A antropologia o estudo da mobilidade – a comunidade cigana Kalon em Belo Horizonte

Share Embed


Descrição do Produto

Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais Departamento de Relações Internacionais

A antropologia o estudo da mobilidade – a comunidade cigana Kalon em Belo Horizonte

Amanda Ramalho Guimarães Igor Rezende Vilela

Belo Horizonte Outubro/2016

1. Introdução A escolha dos ciganos enquanto nosso objeto de estudo é, fundamentalmente, pautada em aspectos práticos das Relações Internacionais, como os fluxos migratórios - reconhecendo que a comunidade cigana possui uma extensa abrangência histórica e perpassou elos geracionais, temporais e territoriais através do planeta; bem como a própria constituição de uma narrativa cultural acerca dos povos ciganos e a presença dessa percepção que nosso grupo social possui em relação à eles. Incluindo ao apanhado de informações que coletamos, elementos que Roberto Cardoso de Oliveira elenca em seu questionamento: “sem percepção ​ e pensamento, como então podemos conhecer?”. Nosso trabalho se organiza em introdução, contextualização, perfil dos entrevistados, análise do material e conclusão. Os principais objetivos deste trabalho são: ❏ Localizar espacialmente a comunidade dos ciganos Kalon na cidade de Belo Horizonte; ❏ Entender como as tradições se mantém em um contexto sedentário e urbano Para além dos mitos envolvidos nas centenas de narrativas acerca da comunidade cigana em todo o mundo, a presença física deles nos espaços na contemporaneidade ainda é alvo de intensa desconfiança, preconceito e desconhecimento. A construção desse imaginário cigano perpassa em muito, a história do mundo, tendo fluxos explicitamente concentrados na América Latina, adentrando no Brasil e, mais recentemente, alocando-se na cidade de Belo Horizonte/ MG. “Todos os anos, pelo mês de março, uma família de ciganos esfarrapados plantava a sua tenda perto da aldeia e, com um grande alvoroço de apitos e tambores,dava a conhecer os novos inventos. Primeiro trouxeram o imã. (...)“As coisas têm vida própria”, apregoava o cigano (Melquíades) com áspero sotaque, “tudo é questão de despertar a sua alma”” (MARQUEZ, 2009).

A passagem acima se refere ao livro ‘Cem anos de solidão’, do colombiano Gabriel García Marquez. Nela, temos uma dimensão visual do mito cigano, como ‘esfarrapados’, naturalmente compreendidos enquanto nômades, dotados de um sotaque distinto e um forte caráter holístico. Essa visão de descolamento social embebida na percepção dos povos ciganos é também presente na literatura brasileira, como no trecho abaixo de ‘Dom Casmurro’, de Machado de Assis: “Capitu, apesar daqueles olhos que o Diabo lhe deu... Você já reparou nos olhos dela? São assim de cigana oblíqua e dissimulada. Pois, apesar deles, poderia passar, se não fosse a vaidade e a adulação” (ASSIS, 1994).

1

A natureza cigana tem, em si, elementos de uma ‘selvageria’ que pode ser associada aos deslocamentos. No que tange ao elemento ‘olhar’, descrito por Roberto Cardoso de Oliveira, tendo trazido algumas literaturas que descrevem, ainda que não de maneira antropológica, as comunidades ciganas, pretendemos por dar um pano de fundo da nossa ‘concepção prismática’ dessa realidade social. É importante deixar claro que as considerações feitas neste trabalho seguem o seguinte princípio: “a partir do momento que nos sentimos preparados para a investigação empírica, o objeto sobre o qual dirigimos o nosso olhar, já foi previamente alterado pelo próprio modo de visualizá-lo” (OLIVEIRA, 2000)

