A AQUISIÇÃO DO PORTUGUÊS COMO LÍNGUA DE HERANÇA

June 5, 2017 | Autor: Cristina Flores | Categoria: Heritage language studies, Bilinguismo
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A AQUISIÇÃO DO PORTUGUÊS COMO LÍNGUA DE HERANÇA*

Cristina Flores1 * Comunicação apresentada na:

RESUMO: O presente artigo discute, de forma sumária, algumas das questões que orientam a investigação linguística sobre a aquisição de línguas de herança. São apresentados os resultados de vários estudos sobre o Português Língua de Herança, conduzidos no âmbito de dois projetos de investigação FCT sobre falantes de herança lusodescendentes, residentes na Alemanha, na Suíça e em França. Palavras-chave: Língua de herança; bilinguismo; aquisição da linguagem

ABSTRACT: This article discusses some main questions that guide linguistic research on heritage language acquisition by presenting the results of several studies on Portuguese as a Heritage Language, conducted within two FCT research projects. The participants are heritage speakers of European Portuguese living in Germany, Switzerland and France. Keywords: Heritage language, bilingualism, language acquisition

1. Aquisição de uma Língua de Herança. O número de crianças que cresce com exposição a mais que uma língua supera, atualmente, o número de crianças monolingues (TUCKER, 1999) e a crescente mobilidade internacional, que marca o século XXI, tende a aumentar significativamente esta realidade. Neste contexto, a imigração é já um dos principais impulsionadores da aquisição bilingue, que tem suscitado um crescente interesse na comunidade científica, tanto de uma perspetiva sociológica e didático-pedagógica, como também entre psicólogos e linguistas. Perceber como 1

Professora Auxiliar do Departamento de Estudos Germanísticos e Eslavos da Universidade do Minho

a criança imigrante adquire as línguas que a envolvem é, por um lado, um pressuposto indispensável ao diálogo intercultural e ao garante de igualdades de oportunidade em sociedades multiculturais (COMISSÃO EUROPEIA, 2009). Por outro lado, contribui para o conhecimento do funcionamento da mente humana e da forma como esta constrói e processa o saber linguístico. A criança que cresce em contexto de imigração convive diariamente com (pelo menos) duas línguas, a língua de origem da família e a língua da sociedade de acolhimento, adquirindo-as simultânea ou sucessivamente. É à primeira, isto é, à língua falada no contexto familiar, que se dá o nome de ‘língua de herança’ (LH). Tipicamente, o tipo e a frequência de contacto com as duas línguas do falante bilingue vai-se alterando ao longo da sua vida. Esta variação na exposição linguística é sobretudo uma característica marcante do bilinguismo de herança infantil, pois geralmente a criança imigrante é mais exposta à sua língua de herança nos primeiros anos de vida e começa a contactar mais intensamente com a língua maioritária após a sua entrada no infantário ou na (pré)escola. A partir deste momento, a língua maioritária passa rapidamente a ser a língua dominante da criança, pois é a língua da escola, (da maioria) dos amigos e dos contextos sociais do quotidiano fora da família (por exemplo, da ida ao supermercado ou ao médico, etc.). Por sua vez, a língua de herança restringe-se à comunicação no seio da família ou da comunidade imigrante, sobretudo a adulta. Fora deste contexto, o contacto com a LH pode dar-se em eventuais visitas ao país de origem, através de meios de comunicação ou nos cursos extracurriculares de LH para filhos de emigrantes, organizados por organismos governamentais dos países de origem2, pelas próprias comunidades imigrantes ou por instâncias autárquicas locais. Isto significa que a língua de herança é adquirida precocemente, tal como a língua materna de crianças monolingues, no entanto o grau de exposição à língua é mais limitado, as fontes de exposição linguística são menos variadas e a língua de herança convive com a presença dominante da língua maioritária. Além disso, apesar de se falar de características típicas do ‘falante de herança’ (FH), não existe um perfil sociolinguístico homogéneo deste tipo de falante, pois verifica-se variação substancial quanto ao seu grau de proficiência a nível da LH. Há falantes que entendem mas não falam a sua LH (os chamados “bilingues recetivos”, segundo BAETENS BEARDSMORE, 1982) e outros que se sentem tão confortáveis em usar a língua da família como a língua dominante da sociedade,

