A arte como Teologia - a partir de K. Rahner
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A ARTE COMO TEOLOGIA – A PARTIR DE K. RAHNER) JOÃO MANUEL DUQUE – UCP – BRAGA - PORTUGAL Apesar de a estreita ligação entre o cristianismo – com a sua teologia – e a arte constituir uma irrefutável constante histórica, dificilmente se encontra, entre os numerosos e volumosos tratados teológicos, uma abordagem sistemática de tão singular relacionamento. Poder-se-ia mesmo afirmar que a teologia se tornou, ao longo dos séculos, em cenário de uma crescente racionalização, tendo mesmo atingido excessos racionalistas em determinadas épocas, de que a apologética extrinsecista é um dos exemplos mais acabados. Nesse contexto, dominava o valor do argumento, baseado na pressuposta universalidade da razão e que procurava ideias claras e distintas. A arte, vista apenas como parceira inata de um irracionalismo inferior ou mesmo perigoso, não tinha qualquer palavra a dizer e era relegada, quando muito, para o âmbito litúrgico ou devocional. Por outro lado, a história da teologia é atravessada pela constante problemática iconoclasta. Mesmo que a prática eclesial tenha ultrapassado esse veredicto pretensamente vetero-testamentário, as suas razões profundas nunca deixaram de pairar sobre a reflexão teológica, que chegou a ver na arte – sobretudo nas imagens – um dos seus mais poderosos concorrentes, que importava subjugar ou mesmo banir do âmbito religioso. Tais antecedentes deixaram – para além de inúmeras calamidades culturais, e não poucas vítimas mortais... – profundos sulcos na mentalidade teológica, que ainda não foram totalmente ultrapassados. Para além disso, sobretudo a partir da renascença, assistimos a um processo de esteticização da arte. O problema deixa de ser o poder religioso ou idolátrico da arte, mas sim a sua auto-emancipação. Um arte que se afirma autónoma e cujo valor só poderá ser discutido a nível estético não pode aceitar o lugar de mera ancilla theologiae, para ser posta ao serviço de um outro fim que não o da sua finalidade interna (sem fim). Mesmo que continuando a abordar conteúdos da tradição cristã, a arte passa a ser vista – ou escutada – apenas como arte, na sua total «distinção estética». Uma possível «função» religiosa passa a segundo plano ou, pelo menos, é separada do aspecto artístico, enquanto tal. Em semelhante contexto, uma aproximação entre arte e teologia só parece possível através da anulação da respectiva autonomia, o que implicaria ignorar todo um processo histórico e cair
irremediavelmente em fatais anacronismos1. Ou será possível, para além de domínio ou capitulação, uma terceira via? No presente, as vias de aproximação da teologia em relação à arte também não se encontram propriamente desimpedidas. O divórcio entre Igreja e cultura moderna, a que assistiu o final século XIX e o início do XX, também deixou fortes marcas, apesar de todas as tentativas de o ultrapassar. Ora, na cultura moderna ocupa um lugar de destaque a arte, nas suas mais variadas formas. E a Igreja seguiu, na maioria dos casos, dois caminhos que conduzem, inevitavelmente, a um mesmo resultado: ao encerramento sobre si mesma. Por um lado, em nome de princípios artísticos ou teóricos do passado, fechou-se à revolução – ou melhor, revoluções – artística(s) do nosso tempo; por outro, em nome de uma pastoral mais propagandística que anunciante, por isso quase sempre fácil e ilusória, aliou-se, muitas vezes, às manifestações mais pobres da pseudo-arte contemporânea, vindo a tornar-se, por vezes, num oásis «cor-de-rosa», em que abundavam (e abundam...) manifestações «artísticas» de pobreza singular, motivo de hilariedade – ou pesar – para o mundo verdadeiramente artístico contemporâneo. Felizmente, aqui e acolá, vão aumentando as vontades de ultrapassar esses estádios primitivos, que transformam a Igreja num autêntico «ghetto» ou reduto, que nada tem a ver com o nosso mundo – ou, pelo menos, com o que nele há de mais profundo. Também aqui, ter-se-á que ultrapassar a alternativa entre refúgio comodista e dissolução da identidade, rumo a um equilíbrio dinâmico. Talvez por todas as razões apresentadas o título destas breves considerações soará, a alguns ouvidos teológicos, altamente estranho ou mesmo suspeito. O que só prova a urgência de uma abordagem teológico-fundamental de um tema que está longe de ser pacífico ou de estar resolvido. Ainda mais raro parece ser, contudo, o subtítulo. Se o próprio Rahner escreve que não pretende possuir a competência de um filósofo do estético ou de um historiador da arte, a ponto de afirmar: “Nada percebo de tudo aquilo que aí é
1 Sobre a questão iconoclasta, pode ver-‐se, entre outros, o número monográfico da
revista «Kunst und Kirche» 1/1993; Cf., ainda: J. DUQUE, Die Kunst als Ort immanenter Transzendenz, Frankfurt a. M. 1997, esp. 231-‐243. Sobre a passagem da era da “imagem cultual” à era da arte, ver o brilhante estudo histórico de H. BELTING, Bild und Kult. Eine Geschichte des Bildes vor dem Zeitalter der Kunst, München 1990; Cf., ainda: H. SCHWEBEL, Hat die Gegenwartskunst im Kirchenraum eine Chance? Christliche Bildefunktionen und autonome Kunst, in: «Kunst und Kirche» 4 (1994) 212-‐217; para uma crítica da «distinção estética», cf.: H.-‐G. GADAMER, Wahrheit und Methode, Gesammelte Werke 1, Tübingen 1986, esp. 94ss (ver, acima, o respectivo estudo).
