A Aprovação do Estatuto da Família na Comissão Especial da Câmara dos Deputados: uma análise a partir dos Direitos Humanos

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anais VI SEMINÁRIO

PENSAR DIREITOS HUMANOS EDUCAÇÃO E(M) DIREITOS HUMANOS: PENSAR AS VIOLÊNCIAS Apoio:

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PPGIDH

Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Direitos Humanos

COMISSÃO PENSAR 2015 COORDENADORES/AS DO EVENTO Coordenação PPGIDH e VI Pensar 2015 Profa. Dra. Luciana de Oliveira Dias (PPGIDH/UFG) Coordenação Geral Profa. Dra. Luciana de Oliveira Dias (PPGIDH/UFG) Prof. Dr. Magno Luiz Medeiros da Silva (PPGIDH/FIC/UFG) Produtora Cultural Ms. Marisa Damas Vieira Profa. Dra. Michele Cunha Franco (PPGIDH/UFG)

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Coordenação Eixo Linha 1 – Fundamentos Teóricos dos Direitos Humanos Prof. Dr. Felipe Bambirra (PPGIDH/UFG)

Coordenação Eixo Linha 2 - Alteridade, Estigma e Educação em Direitos Humanos Profa. Dra. Fernanda Busanello Ferreira (PPGIDH/UFG) Coordenação Eixo Linha 3 - Práticas e representações sociais de promoção e defesa de Direitos Humanos Profa. Dra. Michele Cunha Franco (PPGIDH/UFG) Coordenação ANAIS Nelson Ferreira Marina Dias Dalat Coelho

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Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Direitos Humanos

Sumário - VI Seminário Pensar Direitos Humanos - Anais

Sumário Apresentação

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GT 1 FUNDAMENTOS TEÓRICOS DOS DIREITOS HUMANOS 1 O Poder Judiciário e a Experiência do Programa de Atenção Integral ao Louco Infrator – PAILI em Goiás na Promoção e Efetivação da Dignidade da Pessoa Humana 15 Alessandro Manso e Silva 2 Charlie Hebdo: reflexões sobre a tolerância Ana Carolina Greco Pares Cerise de Castro Campos 3

Direitos Humanos e Literatura: realidade dos Direitos da Mulher em “Possessing the Secret of Joy” de Alice Walker Camila Rodrigues Bastos Elias Lopes da Silva Júnior Divino José Pinto

4 A Aprovação do Estatuto da Família na Comissão Especial da Câmara dos Deputados: uma análise a partir dos Direitos Humanos Daniel Albuquerque de Abreu Fernanda Busanello Ferreira Helena Esser dos Reis 5 A Banalidade do Mal: as tragédias vivenciadas em Barbacena, em Grafeneck e nas medidas de segurança aplicadas nos manicômios brasileiros de hoje Elias Menta Macedo 6 Terceirização de Mão-de-Obra e Direitos Humanos: uma análise a partir da dignidade do trabalhador em face do PLC 30/2015 Fábio Túlio Barroso Gonzalo Martin Salcedo

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Anais - VI Seminário Pensar Direitos Humanos - Sumário

7 O Domínio do Direito e o Exercício Político da Lei: reflexões para uma crítica historiográfica do Direito Moderno Jeanne Silva 8 Estratégias Dialógicas para os Direitos Humanos João da Cruz Gonçalves Neto Vilma de Fátima Machado 9

O Mundo em Movimento: os direitos humanos dos “Refugiados” haitianos no Brasil Jorge Luiz Oliveira dos Santos Luiz Renato de Sousa Melo

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10 Direitos Humanos entre o Liberalismo e o Libertarianismo Marcelo Augusto Parrillo Rizzo

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11 A Autonomia da Vontade no Direito de Morrer Misael Pinheiro de Brito Valtecino Eufrásio Leal

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12 O Outro como Categoria: uma análise da negação da alteridade como objeto de exclusão de direitos Raphael Santos Lapa 13 Revolução e Direitos Humanos em Hannah Arendt: uma análise das experiências norte-americana e francesa Rosângela Almeida Chaves

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GT 2 ALTERIDADE, ESTIGMA E EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS 14 Educação em Direitos Humanos e para a Igualdade de Gênero: reflexões curriculares acerca da diversidade Aldenora Conceição de Macedo

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15 Violência Neonatal: uma reflexão sobre o imediato afastamento mãe-bebê pós-nascimento - por uma nova conduta hospitalar Alice Jordão de Araújo Minzon Cerise de Castro Campos Fernanda Busanello Ferreira Mauro Machado do Prado

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16 A Educação em Direitos Humanos no Curso de Formação dos Policiais Civis do Estado de Goiás: uma análise crítica Cláudia R. Alves Venturini Fernanda Busanello Ferreira Cerise de Castro Campos Mauro Machado Prado 17 Educação Crítica-Transformadora: uma aproximação entre a educação popular e educação em Direitos Humanos Débora da Costa Barros Vilma Machado

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18 A Educação Multicultural e a Contra Hegemonia dos Direitos Humanos, o Caso de Moçambique Eduardo Moisés Jamisse Humbane

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19 Maior que a Dor: força, poder e resistência de mulheres em Goiânia face às situações de Violência Érika Nunes de Medeiros Ferreira Borges

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20 Ciências Sociais, Gêneros e Sexualidade: reflexões a partir da Especialização em Educação para a Diversidade e Cidadania/UFG Fátima Regina Almeida de Freitas

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21 Humanos Desumanizados - povos estigmatizados e excluídos da sociedade e das políticas públicas Fernanda Alves de Oliveira Vilma de Fátima Machado 22 Inclusão de Alunos com Necessidades Educacionais Especializadas no Ensino Regular Brasileiro Isabela de Freitas Morais 23 Gênero e Orientação Sexual sob a Perspectiva Biológica: uma análise de material didático no Estado de Goiás Jéssica Cristtiny Oliveira de Sousa Fabiana Jorddão Martinez

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24 “Mulher Desquitada” Violência de Gênero e Estigma - década de setenta vista através do seriado Malu Mulher 334 Leni Maria de Souza

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25 O Fenômeno dos Direitos Humanos: da teoria à prática Leonardo de Oliveira Souza Roberta Pereira Guerra Pedra

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26 Direitos Humanos à Educação: surdos na escola Marcus Vinicius Alves Galvão Christiane de Holanda Camilo

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27 Vivenciando as Diferenças Marta Rezende Spini Cerise de Castro Campos

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28 Articulação da Pesquisa Jurídica: o PNEDH e as produções do CONPEDI e da BDTD em educação em Direitos Humanos Maurinice Evaristo Wenceslau Débora de Oliveira Santos Bruna Cotrin Rodrigues

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29 Estigma no Cancioneiro Folclórico Infantil Mayara Divina Teles Niceias Cerise de Castro Campos

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30 Reflexões sobre o Samba de Roda como Campo da Educação Não-Formal Natália Rita de Almeida Luciana de Oliveira Dias

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GT 3 PRÁTICAS E REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DE PROMOÇÃO E DEFESA DOS DIREITOS HUMANOS 31 Ameaças e Intimidações na Atuação dos Defensores e Defensoras dos Direitos Humanos: uma análise dos casos atendidos pela equipe federal do Programa de Proteção aos Defensores dos Direitos Humanos Camila Dias Cavalcanti 32 Políticas de Segurança nas Universidades Brasileiras a partir de Perspectivas Públicas Institucionais Comparadas Christiane de Holanda Camilo

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33 Nós Perdemos a Consciência? Apontametos sobre a militarização de escolas públicas estaduais de ensino médio no Estado de Goiás Ellen Ribeiro Veloso Nathália Pereira de Oliveira 34 O Direito à Cidade e a Cultura do Medo no Município de Goiânia: desafios à efetivação dos Direitos Humanos Frederico Henrique Galves Coelho da Rocha Rodrigo Sadayoshi Barbosa Yamada 35 O Perfil dos Atendimentos às Crianças e Adolescentes Vítimas de Violência nos Centros de Referência Especializados de Assistência Social - CREAS do município de Goiânia no ano de 2014 Keila Alves de Campos Nunes 36 Imprensa e Redução da Maioridade Penal: um olhar sobre o menor infrator Lívia do Amaral Trindade 37 A Violação de Direitos Humanos no Relatório Figueiredo: o direito à memória e à verdade como processo de reparação Luana Menezes Lira 38 Os Direitos Humanos e as Lutas da População Negra no Brasil em Face das Políticas Afirmativas Lucas Lourenço Silva Juvelino Soares Nascimento Maria Esperança Fernandes Carneiro

