A arquitetura e esfera pública - O Palácio Anchieta e o Sítio Fundador de Vitória/ES.

June 14, 2017 | Autor: Clara Miranda | Categoria: Urban History, Visual Semiotics, History of the City
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A ARQUITETURA E A ESFERA PÚBLICA: O PALÁCIO ANCHIETA E O SÍTIO FUNDADOR DE VITÓRIA (ES)1 CLARA LUÍZA MIRANDA2

1 INTRODUÇÃO Neste artigo, esfera pública tem como base a concepção empregada no livro A condição humana, de Hannah Arendt3. Tomando como ponto de partida a Atenas clássica, a esfera pública se define em antítese com o ambiente privado, que é o âmbito da família (da oikos – casa; nomia – regras), onde ocorriam a produção e a reprodução. Para os gregos, a ação e a liberdade situavam-se no espaço público: “o ser político, o viver numa ‘polis’, significava que tudo era decidido mediante palavras e persuasão, e não por meio de força ou violência.” Entre os romanos, a urbe era o território de formação cívica (cidades e Cidades-Estado), que se distinguia da civitas (reunião de famílias que compartilhavam os mesmos deuses, a mesma organização social e as mesmas formas de produção). No cristianismo, o temor ao sagrado se expressava especialmente pela arquitetura. Aí, uma visível linha divisória separava os dirigentes da Igreja e os fiéis. Com o aumento da influência da religião, o poder requeria um ambiente apropriado para demarcar a hierarquia e a reverência. Somente em alguns lugares, construídos com arte, esse sentido seria perceptível. Nesses locais, o cristão resgatava o valor da pedra4. Se aplicarmos a esse assunto os termos ação, labor e trabalho, que determinam a condição humana (segundo Hannah Arendt, esses vocábulos definem a vida ativa em opo-

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Este texto faz parte da Pesquisa Arquitetura e evolução urbana de Vitória desde 1537, financiada pelo Facitec/PMV 2 Arquiteta, urbanista e professora doutora do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo (PPGAU) no Departamento de Arquitetura e Urbanismo (DAU) do Centro de Artes (Car) da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes). 3 ARENDT, H. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense, 1994 4 SENNETT, R. Carne e Pedra. Rio de Janeiro: Record, 2003.

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sição à vida contemplativa5), a ação, que é política por excelência, se restringirá ao clero e aos senhores. Porém, posto que na Grécia antiga a vida contemplativa se destinasse somente aos filósofos, no cristianismo ela era extensiva a todos, embora, talvez estas experiências diversas com o “eterno” não sejam comparáveis Nesse contexto, não obstante os violentos contrastes entre o minuto popolo e o popolo grasso que residem nas cidades medievais, é ativa a contribuição de todos na sua construção. As cidades se convertiam em obra (duração). “Sociedades muito opressivas foram muito criadoras e muito ricas em obras”6. De acordo com Henri Lefebvre, quando o produto (valor de troca) substitui a produção de obras nas relações sociais, a exploração substitui a opressão e a capacidade criadora esmorece7. Como o objeto deste ensaio consiste na abordagem do sítio de uma edificação religiosa jesuítica, deve-se sublinhar que essa ordem religiosa se empenhava na prática de uma Igreja supranacional. Enquanto o projeto colonial português no Brasil fosse alargar seu império e a fé, essa possibilidade cristianizadora seria permitida. No entanto, com o tempo esse projeto se implementou “nas folgas do sistema”. Finalmente, ao cabo de duzentos anos, sucumbiu, devido à exploração mais sistemática da colônia por parte dos portugueses. Na fase açucareira (1570-1650), a capitania estava inserida no sistema mercantilista. Grandes proprietários, alguns cristãos-novos, dirigiam seus negócios com “mão de ferro”8. Eram latifundiários que nem sempre residiam na capitania; eles tinham interesses vinculados a grupos mercantis europeus, entre os quais estavam os traficantes de escravos africanos, em que consistia a força de trabalho como mercadoria. Para a pequena população pobre, livre ou cativa, que vivia entre o trabalho compulsório e a Igreja, o processo de socialização era centrado na religião. Esta também se baseava na “própria explicação central da presença européia” no local9.

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ARENDT, H. Op. Cit. Ver cap. 1. O labor é o processo biológico; o trabalho é o resultado dum processo cultural, sua lógica é a durabilidade dos objetos. A vida contemplativa denomina a experiência com o eterno. 6 LEFEBRVE, H. O direito à cidade. São Paulo: Centauro, 2001, pp. 12-13. 7 Id. Ibid. p.14 8 VASCONCELLOS, J. G. M. (org.). Vitória, trajetórias de uma cidade. Vitória: FCCA; CDV, 1993, p. 28 9 Id. Ibid.