abordado”2, então poder-se-á, pelo menos, olhar com cepticismo o facto de alguém se atrever a abordar semelhante tema em tal teólogo – conhecido pelo poder argumentador e especulativo da sua mente e não propriamente pela «beleza» literária das suas obras... Seja como for, Rahner dedicou, de facto, algumas páginas dos seus inúmeros escritos à relação entre arte e teologia – páginas, cujo significado não é pequeno3. Trata-se, no fundo, de quatro textos publicados nos Escritos de Teologia4. Dado que é relativamente grande a distância cronológica – cerca de 20 anos – entre os dois primeiros e os dois últimos, podemos constatar um certo processo transformativo do pensamento rahneriano, relativamente a este tema, embora permaneçam idênticas as fundamentais referências filosófico-teológicas. Tais referências não poderão, como é óbvio, ser satisfatoriamente abordadas e expostas nos limites destas breves considerações. Nem sequer é isso que se pretende. Quando muito, serão algumas breves observações laterais a fazer algumas referências ao complexo horizonte dos principais traços filosófico-teológicos de um dos maiores teólogos do século XX. As linhas que se seguem concentram-se, portanto, pura e simplesmente numa descrição da relação entre arte e teologia, tal como Rahner, de modo teológicofundamental, a pensa. Como conclusão, serão adiantadas algumas observações críticas que pressupõem, de modo mais implícito que explícito, um confronto com algumas
2 K. RAHNER, Zur Theologie der religiösen Bedeutung des Bildes, in: «Schriften zur
Theologie» (=ST) XVI, Einsiedeln 1984, 348. 3 A importância destes textos de Rahner para a globalidade da sua teologia não se pauta, contudo, pela constituição de uma «estética teológica» (no sentido estrito de uma teologia em categorias estéticas, como no caso famoso de Hans Urs von Balthasar), mas sim pelo lugar fulcral destas reflexões – portanto, do próprio fenómeno artístico (enquanto pressuposto antropológico-‐ ontológico-‐hermenêutico do cristianismo) – na elaboração da sua teologia. Trata-‐se, pois, mais do relacionamento entre arte e teologia do que de uma concepção estética da teologia ou teológica da estética. Não é por acaso que, no projecto de estética teológica de von Balthasar, o fenómeno concreto da arte desempenha, paradoxalmente, um papel bastante mais secundário que na própria teologia de Rahner, que nunca pretendeu elaborar uma estética teológica. 4 K. RAHNER, Priester und Dichter, in: «Schriften zur Theologie» (=ST) III, Einsiedeln 1956, 349-‐375 (orig. de 1955, em homenagem ao poeta espanhol Jorge Blajot S.J.); ID., Das Wort der Dichtung und der Christ, in: ST IV, Einsiedeln 1960, 441-‐454; ID., Die Kunst im Horizont von Theologie und Frömigkeit, in: ST XVI, Einsiedeln 1984, 364-‐372 (publicado primeiro em «Entschluss» 37[1982] 4-‐7, sob o sugestivo título Nicht jeder Künstler ist ein Heiliger. Zur Theologie der Kunst); ID., Zur Theologie der religiösen Bedeutung des Bildes, in: ST XVI, 348-‐363 (conferência proferida em Munique, a 19.11.1983). Tanto quanto é do meu conhecimento, estes textos ainda não foram estudados, no seu conjunto, no sentido de um relacionamento entre arte e teologia, como aqui se pretende. A única excepção parece ser a do teólogo franciscano francês: Y. TOURENNE, Amorce d’une esthétique théologique chez Karl Rahner?, in: «Recherches de Sciences Religieuses» 85 (1997) 383-‐418.
teorias da arte actuais. Todas estas considerações mais não pretendem do que ser um pequeno contributo para um estudo mais alargado – ainda por fazer – do assunto em causa5
1. Força primordial da palavra poética Mesmo que a principal intenção dos dois textos a ser analisados em primeiro lugar seja de ordem claramente prático-espiritual, de modo algum será forçado deles extrair importantes indicações para uma reflexão aprofundada sobre a palavra poética. Tal possibilidade será de adivinhar, logo que Rahner começa o texto Sacerdote e poeta. Nele, podemos ler um primeiro desabafo, quase programático: “Pena que não haja uma teologia da palavra!” 6 E prossegue, com considerações filosóficas extraordinariamente ricas sobre a palavra poética, enquanto tal, precisamente como propedêutica a uma possível teologia da palavra7. Nessas considerações, entra em jogo um dos pensamentos fundamentais de toda a obra rahneriana: que a palavra é símbolo real do pensamento8. “A palavra é a
5 Nos últimos tempos, o mundo teológico tem visto surgir uma série de importantes
publicações, que pretendem colmatar esta lacuna histórica. De entre muitas outras, sejam apenas referidas: CH. DOHMEN / TH. STERNBERGER (Dir.), ...kein Bildnis machen. Kunst und Theologie im Gespräch, Würzburg 1987; M. ZEINDLER, Gott und das Schöne. Studien zur Theologie der Schönheit, Göttingen 1993; W. LESCH (Dir.), Theologie und ästhetische Erfahrung. Beiträge zur Begegnung von Religion und Kunst, Darmstadt 1994; A. STOCK, Keine Kunst. Aspekte der Bildtheologie, Paderborn 1996; J.-‐P. JOSSUA, La beauté et la bonté, Paris 1987; D. PAYOT (Dir.), Mort de Dieu – fin de l’art, Paris 1991; J.-‐J. NILLÈS (Dir.), L’árt moderne et la question du sacré, Paris 1993; J. SOLDINI, Saggio sulla discesa della bellezza. Linee per un’estetica, Milano 1987; P. SEQUERI, Estetica e Teologia, Milano 1993; ID., L’estro di Dio. Saggi di estetica. Milano: Glossa, 2000; P. BERNARDI, L’icona. Estetica e teologia, Roma: Cita Nuova, 1998; J. DUQUE, Die Kunst als Ort immanenter Transzendenz, Frankfurt a. M. 1997. 