Nos trechos de Machado de Assis e García Marquez, os quais utilizamos como base para construção de uma narrativa geral, apenas, a vaidade do povo cigano é destacada, sendo percebidas em alguns costumes, como nas vestimentas e na apreciação do ouro como ornamento corporal. Neste trabalho pretendemos, através da experiência empírica do contato com as comunidades ciganas da atualidade, fazer uma breve leitura da ​locus dessas comunidades na cidade de Belo Horizonte. 2. Contextualização: A comunidade cigana Kalon (ou Calon) em Belo Horizonte está localizada primariamente no bairro São Gabriel, um bairro de classe média situado na região nordeste da cidade. Sendo um bairro como outro qualquer, o São Gabriel possui um comércio bem estabelecido, um trânsito moderado de carros e um fluxo médio de transeuntes. O bairro pode ser dividido entre a parte alta e a parte baixa; na parte alta se situam os melhores estabelecimentos, as melhores praças e contém até uma unidade da PUC Minas. Na parte baixa, com um acentuado desnível se localizam as populações mais carentes, com casas mais rudimentares, precariedade asfáltica e menos urbanização em geral; nesta parte baixa se localiza a comunidade cigana. Foi observado também, a grande presença de carros policiais num curto espaço de tempo; considerando que eles estavam no que parecia ser uma patrulha, talvez isso indique uma carência de segurança no bairro São Gabriel. Também pudemos perceber uma quantidade superior de propagandas políticas do que observamos no Coração Eucarístico e no caminho feito para chegar até a comunidade. A comunidade cigana, de fato, pode ser resumida como um quarteirão da parte baixa do bairro São Gabriel. Nesta, os ciganos se situam em casas de alvenaria perfiladas umas às outras, apesar de serem sólidas, as casas são construídas de maneira rudimentar sem um acabamento normalmente esperado, e possuem por vezes tendas anexas a residência principal. O aspecto externo da maioria das casas parecia inacabado, e pudemos notar certas quantidades de areia e brita, indicando que reformas estavam em curso nas 2

habitações. A maioria das casas, possui também uma garagem anexa, na qual é colocado um veículo, o qual a despeito da casa não pode ser classificado como rudimentar. As tendas, encontradas em algumas residências são baseadas em um quintal, feito em um chão de terra batida, as tendas podem ser comparadas a uma varanda da casa, na qual os habitantes cozinham, trabalham ou mesmo passam seu tempo; nestas as pessoas convivem com animais, como cachorros e galinhas. No quarteirão onde os ciganos vivem, não se tem ruas em boas condições, também não há presença de comércio próximo com muitas ruas se confundindo com vielas, de difícil acesso para carros e poucas linhas de ônibus. Nas casas, habitam os núcleos de famílias, na qual na maioria das vezes permanecem as mulheres e os idosos enquanto os homens trabalham (o trabalho destes é alegado como ‘’normal’’, não sendo especificado) e as crianças estudam. Por vezes, os ciganos andam pela parte alta do bairro, mas na maioria das vezes permanecem em seus locais de moradia. De acordo com as entrevistas, eles alegam conhecer toda a comunidade, interagindo cotidianamente entre si, e com periódicas realizações de festas, outros disseram que todos da comunidade eram parentes. Vez por outra, os membros da comunidade frequentam outras áreas do bairro sendo que a população não-cigana já se acostumou com a presença destes e sabem onde eles habitam. As mulheres (cujas roupas coloridas são marcantes), por vezes frequentam o centro da cidade de Belo Horizonte, e devido a isso sofrem preconceito que alegam não sofrer no São Gabriel, sendo que convivem com a desconfiança da população em geral. O preconceito foi abordado, nas nossas entrevistas, como direcionado especificamente às roupas, fato que faz com que as mulheres ciganas tenham que abandonar a vestimenta habitual ao entrarem no centro da cidade. Os membros da comunidade possuem traços euroasiáticos com a presença de marcante sotaque. As mulheres vestem vestidos coloridos que elas mesmas produzem, com variadas cores e motivos diversos, algumas no grupo possuem vários dentes de ouro que em um contexto nupcial significa que estas estão prontas para casar. Os homens usam calças e camisas como as de nossa sociedade, mas tem por vezes um chapéu na cabeça que os destoam dos outros homens em geral. No momento da entrada em campo não foram localizadas crianças visto que estas estariam na escola. Na comunidade, também se tem a presença de um ‘’presidente do grupo’’ o qual é nomeado, e dito que por ele recaem a responsabilidade de falar (e responder) pelo grupo. Também é possível identificar a presença de um ‘’líder da rua’ o qual é o responsável por falar por aquele subgrupo em questão; a casa do ‘’líder da rua’’ é diferente das demais, tendo um tipo maior de refino e acabamento, incluindo a presença de azulejos. 3