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Com as atividades religiosas de ensino e de catequese nos aldeamentos, os Jesuítas controlavam o cotidiano de parte da população. Jesuítas e Franciscanos incentivavam a criação de confrarias, a fim de combater as “murmurações” e a discórdia entre os moradores da vila. A instituição dessas confrarias se destinava aos índios e aos negros, para doutriná-los na fé cristã. No século XVI, havia cerca de dez confrarias e ordens terceiras; no século seguinte, elas já somavam vinte10. Para asseverar o predomínio religioso no imaginário popular local, observavam-se as marcas da devoção em todos os lugares, designando igrejas, cais, fortes e largos11. No sistema mercantilista, a exploração colonial conciliava violência e escravidão. Esse sistema latifundiário pressupunha a vigência da “lei exemplar”. Segundo Alfredo Bosi, lei, trabalho compulsório e opressão eram correlatos sob o escravismo colonial. A estrutura política enfeixava os interesses dos proprietários rurais sob uma administração local exercida pelas câmaras dos homens bons do povo. “Mas o seu raio de poder [era] curto”12. Ainda, nas palavras de Bosi, “os historiadores têm salientado a estreita margem de ação das câmaras sob a onipresença das Ordenações e Leis do Reino de Portugal”13. De fato, pode-se verificar a referida onipresença na direção da Capitania do Espírito Santo, sobretudo militar, quando se pesquisam os manuscritos da Capitania (entre 1585-1822)14. No Brasil imperial, O Espírito Santo era mantido à margem economicamente, assim como na época do ciclo do ouro. Contudo, na República, as elites da província fizeram esforços de modernização infraestrutural e econômica. A vida pública se estabeleceu paulatinamente na urbe laica. Nesse período, a arquitetura ainda desempenhava um papel representacional fundamental, como superfície de contato de signos, base física da socialização, da produção sócio-técnica e dos veículos de comunicação existentes.

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ABREU, C. F. o desejo da Conquista. In. VASCONCELLOS, J. G. M. (org.). Vitória, trajetórias de uma cidade. Vitória: FCCA; CDV, 1993, p. 49-51. 11 Id. Ibid. p. 59 12 BOSI, A. Dialética da colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, pp. 19-20 13 Id. Ibid. p. 20. 14 Documentos manuscritos avulsos da antiga Capitania do Espírito Santo que estão sob a guarda do Arquivo Histórico Ultramarino em Lisboa, Portugal publicados sob a coordenação acadêmica do professor João Eurípides Franklin Leal. Ver site do Arquivo Público do Espírito Santo.

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Esse status da arquitetura se consome pela propagação da esfera pública por meio de novas mídias, especialmente as tecnologias da informação e da comunicação. A arquitetura – que, segundo Paul Virilio, se desenvolveu com o avanço das cidades e a colonização de novas terras, desde que essa conquista se concluiu –, introverteu-se15. Essa sentença de Virilio é antagônica em relação à de Giulio Carlo Argan. Para esse estudioso italiano, em respeito à edificação arquitetônica e à cultura não há relação entre termos distintos, posto que a arquitetura funcione dentro da entidade social e política, que é a cidade, na qual é significativa por ser forma representativa 16. Sobre esse papel (o funcionamento representativo e simbólico), que foi prerrogativa da arquitetura, discorreremos a seguir.

2 NO TEMPO DOS JESUÍTAS Essa terra é nossa empresa, e o mais gentio do mundo. (Pe. Manuel da Nóbrega)

O edifício do Colégio e Igreja de São Tiago, construído pelos jesuítas, constitui o lugar como espaço fundador; é uma obra feita para a perenidade. O “primeiro símbolo civilizador” da vila demarca a paisagem, tornando-se a essência visível, visio dei. Para Ignácio de Loyola, fundador da ordem dos Jesuítas, a ascese e o empenho como meio de os cristãos alcançarem a perfeição tinham como instrumentos a imaginação e os sentidos do corpo, desde que regulados pelo aprendizado e pela disciplina. A salvação seria obtida por intermédio da diligência e da força de vontade, e não por meio de uma dádiva sobrenatural17. A finalidade do homem era servir a Deus, salvando a sua alma. Os passos para atingir esses fins relacionavam-se ao “conhecimento do pecado”, à evangelização e ao trabalho missionário. Isso estabelecia, no quadro da ética dos jesuítas, o domínio dos valores sensíveis e voluntários, reunindo a prática religiosa e a

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VIRILIO, P. Espaço crítico. São Paulo: Ed. 34, 1934 ARGAN, G. C. História da Arte como história da cidade. São Paulo: Martins Fontes, 1992. 17 OLIVEIRA, B. S. Espaço e estratégia: considerações sobre a arquitetura dos jesuítas no Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio ed. 1988, p 44 16

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obrigação de “viver no mundo”18. A vida reclusa entremeava-se com a existência extramuros. A evangelização para os jesuítas era um imperativo. Então, partiam para o novo mundo, conjugando colonização religiosa e comercial, interesses religiosos e seculares, servindo também aos reis à sua maneira. Os sentidos do corpo eram convocados para a prática ascética, de modo que corpo o espaço circundante relacionavam-se, como lê nestas palavras: [...] a composição do lugar (...), consistirá em representar, com auxílio da imaginação, o lugar material onde se encontra o objeto que quero contemplar, lugar material digo, como templo ou o monte onde se encontram Jesus Cristo e Nos19 sa Senhora conforme o mistério que escolhi para contemplação

Como o mundo constituía o resultado do seu desígnio, o espaço era concebido e construído em submissão ao “projeto de mundo” dos Jesuítas, com aspecto cenográfico e estratégico desde “a escolha do sítio adequado, a importância do pátio, o esmero decorativo do interior de suas igrejas e a valorização dos objetos rituais”20. A localização dos núcleos religiosos dos Jesuítas era decidida cuidadosamente. Um dos objetivos consistia em atender o tráfego marítimo e fluvial para o transporte de mercadorias entre as suas reduções: aldeias, casas, colégios e fazendas. Portanto, as edificações deveriam situar-se na proximidade de leitos de rios ou de portos marítimos; em elevações que permitissem ao mesmo tempo a defesa e a percepção de sua posição. Isso implicava situar “de longe a Igreja e o colégio como agentes do núcleo urbano”21.