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39 Performando Diferenças pelo Discurso Humorístico Ludmila Pereira de Almeida Karine do Prado Ferreira Gomes

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40 Teoria da Orientação, Violência, Mídia e Direitos Humanos Magno Medeiros

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41 AIDS e Homossexualidade: identidades e representações enquanto construções sociais Marília de Almeida e Almeida Claudomilson Fernandes Braga

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Anais - VI Seminário Pensar Direitos Humanos - Sumário

42 Dos Esforços Revolucionários de Olympe ao Ativismo Político-Social de Koita: a importância da luta dessas militantes para os Direitos Humanos das mulheres Murilo Vilarinho

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43 Sangue Azul versus Sangue Vermelho: apontamentos sobre as relações intersubjetivas na instituição policial militar Nathália Pereira de Oliveira

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44 Políticas Públicas, Defesa de Direitos e a Teoria Ator-Rede: uma análise do Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos Tarsila Flores

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PÔSTERES GT 1 1 Memória, Silêncio, Esquecimento e Formas de Registro Nelson Ferreira GT 2 2 A Escola como Espaço da Promoção de Igualdade de Gênero e de Aplicação dos Direitos Humanos Aline Melo Borges, Camila Borges Santos 3 Direitos Humanos na Formação Básica e o Empoderamento das Minorias Andre Luiz Sales de Souza, Bruna de Oliveira Costa 4 O Grupo de Estudos Interdisciplinares em Direitos Humanos da UFG como um Espaço de Discussão sobre Violência e Direitos Humanos Meirele Pereira Viana, Raquel Maria Gonçalves Martins GT 3 5 Princípios de Yogyakarta: análise de seus aspectos gerais e de sua aplicação no Brasil através de políticas públicas Giovanna Bonach Pires Ribeiro

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6 Direitos Humanos e Vitimização em Crianças e Adolescentes: uma revisão sistemática 627 Raíssa Ferreira Ávlia, Isadora Félix Matos, Sarah Stéfanny, Margareth Veríssimo 7 A Importância do Direito à Visibilidade na Legitimação de Atores Sociais Thiago Almeida de Alvarenga

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A Aprovação do Estatuto da Família na Comissão Especial da Câmara dos Deputados: uma análise a partir dos Direitos Humanos Daniel Albuquerque de Abreu 1 Fernanda Busanello Ferreira 2 Helena Esser dos Reis 3

ACERCA DO ESTATUTO DA FAMÍLIA: DA PROPOSIÇÃO DO PROJETO DE LEI E DOS PARECERES O Projeto de Lei n. 6.583, de outubro de 2013, conhecido como Estatuto da Família, proposto pelo Deputado Anderson Ferreira (PR-PE) à Câmara dos Deputados, tem como intenção “dispor sobre os direitos da família, e as diretrizes das políticas públicas voltadas para valorização e apoiamento à entidade familiar” (BRASIL. 2013c). O artigo 2o do Projeto preconizado por Ferreira se propõe à definição da entidade familiar como “o núcleo social formado a partir da união entre um homem e uma mulher, por meio de casamento ou união estável, ou ainda por comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes” (BRASIL, 2013c) [grifos no original]. Em considerando esse único modelo de família, o Projeto prevê a criação e concretização de políticas públicas, assim como a asseguração de direitos e garantias, a um único tipo de família, qual seja a tradicional. Na justificação da apresentação do Projeto de Lei à Câmara dos Deputados, o autor argumenta a necessidade do “fortalecimento dos laços familiares a partir da união conjugal firmada entre o homem e a mulher, ao estabelecer o conceito de entidade familiar”, assim como “a proteção e a preservação da unidade familiar, ao estimular a adoção de políticas de assistência que levem às residências e às unidades de saúde públicas profissionais capacitados à orientação das famílias” (BRASIL, 2013c). O primeiro Parecer relativo ao Estatuto da Família foi subscrito pelo então Relator Deputado Ronaldo Fonseca (PROS-DF), e publicado em novembro de 2014. De acordo com Fonseca, a

1 Mestrando pelo Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Direitos Humanos da UFG. 2 Professora de Direito na UFG – Campus Jataí, Doutora em Direito pela UFPR. 3 Professora de Filosofia e Direitos Humanos na UFG, Doutora em Filosofia pela USP.

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Constituição Federal de 1988, no seu artigo 226 e parágrafos4, considera como família apenas as uniões entre homem e mulher, por casamento ou união estável, assim como a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes. Outras expressões familiares, a exemplo das homoafetivas, não encontram resguardo pela Constituição. A respeito das uniões de pessoas do mesmo sexo, o Relator consigna que o Supremo Tribunal Federal5 equivocou-se em 2011 ao introduzir na jurisprudência o reconhecimento das famílias formadas por pares homoafetivos. Aliás, Fonseca ventila a hipótese de que o “homossexualismo” seja um comportamento patológico, apesar de ter sido retirado da relação de doenças da Organização Mundial de Saúde (BRASIL, 2014). Ainda nos termos do Parecer, os conceitos de família e de relações de mero afeto devem ser diferenciados, ou seja, às pessoas é permitido associarem-se para o convívio com base no afeto, mas isso não garante a continuidade sustentável da sociedade por inexistir a pressuposição de reprodução conjunta – considerada pelo Relator como pressuposto para a formação de família (BRASIL, 2014). Também segundo o Deputado, em razão de o preâmbulo da Constituição Federal de 1988 invocar a proteção de Deus – embora seja o Estado laico, sem religião oficial –, a Câmara dos Deputados deve respeitar o credo que considera balizador dos valores da maioria absoluta de religiosos e não religiosos, e que construiu as sociedades ocidentais, dentre elas a brasileira. Nesse esteio, se ter um pai e uma mãe é amplamente reconhecido como algo bom pela sociedade, justifica-se manter crianças em abrigos, que é melhor, afirma, que entregá-las à adoção a casais homoafetivos (BRASIL, 2014). Em dezembro de 2014, o Projeto de Lei foi arquivado eis que finda a legislatura, mas desarquivado em fevereiro de 2015 a pedido de Anderson Ferreira. A seguir foi criada a atual Comissão Especial destinada a proferir parecer ao Estatuto da Família, a qual conta com Sóstenes Cavalcante (PSD-RJ) como Presidente e Diego Garcia (PHS-PR) como novo Relator. Em setembro de 2015 publicou-se o segundo Parecer, junto ao Substitutivo ao Projeto de Lei, redigidos por Garcia. 4

Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. § 1º O casamento é civil e gratuita a celebração. § 2º O casamento religioso tem efeito civil, nos termos da lei. § 3º Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento. § 4º Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes. [...] § 7º Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas. § 8º O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações. [grifos acrescidos] (BRASIL, 1988) 5 O então Relator refere-se ao julgamento conjunto das ações de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF nº 132-RJ) e Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI nº 4.277-DF), por meio do qual o Supremo Tribunal Federal declarou a equiparação das uniões estáveis heteroafetivas às homoafetivas.