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Quanto às aulas de Língua Portuguesa, a chamada «escola portuguesa», atualmente os cursos de PLH são coordenadas pelo Camões. Instituto da Cooperação e da Língua através do serviço de Coordenação do Ensino de Português na Alemanha. A publicação da Portaria nº 232/2012 de 6 de agosto veio unificar o ensino de português no estrangeiro (EPE), estabelecendo um sistema de avaliação e certificação que abarque todo o tipo de ensino no estrangeiro (incluindo o ensino do PLH), o Quadro de Referência para o Ensino Português no Estrangeiro (QuaREPE).

considerados “bilingues equilibrados” (balanced bilinguals). A competência linguística do falante de herança situa-se neste continuum entre proficiência muito elevada e proficiência muito baixa, pois é moldada por vários fatores decisivos para o desenvolvimento bilingue: a idade de início de exposição à língua dominante e à língua de herança (se não for a partir do nascimento), os contextos de aquisição e de uso das línguas, a frequência de contacto com a LH, a constelação familiar e as escolhas linguísticas no seio da família, o prestígio social da LH, a inserção da família numa comunidade imigrante maior e fatores individuais relacionados com a identificação cultural do falante (para uma discussão de diferentes perspetivas sobre o conceito ‘língua de herança’ veja FLORES & MELO-PFEIFER, 2014). Como referem O’Grady et al. (2011), a aquisição de uma língua de herança é, por isso, um “classic example of an experiment in nature” (p.224). Permite estudarmos a forma como estes fatores moldam o saber linguístico dos falantes, recorrendo a diferentes métodos de análise e ferramentas de observação. A língua portuguesa, além de ser língua materna ou língua segunda da população residente nos países da CPLP, é também língua materna de muitas pessoas que residem em países onde o português não é língua oficial, fruto da presença de comunidades emigrantes portuguesas e lusodescendentes nos “quatro cantos do mundo”. Como tal, a língua portuguesa é a língua de herança (PLH) de segundas e terceiras gerações de emigrantes, que a falam mais ou menos bem, têm mais ou menos contacto com o PLH no seu dia a dia, identificam-se muito ou pouco com a respetiva cultura (portuguesa). Centrado na aquisição do português como língua de herança em comunidades lusófonas residentes na Alemanha, na Suíça e na França, este artigo tem como objetivo apresentar de forma sintetizada os resultados da investigação linguística sobre o português língua de herança, desenvolvida no âmbito de dois projetos I&D, financiados pela FCT: o Projeto Português como Língua de Herança e Mudança Linguística [EXPL/MHC-LIN/0763/2013], coordenado pela Universidade do Minho, e o Projeto Completivas na Aquisição do Português [PTDC/CLE-LIN/120897/2010], coordenado pela Universidade de Lisboa.3 A discussão centra-se em três questões centrais, relacionadas com o desenvolvimento da competência fonética de falantes de PLH (secção 2), o ritmo de

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Projeto Exploratório FCT Português como Língua de Herança e Mudança Linguística [EXPL/MHCLIN/0763/2013], em execução de 15.3.2014 a 15.5.2015 (coord. Cristina Flores / Universidade do Minho). http://cehum.ilch.uminho.pt/heritage Projeto I&D FCT Completivas na aquisição do Português [PTDC/CLE-LIN/120897/2010], em execução de 1.3.2012 a 1.9.2015 (coord. Ana Lúcia Santos / Universidade de Lisboa). http://www.clul.ul.pt/pt/recursos/441-clap

aquisição da língua de herança (secção 3) e o conhecimento linguístico do falante de herança adulto (secção 4).