3 COLÉGIO E IGREJA DE SÃO TIAGO A localização da Igreja e Colégio de Vitória segue à risca essas determinações. Como se vê na figura 1 e 2, esse edifício se implantou num penhasco, a Sudoeste da ilha de Vitória, de frente para baía, estrategicamente posicionado em relação aos rios Marinho

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SEBE, J.C. Os jesuítas. São Paulo: Brasiliense. 1982, p 34 Ignácio de Loyola Apud. OLIVEIRA. Op. Cit. p. 47 20 OLIVEIRA. op. cit. p. 47-8 21 Idem. Ibidem. 34-8 19

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e Santa Maria: canais de navegação para as entradas, aldeias e fazendas do Sul e Oeste da capitania.

Figura 1 – Carta topográfica da barra e do Rio do Espírito Santo, 1767. Levantamento de José Antônio Caldas, Engenheiro Militar e lente da Aula Régia da Bahia. 1 – Vila de Vitória; 2 – Vila Velha (Espírito Santo). 3 – Convento da Penha. Fonte: Arquivo Militar do Exército. Rio de Janeiro.

Escolhido pelo Pe. Afonso Brás, o sítio físico foi considerado um lugar muito bem dotado, pois constituía-se numa ponta de morro com vista para o mar, com espaço plano a frente, dominando três quartas partes da região. Na parte plana e baixa posterior (Oeste), os padres fizeram um pomar (cerca), um porto particular e um fortim. A proximidade com o porto proporcionava o entrosamento com a vida social e um controle estrito da vida urbana, cujo aspecto se vislumbra na figura 2.

Figura 2 – Prospecto da Vila Vitória em 1805: L – Cais das Colunas em frente à ladeira de Padre Inácio e do Colégio e Igreja São Tiago I – Porto dos Padres. Original do Engenheiro Militar José Pantaleão.

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Fonte: 5 DL Exército/ RJ

O terreno abria-se a para Leste, numa praça denominada terreiro: um espaço que proporcionava a livre movimentação do povo do lugar. Não se previu a urbanização ordenada do entorno. Essa não era da alçada das ordens religiosas; além disso, terrenos importantes da vila eram repartidos entre diversas congregações religiosas22, entre estas contavam-se os franciscanos e os carmelitas. O terreiro dos Jesuítas dava lugar aos acontecimentos e festejos sociais, políticos e religiosos, que exigiam espaço em seu entorno para procissões e encenações. O terreiro de Vitória, em seguida denominado Largo Afonso Brás, era um importante local de encontro dos moradores naquele período. Ele possibilitava a visão frontal da Igreja anexa ao colégio, quando esta foi concluída. A unidade isolada do edifício destacava-se no tecido urbano por sua regularidade e sua escala distinta da vizinhança fragmentada em lotes estreitos. Esse assentamento urbano configura um tipo de ocupação tipicamente portuguesa, com seus quarteirões em mosaicos irregulares. As ruas, estreitas e irregulares, se adaptavam à topografia acidentada e tendiam a se organizar a partir de ligações entre os pontos mais importantes, tais como: o colégio e a Matriz, a Casa de Câmara e Cadeia, A Igrejinha de Santa Luzia, onde se situava a casa de Duarte Lemos, a quem o primeiro Donatário Vasco Fernandes Coutinho doou a ilha de Vitória como sesmaria. Essas ligações entre marcos e pontos de referência fundacionais podem ser observados na figura 3.

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COSTA, L. A Arquitetura dos Jesuítas no Brasil. Rio de Janeiro. Revista do Patrimônio Histórico Artístico Nacional. n. 26. 1997. p. 105-169. p. 107

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Figura 3. Legenda que consta na Planta da Vila de Vitória de 1764 do Engenheiro Militar José Antônio Caldas. Praças: 1 – Da Matriz; 2 – Da Misericórdia (antigo Largo Afonso Brás, denominado Terreiro pelos Jesuítas); 3 – Grande; 4 – Do Mercado; 5 – Da Igrejinha; 6 – Do Carmo; 7 – Velha (antigo Pelourinho). Igrejas: A – N. S. da Vitoria (Matriz); B – Misericórdia; C – S. Tiago (Colégio dos Jesuítas); D – S. Gonçalo Garcia; E – S. Antonio Convento dos Franciscanos; F – Ordem 3.ª de S. Francisco; G – N. S. do Carmo (Convento do Carmo); H – Ordem 3.ª de N. S. do Carmo; I – S. Luzia; J – N. S. da Conceição (Igrejinha); K – N. S. do Rosário. Edifícios Públicos: a – Palácio da Presidência e Tesouro; b – Câmara Municipal; c – Cadeia. População: 6:000 almas. Fonte: Recorte de mapa do Itamaraty/RJ

A incorporação da vida pública ao espaço dos jesuítas se iniciava pelo exterior do Colégio, constituindo parte fundamental da esfera coletiva da vila, que se forjava topologicamente nas relações entre a parte baixa e a alta da cidade. Podese presumir que a praça da parte alta se destinava à vida civil e religiosa; enquanto a frente, o Porto dos Padres da parte baixa, servia de algo semelhante a um mercado. O destaque da edificação em relação ao seu entorno também se dá pela busca de regularidade geométrica e unidade do corpo do edifício, não obstante o programa de usos diversos que, em síntese, comportam: o culto – igreja com coro e sacristia; o trabalho – oficinas e salas de aula; a residência – com seus cubículos; e a enfermaria23. Cada um

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COSTA. Op. Cit.

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desses usos ocupa um quarto de uma tipologia denominada quadra, que é um “agregado das diversas dependências à volta de um pátio central”24.

Figura 4. Antigo Terreiro, depois Largo da Misericórdia, renomeado como Praça João Clímaco, em 1906. Fonte: ELTON, E. Logradouros antigos de Vitória, 1988. Desenho de André Carloni.