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Antes de nos voltarmos à votação da Comissão Especial, faz-se necessário que conheçamos, ainda que de forma sucinta, o Parecer proferido pelo Deputado Diego Garcia, visto que é em torno dele, juntamente com o texto do Substitutivo do Projeto de Lei apresentado pelo Deputado, que a votação se articula. A respeito, portanto, das linhas desse novo Parecer, Garcia defende que elas foram escritas em consonância aos preceitos fundamentais e valores morais e éticos da sociedade brasileira, afim de que se garanta direitos. Já em relação às linhas constitucionais destinadas à proteção da família, o Relator afirma que a Constituição “oferece os desenhos mais abstratos e fundamentais do instituto e como que reclama ao direito ordinário os contornos mais específicos” (BRASIL, 2015c). Assevera que, na época da Constituinte de 1987-1988, já se tinha notícia das parcerias civis de casais do mesmo sexo, e isso levou à consignação no texto constitucional da expressão “entre o homem e a mulher”, justamente para que se tornasse claro qual o “modelo habilitado para a especial proteção estatal” (BRASIL, 2015c). Isso não significa a proibição de outros arranjos sociais (e não familiares) que os indivíduos queiram estabelecer entre si, caso não se contrarie a lei, diz o Deputado, mas sim que a especial atenção do Estado tem caráter propositadamente restritivo. Não se proíbe, mas se restringe, em suma, eis que existem critérios, características necessárias para o reconhecimento jurídico de família. O Parecer subscrito pelo Deputado Diego Garcia admite a existência do que chama “diversos estilos de viver em nossa sociedade”; entretanto, alguns desses arranjos são vistos como “especialmente importantes porque, a partir deles, se cria e se recria, de modo natural, a comunidade humana” (BRASIL, 2015c). É dizer que fazem jus à especial proteção estatal e são considerados base da sociedade apenas aqueles arranjos dos quais se presume a prole; os demais devem ser respeitados, mas merecem apenas a tutela geral do Estado. No entender do Relator, estaríamos aqui diante de uma discriminação positiva6 da Constituição, legítima no Estado Democrático de Direito. Não está a cargo do cidadão definirem os modelos de convivência que são base da sociedade, “pois a base neste caso se refere à sociedade como tal, e não ao indivíduo em si mesmo considerado, de modo isolado e particular” (BRASIL, 2015c). Nos termos do Parecer, os direitos e garantias relativos à família pertencem à sociedade civil, e não ao indivíduo. Dessa passagem se extrai que uma estrutura formada por duas pessoas de mesmo sexo que se amam não pode jamais ser a base, o pilar, o alicerce da sociedade brasileira: deve-se conhecer como eixo da sociedade apenas as estruturas formadas por pessoas que, ao menos em regra, tenham condições biológicas e genéticas de se reproduzirem entre si. Esse seria o critério da tutela diferenciada: a reprodução7, considerada traço de essencialida6 “Vale notar que a expressão ‘especial proteção’, por si mesma, é restritiva. A palavra ‘especial’não admite extensão a ponto de server a todas as situações”. [grifos no original] (BRASIL, 2015c) 7 O Relator afirma que “[…] o fulcro da proteção especial não é o afeto individual, tampouco as relações sexuais, ou qualquer modelo de relacionamento querido e ‘desejado’ pelas pessoas na diversidade de possibilidades. Antes se trata de conferir especial auxílio à situação que se identifica como básica na sociedade, revelandose objetivamente necessária para a geração e criação do gênero humano em sociedade”. (BRASIL, 2015c)

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de da instituição família. De mais a mais, podemos extrair da citação que existem indivíduos mais aptos que outros para decidir o que é melhor para eles e para os demais. Trata-se dos Parlamentares, que, para Garcia, sabem melhor do que ninguém “as notas necessárias dessa essencialidade” que é a família, ao contrário do cidadão “isolado” (BRASIL, 2015c), a quem não compete a definir o modelo de convivência especial o bastante para ser considerado família. O Parecer também aponta que ao Direito não cabe administrar sentimentos, é dizer, que o afeto, já que subjetivo e individual, não pode ser elemento apto para sustentar deveres jurídicos. A família é aqui considerada antes um dever jurídico que um direito inalienável, na medida em que a ausência do afeto “não leva ao desaparecimento de deveres intrínsecos aos vínculos oriundos da relação familiar estabelecida na relação de casamento ou união estável entre homem e mulher, ou na relação de filiação” (BRASIL, 2015c). Para Garcia, mesmo o afeto pode se manifestar em perspectiva negativa e contrário aos bons costumes – exemplifica com a figura do par romântico constituído por mãe e filho, dos zoófilos, que se satisfazem sexualmente com animais, e dos pedófilos, que “nutrem afeto pela prática sexual com crianças” (BRASIL, 2015c). Assim como Fonseca, Garcia também defende a vida desde a concepção e condena o Supremo Tribunal Federal por ter, no seu entendimento, criado direitos para além de suas competências. A propósito, ao se referir aos interesses LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros), o texto afirma que “respeitar uma pessoa não se confunde com acatar suas práticas ou trabalhar para que seus interesses sejam equiparados a direitos”, deixando claro que a comunidade LGBT possui meros interesses8, mas não direitos – esses, sim, destinados apenas aos heteroafetivos, a exemplo do direito de constituir família. A maior parte das formas de convivência está atrelada ao casamento, união estável ou filiação, diz Garcia, e essa é a família base da sociedade. Outros formatos, se quiserem, que elejam nos próximos anos representantes que advoguem sua causa. Uma alternativa sugerida pelo Relator para aqueles arranjos que não são considerados como base ou “condição de existência da sociedade civil, sem jus, portanto, à proteção especial do art. 226 da Constituição Federal, mas que trazem alguma nota a demandar uma proteção diferenciada, para além da proteção geral que já é garantida a todo cidadão”, é o que chama de parceria vital (BRASIL, 2015c). Trata-se, em miúdos, de família com uma nomenclatura diferente para pessoas diferentes, não atreladas à procriação e fora da base da sociedade. Segundo Garcia, a parceria vital poderia ser aquinhoada com todos os ônus e bônus de um casamento, Posteriormente, assevera que “Isso não impede que casais possam deliberar, segundo o livre planejamento familiar, não fazer uso das faculdades reprodutivas. Isso não altera a potencialidade natural. O mesmo quanto às situações de infertilidade, exceção. Como regra geral, homens e mulheres são férteis”. (BRASIL, 2015c) 8 Segundo Garcia, “a despeito de as relações de mero afeto e convívio existirem desde datam imemoriais, a sua vulgarização social não as transforma em ‘base da sociedade’, fato ainda reconhecido às relações entre homem e mulher, com sua respective potencialidade reprodutiva, mediante união sexual de ambos”. (BRASIL, 2015a)

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com o detalhe de ser excluída da base da sociedade e de ter uma nomenclatura diferenciada. Defende o Deputado que inexiste preconceito9 ou exclusão na mencionada proposição, mas, ao contrário, que “Tal procedimento iria ao encontro da realização da sociedade livre, justa e solidária, objetivo da República Federativa do Brasil, segundo art. 1o, III” (BRASIL, 2015c). Em oportunidade diversa, o Deputado Diego Garcia se engaja em uma comparação entre os seres humanos e os animais. Afirma que ambos se assemelham em razão de serem biologicamente finitos, dependentes da reprodução para a continuação da espécie. No entanto, os animais praticam atos sexuais por instinto, sem deliberação, enquanto os humanos não se comportam (ou ao menos não deveriam se comportar) de acordo com seus instintos, enquanto dotados de atos de vontade iluminados pela sua inteligência. A reprodução humana, assim, pressupõe liberdade e implica responsabilidade, e “A resposta exigida pela natureza humana é justamente a família como substrato natural do agrupamento humano”. Contrario sensu, de acordo com o afirmado, aqueles que não constroem a família defendida pelo Deputado seriam incapazes de oferecer a resposta exigida pela natureza humana; ou seja, os indivíduos que não instituem família, que não se reproduzem entre si, seriam como os animais, que realizam atos sexuais por instinto, inaptos a exercerem liberdade e assumirem responsabilidades (BRASIL, 2015c). Ainda segundo a ótica do Relator, não é errado defender a família tradicional – afinal, a Constituição garante as liberdades de credo e de pensamento. Na verdade, para ele, o cidadão cuja postura religiosa é conhecida, e que traz argumentos oportunos ao debate, não pode ser rotulado de fundamentalista, porquanto não se trata de questões religiosas, mas de razão pública. Por último, no que tange às discussões que cuidam de religião, Garcia sustenta que os pais devem ter direito que seus filhos recebam a educação religiosa, moral e sexual de acordo com suas (dos pais) convicções (BRASIL, 2015c). No dia 24 de setembro de 2015 o Parecer elaborado por Diego Garcia foi aprovado pelos Deputados em sessão da Comissão Especial por dezessete votos contra cinco. Nosso objetivo neste momento é, a partir de análise da mencionada sessão de votação, identificarmos se Parlamentares lançaram mão de argumentos cristãos para defenderem uma visão restritiva10 de entidade familiar, com base na similaridade entre suas ideias ali defendidas e passagens bíblicas. 9 O Relator considera que diferenciar não se confunde com discriminar negativamente. Na sua percepção, “para se exigir respeito à diversidade e afastar a discriminação, exige-se, a priori, identificação das diferenças”, e, a partir de então, “descrever a realidade”. [grifos no original] (BRASIL, 2015c) 10 Entendemos por visão restritiva de entidade familiar aquela que se opõe à ampliativa. Segundo Dias (2009), a família dispõe de várias formatações. A visão restritiva se apega ao modelo convencional ou tradicional: “um homem e uma mulher unidos pelo casamento e cercados de filhos” (DIAS, 2009, p. 40). No entanto, para a jurista, a realidade não corresponde mais àquela de outrora: “A convivência com famílias recompostas, monoparentais, homoafetivas permite reconhecer que ela se pluralizou; daí a cenessidade de se flexionar igualmente o termo que a identifica, de modo a albergar todas as suas conformações” (DIAS, 2009, p. 40). Isso posto, a visão ampliativa de família se refere àquela que reconhece as mudanças das estruturas políticas, econômicas e sociais, assim como à que se atenta aos reflexos causados nas relações juridico-familiares, e, a partir de então, reconhece diversas estruturas familiares (DIAS, 2009).