6 ST III, 349. Poucas décadas depois, já não poderia dizer o mesmo, sobretudo após os alargados estudos de G. Ebeling, E. Fuchs, E. Jüngel, P. Knauer, etc. sobre a Palavra de Deus. 7 É nesse sentido que, muito acertadamente, Y. TOURENNE, op. cit., 385 diz que “as reflexões de Rahner sobre a poesia são uma forma de teologia fundamental...”. 8 Como horizonte mais ou menos silenciado de quase tudo o que Rahner afirma sobre a arte, ter-‐se-‐á que pressupor as sua teoria do símbolo. Nestes primeiros textos, Rahner não expõe ainda essa teoria, em toda a sua plenitude conceptual, nem sequer utiliza o termo «símbolo real». Contudo, esboça-‐se desde já aquilo que mais tarde se tornará explícito. Algumas pistas para tal desenvolvimento encontram-‐se, já, no conceito de «beleza» (ST III, 357). Mas só em ST IV, 275-‐ 311 (Zur Theologie des Symbols) é que Rahner irá desenvolver em todas as suas dimensões essa teoria. Por outro lado, nesse processo de desenvolvimento, procedeu a uma certa «ontologização» do símbolo, acabando por o desligar da dimensão da palavra, em que se situava ainda nos primeiros textos, que ora nos ocupam, e empobrecendo, desse modo, a sua própria concepção (sobre este empobrecimento, cf.: R. BROSSE, Jésus, l’histoire de Dieu. Historicité et devenir: deux notions clés de la théologie de Karl Rahner, Fribourg 1996, esp.85-‐90. Brosse retoma o jovem Rahner e a sua referência à palavra para, inspirado em Ricoeur, propor uma interessante – e importante – continuação da sua teologia, pelos caminhos da hermenêutica, da temporalidade e da linguagem. Desse modo será possível ultrapassar a dicotomia entre modelo transcendental e modelo hermenêutico de teologia, rumo a um modelo tensional, precisamente entre referência
corporeidade, na qual tudo o que agora experimentamos e pensamos primordialmente existe, na medida em que incarna nessa sua palavra-corpo” 9 . A dinâmica incarnacional que caracteriza a palavra poética marca a diferença em relação ao puro sinal ou signo, à pura “expressão semiótica e exterior de um pensamento”10. É a mesma teoria do símbolo que determina, então, a relação entre a palavra e a própria coisa (Sache) ou a realidade. Não se trata, aqui, de uma nomeação arbitrária da realidade, separada da mesma ou substituível. A palavra “transporta a própria realidade, torna-a «presente», actualiza e apresenta”11. A realidade, por seu turno, só atinge a sua própria perfeição quando é colocada ou trazida à luz. E isso acontece na palavra, ou seja, na medida em que essa mesma realidade é conhecida e pronunciada. Assim, “as coisas são transportadas, da sua escuridão, para a luz do ser humano”12. Resumindo com a bela e evocativa expressão do próprio Rahner: a palavra é “o sacramento primordial da realidade”13. Mas nem toda e qualquer palavra poderá ser considerada, automaticamente, sacramento primordial. É preciso distinguir entre palavras e palavras. Uma distinção importante e fundamental evita a confusão entre “palavras artificiais, técnicas ou utilitárias”14 e palavras primordiais, originárias ou germinais (Urworte). Só as últimas
transcendental e referência hermenêutica de toda a teologia; Cf., ainda: D. SIMON, Rahner and Ricoeur on Religious Experience and Language, in: «Église et Théologie» 28 [1997] 77-‐99). 9 ST III, 350. 10 Ibidem. 11 Ibidem, 354. 12 Ibidem, 356. Poder-‐se-‐iam comparar estas expressões de Rahner com o conceito de verdade em M. Heidegger (ver, acima, o respectivo capítulo) – até porque é evidente a proximidade da terminologia (Licht [luz] – Lichtung [clareira]). Contudo, não será de ignorar que Rahner baseia a sua posição numa explícita antropologia, enquanto que a filosofia heideggeriana pretende ser uma ontologia fundamental: de um lado, está a luz do ser humano; do outro, a clareira do Ser. Apesar desta nítida diferença, não será de todo descabido pensar que Rahner, neste preciso aspecto, tenha sido influenciado pelo “primeiro” Heidegger (sobretudo de Sein und Zeit). 13 ST III, 358. Neste contexto, não se pode deixar de fazer uma primeira observação crítica. Segundo Rahner, a força real-‐simbólica da palavra constitui-‐se como função do sujeito cognoscente. O desvelamento que a realidade experimenta através da palavra é, no fundo, um acto do dizer cognitivo. Embora a inter-‐personalidade, a liberdade e o «amor» desempenhem também um importante papel, mantém-‐se a justificada impressão de que, no fim de contas, para Rahner apenas o sujeito do conhecimento – o espírito que, na palavra cognoscente, regressa a si próprio – é que se encontra em jogo. É impossível iludir a forte carga hegeliana do pensamento de K. Rahner, relativamente a este assunto (noutros aspectos, é anti-‐hegeliano). Para um aprofundamento da crítica, neste mesmo sentido, ver: J. SPLETT, Die Bedingungen der Möglichkeit. Zum transzendentalphilosophischen Ansatz Karl Rahners, in: B. J. HILBERATH (Ed.), Erfahrung des Absoluten – absolute Erfahrung?, Düsseldorf 1990, 68-‐87; P. EICHER, Die anthropologische Wende. Karl Rahners philosophischer Weg vom Wesen des Menschen zur personalen Existenz, Fribourg 1970, eps. 196; W. KASPER, Glaube und Geschichte, Mainz 1970, esp. 60ss. 14 ST III, 351.