Segundo depoimento de Brás Lourenço, que esteve em Vitória de 1559 a 1564, o templo e a casa dos meninos iniciais foram incendiados em 1562, e a igreja existente era “pobre, a qual nem ornamentos nem retábulos, nem galetas tinha”. Em 1573, o templo foi reconstruído e ampliado, constando que apresentava naquela época “mais de cem palmos de comprido, fora a capela, e quarenta e cinco de largo, passando a ser de pedra e cal ali levados por toda gente principal, que, com suas próprias mãos, ajudou a trazer pedras grandes para os alicerces”25. No conjunto construído de Vitória, constavam duas torres, o que era incomum nas tipologias dos Jesuítas no Brasil26. Estas pontuavam a paisagem, como índice da presença dos jesuítas.

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CARVALHO, J. A. A Arquitetura dos Jesuítas no Espírito Santo: O Colégio e as Residências. Belo Horizonte. Barroco. n. 12. p. 127-40. 1983, p. 128 25 ELTON. E. Velhos templos de Vitória e outros temas capixabas. Vitória: Conselho Estadual de Cultura,1987. 26 Id. Ibid. p. 135

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No edifício construído, a intimidade do monastério separava-se dos serviços públicos. A residência, com sua circulação, ocupava o pavimento superior; as oficinas e a enfermaria situavam-se nos pavimentos inferiores. Com esse procedimento, respeitavam-se aspectos de hierarquia e de posição na ética Jesuítica. O inferior se submete ao superior, em virtude de certa harmonia e certa ordem. Só assim poderá ficar assegurada a subordinação atual, e consequentemente também a unidade e o amor, sem os quais em nossa sociedade, como em ou27 tras corporações morais, torna-se impossível uma administração organizada .

A quadra, abrigando essas dependências variadas, voltava-se para um pátio central, que constituía um “centro nervoso de trabalhos e atividades”28. O edifício tinha um aspecto fechado para o exterior, inclusive pela solidez de sua aparência. Desse modo, cumpria o papel de uma fortaleza, resguardando os religiosos e a população em caso de ataques. O pátio se fechava ao término das tarefas cotidianas. Também a Igreja era rigorosamente controlada pelos padres; abriam-na apenas para o culto29. Essas práticas permitiam a clausura, a fim de se exercerem a oração metódica e o controle do espaço em sua totalidade. A construção do Colégio e da Igreja prolongou-se por três séculos. Desde a fundação, os alicerces foram “lançados para resistir aos séculos, porque se destinavam ao perpétuo pastoreio das almas”30. Os Jesuítas venceram as “dificuldades do ambiente selvagem”, conjugando trabalho de penitentes, catecúmenos e nativos convertidos31, para construir o edifício de pedra, cal, óleo de baleia, madeira para forros, escadas e pisos. O conjunto do Colégio e Igreja foi erguido em etapas. Isso permitiu o uso da ala concluída enquanto se construía a outra ala, não impedindo o desenvolvimento dos trabalhos dos padres.

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Ignácio de Loyola Apud. OLIVEIRA. Op. Cit. CARVALHO, J. A. Op. Cit. p. 128-29 29 OLIVEIRA. Op. Cit. p. 66 30 DERENZI, L. S. História do Palácio Anchieta. Vitória: Secretaria de Educação e Cultura - ES. 1971, p. 22-3 31 Id. Ibid. 28

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Figura 5. Palácio do Governo, a construção da escadaria é posterior à expulsão dos jesuítas, foto de 1909. Fonte MONTEIRO, J. Mensagem do governo de Jerônimo Monteiro. 1908-12.

Em 1584, o edifício tinha sete cubículos. Na cerca, observavam-se laranjeiras, limeiras, acajás e cidreiras32. Sobre os mesmos alicerces, no século XVIII, as obras prosseguiam; assim, construiu-se um novo quarto da quadra, uma nova ala e seu corredor, em 1734. A enfermaria se edificou em 1742; e a ala contígua à Igreja, em 1742. Não se pode afirmar qual a época exata da elevação da Igreja. A maioria dos historiadores assevera que todo o conjunto da quadra estava concluído em 1747. Sobre essas datas, José Antônio Carvalho comenta isto: Vemos assim, que após ter ficado durante mais de 120 anos apenas com a fachada, o Colégio em 40 anos foi concluído nas outras duas alas que faltavam para a quadra e uma terceira, unida à igreja. E, após haver terminado a obra, a mais notável que o Espírito Santo teve até princípios deste século, os Jesuítas só aproveitaram dela pouco mais de 12 anos.

A unidade das partes funcionais, obtida pela quadra, incluía o tratamento plástico do conjunto, a composição de aspecto maciço, regular e eminentemente prático. Esse formalismo projetava-se para o mundo sensível, direcionando as percepções e as ações humanas. O espaço, ordenado e essencialista, configurava-se num suporte para ações 32