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RELIGIOSIDADE NO LEGISLATIVO? A VOTAÇÃO DO ESTATUTO DA FAMÍLIA NA COMISSÃO ESPECIAL DA CÂMARA DOS DEPUTADOS Desde a proposição do Estatuto da Família a mídia tem questionado acerca de possível presença de fundamentos religiosos em seu alicerce. O Estatuto da Família foi proposto por Anderson Ferreira, que anunciou, em 2011, na Câmara dos Deputados, em razão da comemoração do centenário de fundação da Igreja Evangélica Assembleia de Deus no Brasil, que se sente honrado por Deus tê-lo posto na Casa, capacitando-o11. Noutra oportunidade, o mesmo Deputado afirmou que a necessidade de se promover políticas para o combate às drogas “constitui um enorme desafio, e a educação com princípios cristãos é o grande aliado nessa batalha [...]” (BRASIL, 2011b). Não parece ser à toa que tantos veículos de comunicação do país12 rotulam o Estatuto da Família de ser sustentado por uma bancada conservadora cristã. Concorre para tal rótulo algumas linhas do primeiro Relatório do Projeto de Lei, as quais afirmam que o Estado está sob a proteção de Deus, conforme o preâmbulo da Constituição, e, por esse motivo, “deve-se também esperar respeito dessa Casa [Câmara dos Deputados] ao credo reconhecidamente balizador dos valores da maioria absoluta de religiosos e não religiosos e que construiu nossa sociedade brasileira, bem como todo o ocidente” (sic) (BRASIL, 2014). Aliás, em 2013, ao se manifestar na Câmara dos Deputados acerca das relações entre a proposta do novo Código Penal e a família, Fonseca asseverou que esta última [...] É uma instituição, unidade de produção e reprodução dos valores culturais, éticos, religiosos e econômicos. [...] O Brasil precisa resgatar os valores da família. Soma-se 11 Sr. Presidente, Sras. e Srs. Deputados, pastores, irmãos e irmãs em Cristo, eu os saúdo com a santa e gloriosa paz do Senhor. Eu não quero, Sr. Presidente, falar aqui dessa trajetória que já foi tão relatada, desse centenário da Assembleia de Deus. Quero parabenizá-los e relatar para todos os meus pares aqui presentes o que esta Igreja tem representado na minha vida. Muitos dos presentes nos conhecem pela trajetória política que nós temos, e a da nossa família. Mas eu quero relatar a importância da Igreja Assembleia de Deus para a minha vida e para a vida da minha família. [...] O Evangelho trouxe transformação à vida do meu pai e à vida da nossa família. Fui criado num lar cristão, na Igreja Assembleia de Deus. Ali eu pude aprender os valores éticos, morais, cristãos que só o Evangelho pode proporcionar ao ser humano. [...] Deus não escolhe os capacitados, mas capacita os escolhidos. E foi assim na vida da nossa família. Tem sido assim até hoje. Por isso, este momento do centenário da Assembleia de Deus representa para muitos aqui presentes - pastores, irmãos, Parlamentares - não só um ato comemorativo, mas sim um ato que proporciona a esta Nação uma benção ainda maior do que esses 100 anos proporcionam atualmente. Tenho certeza de que ainda iremos comemorar muitos centenários aqui, porque o Deus em quem nós cremos é o Deus que abençoa a vida de cada um dos presentes. Eu quero relatar, Sr. Presidente, que quando cheguei a esta Casa, como Deputado Federal, pude me sentir ainda mais honrado por Deus. Mas o que mais me orgulha - falo do fundo do meu coração - é poder dizer que eu e a minha Casa servimos ao Senhor, porque toda honra e toda glória são para Ele. [...] Esta Igreja faz, e sempre fará, parte da minha vida. Muito obrigado. (BRASIL, 2011a) 12 Por exemplo, a matéria intitulada Vítimas das trevas, veiculada na Revista Carta Capital, disponível no seguinte endereço eletrônico: . Acesso em: 16 novembro 2015.

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a esse conceito a importância que Deus dá à família, como o Arquiteto Supremo. Na Bíblia Sagrada temos 90 referências à família. Vejamos, por exemplo, duas delas: “Por isso, deixa o homem pai e mãe e se une à sua mulher, tornando-se os dois uma só carne” (Gênesis 2: 24). Temos uma segunda referência: “Se o Senhor não edificar a casa, em vão trabalham os que a edificam”. O Arquiteto Supremo, que tem muito interesse na família, tem a bula, sabe o que é uma família e nos passou por meio da Bíblia Sagrada. Nesta Casa de Leis me insurjo contra tudo o que intenciona destruir ou ameaçar a família. [...] (BRASIL, 2013b)

Não muito diferente, Garcia se levantou na Casa de Leis, em fevereiro deste ano, para agradecer o dom da vida e a oportunidade que Deus o dá de ser um dos Parlamentares que representam a voz do povo. No mesmo discurso, agradece o “apoio de 61.063 eleitores, que confiaram num projeto que nasceu dentro do movimento da Renovação Carismática Católica, da Igreja Católica, Ministério Fé e Política” (BRASIL, 2015a). Durante a votação que ocorreu na Comissão Especial da Câmara dos Deputados em 24 de setembro de 2015, o Deputado Bacelar (PTN-BA) afirma que o conservadorismo brasileiro está indo por um caminho muito interessante, e errado, qual seja o de regular a vida privada e definir políticas públicas por critérios religiosos (BRASIL, 2015e). O conservadorismo, sob sua ótica, quer dizer como deve ser o prazer do indivíduo, sua relação familiar, sua atividade sexual, mas deixa de lado a economia, por exemplo (BRASIL, 2015e). Em certa altura da votação, ao assumir a palavra, indaga: qual é a motivação, qual é a base que diz que família é só aquela formada por homem e mulher? A Constituição nada exclui. Cada um professa a sua fé, afirma Bacelar, mas não se pode substituir a Constituição pela Bíblia, nem, movido por um sentimento religioso, querer padronizar a posição de toda a sociedade. Segundo o seu juízo, é defeso ao Parlamento submeter conceito de família à convicção religiosa (BRASIL, 2015e). Além disso, Bacelar declara que está cada vez mais convicto de que é uma concepção moral e religiosa que guia o Parecer lavrado por Garcia, levando à construção de uma sociedade da intolerância e do fundamentalismo, branca e machista. E brada: “Que defesa é essa da família, que princípio cristão é esse que preside essas iniciativas, que são iniciativas altamente discriminatórias, que são iniciativas altamente violentas?” (BRASIL, 2015e). Mais adiante, o Deputado sustenta: “E espero que a mesma interpretação que vários Deputados fazem de passagens da Bíblia para a questão homoafetiva fosse feita, por exemplo, para o dinheiro”. Em seguida, cita o texto de Levítico, capítulo 25, versículo 36: “Não lhes dará teu dinheiro com usura nem darás teu alimento por interesse” (BÍBLIA SAGRADA). A partir da mencionada passagem bíblica, complementa: “Eu estou esperando que essa bancada apresente aqui um projeto de lei acabando com o COPOM, com o Conselho de Política Monetária, responsável por definir as taxas básicas de juro e por isso contra a Bíblia Sagrada. Talvez sem poupança”, continuou, “sem fundos de investimento, sem a caridade de certas igrejas, a gente estivesse obedecendo um princípio bíblico” (BRASIL, 2015e).