A entrada em campo se deu em uma quinta-feira véspera do primeiro turno das eleições municipais que se dariam no domingo. Visto isso, o contexto social do bairro estava modificado, todas as praças da localidade estavam ocupadas com algum tipo de propaganda política de diversos candidatos, com carros de som propagando algum jingle eleitoral e a presença massiva destes candidatos e seus respectivos cabos tentando angariar votos dos membros da comunidade cigana. No que tange às eleições municipais, nos surpreendeu o intenso grau de integração da comunidade com a vida política, ainda que em seus próprios termos. Ao serem indagados acerca da movimentação dos candidatos à vereador e prefeito nesse período de eleições, eles relataram que haviam poucas promessas que eram feitas à eles, o que talvez possa ser lido como um descaso pela comunidade, ainda que os ciganos Kalon fossem frequentemente abordados por estes candidatos para pedidos de votos. Ainda nesta pauta, uma das casas em que passamos para entrevistar, uma mulher, que aparentemente tinha 30 (trinta) anos de idade, disse que na semana anterior um candidato havia jogado um cascalho nos fundos da casa dela, pois, estando grávida, a poeira que emanava do quintal podia ser risco à sua saúde. Essa mesma mulher se mostrou grata ao atual prefeito Márcio Lacerda, pois atribuiu a ele a concessão das terras em que eles residem. Sendo assim, percebemos que o contexto socioeconômico no qual a comunidade se insere é marcado por várias desigualdades ressaltadas buscando como exemplo o próprio bairro em que vivem. Apesar disso, essa marginalização é vista por eles como melhor do que a vida nômade, sendo que o grupo aparenta estar satisfeito ou mesmo feliz morando no lugar em questão. Porém, fica claro quando se tem o olhar de alguém de fora da comunidade que os ciganos estão integrados na vida cotidiana do bairro, e que majoritariamente não sofrem preconceito na localidade. Percebemos também que há uma forte integração dos núcleos familiares com o restante do grupo, é alegado que todos são parentes; e apesar de factualmente provavelmente não serem, isso denota o nível de coesão do grupo principalmente ancorado nas figuras do ‘’representante da rua’’ e do ‘’presidente da comunidade’’. 3. Perfil dos entrevistados: Senhora Idosa​: Seu nome é Maria, diz que tem 68 anos. No começo parecia desconfiada em relação a nossa entrevista, alegando que não entendia o que falávamos e que ela era normal assim como nós, querendo a todo momento saber o porquê de estarmos querendo saber da vida dela.Mora em uma casa de alvenaria com traços rudimentares, com um quintal onde galinhas passeiam livremente, no momento do encontro estava agachada recolhendo lenha. Após quebrar a barreira do contato nos conta sobre sua trajetória. Ela 4