CARVALHO. Op. Cit. p. 131

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disciplinadas, vigilantes e laboriosas dos homens. Tudo isso num paralelo com a ascese e a obtenção da graça da salvação que exigiam rigor, vontade e trabalho. Os Jesuítas acreditavam que cada coisa no mundo devia enquadrar-se ao lugar que lhe coubesse33. A clareza da morfologia do conjunto, o pragmatismo e a implantação eram aspectos que conferiam com o programa de ação no mundo desses missionários católicos. Os atributos de simplicidade, clareza, pureza regularidade, solidez e unidade eram imediatamente percebidos. O simbolismo almejado mediante a hierarquia pela situação e posição no contexto da paisagem decorria dessa percepção imediata. Representar é o papel dessa arquitetura: “estar em lugar de um outro”34. Enquanto idéia que representa, o edifício constitui um signo, um argumento35, uma manifestação do Visio dei e do Ad Majorem Dei Gloriam pela convencionalidade da sua composição, que se situava na ética geral dos jesuítas. Constituíam um “estilo” caracterizado pelo seu modo próprio de proceder desde a construção até ao modo de habitá-la. Os Jesuítas configuravam um estilo, para se distinguirem da diversidade de temperamentos e ocupações, constituindo um mens e modus societatis36. A ética legisladora dos Jesuítas estava tão assimilada na sua organização formal arquitetônica, que se tornava uma forma representativa. Remete-se ao que disse Simone Weil: É preciso uma representação do mundo em que houvesse o vazio, a fim de que o mundo tivesse necessidade de Deus37. Na ética dos Jesuítas, o vazio relacionava-se com a missão do homem no uso de sua capacidade criativa. Daí certa disposição de eliminar tudo o que anulasse ou impedisse “o desenvolvimento da harmonia” e da solidariedade38. A unidade do conjunto edificado

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OLIVEIRA. Op. Cit. p. 61 ª PEIRCE, C. S. Os pensadores. São Paulo: Abril Cultural. 2 ed. 1980. p. 61 35 A relação do signo com seu interpretante se dá em 3 aspectos: o signo aparece em suas qualidades; o signo representa a existência real do objeto e como argumento, o signo representa seu objeto em caráter de signo. PEIRCE. C, S. Semiótica. São Paulo: Perspectiva, p. 53. 36 OLIVEIRA, B. Op. Cit. p. 57 37 WEIL, S. A gravidade e a graça. São Paulo: Martins Fontes, 1993, p. 12 38 FERNANDES, J. O homem no pensamento jesuítico. In PEREIRA. M. C. S. & CARVALHO. A. F. A forma e a imagem: arte e arquitetura jesuítica no Rio de Janeiro colonial. p. 9-14, p. 12 34

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possibilitava ver a realidade com um olhar divino (visio dei) por meio “do sentido íntimo de cada coisa, captando e atendendo-se ao essencial”39. Para os jesuítas, a ordem e a formalidade constituíam-se formas representativas de sua vontade construtiva do mundo. Essa vontade engendrava verbos como criar, mover e transformar situações e ambientes, a fim de levá-los em direção a Deus40. Contudo, a intencionalidade e o espírito eram mais importantes: submetiam-se aos problemas de adaptação ou escassez do meio ambiente original. Os aspectos imediatamente percebidos da solidez e da regularidade eram pertinentes ao programa de ação dos jesuítas, porém cediam (em parte) na decoração interna e nos detalhes à “expansividade do barroco”, deixando-se contaminar, em certa medida, pela “volúpia da imagem”41, quando celebravam a “maior glória de Deus”42 A Igreja de São Tiago, no seu longo período de construção, exemplifica as rupturas com o modelo essencialista original. Pode-se dizer que existe um estilo jesuítico no Brasil, manifestando um espírito ascético e severo43. O Colégio e a Igreja e de São Tiago, com suas singularidades44, satisfazem esse estilo, conotando sua posição hierárquica social, política e religiosa mediante a ordem edificada e a harmonia do conjunto. Esse conjunto edificado é símbolo desses aspectos, porque nos faz associar a forma significante aos efeitos representativos desejados.

4 NO TEMPO DA CIDADE CAPITAL As cidades latino-americanas renunciaram a si mesmas para identificarem-se com a metrópole europeia (Roberto Segre).

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Id. Ibid. Id. Ibid. p. 13 41 PEREIRA, M. A ação dos Jesuítas no Brasil Colonial e o Imaginário Europeu sobre o Novo Mundo. In PEREIRA. M. C. S. & CARVALHO. A. F. A forma e a imagem: arte e arquitetura jesuítica no Rio de Janeiro colonial. 1991, pp. 15-34. 42 OLIVEIRA. Op. Cit. p. 56 43 COSTA, L. Op. Cit. 44 Essas singularidades são apontadas no texto de José Antônio de Carvalho. Op Cit. 40

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A imagem bucólica da vila debruçada sobre o mar vigorava no período que se estendeu da colonização ao início da República. A partir da implantação do regime republicano, essa imagem passou a ser vista como ignóbil para expressar modernidade e desenvolvimento econômico. A arquitetura colonial, desgastada pelo tempo e pelo descuido, representava o oposto da “ordem e progresso”, o que levava ao desejo da mudança da fisionomia da cidade das autoridades positivistas. Na Primeira República, nos governos estaduais de Muniz Freire e de Jerônimo Monteiro, a cidade de Vitória foi modificada de acordo com as formas representativas duma cidade capital do século XIX. Cidade capital significava lugar que acumula capacidade administrativa, recursos, bens e patrimônio, onde os capitais buscam tirar rentabilidade da concentração urbana45. Na Republica, o edifício dos Jesuítas se converteu num cenário de interesses privados imbricados na instância do Estado. Jerônimo Monteiro (1908-12) afirmou a visão regional e local de cidade capital. A cidade foi modernizada, mas descaracterizada, beneficiando-se da prosperidade da produção do café; essa prosperidade foi investida no centro fundacional, buscando uma visualidade de estilos europeus de arquitetura. A vila colonial portuguesa típica, que ignorava, até o início do século, “os princípios da arte de construir (...) e de viver”, enfim, buscava o formalismo geométrico46. A arquitetura nesse período passou a ser produzida como opção de estilo, nos moldes do Historicismo Europeu. Esses estilos assimilavam a mimese à comunicação das formas visíveis47, e se confrontavam com a arquitetura da cidade colonial, considerada “sem estilo” e sem ordem preestabelecida. “A ordem só chega com a República”48. O problema do estilo, nesse período, não dizia respeito somente a uma aparência retórica. Envolvia transformações estruturais e espaciais. Procurava-se resolver o problema da qualidade da arquitetura, mediante a importação de materiais, técnicas e profissio-

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SOLÁ-MORALES, I. Representaciones: De la Cidade-capital a la Metrópoli. In ESPUCHE, A G. Ciudades del globo al satélite. Madri: Electa,1994 46 DERENZI, S. Biografia de uma Ilha. Rio de Janeiro: Pongetti, 1965 47 ARGAN, G. C. Clássico e anticlássico. São Paulo: Martins Fontes, 1999 48 DERENZI. Op. Cit.