2. Sotaque em PLH. Vários estudos sobre aquisição fonética em contexto de bilinguismo mostram que a idade de aquisição da língua é um fator determinante no desenvolvimento da competência fonética de um falante, pois a probabilidade de se desenvolver sotaque estrangeiro na segunda língua aumenta significativamente com o avançar da idade de início de aquisição (FLEGE, MUNRO, & KAY, 1995; FLEGE, YENI-KOMSHIAN, & LIU, 1999; ABRAHAMSSON & HYLTENSTAM, 2009). Neste âmbito a competência fonética de falantes de herança constitui um caso de estudo muito interessante, uma vez que estes falantes geralmente têm exposição à sua língua de herança desde a nascença, ou seja, a idade de aquisição teoricamente favorece o desenvolvimento de uma competência fonética nativa. Contudo, há uma forte presença da língua maioritária no dia a dia do falante, que poderá favorecer processos de transferência de elementos fonéticos da língua dominante e levar, assim, ao desenvolvimento de um sotaque com características particulares, distinto do sotaque de falantes monolingues. Uma questão central que advém desta situação linguística particular é perceber que fatores mais influenciam o desenvolvimento da competência fonética, em especial do sotaque, destes falantes bilingues na sua língua de herança: a suposta vantagem dada pela exposição precoce à língua ou a aparente desvantagem de um input limitado à LH e maior frequência de uso da língua maioritária. Esta é a questão central do estudo desenvolvido por Rato, Flores, Cunha e Oliveira (2015), sobre a perceção de sotaque em falantes bilingues luso-alemães que cresceram na Alemanha/Suíça com o português como língua de herança e o alemão como língua maioritária. Comparando produções de fala destes falantes com produções de falantes monolingues de PE e falantes alemães que adquiriram o português como L2 em fase adulta, o estudo pretendeu averiguar se os falantes bilingues apresentam um sotaque em PE mais próximos dos falantes monolingues ou se se aproximam mais de falantes L2. Com os falantes monolingues partilham a idade de início de exposição à língua portuguesa (a nascença), com os falantes L2 a presença dominante do alemão no seu meio ambiente linguístico. Estudos prévios que focam a perceção de sotaque em falantes bilingues mostram que a exposição precoce à língua favorece, de facto, o desenvolvimento de sotaque nativo (HOPP & SCHMID, 2013), mas existe uma tendência para desenvolver particularidades no sotaque destes falantes que os distinguem de falantes monolingues, sobretudo a nível da língua que não é a língua do meio ambiente (KUPISCH et al., 2014).

Rato et al. (2015) analisaram produções de fala de 12 falantes bilingues com idades compreendidas entre os 19 e os 30 anos de idade (média = 23.08; desvio-padrão/DP = 4.01), comparando-as com as produções de seis falantes L2 e seis falantes monolingues de PE com médias de idade aproximadas. A partir das produções espontâneas dos participantes foram desenvolvidos três testes experimentais, aplicados a 45 avaliadores, isto é, estudantes universitários portugueses. No teste de avaliação de sotaque, estes tinham de decidir, para cada estímulo ouvido, se o sotaque era ou não nativo, indicando de seguido o seu grau de certeza quanto à decisão. No teste de compreensibilidade indicaram o grau de compreensibilidade dos estímulos numa escala de 1 a 6 e no teste de inteligibilidade preencheram espaços em branco a partir das frases ouvidas. Os resultados deste estudo mostram que em geral os falantes bilingues apresentam valores de avaliação de sotaque idênticos aos dos falantes monolingues, afastando-se claramente dos resultados obtidos pelos falantes L2. Assim, estes resultados vão ao encontro das propostas que defendem o desenvolvimento de sotaque nativo em situações de exposição precoce a uma língua. De facto, a maioria dos falantes bilingues, ao contrário dos falantes L2, não apresenta transferência de propriedades fonéticas do alemão, a sua língua dominante. Contudo, os resultados do grupo de falantes bilingues apresentam maior variação e o grau de confiança das decisões tomadas pelos avaliadores é menos forte do que no caso dos falantes monolingues, que são claramente avaliados como falantes nativos. As autoras concluem, por isso, que os falantes de herança lusodescendentes, apesar de desenvolverem sotaque muito semelhante a falantes monolingues que crescem em Portugal, poderão apresentar características fonéticas particulares, não presentes em falantes monolingues. Estas estão certamente relacionadas com o grau e os contextos de utilização das línguas, ideia também defendida por Kupisch et al. (2014), mas outros fatores individuais, mais difíceis de controlar, poderão também influenciar o desenvolvimento da competência fonética de falantes bilingues.