possui traços corporais castigados pelo tempo, tem voz mansa e possui um forte sotaque. Usa roupas coloridas, que diz que são como as de nossa sociedade. Diz que acredita em Deus assim como nós, e que por isso todos vamos para o mesmo lugar e devido a isso o preconceito não existe nem tem razão de ser. Não diz se costuma frequentar outros lugares além de onde mora. Conta que está a 35 anos no lugar onde mora, e que antes disso morava perto do rio ( aponta para o sul), e que antes disso morava perto da serra ( mais ao sul), diz que a vida onde está agora é bem melhor do que a vida nômade que diz que seu povo vive há muitos anos. Diz que os políticos em época de eleição vão muito atrás dela, mas não oferecem nenhum tipo de ajuda. Nós pergunta se ela precisa votar ou não. Mulher e senhor idoso​: Não nos contam seu nome. A mulher parece ter por volta dos 30 anos e o senhor por volta de 70 anos. Moram em uma casa grande, porém rudimentar, com um quintal e uma tenda colorida na qual possuem uma fogueira. A mulher veste roupas coloridas e possui dentes de ouro; o senhor usa calça e camisa e tem um chapéu, ambos tem sotaque porém é mais acentuado no senhor. Possuem um carro e uma garagem. A mulher diz não entender o que falamos, e o senhor diz ao fundo para a mulher comunicar que não que eles não estão autorizados a falar. Nos indicam um responsável para falar em nome deles, o ‘’líder da rua’’. Mulher: ​Não nos diz seu nome. Aparenta ter por volta de 30 anos. É a esposa do ‘’líder da rua’’, chamado Ronan que está trabalhando. Possui dois filhos e está grávida a espera do terceiro, sendo que as crianças vão na escola. Usa vestidos coloridos que ela mesma faz, e os usa por tradição não especificando o porque. Possui menos sotaque que os demais membros entrevistados. Mora em uma casa mais bem acabada que as demais, com a presença de azulejos., com a existência de um tenda colorida, e possui um carro na garagem. Em frente de sua casa existe um grupo de cadeiras nas quais nos oferece para sentarmos. Faz 30 anos que mora lá, e aponta para o norte para indicar de onde veio, aparenta estar feliz onde vive, apesar de preocupada com as crianças brincarem no meio da poeira. Diz que não sofre preconceito no bairro onde vive, porém no centro da cidade sim ( mostrando que ela frequenta esse ambiente), não se sentindo livre para usar suas roupas quando está lá. Nos conta que conhece todos da comunidade e que são todos parentes, ocorrendo festas esporadicamente e encontros periódicos. Acha que seu povo veio do Egito. Nos conta que em época de eleição muitos políticos vão lá e os ajudam com coisas pequenas, mas que mesmo assim ela se sente agradecida e vota neles. Nos diz que o prefeito de Belo Horizonte (o nomeia) foi muito bom para eles. 4. Entrada em campo

5

A entrada em campo se deu a partir do momento em que deixamos o bairro Coração Eucarístico de carro com destino ao bairro São Gabriel. Se situando na região nordeste de Belo Horizonte, o bairro não é dos mais próximos do local de partida. Ao adentrarmos no São Gabriel percebemos se tratar de um uma localidade de classe média, com um cenário típico de um bairro periférico, porém ao seguir nosso caminhos a fundo pelo bairro percebemos que por entre os meandros do lugar se situavam locais menos urbanizados e com profundas contradições socioeconômicas em comparação com o local de chegada. Logo percebemos que este era o local onde a comunidade cigana se situava, a partir de então passamos por entre as ruas para observar espacialmente como se distribuem as casas do grupo, e assim poder analisar o lugar por meio de uma vista mais ampla. Ao estacionarmos para percorrermos a pé as casas do lugar, começamos a observar ao redor os símbolos, os ícones e quaisquer figuras que pudessem nos chamar atenção. Ao localizarmos visualmente a principal rua do quarteirão onde os ciganos se situam começamos um processo de busca de membros do grupo para fazermos entrevistas. Ao todo realizamos três tipos de entrevistas com quatro membros do grupo (uma senhora, um senhor e duas mulheres), e tentamos colocar em prática o método da observação participante a fim de compreendermos melhor o modo de vida e a própria existência do grupo. A forma de registro de tais entrevistas foi obtida por meio de anotações no diário de campo com base na escrita etnográfica, sem o uso de fotografias pois os membros da comunidade são avessos a essas. O estranhamento em relação ao grupo se baseou na indagação de como se mantém as tradições sem que se tenha a noção da causa ​suis generis para tal. Com esse estranhamento exemplificado na questão uso das roupas, na noção de comunidade integrada e na origem do grupo, temas que são fielmente arraigados na comunidade sem que se tenha uma razão específica. Além disso, tivemos como impasses e desafios nosso próprio preconceito em relação a cultura cigana (muito influenciado pelos mitos e o senso comum propagado por nossa sociedade), que teve de ser rompido a partir do momento da entrada em uma localidade fora de nossa zona de conforto. Aliado a isso, tivemos como desafio a desconfiança dos membros do grupo em relação às nossas intenções para com eles, que para ser rompida precisou de um diálogo franco em relação às atividades que iríamos realizar. 5. Análise do material Como por vezes mencionado no tópico anterior, as entrevistas nos deram base de leitura do ambiente na qual os ciganos Kalon estavam inseridos espacialmente. Além dessa visão territorial e de alocação, os rituais discursivos que pudemos aferir no final da pesquisa de 6