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nais. O protótipo histórico europeu que substitui a fisionomia colonial foi trazido concomitantemente com migrantes europeus para o Estado do Espírito Santo. A cultura dominante nesse período tornava-se exigente de “estilo”, a fim de obter status. Buscava-se a participação numa linguagem universal, obliterando o passado, e descaracterizando seus signos. Modificavam-se a forma, a espacialidade e os nomes dos lugares. Quando se substitui o nome e o vocabulário, a coisa ou o referente tende a desparecer do quadro mental. De acordo com Gilles Deleuze, uma sociedade, um campo social, não se contradiz, mas foge, e isso vem primeiro; depois é que se estrategiza49. Consentindo com Deleuze, a nova opção representativa da arquitetura estabeleceu o sistema político republicano sobre os escombros da colônia. O Estado, o ensino laico e a imprensa substituíram o sagrado como formador do imaginário local. Constitui-se um novo sistema produtivo baseado no trabalho livre, mas agrícola, cujo excedente sustentava as reformas urbanas do período, desenvolvendo a passagem de um tipo de cidade para outro, relacionado a novos circuitos comerciais e territoriais. Os estilos historicistas como um valor atribuído afirmava a linguagem internacional, que estabeleceria a representação da cidade capital como indício de modernização do lugar, operando a conexão internacional da cultura. Consideram-se, com base em Luciano Patetta, o Historicismo e o Ecletismo como conjuntos de experiências culturais, que possuem continuidade histórica50 e ideológica. Esses estilos são resultado dum ato de escolha do projetista (um ato crítico, subjetivo). Essa escolha envolve uma postura moral, que permite aos projetistas liberdade de interpretação e de caracterização. Nesse período, estabeleceu-se que no campo da arquitetura havia uma dialética constante entre suas razões e as razões éticas, sociais e políticas. O quadro cultural do Historicismo na Europa foi marcado pelo estabelecimento da burguesia, que solicitava conforto, higiene, funcionalidade e novidades, porém rebaixava “a

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A estratégia só poderá vir em seguida das linhas de fuga, às suas conjugações, às suas orientações, às suas convergências e divergências. Deleuze indica também nesse ponto que o desejo está precisamente nas linhas de fuga, na conjugação e na dissociação de fluxo. O desejo se confunde com elas. DELEUZE, Gilles. Désir et plaisir. Magazine littéraire. Paris, n. 325, oct, 1994, p. 57-65.

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produção artística e arquitetônica ao nível da moda e do gosto”51. Para a clientela burguesa, esses “estilos” poderiam ser considerados “imagens de desejos”, nos quais se buscava sublimar “a imperfeição no produto social”52. O arquiteto adepto do Historicismo contava com um sistema de regras e preceitos de composição e de decoro, que dispunha dos mais variados elementos, advindos de diversos períodos históricos e regiões geográficas53.

5 O PALÁCIO ANCHIETA Em 1782, o patrimônio dos Jesuítas foi leiloado. O edifício do Colégio de Vitória passou a abrigar a sede da capitania. Além disso, acomodava a residência do presidente, o liceu, a tesouraria, a administração dos correios, armazéns de material bélico, a biblioteca pública e outros serviços54. Os usos heterogêneos envolveram crianças, soldados, funcionários públicos e autoridades. Não havia água encanada nem esgoto no edifício55. Jerônimo Monteiro, ao assumir o cargo de presidente do Estado em 1908, observou que a condição do edifício não oferecia circunstâncias favoráveis para servir nem como residência, nem como instalação institucional moderna. Visando ao conforto, à higiene e melhoria no espaço, o presidente contratou o engenheiro francês, Justin Norbert, para elaborar o projeto de reforma e adequação do prédio. O próprio Jerônimo Monteiro assim se explica: (...) em face do progresso material que (...) cada vez mais se acentua na Vitória pela transformação que vai se operando no aspecto da cidade, que renasce e se embeleza nas novas construções, que vão surgindo, não podia continuar o Palácio do Governo com sua vetusta feição conventual e em contraste com as linhas de arquitetura dos edifícios novos e em fragrante infração das posturas 56 municipais .

O projeto incluía a transformação do espaço do colégio e da igreja, além da escadaria de acesso à cidade alta, “dando à cidade uma nova perspectiva, estranha ao colonia50

PATETTA, L. Considerações sobre o Ecletismo na Europa. In. FABRIS, A. Ecletismo na arquitetura brasileira. São Paulo: Studio Nobel: EDUSP. 1987, p. 10-27 p. 10 51 PATETTA. Op. Cit. 52 BENJAMIN, W. Paris Capital do Século XIX. São Paulo. Espaço & debates. n. 11. 1984. pp. 5-13 53 PATETTA. Op. Cit. p. 14 54 Cesar Marques, 1778 apud DERENZI. História do Palácio Anchieta. p. 37 55 DERENZI. Ibid.

