A arte como Teologia - a partir de K. Rahner

July 7, 2017 | Autor: João Manuel Duque | Categoria: Art, Theology, Poetics, Karl Rahner
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A  ARTE  COMO  TEOLOGIA  –  A  PARTIR  DE  K.  RAHNER)   JOÃO MANUEL DUQUE – UCP – BRAGA - PORTUGAL Apesar de a estreita ligação entre o cristianismo – com a sua teologia – e a arte constituir uma irrefutável constante histórica, dificilmente se encontra, entre os numerosos e volumosos tratados teológicos, uma abordagem sistemática de tão singular relacionamento. Poder-se-ia mesmo afirmar que a teologia se tornou, ao longo dos séculos, em cenário de uma crescente racionalização, tendo mesmo atingido excessos racionalistas em determinadas épocas, de que a apologética extrinsecista é um dos exemplos mais acabados. Nesse contexto, dominava o valor do argumento, baseado na pressuposta universalidade da razão e que procurava ideias claras e distintas. A arte, vista apenas como parceira inata de um irracionalismo inferior ou mesmo perigoso, não tinha qualquer palavra a dizer e era relegada, quando muito, para o âmbito litúrgico ou devocional. Por outro lado, a história da teologia é atravessada pela constante problemática iconoclasta. Mesmo que a prática eclesial tenha ultrapassado esse veredicto pretensamente vetero-testamentário, as suas razões profundas nunca deixaram de pairar sobre a reflexão teológica, que chegou a ver na arte – sobretudo nas imagens – um dos seus mais poderosos concorrentes, que importava subjugar ou mesmo banir do âmbito religioso. Tais antecedentes deixaram – para além de inúmeras calamidades culturais, e não poucas vítimas mortais... – profundos sulcos na mentalidade teológica, que ainda não foram totalmente ultrapassados. Para além disso, sobretudo a partir da renascença, assistimos a um processo de esteticização da arte. O problema deixa de ser o poder religioso ou idolátrico da arte, mas sim a sua auto-emancipação. Um arte que se afirma autónoma e cujo valor só poderá ser discutido a nível estético não pode aceitar o lugar de mera ancilla theologiae, para ser posta ao serviço de um outro fim que não o da sua finalidade interna (sem fim). Mesmo que continuando a abordar conteúdos da tradição cristã, a arte passa a ser vista – ou escutada – apenas como arte, na sua total «distinção estética». Uma possível «função» religiosa passa a segundo plano ou, pelo menos, é separada do aspecto artístico, enquanto tal. Em semelhante contexto, uma aproximação entre arte e teologia só parece possível através da anulação da respectiva autonomia, o que implicaria ignorar todo um processo histórico e cair

irremediavelmente em fatais anacronismos1. Ou será possível, para além de domínio ou capitulação, uma terceira via? No presente, as vias de aproximação da teologia em relação à arte também não se encontram propriamente desimpedidas. O divórcio entre Igreja e cultura moderna, a que assistiu o final século XIX e o início do XX, também deixou fortes marcas, apesar de todas as tentativas de o ultrapassar. Ora, na cultura moderna ocupa um lugar de destaque a arte, nas suas mais variadas formas. E a Igreja seguiu, na maioria dos casos, dois caminhos que conduzem, inevitavelmente, a um mesmo resultado: ao encerramento sobre si mesma. Por um lado, em nome de princípios artísticos ou teóricos do passado, fechou-se à revolução – ou melhor, revoluções – artística(s) do nosso tempo; por outro, em nome de uma pastoral mais propagandística que anunciante, por isso quase sempre fácil e ilusória, aliou-se, muitas vezes, às manifestações mais pobres da pseudo-arte contemporânea, vindo a tornar-se, por vezes, num oásis «cor-de-rosa», em que abundavam (e abundam...) manifestações «artísticas» de pobreza singular, motivo de hilariedade – ou pesar – para o mundo verdadeiramente artístico contemporâneo. Felizmente, aqui e acolá, vão aumentando as vontades de ultrapassar esses estádios primitivos, que transformam a Igreja num autêntico «ghetto» ou reduto, que nada tem a ver com o nosso mundo – ou, pelo menos, com o que nele há de mais profundo. Também aqui, ter-se-á que ultrapassar a alternativa entre refúgio comodista e dissolução da identidade, rumo a um equilíbrio dinâmico. Talvez por todas as razões apresentadas o título destas breves considerações soará, a alguns ouvidos teológicos, altamente estranho ou mesmo suspeito. O que só prova a urgência de uma abordagem teológico-fundamental de um tema que está longe de ser pacífico ou de estar resolvido. Ainda mais raro parece ser, contudo, o subtítulo. Se o próprio Rahner escreve que não pretende possuir a competência de um filósofo do estético ou de um historiador da arte, a ponto de afirmar: “Nada percebo de tudo aquilo que aí é