3. Ritmo de aquisição. Uma questão de investigação que está no centro de muitos estudos sobre a aquisição bilingue visa perceber se falantes bilingues apresentam um ritmo de aquisição mais lento do que falantes monolingues, sobretudo a nível da língua com a qual contactam menos no seu quotidiano, como é o caso da língua de herança de crianças de origem imigrante. De facto, muitos estudos que analisam o efeito do grau de exposição linguística sobre o desenvolvimento da gramática interna do falante bilingue mostram que um contacto mais limitado com uma das línguas da criança bilingue influencia o desenvolvimento de diferentes

propriedades linguísticas, em especial no domínio lexical (HOFF, CORE, PLACE, RUMICHE, SENOR & PARRA, 2012), mas também o desenvolvimento de certas propriedades morfossintáticas (BLOM, 2010; GATHERCOLE & THOMAS, 2009; UNSWORTH, 2014, entre muitos outros). No seu estudo centrado na aquisição do sistema de pronomes clíticos, concretamente da posição clítica, Flores e Barbosa (2014) analisam o desempenho de doze crianças luso-alemãs numa tarefa de ordenação de palavras, com o objetivo de perceber se as crianças bilingues seguem o mesmo percurso de aquisição que crianças monolingues. Uma variável central do grupo experimental é a idade dos participantes no momento do levantamento de dados, compreendida entre os 7 e os 15 anos de idade (média = 10.8; DP = 2.6). Os resultados deste estudo mostram que as crianças bilingues adquirem esta propriedade mais tarde do que crianças monolingues, mas apresentam etapas de aquisição semelhantes às que são descritas para crianças monolingues do PE no trabalho realizado por Costa, Fiéis e Lobo (2014). É ainda de realçar que as crianças bilingues mais velhas/os adolescentes demonstram terem adquirido o sistema de colocação clítica, revelando que demoram mais tempo a adquirir determinadas propriedades mas acabam por adquiri-las efetivamente, apesar de apresentarem maior variação na realização das tarefas experimentais. O estudo de Casa Nova (2014), centrado na aquisição da posição clítica por falantes de herança luso-franceses, mostra que o percurso de aquisição é semelhante ao desenvolvimento descrito para crianças monolingues e crianças bilingues luso-alemãs. Contudo, por estarem expostas predominantemente a uma língua proclítica, o francês, estas crianças apresentam mais efeitos de transferência interlinguística do que as crianças luso-alemãs (o alemão não possui pronomes clíticos). Vários estudos mostram ainda que a composição do agregado familiar e a língua predominante em casa constituem mais uma variável determinante do processo de aquisição da LH, uma vez que crianças de famílias minoritárias cuja língua de comunicação primária é a LH apresentam um ritmo de aquisição mais acelerado a nível desta língua do que crianças que também usam com frequência a língua maioritária na comunicação familiar. Esta é uma das conclusões do estudo de Flores, Santos, Jesus e Marques (submetido), centrado na aquisição do modo verbal em orações completivas por falantes de PLH. Neste estudo, os autores analisaram 50 crianças/jovens lusodescendentes residentes na Alemanha, com idades compreendidas entre os 6 e os 16 anos (média de idades = 10.1; DP = 2.9), com graus diferentes de utilização da língua portuguesa no contexto familiar. Os resultados deste estudo mostram que, globalmente, o grupo não apresenta dificuldades na seleção do modo indicativo

