidade apresenta:

[...] O corpo não é simplesmente fonte de todo movimento e ação. O corpo, com efeito, é um acontecimento que inaugura a existência. Não é apenas É uma existência coletiva: o corpo é a forma cultural que dá forma ao corpo. O corpo, é então, o modo do Preexistente existir. Para existir o que existe antes de qualquer corpo, precisa-se de um corpo para existir. Une-se o vazio ao pleno; continente a conteúdo. O corpo é a mediação entre mistério e revelação. O corpo, visível, é o sinal do invisível no corpo. Forma e conteúdo no mesmo instante do acontecimento (OLIVEIRA, 2007, p. 103).

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A releitura de Filosofia da Ancestralidade permite conhecer a força que o corpo representa na cultura brasileira, especificamente na cultura baiana, na qual o corpo está em evidência no dia a dia, nas marcas da baianidade dos romances amadianos, nas letras das músicas de Caymmi, na campanha publicitária do turismo do governo do estado, na capoeira, na liturgia do candomblé, na festa de rua. Como argumenta Oliveira (2007, p. 101): “[...] a construção de um corpo ancestral é uma máxima pedagógica”, por isso a importância de educar e ver “[...] história dos ancestrais permanece inscrita nos corpos dos afrodescendentes” (Id-Ibidem, p. 101). É preciso ler o texto do corpo para vislumbrar nele a cosmovisão que dá sentido à história dos africanos e afrodescendentes, não só nos personagens Benjamim Southman e Rosie do romance OPS, bem como de todos os afrodescendentes espalhados no planeta. Relatando que: “[...] o corpo é um texto. Com o estudo do corpo como sendo simbólico, sagrado [...] ele é a lógica [...] é cultura [...] ele é um conceito que, como conceito, pretende ser universal e como realidade se efetiva na singularidade de cada existência” (OLIVEIRA, 2007, p. 101). Na diáspora negra, a aventura começa nas linhas do romance e leva à aventura humana dos personagens que tornaram o lugar cultural africano um entrelugar. A voz moçambicana do narrador de OPS partiu de Beira, partiu de um lugar “[...] esse lugar é o legado da cultura africana que se multiplicou em muitas, mas para efeitos de discurso, de ideologia e de política, e também para efeitos ontológicos e lógicos” (OLIVEIRA, 2007, p. 105). O corpo da imagem da Santa é mais do que

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memória: “[...] ele é uma trajetória. Uma anterioridade. Uma ancestralidade”. Por isso, há de se concordar com Oliveira (Idem, p. 107) que: “[...] a forma cultural africana é um modelo histórico-ideológico que por estar visceralmente relacionado ao corpo e à sua expansão tornou-se uma experiência ética. É a ética do sagrado”. A narrativa do romance OPS torna-se, portanto, uma homenagem ao território dos ancestrais do Reino do Império Monomotapa.

3 DELEUZE E MIA COUTO EM DIÁLOGOS CONCEITUAIS A subjetividade é produzida por agenciamentos de enunciação. Os processos de subjetivação, de semiotização, ou seja, toda a produção de sentido, de eficiência semiótica, não é centrada em agentes individuais (no funcionamento de instâncias intrapsíquicas, egóicas, microssociais), nem em agentes grupais (GUATTARI; ROLNIK, 1986, p. 31). Torna-se importante compreender a existência de mitos femininos das águas em literaturas da África lusófona e sua diáspora, nomeadamente, nas experiências de Moçambique e do Brasil. Percebe-se a visão lusitana das mulheres africanas: “[...] As mulheres d’este reino também são muito devotas e vão muitas vezes à igreja ver as imagens, do que gostam muito, especialmente de Nossa Senhora”2 (COUTO, 2006, p. 246). As máquinas de produção de subjetividade variam. Em sistemas tradicionais, por exemplo, a subjetividade é fabricada por máquinas mais territorializadas, na

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escala de uma etnia, de uma corporação profissional, uma casta (GUATTARI; ROLNIK, 1986). Partindo do referencial de análise, pensando o movimento de produção de subjetividade, para Deleuze e Guattari (1986, p. 16), o que existe é:

[...] simplesmente uma produção de subjetividade. Não somente uma produção de subjetividade individuada – subjetividade dos indivíduos – mas uma produção de subjetividade social, uma produção de subjetividade que se pode encontrar em todos os níveis da produção de consumo. E mais ainda na produção de subjetividade inconsciente.