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lismo da colina, onde nasceu verdadeiramente a cidade”57. Justin Norbert utilizou o estilo Luiz XVI no Palácio. Serafim Derenzi disse que esse engenheiro francês "projetou a obra dentro de seu espírito racial (...) no estilo dos protótipos de Luiz XVI. É tranqüilamente sereno e monumental”. A reforma, iniciada em 1909, manteve a estrutura externa das paredes do edifício anterior e sua projeção no terreno. Telhado, pisos, acessos, dependências e fachadas foram modificados; inseriram-se instalações hidráulicas, sanitárias e elétricas. O palácio, com a incorporação da igreja, ganhou um terço a mais de espaço onde se alojaram os serviços da burocracia. As instalações eram adequadas às exigências do serviço público do período; ali se organizaram espaços protocolares para o presidente e o novo regime político. Criou-se uma Galeria dos ex-presidentes e representantes da República. Os salões denominados de Rosa e de Azul foram destinados às recepções oficiais e às audiências com autoridades, segundo as categorias sociais a que pertenciam. A residência do governador recebeu um tratamento compatível com os requisitos de intimidade e conforto. A restauração urbana de 1909 reafirmou o lugar citadino como referência institucional e monumental58. Com essa reforma, a relação entre a parte baixa, onde se situa o comércio, e a parte alta, institucional, ganhou aspectos socializantes modernos. A vida pública da parte baixa (onde se configura o Porto de Vitória) se formava na convivência entre conhecidos (lojistas e moradores) e estranhos (viajantes, marinheiros e imigrantes). A diversidade e a complexidade social ampliaram-se, reconfigurando os locais de encontros para negócios, como as lojas e os bares nas proximidades da escadaria do Palácio, e noutras praças como as da Rua da Alfândega, onde se discutia “política”. O entorno do Palácio manteve-se como o centro social da cidade: local de festividades cívicas e eventos que se sucediam no Largo do Colégio, amenizado pelo paisagismo pinturesco, desde o fim do Século XIX. Nestes termos, Derenzi o caracterizou quanto 56

MONTEIRO. J. Mensagem do governo de Jerônimo Monteiro. 1908-12. p. 132 DERENZI. História do Palácio Anchieta. p. 46 58 Id. Ibid. p. 46-7 57

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às, então novas possibilidades de uso do local: “Quem quiser se divertir por hora e meia na Praça do Colégio, vá, pois temos ceia (...) ó que pândega”59. As reformas no entorno do Palácio favoreceram os passeios ‘descomprometidos’ das famílias e dos jovens. Atividades que assimilavam novos hábitos de sociabilidade e de decoro no espaço público. O tratamento da série de escadas ordenou uma nova perspectiva para a baía. Foi projetada em lanços curvos, patamares intermediários, e ornada com fontes e estátuas de mármore, representando alegorias sobre as estações do ano, figuras mitológicas, cascatas e conchas. A nova escadaria engendrou o alargamento da rua Primeiro de Março, em que, desde o século XIX, se situavam as mais importantes casas comerciais de Vitória. Nesse espaço, característico como mercado, constatavam-se higiene e decoro. O Cais do Imperador, antigo Cais das Colunas, também foi renomeado como Marechal Hermes. Enquanto a fachada para Praça João Clímaco se tornava a entrada de trabalho, a fachada de frente para escadaria foi monumentalizada. Como uma fachada principal, a vista frontal simula, ainda hoje, uma inexistente simetria: divide-se em três faixas horizontais e coroa-se por uma platibanda rematada por um frontão que se pontua por uma águia. As cornijas marcam a separação entre os pisos e lajes. A nova roupagem da fachada adquire uma modulação falsa, posto que a base sólida, manufaturada paulatinamente pelos jesuítas, impedisse a aplicação do procedimento de simetria e de uma modulação geométrica precisa. Verifica-se na nova composição o procedimento da sobreposição de ordens, para articular os vários pisos da fachada, atribuindo-se-lhes uma ordem de crescente valor simbólico, do piso inferior ao superior. A solução para a fachada que Justin Norbert sugeriu sobre um envasamento que simula alvenaria com junta escavada, superpõe a ordem dórica e a ordem coríntia. Assim, mantém o preceito vitruviano da “aparência de função

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SIQUEIRA, F. A. Memórias do passado, a Vitória através de meio século. ACHIAMÉ, F. (edição e notas). Vitória: Florecultura, 1999. (original 1885). p. 46. A ceia era oferecida a convidados pelo presidente da província, após os atos cívicos e religiosos.

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sustentadora” da base e das pilastras, assinaladas pela ordem que vai da mais robusta à mais esbelta60.

Figura 6. Escadaria Bárbara Lindenberg e Palácio Anchieta, nos anos 40. Fonte Biblioteca Central da Ufes

O estilo Luis XVI, como o Barroco, busca uma naturalização artificial da arquitetura, com motivos vegetais e zoomórficos, visando a adquirir festividade ou cerimônia. O coríntio e os seus motivos vegetais predominam na fisionomia do edifício do Palácio. A ordem é considerada como a mais elegante, leve, formosa e rica; republicana para os Romanos, mas aristocrática para os franceses61. Figuras como as águias, os deuses mitológicos, os motivos florais e os elementos arquitetônicos acrescidos, todos designados na Academia como decorum (disposição adequada entre figura e ordem)62, fazem parte de requerimentos programáticos que visam à mensagem que o edifício deve manifestar. “A sugestão, o adorno, a metáfora e a analogia são as categorias dentro das quais a poética da arquitetura se converte num potente instrumento de persuasão e, finalmente, em controle social”63. 60