campo, constituem uma parte valiosa da análise antropológica. Adotando um conceito de cultura como um ‘conjunto de significados que acompanha ações e pensamento dos indivíduos’ (BARROS, 1993), legitimados por um grupo hegemônico e fruto de uma manipulação à nível simbólico. Pautados, também, por uma perspectiva de relativismo cultural, em que enxergamos a nossa cultura pelo mesmo modelo prismático na qual dispusemos a enxergar os Kalon, mantendo as proporções sociais em níveis que, consigamos destacar o nosso lugar enquanto observadores e os ciganos enquanto objeto antropológico, estruturamos a seguinte análise: a) A primeira pergunta feita à Maria, 68 anos: “como os ciganos vieram parar aqui?”, cuja resposta foi, “vivo aqui há 35 anos” - aponta para a extensão de terra que abrange o bairro São Gabriel, em específico - “mas antes a gente morava em um lugar com muitas montanhas, um rio, não sei bem onde era”. Considerando um conhecimento prévio obtido acerca do caráter nômade dos ciganos - que pode ser revisto na introdução - e nos pautando na seguinte fala de Roberto Cardoso de Oliveira, ​“já tendo ao seu alcance uma documentação histórica, a primeira conclusão será sobre a existência de uma mudança cultural (...)”. Portanto, o caráter holístico e transcendental da comunidade cigana de Belo Horizonte, deixa espaço para um crescente processo de fixação à terra, representada também pela criação de animais e a satisfação observada em D. Maria, ao atribuir a concessão das terras atuais a alcunha de “bênção”. A mesma pergunta feita à mulher, descrita no tópico 3 como, “mulher que aparenta ter 30 anos”, teve como resposta: “não sei direito de onde os ciganos vieram, mas acho que foi do Egito”. Sem muita certeza em sua resposta, concluímos que as tradições são passadas pela interação intensa do contato entre os atuais membros da comunidade, sem a presença forte de elementos declaradamente históricos, no sentido de que, não havia um conhecimento compartilhado formalizado acerca da origem do povo ou justificativas para as tradições manifestadas. Entretanto, esta mesma mulher disse que havia encontros periódicos entre os membros da comunidade com o ​“presidente” (sic), o líder da comunidade. b) No viés político-eleitoral que impetramos em algumas de nossas perguntas, como: “muitos candidatos vem até aqui pedir votos?” e “os candidatos fazem algum tipo de promessa ou concedem algum tipo de benefício em troca desses votos?”, obtivemos como resposta de D. Maria, 68, “na época de eleição eles (os candidatos) vem aqui pedir pra gente votar neles, mas eles não fazem nada depois não”; logo após ela nos pergunta “eu não sou obrigada a votar mais não, né?”. 7

A outra mulher, 30, relata um episódio recente, “um dos candidatos veio aqui semana passada e jogou um rastelo na área ali de trás, pra não ficar subindo poeira e dando alergia nas crianças, então acho que vou votar nele mesmo, pelo menos alguma coisa ele faz”, e, adentrando no debate, adicionou, “o prefeito daqui, Márcio Lacerda, não é? Ele foi muito bom pra gente, lutou até o final pra essas terras aqui ficarem disponíveis pra gente morar”. Compreendendo o nosso mundo, enquanto pesquisadores, como uma: “sobreposição de duas subculturas: a brasileira (...) e a antropológica. (...) É o confronto entre esses dois mundos que constitui o contexto no qual ocorre a entrevista” (OLIVEIRA, 2000).