possuem a capacidade de apresentar verdadeiramente a realidade, de ser seu sacramento primordial. Tais palavras primordiais são oferecidas ao ser humano, não é ele que as produz, segundo a sua própria vontade. Por isso, não são definíveis. O que não significa que sejam de origem mítica, qual presente extra-terrestre dos deuses. Pelo contrário: todas elas possuem o seu próprio destino e a sua própria história. Mas distinguem-se das palavras racionais de um pensamento claro e distinto, na medida em que “evocam o mistério”15. O mistério não apenas como enigma do desconhecido, mas sobretudo como fundamento que nos abarca e abarca a nossa própria realidade. “Nesta palavra deverá irromper o que é incompreensível, o que não tem nome, o que possui de forma silenciosamente impossível, o incaptável, o abismo, no qual temos fundamento, a escuridão da hiper-luminosidade, que envolve toda a claridade do dia a dia, numa palavra: o permanente mistério, a que chamamos Deus, o início que perdura, mesmo quando chegamos ao fim”16. As reflexões filosóficas atingem, assim, um contexto propriamente teológico ou, pelo menos, filosófico-religioso. De facto, as palavras primordiais “são sempre como que carregadas de um soar leve do infinito” 17 . A palavra que reúne e concentra/congrega, através da qual o mistério silencioso irrompe no mundo, que atinge o coração no seu mais íntimo recanto, que, no seio da sua clara finitude, é a corporeidade do mistério infinito, é a palavra poética18. Portanto, o poeta é alguém “que consegue dizer palavras primordiais de forma poética”19. E, na medida em que o faz, atinge o “regressar-a-si-próprio”, o “estarconsigo-mesmo” – “ele diz-se, em verdade, a si mesmo”20. É isso que o distingue do sacerdote (e do teólogo?), o qual não se diz a si próprio, mas sim a palavra de Deus, que lhe é dada. Mas a Graça de Deus encontra-se no mundo, de modo que a palavra de Deus também é palavra humana. Sendo assim, também o sacerdote e o teólogo podem dizer 15 Ibidem, 353. 16 ST IV, 442. 17 ST III, 353.
18 Cf.: ST IV, 448. 19 ST III, 356. Quando Rahner diz: “Todo o ser humano pronuncia palavras primordiais...”,
baseia a diferença do poeta apenas na «forma» (poética) das suas palavras. Mas quando afirma: “Onde... a palavra primordial é verdadeiramente dita, onde a coisa (Sache) surge na palavra, como no primeiro dia: aí está o poeta”, então desvanecem-‐se as fronteiras entre o poeta, o filósofo e o teólogo. Não pronunciam, todos eles, palavras primordiais? 20 ST III, 364.
a palavra de Deus, enquanto se dizem a si mesmos – aliás, terão sempre que o fazer. Por outro lado, a própria auto-dicção do poeta é, sempre, uma palavra primordial da saudade (Sehnsucht) de infinito, ou seja, de uma questão que é movida pela transcendência. Como tal, o poeta nunca se diz, apenas, a si próprio. E a essa questão responde a palavra de Deus, com palavras primordiais do ser humano que, transformadas pelo Espírito, se tornaram palavras de Deus – sem deixarem de ser profundamente humanas. Tanto a questão como a resposta podem ser, portanto, palavras poéticas – em sentido vasto, terão sempre que o ser. Daí a intrínseca – não meramente formal – ligação entre poesia e teologia, quer a primeira constitua uma espécie de propedêutica para a segunda (como articulação de uma especial capacidade de escuta, mesmo de escutar o silêncio, para além da palavra), quer a segunda se articule, ela mesma, em palavras poéticas21.
2. Para além da palavra No escrito A palavra da poesia e o cristão, podemos ler: “Antes de começarmos, deverá dizer-se que não falamos sobre a arte em geral, mas só sobre a poesia da palavra, porque... o cristianismo, enquanto religião da palavra anunciada, da fé que escuta e de uma Sagrada Escritura, sem sombra de dúvida possui uma especial relação com a palavra poética”22. Neste aspecto particular, Rahner encontra-se em acordo com não poucos filósofos, que pretendem salientar o parentesco entre a filosofia e a poesia23. Aqui, é salientada tal proximidade, em contexto teológico. Mas as suas condições de possibilidade terão que ser pensadas a nível primeiramente filosófico, como o próprio Rahner exemplarmente faz. De qualquer modo, mais de vinte anos depois, Rahner parece ainda defender a posição de que a arte da palavra está, “por sua própria natureza, muito aparentada com a teologia, que também se diz através da palavra”24. Mas o texto em que se encontra 21 Y. TOURENNE, op. cit., 387s, aplica a mesma circularidade à relação entre poesia e a graça da incarnação: “É certo que foi o Evangelho do Verbo incarnado que revelou o valor infinito da palavra humana, mas, por outro lado, a Incarnação revela a aptidão da palavra humana para acolher a palavra do Deus infinito” (388). 22 ST IV, 441-‐442. 23 Um dos casos mais conhecidos (para não falar em Hegel) e originais é, sem dúvida e como acima foi visto, a obra do «segundo» Heidegger, para quem as poesias de Hölderlin, Stefan Georg e Rilke constituem uma importante fonte de inspiração ou um constante parceiro de diálogo. Actualmente, para além da posição moderada de H.-‐G. GADAMER (sobretudo GW, vol.s 8 e 9, Tübingen 1993-‐1994), poder-‐se-‐ia pensar em muitos filósofos da dita pós-‐modernidade (com J. Derrida à frente), que pretendem, mesmo, anular as diferenças entre os vários tipos de discurso ou de texto. 24 ST XVI, 364.