1  Sobre  a  questão  iconoclasta,  pode  ver-­‐se,  entre  outros,  o  número  monográfico  da  

revista  «Kunst  und  Kirche»  1/1993;  Cf.,  ainda:  J.  DUQUE,  Die  Kunst  als  Ort  immanenter   Transzendenz,  Frankfurt  a.  M.  1997,  esp.  231-­‐243.  Sobre  a  passagem  da  era  da  “imagem  cultual”  à   era  da  arte,  ver  o  brilhante  estudo  histórico  de  H.  BELTING,  Bild  und  Kult.  Eine  Geschichte  des  Bildes   vor  dem  Zeitalter  der  Kunst,  München  1990;  Cf.,  ainda:  H.  SCHWEBEL,  Hat  die  Gegenwartskunst  im   Kirchenraum  eine  Chance?  Christliche  Bildefunktionen  und  autonome  Kunst,  in:  «Kunst  und   Kirche»  4  (1994)  212-­‐217;  para  uma  crítica  da  «distinção  estética»,  cf.:  H.-­‐G.  GADAMER,  Wahrheit   und  Methode,  Gesammelte  Werke  1,  Tübingen  1986,  esp.  94ss  (ver,  acima,  o  respectivo  estudo).  

abordado”2, então poder-se-á, pelo menos, olhar com cepticismo o facto de alguém se atrever a abordar semelhante tema em tal teólogo – conhecido pelo poder argumentador e especulativo da sua mente e não propriamente pela «beleza» literária das suas obras... Seja como for, Rahner dedicou, de facto, algumas páginas dos seus inúmeros escritos à relação entre arte e teologia – páginas, cujo significado não é pequeno3. Trata-se, no fundo, de quatro textos publicados nos Escritos de Teologia4. Dado que é relativamente grande a distância cronológica – cerca de 20 anos – entre os dois primeiros e os dois últimos, podemos constatar um certo processo transformativo do pensamento rahneriano, relativamente a este tema, embora permaneçam idênticas as fundamentais referências filosófico-teológicas. Tais referências não poderão, como é óbvio, ser satisfatoriamente abordadas e expostas nos limites destas breves considerações. Nem sequer é isso que se pretende. Quando muito, serão algumas breves observações laterais a fazer algumas referências ao complexo horizonte dos principais traços filosófico-teológicos de um dos maiores teólogos do século XX. As linhas que se seguem concentram-se, portanto, pura e simplesmente numa descrição da relação entre arte e teologia, tal como Rahner, de modo teológicofundamental, a pensa. Como conclusão, serão adiantadas algumas observações críticas que pressupõem, de modo mais implícito que explícito, um confronto com algumas