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A Deputada Erika Kokay (PT-DF), quando de sua palavra, sustenta que não se pode romper a laicidade do Estado, nem muito menos se autorizar que qualquer Parlamentar transforme seu mandato na defesa de concepções religiosas. Caso o fizesse, assevera, estaria ferindo um princípio que é fundamental para que o Estado seja de todos, assim como para que se assegure a liberdade de credo – e de não credo – prevista na Carta da República. Para a Deputada, o Parecer apresenta uma conceituação de família que só se justifica a partir de um juízo religioso, porque nada de científico tem (BRASIL, 2015e). Noutro momento, a Deputada assegura que não cabe ao Parlamento dizer o que é pecado e o que não é, ei que competência da religião. No entanto, não compete às religiões dizerem o que é construtor da própria cidadania do indivíduo – caso em que estariam as religiões, tidas por Kokay como pertencentes ao senso comum, ingerindo sobre as leis e, como resultado, confeccionar-se-iam leis com uma única visão religiosa (BRASIL, 2015e). Quando de sua manifestação, a Deputada Maria do Rosário (PT-RS) assim questiona: que religiosidade é esta que fere o princípio do Estado Laico, que fere a lei, mas, sobretudo, que fere a Lei Maior, que é a da amorosidade e do respeito mútuo? (BRASIL, 2015e). No seu sentir, a família deve ser espaço de liberdade, sem intervenção do Estado, dos Deputados e das religiões, quaisquer que sejam. Maria do Rosário clama aos Deputados que não queiram impor os seus princípios religiosos à população brasileira, a todas as famílias, pois isso seria ferir os direitos à liberdade e à família (BRASIL, 2015e). A petista sustenta que a liberdade religiosa é direito fundamental, e como tal a defenderá. E exclama: se os Deputados ali presente têm fé verdadeira, então devem pensar sobre seus atos. Segundo seu entendimento, há matéria religiosa em todo o texto do Estatuto da Família, sobretudo em seu Parecer (BRASIL, 2015e). A Deputada pronuncia-se publicamente, durante a sessão de votação, como cristã católica, mas entende que a informação é totalmente dispensável. Nem Cristo, nem Jesus, assevera, é cabo eleitoral de quem quer que seja. Sustenta em alta voz que os Deputados ali presentes representam a atuação fundamentalista decidida a dobrar cada indivíduo à fé que dizem ter os Parlamentares, inclusive tendo feito uso da fé no processo eleitoral para aferirem votos e adentrarem à Câmara dos Deputados (BRASIL, 2015e). Não se pode usar a fé, completa Maria do Rosário, que é legítima de um povo cristão, de um povo que tem todas as religiões. O Brasil não se dobrará aos fundamentalistas que no mundo inteiro produzem guerras de ódio, opressão e desrespeito, argumenta (BRASIL, 2015e). Tomando a palavra, o Deputado Silas Câmara (PSD-AM), que, na legislatura anterior era o 1 Vice-Presidente da Comissão Especial, mas que no cenário atual ocupa a 3a Vice-Presidência, afirma ter a impressão de que muito do que está acontecendo no Brasil atualmente tem a ver com a nação, o governo maior, ter virado as costas para Deus e para as famílias. Para Câmara, o Brasil é cristão, e mais de 98% da população declara-se a favor da família brasileira. Dito isso, requer que se respeite o direito e princípio de liberdade da nação cristã, a favor da família, de decidir “essas” questões (BRASIL, 2015e).

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Ainda na sessão de votação, o Deputado Glauber Braga (PSOL-RJ), ao posicionar-se como defensor do Estado Laico, indaga: não é um ato de discriminação a utilização de um espaço público para apenas uma determinada religião? (BRASIL, 2015e). Segundo seu discurso, da mesma forma que não se pode considerar razoável que o Estado monopolize determinada religião em razão de ser laico, também não se pode querer estabelecer por meio de uma ação estatal um modelo único de família. Em ambos os casos Braga adverte que trata-se de uma interferência inadequada e brutal por parte do Estado. A sociedade não pode se submeter a um pensamento único no que diz respeito ao conceito de família, vez que nenhum dos presentes na sessão de votação detém o monopólio sobre qualquer definição ou pensamento (BRASIL, 2015e). Em outra oportunidade, o Deputado afirmou que quer “combater o bom combate” sobre o Parecer que foi apresentado, em referência ao apóstolo Paulo no livro de 2 Timóteo, capítulo 4, versículo 713. Os Deputados Evandro Gussi (PV-SP) e Eros Biondini (PTB-MG) defendem o Relator Garcia de críticas quanto à presença do religioso nas letras do Parecer. Segundo Gussi, inexiste no Parecer qualquer menção religiosa ou transcendental, mas apenas se reconhece o que prescreve a natureza (BRASIL, 2015e). No seguir da votação, o Deputado Hidekazu Takayama (PSC-PR) sustenta que nenhum caso de morte de homossexual foi praticado por católico ou evangélico – aliás, deveriam ser presos os próprios homossexuais, porque as mortes advêm de “suas briguinhas íntimas” (BRASIL, 2015e). A respeito da defesa de valores, o Deputado Flavinho (PSB-SP) afirma resguardar a Constituição, e não princípios religiosos, obscurantistas ou fundamentalistas14. Flavinho ressalta que tem sua fé, preza por seus valores, e tem o direito de defender aquilo para o que foi eleito. Realça que foi eleito pela base católica, que é a grande maioria do país, ao passo que afirma que não permitirá que passem por cima dos valores que são a base da sociedade: não se está falando de minoria, mas de milhões de pessoas que acreditam nesses valores e que foram garantidos na Constituição (BRASIL, 2015e). O Presidente da Comissão Especial Deputado Sóstenes Cavalcante limita-se a asseverar que não fez parte da votação qualquer líder de partido na Casa de Leis que fosse da bancada religiosa. No entanto, deixa claro em seu sítio eletrônico que atrela seu histórico ministerial 13 Na referida passagem bíblica, “Combati o bom combate, acabei a carreira, guardei a fé”, Paulo escreve a Timóteo dizendo-lhe que sua partida (de Paulo) está próxima (BÍBLIA SAGRADA). 14 Embora o Deputado Flavinho tenha negado que defende valores religiosos, o sítio eletrônico do Partido Socialista Brasileiro (PSB) veiculou matéria em fevereiro deste ano a qual afirma que o Deputado terá três linhas de atuação na Câmara: política, social e evangelizadora. Flavinho também pretende lutar para que “os valores da família, da vida, da ética e da moral sejam respeitados, valorizados e preservados em nosso País”, além de defender “propostas que beneficiem os mais de 150 milhões de brasileiros que se assumem cristãos e professam sua fé em Jesus Cristo”. Disponível em: . Acesso em: 16 novembro 2015. Ainda, o mesmo Deputado afirmou na Casa de Leis, em março deste ano, que a Reforma Política é aquela “que a população mais espera não só de nós, políticos, primeiramente de nós homens públicos, mas também de homens da Igreja - bispos, sacerdotes, religiosos, missionários, evangelizadores” (BRASIL, 2015b).