essa frase está, no seu conjunto, dedicado à tentativa de superar, precisamente, tal afirmação, afim de evidenciar a relação da teologia com as outras artes. Literalmente: “...surge por isso a questão se, através de uma redução da teologia a uma teologia da palavra, não se reduz também, de forma injusta, a dignidade, especificidade e o sertomadas-ao-serviço-por-Deus das outras artes”25. No fim de contas, todas as artes são auto-dicção da pessoa humana, “nas quais o ser humano, de algum modo, se torna a si mesmo presente”26. E uma verdadeira teologia é, segundo Rahner, também verdadeira antropologia. Esta constitui, mesmo, o ponto de partida obrigatório para qualquer trabalho teológico. A partir desse horizonte antropológico, desenvolve Rahner toda a sua exposição sobre a imagem, que constitui objecto da presente análise. Nela, começa por defender uma pluralidade de experiências sensíveis, “as quais não podem ser reduzidas umas às outras”27. O cristianismo só atingirá toda a sua dimensão, quando for recebido “através de todas as portas dos seus [do ser humano] sentidos, e não só do ouvido, pela palavra”28. A imagem, por exemplo, possui um significado religioso autónomo, que nenhuma palavra poderá substituir. “O facto de a teologia não falar – ou raramente e quase só em observações laterais – desse específico e insubstituível significado não constitui qualquer argumento contra tal afirmação” 29 . Pelo contrário, será antes necessário pensar numa conversão da mentalidade teológica corrente, para melhor fazer justiça à realidade humana – que também é a artística, na sua globalidade e diferenciação. Indo mais longe, Rahner defende uma estreita complementaridade entre palavra e imagem (outras artes poderiam ser acrescentadas, sem alterar o pensamento básico), o que falta – ou é apenas esboçado – nos seus primeiros escritos. Mas, ao tentar descrever a forma concreta de tal complementaridade, Rahner recorre 25 Ibidem, 365. Note-‐se que, entretanto, tinha-‐se desenvolvido – de forma radical, absoluta, exclusivista e, por isso, redutora – a famosa «Teologia da Palavra», em contexto protestante, o que terá levado Rahner a repensar o papel absoluto da mesma, relativizando-‐o. 26 Ibidem, 364. 27 Ibidem, 352. 28 Ibidem, 354. Quando, com Paulo, se diz que “a fé vem pelo ouvir” (Rm 10, 17), ou se confere ao «ouvir» um sentido demasiado lato, abrangendo toda a receptividade humana, ou se reduz o fenómeno da fé a apenas uma das suas múltiplas dimensões. O próprio Rahner não se poupará a esta crítica, embora algumas das suas afirmações possam conduzir a pensar o contrário. No fundo, a maioria dos seus escritos não anda muito longe de tal redução – como, por exemplo, uma das suas primeiras e principais obras, mesmo já no título: «Ouvinte da Palavra» (Hörer des Wortes). 29 ST XVI, 357.
novamente a uma marcada preponderância ou domínio da palavra: “E portanto, uma imagem necessita naturalmente de uma interpretação na palavra, a fim de adquirir valor cristão para uma comunidade”30. Em resumo, poder-se-ia dizer que Rahner reconhece, nos seus últimos escritos, o significado da arte em geral, isto é, de todas as artes, para além do âmbito restrito da poesia. Contudo, a sua preferência pela arte da palavra faz com que à poesia seja concedido um lugar privilegiado, em inevitável detrimento das outras artes, tal como vinha sendo hábito de uma teologia marcada, como quase todo o pensamento ocidental, pela ditadura do «logocentrismo». Apesar de chamar a atenção para um problema a superar, Rahner não chega, na prática, a superá-lo verdadeiramente. No entanto, não é de minimizar, com isso, a importância de uma clara enunciação do problema, para possíveis propostas de superação do mesmo. Ainda no que se refere à teologia da imagem, seria de acrescentar que Rahner permanece no horizonte teórico da sua filosofia e teologia do símbolo real, desta vez abordada mais claramente pelo lado da corporeidade. De facto, a imagem adquire o seu significado ontológico a partir a necessidade, que habita o espírito (e o conceito), de em si mesmo ser constituído por um momento sensível (a isso se refere a temática da conversio ad fantasma). Na medida em que a imagem – ou a obra de arte, em geral – constitui esse momento, é parte integrante do próprio espírito. É o espírito que, para poder tornar-se presente a si mesmo, se exterioriza no outro de si próprio (na matéria)31.
3. A arte como teologia Segundo o pensamento de Rahner, é o comum ponto de partida antropológico que possibilita uma intrínseca ligação entre arte e teologia. “Na medida em que o ser
30 Ibidem, 362. Penso que a realidade das artes, assim como a própria história das imagens contradiz, claramente, essa afirmação. 31 Deste modo, é valorizado o mundo sensível, como um momento da própria realidade total, e não como queda do espírito (segundo a tradição neo-‐platónica). No entanto, a teoria rahneriana do símbolo permanece, ainda, demasiado sob influência da fenomenologia do espírito hegeliana, para poder libertar-‐se do movimento imanente ao próprio espírito. Como tal, o sensível é considerado a fronteira mais afastada, inferior do espírito que regressa a si mesmo. No fundo, a teoria do símbolo real não consegue resolver aquilo que pretendia, ou seja, pensar o equilíbrio entre essência e aparição, unidade e multiplicidade, espírito e matéria, transcendência e história, etc. (R. BROSSE, op. cit., esp. 85ss, é da mesma opinião, sobretudo no que se refere à integração da história, no seu carácter de evento temporal). Rahner permanece na tradição ocidental de uma «filosofia do mesmo», tão fortemente criticada, nos nossos dias, por E. Levinas. Além do mais, Rahner parece não ter abandonado a habitual atitude racional (ou racionalista?), frente às imagens e a todo o tipo de arte (Cf.: ST XVI, 355-‐356).