nos contextos que pedem o indicativo (isto é, as orações completivas selecionadas por verbos ficcionais ou epistémicos fortes). Os resultados nos contextos indicativos contrastam claramente com os resultados obtidos nas frases que pedem a seleção do conjuntivo, pois neste caso há um efeito significativo dos fatores ‘idade’ e ‘grau de exposição’. As taxas de produção do conjuntivo aumentam substancialmente com o avançar da idade. Enquanto os falantes mais jovens (7-8 anos) tendem a produzir o indicativo na maioria das frases que selecionam o conjuntivo, os falantes mais velhos (> 12 anos) usam o conjuntivo nos contextos-alvo, mostrando terem adquirido os valores semânticos que regulam a distribuição de modo em orações completivas. Além disso, há uma diferença significativa entre os participantes que usam predominantemente o português na comunicação com os pais e as crianças bilingues de famílias nas quais o português coexiste com a língua maioritária. Os últimos demoram mais tempo a adquirir os valores semânticos associados ao modo conjuntivo, mostrando um conhecimento robusto destes valores apenas a partir dos 12 anos de idade. Já as crianças oriundas de famílias de 1ª geração de emigração, que usam predominantemente o português em casa, apresentam altas taxas de produção do conjuntivo a partir dos 9 anos. Um dado a reter é, no entanto, que nas faixas etárias mais velhas, os dois grupos apresentam resultados semelhantes, indicando que a seleção de modo em orações completivas é adquirida em PLH. Num estudo em preparação sobre a aquisição da mesma propriedade por crianças lusodescendentes residentes em França, Santos, Flores e Almeida (em preparação) notam que também as crianças luso-francesas começam por adquirir primeiro o modo indicativo, revelando muito mais dificuldades na seleção do conjuntivo, apesar de a língua dominante, o francês, dispor de um sistema de modo muito semelhante ao português (ao contrário do alemão). Tsimpli (2014) sugere que os efeitos do grau de exposição linguística em crianças bilingues se manifestam sobretudo em propriedades da língua que são estabilizadas tarde no desenvolvimento nativo da língua-alvo. De facto, Jesus (2015) mostra que algumas propriedades semânticas associadas ao conjuntivo são adquiridas tarde em Português Europeu, o que poderá explicar o processo de aquisição ainda mais retardado desta propriedade em PLH. Já as propriedades morfossintáticas adquiridas cedo parecem ser menos sujeitas a efeitos de input, como é o caso do modo indicativo. No mesmo sentido apontam os resultados do estudo de Santos e Flores (2013) sobre a produção de elipses do SV e da distribuição de advérbios em Português Língua de Herança. As autoras mostram que as 20 crianças lusodescendentes residentes na Alemanha (com uma média de idade de 9.8, DP = 0.62) apresentam taxas de produção de estruturas de elipse do SV muito semelhantes às 20 crianças monolingues que constituem o grupo de controlo, dispondo também de um

conhecimento estável da ordem dos advérbios na frase. As autoras concluem que estas propriedades sintáticas, associadas à aquisição do movimento do verbo, são estabilizadas cedo no desenvolvimento do PE e, globalmente, não são áreas vulneráveis no desenvolvimento do português como língua de herança.