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ao mandato eletivo na Câmara dos Deputados, e o motivo principal de sua atuação no Parlamento: “Eu já estava sem pastorear há 10 anos e por tudo que já vivi fui forjado para atuar em defesa de um povo, de uma nação. Comigo Deus tem tratos específicos de tempos em tempos para cumprir determinadas missões”15. Já o Deputado Pastor Eurico (PSB-PE), quando do uso da palavra, assevera: “Estamos juntos em defesa da família, da moral e dos bons costumes. Abaixo essa desgraça que querem impor na sociedade” (BRASIL, 2015e). Em relação à moral a qual se refere, não é difícil perceber que trata-se da religiosa. Aliás, afirmou na Câmara dos Deputados, em 2013, que “(...) 185 mil eleitores me colocaram aqui, e me colocaram para defender princípios da família, da moral, da fé e dos bons costumes” (BRASIL, 2013a). Por fim, o projeto foi aprovado16. A LAICIDADE DO ESTADO BRASILEIRO VS. UMA MAIORIA MORALISTA: UMA VISÃO À LUZ DOS DIREITOS HUMANOS Após a análise da sessão de votação do Estatuto da Família na Comissão Especial da Câmara dos Deputados, percebemos que diversos Parlamentares abriram mão de argumentos religiosos, seja para o sustento do Projeto de Lei e seu Parecer, seja para apontarem irregularidades em seu texto. A presença do religioso no seio do Legislativo não é uma constatação tão recente: Bonavides e Andrade (2002, p. 476) indicam que na Assembleia Nacional Constituinte de 1987/1988 houve a substituição da ação partidária pela movimentação de grupos, motivo pelo qual foi acusada à época pela imprensa de ter organizado “lobbies de interesses, os mais variados (o lobby santo, da Igreja Católica; o lobby evangélico das mais variadas ramificações protestantes; [...], etc), como influenciadores ou deformadores da vontade da Constituinte” [grifos no original]. A partir das decisões assumidas pela Constituinte, é possível que se diga que a sua formação era, em maioria, conservadora (BONAVIDES; ANDRADE, 2002). No mesmo esteio, Pinheiro (2008) assevera que a Constituinte já foi marcada simbolicamente pela religião, eis que seu Regimento Interno já dispunha que “A Bíblia Sagrada deverá ficar sobre a mesa da Assembléia Nacional Constituinte, à disposição de quem dela quiser fazer uso” (sic) (BRASIL, 1987). Acerca dessa previsão regimental17, o autor questiona: “A que uso se destinava tal Bíblia: confronto espiritual dos constituintes ou suporte argumentativo 15 Disponível em: . Acesso em 16 novembro 2015. 16 Votaram a favor do Projeto de Lei os Deputados Aureo (SD-RJ), Anderson Ferreira (PR-PE), Carlos Andrade (PHS-RR), Conceição Sampaio (PP-AM), Diego Garcia (PHS-PR), Eduardo Bolsonaro (PSC-SP), Elizeu Dionizio (SD-MS), Evandro Gussi (PV-SP), Flavinho (PSB-SP), Geovania de Sá (PSDB-SC), Jefferson Campos (PSD-SP), Marcelo Aguiar (DEM-SP), Pastor Eurico (PSB-PE), Pastor Marco Feliciano (PSC-SP), Prof. Victorio Galli (PSCMT), Silas Câmara (PSD-AM) e Sóstenes Cavalcante (PSD-RJ); e contra o Projeto os Deputados Bacelar (PTNBA), Erika Kokay (PT-DF), Glauber Braga (PSOL-RJ), Jô Moraes (PCdoB-MG) e Maria do Rosário (PT-RS). 17 A aprovação da presença da Bíblia sobre a mesa da Assembleia Constituinte foi percebida pelo Deputado Salatiel Carvalho (PFL-PE) como a primeira grande vitória da bancada evangélica. (PINHEIRO, 2008)

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dos debates por eles travados?”18 (PINHEIRO, 2008, p. 13). Foi trazida, enfim, por um dos constituintes, um exemplar da Bíblia protestante. Ora, a representação protestante no Parlamento cresceu em número no final da década de 1980 em razão da mobilização das igrejas de mesma fé em lançar candidatos evangélicos, com amplo convencimento de bases, e em especial sob o argumento de que “crente vota em crente” (PINHEIRO, 2008, p. 60-61). Outro motivo para o crescimento dessa modalidade de representação se deu pelo receio dos evangélicos de uma aliança entre o Estado e a Igreja Católica na Constituição que seria redigida. Na visão de Pinheiro (2008, p. 64), não tardou para que se evidenciasse “o espírito de corpo da bancada evangélica”, erigido sobre o tripé “vocação-profetismo-martírio, que reocupa semanticamente o significante secular atual de mandato político” (PINHEIRO, 2008, p. 69). Por consequência, “Esse contexto foi responsável pelo acirramento das discussões que envolviam questões religiosas”, afirma Zylbersztajn (2012, p. 29), “não só para garantir seus fundamentos na carta constitucional como também pelo enfrentamento dos parlamentares evangélicos para garantirem seu espaço perante a maioria católica”. Assim como os “bons costumes”19, salientados pelo Pastor Eurico na votação na Comissão Especial, também o conceito restritivo de família foi objeto de defesa na Constituinte de 1987-1988 por quem Pinheiro (2008, p. 81) se refere como uma “maioria moralista” cristã. A respeito da vedação das uniões de pessoas de mesmo sexo, Pinheiro (2008, p. 86) cita as palavras do então Deputado Salatiel Carvalho: “os evangélicos não querem que os homossexuais tenham igualdade de direitos porque a maioria da sociedade não quer”. Durante os trabalhos da Constituinte de, a união homoafetiva chegou a ser considerada heresia pelo Deputado Antônio de Jesus (PMDB-GO), ao passo que, no entender do Deputado Nelson Aguiar (PMDB-ES), a AIDS (Síndrome da Imunodeficiência Adquirida) é uma retribuição da prática homossexual, em referência à passagem bíblica de Romanos, capítulo 1, versículo 2720. Segundo afirma Pinheiro (2008, p. 88), o argumento religioso do “ethos exemplar” defendido no Parlamento “perpassa boa parte das posições evangélicas, mesmo que nem sempre o seja de modo expresso”. 18 Assevera Pinheiro (2008, p. 71) que “A grande vitória da exibição bíblica, externando uma luta simbólica entre empresas de salvação, sinaliza (e, por que não, fundamenta) disputas discursivas travadas na esfera pública, repercussivas na identidade do sujeito constitucional, que, por ser uma ausência, é passível de uma contrução/reconstrução contínua”. [grifos no original] 19 Pinheiro (2008, p. 81) entende que, “Em material constitucional, a expressão bons costumes fatalmente remete à terminologia utilizada como restrição à liberdade de culto a que crentes foram sujeitos durante décadas – afinal, exceção feita a de 1891, todas as demais Constituições do período republicano anteriores a 1988 condicionaram tal liberdade à observância da ordem pública e dos bons costumes”. [grifos no original] No entanto, ressalta o autor que tal expressão foi (e vem sendo) utilizada no Parlamento em sede de argumentação a respeito do ethos social, sobretudo no que tange ao sexo. (PINHEIRO, 2008) 20 Diz o texto: “E, semelhantemente, também os homens, deixando o uso natural da mulher, se inflamaram em sua sensualidade uns para com os outros, homens com homens, cometendo torpeza e recebendo em si mesmos a recompensa que convinha ao seu erro”. (BÍBLIA SAGRADA)