humano... se diz em todas as artes e também na teologia, as diferentes artes e a teologia encontram-se em parentesco e mútua relação”32. Como tal, ter-se-á que partir da realidade humana da arte, para conseguir compreender o seu verdadeiro significado para a teologia. É o que pretende Rahner, quando, na sua filosofia da religião e teologia fundamental, relaciona intimamente a auto-dicção (aberta) do ser humano e a auto-doação (comunicante) de Deus, na graça33. A respeito do poeta, falava-se de uma aspiração, desejo ou saudade, que se exprimiam numa questão. Dessa maneira se abre uma porta para o infinito, pela qual ele poderá entrar. “O poeta é movido pela transcendência do espírito. Ele já está, em segredo, sem disso ter consciência, submergido pela nostalgia que a graça do Espírito Santo colocou no coração do ser humano”34. A palavra que se auto-anula, representa a sua própria superação. Trata-se, pois, de um “gesto excedente, que aponta para o infinito, para além de tudo o representável ou representado”35. O que se diz da poesia é aplicável a todas as artes. Aquilo que nela acontece realiza-se, de maneira única e insubstituível, nas outras artes. “A arte, a verdadeira, é sempre mais do que aquilo que é. Se fosse praticada pelo simples amor ao valor estético, cessaria de ser arte. Seria destituída ao estatuto de um narcótico, destinado a acalmar a angústia da existência. Mas esse «mais», que faz parte dela e da qual ela vive, não é a arte que o pode dar-se a si mesma”36. Pode falar-se, mesmo, de uma orientação de todo o ser humano – e não apenas daquilo que é exprimível linguisticamente – para a transcendência. Quando Rahner «define» o ser humano como um “ser da transcendência”, quer com isso exprimir a experiência religiosa fundamental de toda a pessoa humana, na medida em que, no conhecimento de si próprio, dos outros e do mundo – assim como no seu agir livre – se torna a si mesma presente e, nesse “estar-consigo” ( Bei-sich-Sein), aponta para o seu fundamento.
32 ST XVI, 365. 33 Desta forma é evocado o pensamento teológico rahneriano na sua mais profunda dimensão – o que, neste contexto, não pode, como é óbvio, passar de uma simples evocação: só será referido aquilo que se revela de maior importância para a temática aqui tratada. O horizonte pressuposto é constituído pela ideia fundamental de que o ser humano é, ele próprio, acontecimento da auto-‐comunicação, enquanto auto-‐manifestação e auto-‐doação do próprio Deus (a graça como “existencial sobrenatural”). Cf.: K. RAHNER, Grandkurs des Glaubens, Freiburg i. Br. / Basel / Wien, 1984 (orig. 1976), sobretudo 42ss. 88.92. 132-‐138 (ver, adiante, o respectivo estudo). 34 ST III, 374. 35 Ibidem, 358. 36 Ibidem, 374.
Ora, o ser humano também é um ser da experiência sensível. Mesmo até o conhecimento religioso “é necessariamente sustentado pela percepção, a qual se baseia na experiência sensível e, portanto, também histórica” 37 . Desse modo é abordado o difícil problema da coexistência, no ser humano, de transcendência e historicidade38. A analogia constitui, para Rahner, o caminho de mediação entres esses dois «princípios», aparentemente opostos. “A analogia possibilita a compreensão de uma realidade como revelação misteriosa de outra realidade mais alta, mais abrangente”39. Sendo assim, desenvolve-se uma relação de condicionamento e possibilitação mútuos, entre transcendência e história. Neste preciso ponto, o recurso à arte pode tornar-se sumamente rico. Ela é, de facto, enquanto realidade histórica e intimamente aliada ao sensível e concreto, mas também como expressão privilegiada da questão transcendente de todo o ser humano, um meio indicado para representar e realizar a irrepresentável transcendentalidade do ser humano, ligado à história. Nela se manifestam os momentos fundamentais que determinam as condições de possibilidade de um acolhimento da auto-revelação de Deus: transcendência e história, eternidade e tempo, unidade e diversidade. E isso sem que uns sejam absorvidos e superados – portanto, anulados – pelos outros. Sendo assim, a arte não poderá ser apenas considerada como um fenómeno com certo parentesco com a teologia, mas sim como um momento verdadeiramente interno à própria teologia – o que raramente acontece, sobretudo na prática do trabalho teológico. As imagens não poderão ser tomadas apenas como littera laicorum ou biblia pauperum, mas sim no seu significado teológico específico e insubstituível 40 . Mesmo uma «teologia poética» seria possível ou até desejável: “Também se poderia dizer que falta uma teologia poética”41. E também se poderia perguntar, com o próprio Rahner: “Será que a teologia melhorou com o facto de os teólogos se terem tornado prosaicos?”42.
37 ST XVI, 349. 38 Problema que R. BROSSE, op. cit., considera a chave de leitura de toda a teologia de
Rahner. 39 ST XVI, 368. 40 Cf.: Ibidem, 355-‐356. 41 Ibidem, 366. 42 ST III, 374.