Sérlio apud. FORSSMAN, E. Dórico, Jónico e coríntio na arquitetura dos séculos XVI-XVIII. Lisboa: Presença. 1990. p. 31 61 FORSSMAN. Op. Cit. p. 82-3 62 id.ibid. 181 63 TSONIS, A., LEFAIVRE & L. BILODEAU, D. El Classicismo en Arquitectura. La Poética del Orden. Madri: Hermann Blume,1984

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A escolha do estilo Luis XVI é convencional para órgãos executivos do governo, e quer expressar o caráter monumental e institucional dessas instituições. Contudo, a designação desse estilo não deixa de ser uma incoerência com a imagem republicana. No palácio travestido de Luis XVI, desaparecem as qualidades associadas à severidade e simplicidade do edifício jesuítico. Porém, os novos elementos decorativos são aplicados como uma clara opção de léxico estilístico. Isso lhes confere autonomia (eles significam por si mesmos). O simbolismo desses elementos é inseparável do seu sistema. A Praça João Clímaco já havia sido ampliada com a demolição das construções vizinhas antes de 1909. Nessa reforma, o edifício passou a dominar o espaço urbano reestruturado ao seu redor. A inversão da entrada para frente da baía acentuou a visibilidade para toda cidade e para o porto, criando um waterfront. Com isso, a entrada frontal adquire um sentido topológico central para toda região (caput its).

Figura 7. Vista aérea do sítio do Palácio Anchieta cerca de 1960. As construções do lado esquerdo da escadaria foram demolidas nos anos 1970. Foto Paulo Bonino. Arquivo: SEDEC/PMV

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Figura 8. Palácio do Governo nos anos 1940, Praça João Clímaco vista da Rua Duque de Caxias. Foto Fábio Tancredi

O valor que o edifício e seu entorno adquirem na cidade vem de uma nova graduação topológica e das qualidades formais do espaço. O volume do imóvel individualiza-se e cresce com a desobstrução da vista, a remoção da ladeira frontal e o desbaste da Rua Duque de Caxias. Ou seja, a fruição do sítio pelo movimento dos transeuntes e as novas perspectivas da cidade alta consolidam a edificação como um objeto destacado na paisagem; a escadaria funciona como pedestal para o prédio, que atua como elemento atrativo da atenção e atribui valor à edificação modificada. O novo espaço ornamentado tende ao apelo visual e ao “impulso ornamental”. A nova estrutura urbana resultante mostra que essa transformação não foi mera maquiagem. As reformas da capital nos anos 1910 e 1920 (governo de Florentino Avidos) expressaram o anseio de a capital do Espírito Santo participar do mundo, após anos de isolamento econômico e político no período colonial e imperial. As razões dessas escolhas podem ser questionadas, mas o espaço, com seus novos aparatos, por algum tempo, tornou-se metáfora da graça, da beleza e do moderno. O procedimento de superposição do ecletismo sobre a linguagem jesuítica enunciava que se buscava um recomeço sobre novas bases, a fim de estabelecer um novo estado das coisas. No Palácio Anchieta, o historicismo, criticado pela vanguarda moderna, tornou-se símbolo da nova or-

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dem republicana e de pompa, representando o que havia de mais moderno para a localidade na época. Na destruição do espaço do passado colonial, mantiveram-se alguns vestígios: o nome do Palácio Anchieta e seu túmulo(?). A fundação dos jesuítas foi descaracterizada, mas mantida. Afirmou-se, assim, o sítio escolhido pelos padres, seu papel na esfera pública e sua importância no contexto urbano.

6 ESPAÇO PÚBLICO E ESFERA PÚBLICA Os projetos dessas gerações consolidaram o espaço fundador da cidade, sobrepondo uma cultura à outra. Duas culturas que não estavam apegadas em manter o preexistente, mas preocupadas em construir ou renovar, deixando suas marcas no espaço.

A vontade de os jesuítas viverem no mundo manifestava-se na esfera pública: os cidadãos tinham acesso diário ao interior de sua edificação - o pátio e suas dependências eram para cuidar, educar e proteger. O terreiro e o porto, espaços públicos, destinavam-se a celebrar, viver, trabalhar, circular e efetuar trocas. O espaço do novo Palácio (1909-11) delimitou a vida pública ao exterior, posto que os espaços internos para receber o público ganharam protocolos de cerimônia (Salão Rosa e Azul), e o executivo, a burocracia e a residência separaram-se em departamentos isolados entre si. A exteriorização do estilo (Historicista) valoriza o meio urbano e celebra publicamente a recíproca exposição das pessoas e do monumento, assim como, as novas conexões entre os homens e a cidade (com esperança de menos subserviência do povo). Embora o Palácio esteja incorporado à vida política e cultural nos anos 2000, não há a reciprocidade entre público e edifício relatada nos tempos dos Jesuítas e da Primeira República. A situação encontra-se bastante alterada, o simbolismo e a importância que o centro e seus principais edifícios encarnam na Primeira República perdem-se numa espécie de descompromisso com a vida social ampla, que se manifesta na alienação espacial dos novos lugares criados (shoppings, clubes exclusivos, condomínios fecha-

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dos, vácuos de controle e vigilância), levando a experiência de a complexidade se retirar do meio ambiente coletivo, público. O termo lugar, como algo ligado a um acontecimento, a um mito e a uma história 64, temse transferido aos espaços sem nome e sem marca. Assinala-se um processo de esvaziamento crescente da forma significante no contexto urbano: praças tornam-se espaços verdes e ruas tornam-se meras vias. A arquitetura também se desvaloriza como forma representativa, com a perda da qualidade polissensorial e polissêmica que se verifica em muitos espaços contemporâneos, sobretudo obras públicas ou comerciais.

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AUGÉ, M. Não-lugares: introdução a uma antropologia da Supermodernidade. Campinas: Papirus, 1994.

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