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Ora, a presença do ethos cristão, com seus valores, proibições, inibições, exclusões, opressões e coações (PINHEIRO, 2008), está presente no Parlamento desde a República Velha, e fortalecida na última Constituinte. Não diferentemente, a redação do Estatuto da Família e de seu Parecer, como se percebe dos debates ocorridos na votação da Comissão Especial, apresenta influências advindas de uma identidade parcial dita legitimada pela vontade da maioria. Aliás, tanto noutrora como nos dias atuais, deparamo-nos com discursos eminentemente religiosos, mas ditos legitimados pela democracia. A força que exerce a religiosidade no Parlamento foi criticada abertamente pelos Deputados Bacelar, Erika Kokay, Maria do Rosário e Glauber Braga em razão, dentre outras, de afrontar o princípio da laicidade do Estado. Como bem assevera Zylbersztajn (2012, p. 30), no que pese a Constituição de 1988 não conter um dispositivo que diga “o Estado brasileiro é laico”, tal princípio foi abrigado pelo texto constitucional. Um dos elementos indicativos da laicidade do Estado brasileiro é atinente ao próprio regime democrático (artigo 1o e parágrafo único da Constituição Federal), que pressupõe a liberdade e o “diálogo entre opiniões e pensamentos divergentes e a possibilidade de convivência de formas de organização e interesses diferentes da sociedade (...)” (SILVA, 2008, p. 119). Aliado a esse dispositivo, o artigo 5o do texto constitucional assegura o direito à igualdade sem distinção de qualquer natureza, garantidos aos brasileiros e estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos à vida, liberdade, igualdade, segurança e propriedade (BRASIL, 1988). Também no artigo 5o, inciso IV, é garantida amplamente a liberdade religiosa, inclusive a liberdade de consciência e crença, do exercício de culto, e proteção aos seus templos (BRASIL, 1988). Bem apontam Zylbersztajn (2012) e Pinheiro (2008) que a Constituição de 1988 não mais previu que a liberdade religiosa esteja condicionada à ordem publica e aos bons costumes, mas apenas à observância da lei. Da mesma forma, ninguém poderá ser privado de direitos por motivo de crença religiosa, diz a Constituição, ou de convicção filosófica ou politica (BRASIL, 1988). Ademais, a determinação da separação entre Estado e igreja é expressa no artigo 19, I, do texto constitucional: Art. 19. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: I - estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público; [...]. (BRASIL, 1988)

O Estado brasileiro, portanto, não pode eleger religião oficial nem mesmo prejudicar o exercícios das religiões (ressalvado o interesse público definido em lei), mas, ao contrário, tem o dever positivo de garantir a todos o exercício livre de suas expressões religiosas. Nesse esteio, a laicidade tem a ver com a gestão de liberdades e direitos (ZYLBERSZTAJN, 2012). A

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esse respeito, a Declaração Universal da Laicidade no Século XXI traz em seu bojo uma tentativa conceitual de laicidade a partir de algumas referências pontuais21, das quais destacamos: respeito à liberdade de consciência e a sua prática individual e coletiva; autonomia da política e da sociedade civil com relação às normas religiosas e filosóficas particulares; nenhuma discriminação direta ou indireta contra os seres humanos (FRANÇA, 2005). Em sentido semelhante, a Declaração Universal dos Direitos Humanos (ONU, 1948), em seu artigo 18, ao afirmar que todos têm o direito à liberdade de pensamento, consciência e religião, indica que “este direito inclui a liberdade de mudar de religião ou crença e a liberdade de manifestar essa religião ou crença, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pela observância, isolada ou coletivamente, em publico ou em particular”. É dizer que, ainda que a Declaração não defenda explicitamente a laicidade (como também não o faz a Constituição Federal de 1988), são consagrados direitos que para ela convergem, em sede de Direitos Humanos22, dentre eles os direitos fundamentais (que independem de uma representação majoritária para seu acatamento). Ainda no plano internacional, outros diplomas de Direitos Humanos tangenciam o princípio da laicidade por meio da proteção a direitos de liberdade, igualdade e democracia, a saber: o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (ONU, 1966)23, a Convenção Ameri21 Artigo 4º: Definimos a laicidade como a harmonização, em diversas conjunturas sócio-históricas e geopolíticas, dos três princípios já indicados: respeito à liberdade de consciência e a sua prática individual e coletiva; autonomia da política e da sociedade civil com relação às normas religiosas e filosóficas particulares; nenhuma discriminação direta ou indireta contra os seres humanos. Artigo 5º: Um processo laicizador emerge quando o Estado não está mais legitimado por uma religião ou por uma corrente de pensamento especifica, e quando o conjunto de cidadãos puder deliberar pacificamente, com igualdade de direitos e dignidade, para exercer sua soberania no exercício do poder político. Respeitando os princípios indicados, este processo se dá através de uma relação íntima com a formação de todo o Estado moderno, que pretende garantir os direitos fundamentais de cada cidadão. Então, os elementos da laicidade aparecem necessariamente em toda a sociedade que deseja harmonizar relações sociais marcadas por interesses e concepções morais ou religiosas plurais. Artigo 6º: A laicidade, assim concebida, constitui um elemento chave da vida democrática. Impregna, inevitavelmente, o político e o jurídico, acompanhando assim os avanços da democracia, o reconhecimento dos direitos fundamentais e a aceitação social e política do pluralismo. Artigo 7º: A laicidade não é patrimônio exclusivo de uma cultura, de uma nação ou de um continente. Poderá existir em conjunturas onde este termo não tem sido utilizado tradicionalmente. Os processos de laicização ocorreram ou podem ocorrer em diversas culturas e civilizações sem serem obrigatoriamente denominados como tal. [grifos acrescidos] (FRANÇA, 2005) 22 Entendemos Direitos Humanos como um processo histórico da afirmação do valor da dignidade da pessoa humana, com base na modernidade, e a partir de restrições à discricionariedade do governante, segundo Celso Lafer (2006). 23 Art. 18. 1. Toda pessoa terá direito a liberdade de pensamento, de consciência e de religião. Esse direito implicará a liberdade de ter ou adotar uma religião ou uma crença de sua escolha e a liberdade de professar sua religião ou crença, individual ou coletivamente, tanto pública como privadamente, por meio do culto, da celebração de ritos, de práticas e do ensino. 2. Ninguém poderá ser submetido a medidas coercitivas que possam restringir sua liberdade de ter ou de adotar uma religião ou crença de sua escolha. 3. A liberdade de manifestar a própria religião ou crença estará sujeita apenas a limitações previstas em lei e que se façam necessárias para proteger a segurança, a ordem, a saúde ou a moral públicas ou os direitos e as liberdades das demais pessoas. 4. Os Estados Partes do presente Pacto comprometem-se a respeitar a liberdade dos países

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cana de Direitos Humanos – Pacto de San Jose da Costa Rica (BRASIL, 1992)24 e a Declaração sobre a Eliminação de Todas as Formas de Intolerância de Discriminação Baseadas em Religião ou Crença (ONU, 1981)25. Ao Estado laico é vedado impor normas de caráter religioso ou atuar segundo dogmas confessionais, inclusive ateístas. Pelo contrário: deve ser imparcial, neutro em relação à liberdade das expressões religiosas. Para a caracterização da laicidade não basta a separação entre Estado e igreja26, nem mesmo a instituição da liberdade religiosa – o Estado apenas é laico quando está também condicionado à soberania popular, e não ao apoio político de igrejas ou dogmas religiosos. Se, portanto, de um lado, a liberdade religiosa deve ser garantida pela abstenção do Estado, de outro lado, o próprio Estado tem o dever de garantir que todos possam exercer livremente suas convicções, quaisquer que sejam, com base em princípios e regras justificáveis a partir de uma linguagem pública não-religiosa (ALMEIDA, 2006; ZYLBERSZTAJN, 2012). A par dos discursos dos Deputados Bacelar, Erika Kokay, Maria do Rosário, Silas Câmara, Glauber Braga, Evandro Gussi, Hidekazu Takayama, Flavinho, Eros Biondini e Pastor Eurico, todos proferidos na votação do Estatuto da Família, parece-nos possível afirmar que tal sessão foi permeada de critérios, passagens e princípios religiosos, usados tanto para argumentação em prol de sua aprovação, quanto como “armas” disparadas em direção a Deputados que, de forma expressa ou não, utilizaram-se de sua religiosidade para o sustento da visão restritiva de entidade familiar no Projeto de Lei. Apontamos que, ao defenderem o Estatuto da Família e a visão restritiva do núcleo familiar, alguns Deputados, incluindo o Relator, fizeram uso do artigo 226 da Constituição de 1988, e, quando for o caso, dos tutores legais de assegurar a educação religiosa e moral dos filhos que esteja de acordo com suas próprias convicções. [grifos acrescidos] 24 Art. 12. 1. Toda pessoa tem direito à liberdade de consciência e de religião. Esse direito implica a liberdade de conservar sua religião ou suas crenças, ou de mudar de religião ou de crença, bem como a liberdade de professar e divulgar sua religião ou suas crenças, individual ou coletivamente, tanto em público como em privado. 2. Ninguém pode ser objeto de medidas restritivas que possam limitar sua liberdade de conservar sua religião ou suas crenças, ou de mudar de religião ou de crenças. 3. A liberdade de manifestar a própria religião e as próprias crenças está sujeita unicamente às limitações prescritas pela lei e que sejam necessárias para proteger a segurança, a ordem, a saúde ou a moral públicas ou os direitos ou liberdades das demais pessoas. [...]. [grifos acrescidos] 25 Art. 1o. 1. Toda pessoa tem o direito de liberdade de pensamento, de consciência e de religião. Este direito inclui a liberdade de ter uma religião ou qualquer convicção a sua escolha, assim como a liberdade de manifestar sua religião ou suas convicções individuais ou coletivamente, tanto em público como em privado, mediante o culto, a observância, a prática e o ensino. 2. Ninguém será objeto de coação capaz de limitar a sua liberdade de ter uma religião ou convicções de sua escolha. 3. A liberdade de manifestar a própria religião ou as próprias convicções estará sujeita unicamente às limitações prescritas na lei e que sejam necessárias para proteger a segurança, a ordem, a saúde ou a moral pública ou os direitos e liberdades fundamentais dos demais. [grifos acrescidos] 26 Para Almeida (2006, p. 79) a separação entre Estado e igreja é “garantia de que deveres jurídicos não serão impostos aos cidadãos com base em premissas aceitáveis apenas aos membros de uma religião específica”.