4. Questões Para além das observações críticas que, de modo mais ou menos lateral, foram feitas ao longo destas linhas, resta esboçar algumas questões de fundo, a colocar à compreensão rahneriana da arte e à respectiva relação com a teologia. Concentrar-meei em dois aspectos que julgo fundamentais: 1. a interpretação do fenómeno artístico – na sua essência – como (mero) pressuposto da teologia e 2. o carácter marcadamente «subjectivista» do pensamento rahneriano sobre a arte. Em relação à crítica que se segue, deverá adiantar-se que não se trata de uma crítica totalmente «externa», ou seja, baseada em pressupostos totalmente alheios ao pensamento do próprio Rahner; pelo contrário, pretende-se questionar alguns dos seus aspectos, partindo de outros que lhe são manifestamente «internos». Como se verá, é possível encontrar suficientes afirmações do próprio Rahner que vão contra a sua posição tida como fundamental – o que sempre tornou difícil, senão praticamente impossível, criticar a sua teologia «em bloco». 1. “O poético é, na sua essência última, pressuposto para o cristianismo”43. Nesta frase se resume, como vimos já, aquilo que o texto a que ela pertence, na sua totalidade, pretende dizer. Nela se resume, também, a posição fundamental – não única – de Rahner, frente ao possível relacionamento entre arte e teologia. Para além da intenção espiritual-pedagógica do referido texto, nele se afirma uma das fundamentais ideias do autor, a qual também domina outros textos anteriores, relativos ao mesmo tema. Desse modo, arte e teologia contactam-se de maneira bastante extrínseca. Assim como o sacerdote recorre ao poeta, a fim de melhor poder dizer a Palavra de Deus44, também o teólogo (e o cristão, em geral) terá que ser capaz de captar a poesia, a fim de a utilizar teologicamente. Em tal utilização, por parte da teologia, a autonomia da arte é colocada em perigo, se não mesmo anulada, sendo a sua utilidade reduzida a uma preparação pedagógica para o acolhimento – ou a formulação – da palavra teológica. Tal subjugação não pode, no entanto, ser aceite pela arte, que se pretende autónoma (pelo menos, desde a renascença, como vimos). Outro caminho de relacionamento terá que ser percorrido, senão mesmo inaugurado. A partir de algumas observações
tardias
43 ST IV, 449.
44 Cf.: ST III, 367s.
do
próprio
Rahner,
poder-se-ia
tentar
descrever
um
relacionamento intrínseco entre arte e teologia, baseado nos pontos de contacto entre as respectivas estruturas fundamentais, sem destruir a autonomia de cada uma delas. O principal ponto de encontro estrutural pode descobrir-se, precisamente, na orientação transcendente-imanente de ambas. Aqui, no entanto, seria necessário diferenciar algo mais a posição rahneriana. Nos textos acima analisados, permanece a impressão de uma confusão – senão mesmo identidade – entre experiência artística da transcendência e experiência teológica da mesma. Tal identidade não corresponde, contudo, à realidade, que se sentiria, muitas vezes, forçada a ser aquilo que não pretende ser. O papel central do acontecimento crístico e da fé, para uma visão teológica da realidade, não pode ser esquecido, como parece suceder nos referidos textos. Mas tal esquecimento não é, de facto, mais do que aparente. Se tomarmos a teologia de Rahner no seu conjunto – sobretudo a sua última fase, na qual se torna mais evidente a sua intenção teológica fundamental – verificamos que a componente especificamente teológica, centrada no acontecimento histórico da pessoa de Jesus Cristo e na interpretação crente do mesmo e do ser, constitui o horizonte último de todo o seu pensamento. Como tal, também o relacionamento arte – teologia é afectado por essa leitura da realidade. A arte, sem abdicar da sua autonomia, não se afirma como um mundo autárquico, mas é também atingida pela força salvífica de Jesus Cristo. Como tal, pode ser meio implícito da auto-manifestação e auto-doação de Deus, passando a estar intrinsecamente ligada à teologia, sem estar meramente ao seu serviço, sem ser nela absorvida (e, como tal, superada), como no caso típico de Hegel. Só na interacção recíproca poderá ser pensada adequadamente a sua relação mútua. Possíveis consequências práticas dessa forma de relacionamento: uma obra teológica poderá possuir forma artística, sendo simultaneamente obra de arte, assim como uma obra de arte poderá possuir, por princípio, carácter teológico45. Necessária será, contudo, uma concepção multidimensional de teologia, não só no que respeita ao seu conteúdo – que se pauta pelo «pluralismo» de ideias, de pontos de partida e de
45 Na história da teologia e da arte existem, de facto, muitos exemplos de obras de
teologia que são, simultaneamente, poesia (como, por exemplo, muitos hinos), assim como de muitas obras de arte explicitamente teológicas (como a música religiosa de Bach, assim como muita da música de Olivier Messiaen, ou mesmo muitas obras da pintura moderna e contemporânea, etc.). De forma implícita e vaga, qualquer obra de arte autêntica possui, no fundo, um carácter teológico (Cf.: G. STEINER, Von realer Gegenwart, München 1990).