Temos que o espanto que a leitura prévia do contexto, considerando a localização da comunidade Kalon, essa perspectiva de uma cultura que não esteja necessariamente integrada à nossa cultura enquanto grupo hegemônico de nossa própria existência, passamos a visualizar a existência desse outro grupo como concêntrica à nossa própria, ainda mais quando considerarmos o aspecto religioso apontado por D. Maria, que disse, “nosso Deus é o mesmo, vamos todos pro mesmo lugar…”. Utilizando a abordagem de Roberto Cardoso, que ​“o modelo-nativo, matéria-prima para o entendimento antropológico (...) explicações nativas que só podem ser obtidas por meio da entrevista, por tanto de um ouvir todo especial”, temos também que essa análise da compreensão religiosa de D. Maria pode ser absorvida nesta análise como “a religião ser mais rigorosamente observada na conduta ritual por ser essa ‘o elemento mais estável e duradouro’” (OLIVEIRA, 2000). Ao equiparar seus hábitos religiosos com os nossos, isso cria um vínculo narrativo que tanto mudou nossa perspectiva sobre os Kalon, como acreditamos que a recíproca tenha sido verdadeira. Esse compartilhamento de significados específicos, consolidados em rituais, bem como em narrativas mitológicas, compõem o quadro de identidade associado aos ciganos Kalon em Belo Horizonte. Inclusive a ausência de significados específicos que corroborassem com a narrativa histórica que possuíamos enquanto espectadores, constitui em si um aspecto dessa identidade, a partir do momento em que ela é, estruturalmente mutável à realidade da comunidade. 6. Conclusão Ao longo desta breve exposição pudemos realizar uma apresentação do modo de vida, da situação espacial e da interação com a sociedade por parte da comunidade cigana Kalon em

8

Belo Horizonte, mais especificamente no bairro São Gabriel. Além disso, pudemos também fazer uma explanação a respeito de nosso método de entrada em campo, de nossos desafios e de nosso olhar em relação ao contexto social em que vive o grupo. As dificuldades encontradas residem primariamente no fato de nossos próprios preconceitos criarem uma concepção diferente da real vivência cigana. Envoltos em uma mística histórica que é reproduzida pela sociedade, os ciganos muitas vezes são pintados com cores que a eles não pertencem, abstrair-se desse tipo de visão foi a chave para superar esse primeiro desafio. O suporte teórico foi crucial para entendermos o intrincado sistema no qual se situam a comunidade cigana, podemos dar ênfase nos conceitos absorvidos no que tange a ideia de cultura ​versus civilização e relativismo cultural v​ ersus identidade. Após isso, e imersos em um zona que não é de nosso convívio, nos foi preciso romper a barreira da desconfiança dos membros do grupo para conosco, o que foi conseguido com uma explicação a respeito de nossa intenções. A partir de então, nos deparamos com questões às quais não conseguíamos responder, como a respeito da manutenção das tradições do grupo em um contexto urbano, isso só nos mostrou o quão complexo e profundo se mostram as tradições arraigadas na cultura cigana que destoam da visão simplista atribuída pela sociedade. A relevância da atividade se dá então nesse ponto: ao entrarmos em um contexto diferente do nosso pudemos perceber o quão nossos valores interferem na concepção que temos dos valores de outros indivíduos que são estranhos a nós, e é só através da tentativa do método de observação participante que podemos compreender o outro em sua face mais singular. A percepção do grupo que tínhamos foi então mudada completamente, de uma percepção mística ou até mesmos desonesta com a qual víamos os ciganos mudamos para uma percepção na qual os enxergamos como um grupo com uma grande capacidade de coesão e união frente às migrações nas quais passaram através da história e que reproduz seu modo de vida a despeito de ser uma minoria frente a um cenário urbano excludente. Concluímos então que neste trabalho, pudemos evoluir não só academicamente ou tematicamente, mas também a partir de uma perspectiva pessoal pois ao sairmos de nossa zona de conforto tivemos a oportunidade de mudar nossas concepções e até mesmo pudemos rever nossa maneira de ver o mundo. 7. Bibliografia ASSIS, M. ​Dom Casmurro​. São Paulo, Ed. Nova Aguilar, 1994. BARROS, J. ​O rodar do moinho. Notas sobre a antropologia e o conceito de cultura​. Belo Horizonte. Caderno de Ciências Sociais. V.3, n 3, p 5 13 abril de 1993

9

MARQUEZ, G. ​Cem anos de solidão.​ São Paulo, Ed. Record, 2009. OLIVEIRA, R. ​Caminhos da identidade​. São Paulo: UNESP. 2006 OLIVEIRA, R. ​O trabalho do antropólogo​. São Paulo: UNESP. 2000.

10

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.