A chegada dos colonizadores implicou na imposição linguística aos nativos e aos integrantes da nau comandada pelo D. Gonçalo Silveira. A perda da língua dos nativos aos poucos começa a se processar, sendo considerada pelos colonizadores como uma língua menor, menos prestigiada. Na opinião dos pensadores Deleuze & Guattari (1977, p. 25): “[...] Uma literatura menor não é a de uma língua menor, mas antes a que uma minoria faz em uma língua maior”. No entanto, a primeira característica é, de qualquer modo, que “[...] a língua aí é modificada por um forte coeficiente de desterritorialização” (Id-Ibidem, p. 25). Considerando a literatura como agenciadora das intensidades do plano social e do sentido de produção como modo de gerenciamento dessas intensidades, parece pertinente entender a literatura kafkiana como um lugar de leitura de subjetividade (DELEUZE, 1998). Deleuze & Guattari (1977) questionam a si mesmos quanto às relações humanas, para eles “[...] trata-se de um rizoma, de uma toca” e, por este motivo, tem entradas múltiplas. Deleuze & Guattari (1977) provavelmente buscaram

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o termo rizoma das ciências biológicas, mais precisamente das agrícolas e botânicas. Estas áreas de conhecimento são familiar ao escritor Mia Couto, biólogo de formação, que utiliza dos suportes teóricos destes pensadores com o intuito de dar vários sentidos à sua tessitura narrativa, formando, assim, um emaranhado de caminhos e de sentidos. Observando as condições de Deleuze & Guattari (1977) com a narrativa do romance OPS no que tange à importância da memória para as comunidades descritas pelo autor. Através da representação das imagens das fotos, a narrativa provoca os nossos sentidos e emoções com a personagem principal no capítulo final do romance, (nome da personagem), no seu encontro com seus próprios antepassados, que são representados pelas fotos dos familiares que se ausentaram na parede da casa de D. Constança.

CONSIDERAÇÕES FINAIS A literatura de Mia Couto possui uma dicção própria. Ele procura recriar o léxico e inserir aspectos e valores dos antepassados na sua escrita, tais como: as reformulações de provérbios, canções das línguas das comunidades moçambicanas e adágios populares, provenientes das culturas que subsistem na oralidade. Este estudo, portanto, representa um pilar para a maioria dos questionamentos que despontam acerca da noção de pertencimento. Essas indagações, por sua vez, interpelam a sociedade, que é convocada a conhecer melhor o repertório ficcional do

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autor; as culturas de diversas etnias; as crenças religiosas; e, acima de tudo, valores nacionais tão vibrantes nas linhas do texto ficcional coutiano.

REFERENCIAS

COUTO, Mia. O outro pé da sereia. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. DELEUZE, G.; GUATARRI, F. Kafka: por uma literatura menor. Tradução Júlio Castañon Guimarães. Rio de Janeiro: Imago, 1977, p. 25. DELEUZE, Gilles. Lógica do sentido. 4 ed. São Paulo, SP: Perspectiva, 1998. 342 p. GUATTARI, F; ROLNIK, S. Micropolítica: Cartografia do Desejo. Petrópolis: Vozes, 1986. 327p. OLIVEIRA, E. D. de. A Ancestralidade na Encruzilhada: dinâmica de uma tradição inventada. 252 f. 2001. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) - Universidade Federal do Paraná, Curitiba. 2001. OLIVEIRA, E. D. de. Filosofia da ancestralidade: corpo e mito na filosofia da educação brasileira. Curitiba: Editora Gráfica Popular, 2007.

NOTAS 1

A filosofia africana está baseada no princípio da ancestralidade (tradição), da diversidade e da integração. A ancestralidade responde pela forma que aloja o conjunto de categorias e conceitos que revelam a ética imanente aos africanos. A diversidade, como princípio, respeita a diversidade étnicacultural e política dessas comunidades, valorizando as singularidades que emergem de cada território africano. A integração permite que a diversidade não se torne um cordão de isolamento, um motivo para o niilismo, mas submete as singularidades territorializadas a um critério ético maior: o bem estar

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das comunidades e realização de seus destinos. Não existe bem-estar sem integração. A tradição, por sua vez, é a malha que sustenta todos esses princípios historicamente produzidos. Trata-se de uma tradição dinâmica, capas de se moldar aos novos tempos e responder aos desafios contemporâneos. Tradição que é mais uma forma que um cânone; mais um contorno que um mecanismo de controle. (ROCHA; PANTOJA, 2004 apud Oliveira, 2007, p. 100). 2 Carta do padre André Fernandes, Moçambique, 26 de Junho de 1560. In Portugueses no Monomotapa, ao padre D. Gonçalo da Silveira, Imprensa Nacional, 1892 (COUTO, 2006, p. 246).

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