destinatários, de que Rahner é um dos primeiros defensores – mas também quanto à forma – pluralidade de discursos e de formas de articulação das obras teológicas. Salvo raras excepções – como certas tentativas da chamada «teologia narrativa»46 – continua a dominar a teologia de tipo científico, isto é, sistemático-argumentativo. É evidente que uma teologia plural nunca poderia pôr de parte a teologia argumentativa tradicional – indispensável para “dar razões da esperança”, no contexto complexo do pensamento contemporâneo, respeitando o valor do “melhor argumento” (J. Habermas) – mas apenas relativizar o seu absolutismo, abrindo espaço teológico a outras vias de auto-articulação. 2. O segundo aspecto da presente crítica não poderá ser aqui analisado em toda a sua vastidão, uma vez que nele é abordado um dos aspectos mais polémicos de toda a teologia rahneriana – e, no fundo, de toda a filosofia contemporânea, que se define por uma tentativa geral de superação do subjectivismo (ou até mesmo do próprio sujeito). Limitar-me-ei, portanto, a alguns tópicos essenciais. “O poeta diz aquilo que traz consigo. Ele diz-se, em verdade, a si mesmo. Até mesmo essa dicção é, também, um pedaço daquilo que ele próprio é”47. De forma explícita, Rahner pensa a arte (neste caso, a arte da palavra) a partir do artista, à maneira da «estética da produção», que estende as suas raízes ao início da modernidade, sobretudo ao processo de subjectivação da estética – e também do próprio fenómeno artístico, distinto da estética – sob o impulso da terceira crítica kantiana. Segundo tal tendência, toda a arte se baseia, originariamente, na actividade criadora de um génio, no qual encontra a sua verdadeira origem, e o qual se exprime a si mesmo, na arte. Se, em Kant, esse génio ainda assumia a tarefa de manter a ligação a uma natureza que o transcende, é sobretudo a partir de Hegel que a natureza é superada pelo espírito, sendo a arte manifestação sensível da verdade, que é esse espírito na sua forma absoluta, enquanto sujeito, auto-consciência, razão e conceito. A subjectivação do fenómeno artístico atingiu o seu auge com o romantismo, em que o culto do génio se transformou numa espécie de histeria colectiva – ou então, numa forma de religião. A reacção a esse culto caiu, com certa facilidade, no oposto, ou seja, na dita «estética da recepção». Mas, uma vez que a actividade receptiva é vista, ou como uma espécie de congenialidade em relação ao artista produtor, ou
46 Ver: J. DUQUE, Dizer Deus na pós-‐modernidade, cap. VII. 47 ST III, 364.
como uma criação original – também ela genial – do receptor, o novo modelo não deixa de confirmar e aprofundar o subjectivismo da concepção estética. Tal abordagem de matriz subjectivista da arte foi, várias vezes, posta em causa, ao longo do século XX. Heidegger, por exemplo, tentou uma abordagem da arte a partir da obra, propondo-se superar, assim, a estética tradicional48. Tal ponto de partida encontrou apoio e eco em muitos trabalhos no campo da ciência da arte, sobretudo na teoria da literatura, mas também na «iconologia» e até na musicologia. Filosoficamente, a posição heideggeriana foi, sobretudo, continuada por Gadamer, que critica explicitamente a posição kantiana – ou melhor, a utilização errónea de tal posição, pela posterior filosofia da arte49. A arte não é, aí, concebida apenas como uma actividade genial do ser humano nem como pura auto-expressão de um sujeito. A obra afirma-se, pelo contrário, na sua fundamental e inabarcável alteridade, em relação ao produtor como ao receptor, transcendendo constantemente todas as tentativas de uma total apropriação. Ora, tal alteridade poderá ser assumida como ponto de partida para compreender a arte como lugar de abertura à transcendência fundante. Ela é um – não o único – lugar privilegiado, no qual irrompe na história o mistério que a transcende, o qual nunca poderá ser compreendido – no sentido de uma apreensão ou apropriação total – mas apenas acolhido no espaço que lhe é aberto. Este mistério que sustenta, abarca e envolve o próprio ser humano e o seu mundo, pode ser chamado «ser» (Heidegger), «história / linguagem» (Gadamer) ou «Deus» (Rahner) – o que, naturalmente, não é o mesmo, evidenciando-se, assim, os pressupostos claramente teológicos de Rahner. Mas a sua diferença não pode significar separação ou incompatibilidade. Na arte, podem encontrar-se o mistério do ser, o da história e da linguagem, no mistério fundante do próprio Deus. Desta forma, Rahner é novamente criticado, a partir de si próprio. Se apenas tivermos em conta o desejo – o eros – e a actividade do espírito humano, permaneceremos no âmbito imanente da antropologia (ela própria reduzida, dessa forma, até na sua dimensão de desejo, como acima se viu). Mas se – como o próprio Rahner – concebermos o ser humano como um ser que é, primordialmente possuído e encontrado pelo Outro, então teremos que pensar de outra forma a arte e a própria 48 Ver, acima, o respectivo estudo.
48-‐86.
49 Cf.: H.-‐G. GADAMER, Wahrheit und Methode, Gesammelte Werke 1, Tübingen 1986, esp.
teologia, bem como a relação entre ambas. “Apesar de ser sujeito livre, o ser humano experimenta-se como possuído, e isso num acto de possuir sobre o qual ele não pode pôr e dispor”50. Para além do conceito, a arte deverá ser, em todas as suas manifestações, compreendida como um fenómeno, através do qual o ser humano experimenta, do modo mais denso, a sua situação de ser possuído pelo mistério, ou seja, encontra-se não tanto como um ser da procura, mas sobretudo como um ser do acolhimento. Ele é encontrado, mais do que alguém que deseja encontrar. Ele é reposta, mais do que questão. Não uma resposta que re-solve, dis-solvendo, a questão; mas res-posta51 que se experimenta perante algo ou alguém que, simultaneamente, a transcende e a interpela. Desse modo, a arte poderá determinar a teologia de forma intrínseca – mas também ser determinada pela teologia: no fim de contas, o seu mistério não reside em si mesma, mas ultrapassa-a constantemente. Tanto a arte como a teologia repousam no mistério fundante do Deus transcendente, do qual brotam e ao qual regressam. A miséria de uma e de outra reside no eventual esquecimento dessa sua origem e desse seu fim. A grandeza de ambas reside na sua dimensão escatológica.
50 K. RAHNER, Grundkurs des Glaubens, 52. 51 No sentido que a palavra alemã Antwort (resposta) parece evocar: Ant-‐ (perante) e
Wort (palavra). A ela está ligada, também, a palavra Verantwortung (responsabilidade).
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