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assim como da vontade do constituinte à época. Ora, Pinheiro (2008) afirma com segurança que a Assembleia Constituinte, composta por uma maioria moralista, mobilizou-se contra as lutas de reconhecimento dos direitos homoafetivos, utilizando como expediente a pretensa vontade da maioria e a doutrina cristã. Segundo o Deputado Eliel Rodrigues (PMDB-PA), à guisa de exemplo, o termo “orientação sexual” não poderia ser inserto na novel Carta da República por representar a “oficialização do homossexualismo, muito em breve, como prática normal das pessoas” (PINHEIRO, 2008, p. 87). O parlamentar acreditava que as características ditas normais das pessoas, como sexo, cor, posição social e religião, deveriam ser respeitadas, mas não uma “deformação, de ordem moral e espiritual, reprovável sobre todos os pontos de vista genuinamente cristãos, constituindo-se num dos maiores veículos de disseminação do terrível mal da AIDS” [grifos no original] (PINHEIRO, 2008, p. 87-88). Ao final, Eliel Rodrigues declara que “Deus ama o pecador, mas aborrece-o o pecado. Seu propósito é o arrependimento por parte dos que trilham caminhos pervertidos” [grifos no original] (PINHEIRO, 2008, p. 88). Cabe ainda que apontemos o seguinte excerto do Parecer de Diego Garcia: A Constituição de 1988, por sinal, surge quando já havia parceria civil de pessoas do mesmo sexo na Inglaterra, e isso mesmo levou os constituintes a ratificarem, como se encontra nos anais da Constituinte, que a união estável apta a especial tutela seria “entre o homem e a mulher”, com artigos “o” e “a” antecedendo cada palavra, de modo a clarificar qual seria o modelo habilitado para a especial proteção estatal. [...]. Simplesmente indicavam as situações de especial atenção do Estado com base no art. 226, que é restritivo, propositadamente, por duas expressões: base da sociedade e especial proteção. [...] A Constituição, assim, harmonizou-se ao que se apresentava mais adequado. Foi reflexo da democracia em sua dimensão espacial e temporal. Na dimensão espacial, a Assembleia Constituinte trouxe representantes eleitos pela maioria dos cidadãos para conformarem o projeto do novo Estado-nação, naquele momento histórico, cientes de que balizariam a vida para o futuro. Trabalharam na identificação das entidades que traziam as notas necessárias de sustentabilidade da vida em sociedade. Também souberam respeitar a democracia em sua dimensão temporal: resguardaram percepções da Humanidade amadurecidas ao longo de séculos, sem se renderem a modismos que turbam a percepção do que é perdurável. Decidiram dar posicionamento constitucional às situações em conexão profunda com a natureza humana em sua condição social, ao tratar da família, base da sociedade, assim como em sua condição de individualidade, ao trazerem os direitos fundamentais de cada pessoa. [grifos acrescidos] (BRASIL, 2015c) O trecho acima revela o conhecimento, por parte do Relator, dos anais da Constituinte no que diz respeito às discussões sobre o conceito de família. Afigura-se-nos uma tentativa de Garcia de conferir legitimidade apenas à família tradicional com base no artigo 226 da Constituição, que, em verdade, foi aprovado mediante articulação de moralistas (PINHEIRO, 2008), que empregaram discursos não apenas religiosos, mas preconceituosos, e oriundos

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de suas concepções privadas, ante o medo que tinham de ruína dos valores cristãos. Ainda, a manutenção e defesa do sentido restritivo de família com base na literalidade do artigo 226 parece-nos, em vista dos argumentos de Pinheiro (2008), um desrespeito aos princípios, tratados e declarações de Direitos Humanos e à laicidade do Estado brasileiro, na medida em que tolhe liberdades e direitos (inalienáveis, diga-se de passagem) por meio de normas de caráter religioso. Embora a separação entre Estado e igreja esteja bem delineada na Constituição (característica essencial a um Estado democrático que honra os Direitos Humanos), ainda nos deparamos com casos em que o Estado, nas suas decisões, a exemplo da votação do Estatuto da Família, se ampara em dogmas religiosos, ainda que implícitos, e não em uma linguagem pública não-religiosa. CONSIDERAÇÕES FINAIS Ao escudarem a vontade do Constituinte, não se faz mais necessário que os Deputados defendam valores e sentimentos cristãos de modo explícito: a bandeira da convicção religiosa foi hasteada mesmo no silêncio, que se mostra, na espécie, eloquente27. Assim, quando o Deputado Bacelar afirmou estar mais e mais convicto de que o Parecer de Garcia foi guiado por concepções religiosas, ainda que não às escâncaras, afigura-se-nos razoável a assertiva. Ainda, ao que nos parece, o princípio da laicidade, juntamente com os princípios de Direitos Humanos, foi solapado pelo uso impertinente de preceitos religiosos como fundamento para a aprovação do Estatuto da Família na Comissão Especial da Câmara dos Deputados, mesmo quando usado como expediente de ataque por parte dos Deputados que rejeitam a utilização do espaço público por um determinado credo. REFERÊNCIAS ALMEIDA, Fábio Portela Lopes de. Liberalismo político, constitucionalismo e democracia: a questão do ensino religioso nas escolas públicas. 2006. 316 f. Dissertação (Mestrado em Direito)-Universidade de Brasília, Brasília, 2006. Disponível em: . Acesso em: 16 novembro 2015. BÍBLIA SAGRADA. Disponível em: . Acesso em: 16 novembro 2015. BONAVIDES, Paulo; ANDRADE, Paes de. História constitucional do Brasil. Brasília: OAB Editora, 2002. BRASIL. Câmara dos Deputados. Discurso proferido por Anderson Ferreira. 2011a. Disponível em: . Acesso em: 16 novembro 2015. 27 Na verdade, a bandeira foi hasteada não em completo silêncio. Silas Câmara utilizou-se do divino para conferir legitimidade às suas opiniões: muito do que está acontecendo de negativo no Brasil deve-se ao fato de a nação, o governo ter virado as costas a Deus. Câmara, assim como Takayama, arvorou-se no mesmo argumento enunciado na Assembleia Nacional Constituinte de 1987-1988: o Brasil é uma nação cristã, e a esmagadora maioria declara-se a favor da família em sentido restrito. Também o Deputado Flavinho, quando da palavra, insurgiu-se contra os que querem passar por cima dos valores que são a base da sociedade, qual seja o cristão. Os valores partilhados por Flavinho são os mesmos do Pastor Eurico, baseados na fé.

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