4. Gramática adulta. Como foi demonstrado na secção anterior, crianças bilingues poderão apresentar um ritmo de aquisição mais pausado em certos domínios da sua língua de herança, sobretudo em relação a propriedades linguísticas adquiridas tarde na língua-alvo. Desta observação advém uma questão que tem chamado a atenção de muitos investigadores da área do bilinguismo: como é o ‘resultado’ deste processo de aquisição? Por outras palavras, como é a competência bilingue do falante de herança adulto? Na tradição generativa, o conhecimento linguístico de um falante nativo adulto é concebido como o último estágio de aquisição, a chamada ‘gramática adulta’. Tendo em conta as particularidades do contexto de aquisição de línguas de herança, muitos estudos linguísticos tentam descrever a gramática adulta de bilingues de herança, determinando diferenças entre a gramática adulta de falantes monolingues e de falantes bilingues. Uma linha de investigação que se tem destacado nos últimos anos é a inicialmente proposta no campo de investigação norte-americano por Montrul (2008) e Polinsky (2008), segundo a qual a competência linguística do falante de herança adulto é fruto de um processo de aquisição incompleto, associado a saber linguístico deficitário. Vários contra-argumentos têm desconstruído esta ‘hipótese da aquisição incompleta’ (veja por exemplo FLORES, 2014; KUPISCH, 2013; PASCUAL Y CABO & ROTHMAN, 2012), argumentando, em contrapartida, que a competência do falante de herança é fruto de um processo de aquisição particular, moldado pela especificidade do input linguístico. Neste âmbito foram desenvolvidos alguns estudos que visam descrever a competência linguística de falantes bilingues lusodescendentes adultos (RINKE & FLORES, 2014; FLORES, RINKE & BARBOSA, 2014; FLORES & RINKE, no prelo). Centrados no conhecimento e produção de objetos frásicos, estes estudos visam demonstrar que a gramática de falantes de herança luso-alemães não é incompleta. Analisando um corpus de fala oral, Flores, Rinke e Barbosa (2014) mostram que os falantes bilingues de segunda geração dispõem de todas as opções de realização do objeto como os outros grupos de falantes analisados (falantes monolingues e falantes imigrantes de primeira geração) e não produzem estruturas desviantes em número significativamente relevante. Estes falantes produzem, contudo, estruturas gramaticais mais complexas em menor quantidade, optando por estruturas alternativas. Neste sentido, os

falantes bilingues analisados produzem significativamente menos pronomes clíticos do que os outros grupos, recorrendo mais a omissões do pronome ou ao uso de pronomes demonstrativos. Esta é sobretudo uma estratégia relacionada com o uso da língua e não com o conhecimento interiorizado. Porém, como demonstram Rinke e Flores (2014), falantes de herança apresentam um conhecimento menos estável de propriedades linguística que apresentam alguma variação entre o discurso oral e um registo mais formal / escrito. Este é, por exemplo, o caso das formas alomórficas do pronome clítico (no(s)/na(s); lo(s)/la(s)), que causam dificuldades a FH, uma vez que estes têm sobretudo contacto com o registo oral / coloquial. No discurso oral a distinção entre, por exemplo, -o e –no é muito menos transparente do que no registo escrito. Contrastando o grupo de falantes bilingues luso-alemães com falantes que adquiriram o português como segunda língua em fase adulta, Flores e Rinke (2015) mostram ainda que o saber linguístico interiorizado dos falantes bilingues apresenta assimetrias típicas do falante nativo de português, que são pouco expressivas no conhecimento linguístico adquirido por falantes L2. Este é, por exemplo, o caso da assimetria presente na produção de estruturas de topicalização de objeto sem a presença de um pronome resumptivo. Enquanto falantes de herança e falantes monolingues do português europeu mostram uma clara preferência pela topicalização (sem clítico) de objetos dativos e desfavorecem a topicalização de objetos acusativos, o conhecimento linguístico dos falantes L2 não apresenta esta assimetria (nativa). Em suma, os estudos desenvolvidos no âmbito dos dois projetos supramencionados sublinham a importância do contacto regular com a língua de herança no dia a dia do falante bilingue lusodescendente. O falante de herança que usa o português na comunicação com a família dispõe de todo o input necessário ao desenvolvimento de um saber linguístico complexo, característico de um sistema linguístico nativo. Naturalmente, a investigação sobre a aquisição do português como língua de herança não se cinge aos estudos e aos pares linguísticos aqui apresentados, nem é nossa intenção ignorar os contributos relevantes de muitos outros estudos que, por falta de espaço, não puderam ser mencionados nesta apresentação sumária.

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