2  K.  RAHNER,  Zur  Theologie  der  religiösen  Bedeutung  des  Bildes,  in:  «Schriften  zur  

Theologie»  (=ST)  XVI,  Einsiedeln  1984,  348.   3  A  importância  destes  textos  de  Rahner  para  a  globalidade  da  sua  teologia  não  se  pauta,   contudo,  pela  constituição  de  uma  «estética  teológica»  (no  sentido  estrito  de  uma  teologia  em   categorias  estéticas,  como  no  caso  famoso  de  Hans  Urs  von  Balthasar),  mas  sim  pelo  lugar  fulcral   destas  reflexões  –  portanto,  do  próprio  fenómeno  artístico  (enquanto  pressuposto  antropológico-­‐ ontológico-­‐hermenêutico  do  cristianismo)  –  na  elaboração  da  sua  teologia.  Trata-­‐se,  pois,  mais  do   relacionamento  entre  arte  e  teologia  do  que  de  uma  concepção  estética  da  teologia  ou  teológica   da  estética.  Não  é  por  acaso  que,  no  projecto  de  estética  teológica  de  von  Balthasar,  o  fenómeno   concreto  da  arte  desempenha,  paradoxalmente,  um  papel  bastante  mais  secundário  que  na   própria  teologia  de  Rahner,  que  nunca  pretendeu  elaborar  uma  estética  teológica.     4  K.  RAHNER,  Priester  und  Dichter,  in:  «Schriften  zur  Theologie»  (=ST)  III,  Einsiedeln  1956,   349-­‐375  (orig.  de  1955,  em  homenagem  ao  poeta  espanhol  Jorge  Blajot  S.J.);  ID.,  Das  Wort  der   Dichtung  und  der  Christ,  in:  ST  IV,  Einsiedeln  1960,  441-­‐454;  ID.,  Die  Kunst  im  Horizont  von   Theologie  und  Frömigkeit,  in:  ST  XVI,  Einsiedeln  1984,  364-­‐372  (publicado  primeiro  em   «Entschluss»  37[1982]  4-­‐7,  sob  o  sugestivo  título  Nicht  jeder  Künstler  ist  ein  Heiliger.  Zur   Theologie  der  Kunst);  ID.,  Zur  Theologie  der  religiösen  Bedeutung  des  Bildes,  in:  ST  XVI,  348-­‐363   (conferência  proferida  em  Munique,  a  19.11.1983).  Tanto  quanto  é  do  meu  conhecimento,  estes   textos  ainda  não  foram  estudados,  no  seu  conjunto,  no  sentido  de  um  relacionamento  entre  arte  e   teologia,  como  aqui  se  pretende.  A  única  excepção  parece  ser  a  do  teólogo  franciscano  francês:  Y.   TOURENNE,  Amorce  d’une  esthétique  théologique  chez  Karl  Rahner?,  in:  «Recherches  de  Sciences   Religieuses»  85  (1997)  383-­‐418.  

teorias da arte actuais. Todas estas considerações mais não pretendem do que ser um pequeno contributo para um estudo mais alargado – ainda por fazer – do assunto em causa5

1. Força primordial da palavra poética Mesmo que a principal intenção dos dois textos a ser analisados em primeiro lugar seja de ordem claramente prático-espiritual, de modo algum será forçado deles extrair importantes indicações para uma reflexão aprofundada sobre a palavra poética. Tal possibilidade será de adivinhar, logo que Rahner começa o texto Sacerdote e poeta. Nele, podemos ler um primeiro desabafo, quase programático: “Pena que não haja uma teologia da palavra!” 6 E prossegue, com considerações filosóficas extraordinariamente ricas sobre a palavra poética, enquanto tal, precisamente como propedêutica a uma possível teologia da palavra7. Nessas considerações, entra em jogo um dos pensamentos fundamentais de toda a obra rahneriana: que a palavra é símbolo real do pensamento8. “A palavra é a

5  Nos  últimos  tempos,  o  mundo  teológico  tem  visto  surgir  uma  série  de  importantes  

publicações,  que  pretendem  colmatar  esta  lacuna  histórica.  De  entre  muitas  outras,  sejam  apenas   referidas:  CH.  DOHMEN  /  TH.  STERNBERGER  (Dir.),  ...kein  Bildnis  machen.  Kunst  und  Theologie  im   Gespräch,  Würzburg  1987;  M.  ZEINDLER,  Gott  und  das  Schöne.  Studien  zur  Theologie  der  Schönheit,   Göttingen  1993;  W.  LESCH  (Dir.),  Theologie  und  ästhetische  Erfahrung.  Beiträge  zur  Begegnung  von   Religion  und  Kunst,  Darmstadt  1994;  A.  STOCK,  Keine  Kunst.  Aspekte  der  Bildtheologie,  Paderborn   1996;  J.-­‐P.  JOSSUA,  La  beauté  et  la  bonté,  Paris  1987;  D.  PAYOT  (Dir.),  Mort  de  Dieu  –  fin  de  l’art,  Paris   1991;  J.-­‐J.  NILLÈS  (Dir.),  L’árt  moderne  et  la  question  du  sacré,  Paris  1993;  J.  SOLDINI,  Saggio  sulla   discesa  della  bellezza.  Linee  per  un’estetica,  Milano  1987;  P.  SEQUERI,  Estetica  e  Teologia,  Milano   1993;  ID.,  L’estro  di  Dio.  Saggi  di  estetica.  Milano:  Glossa,  2000;  P.  BERNARDI,  L’icona.  Estetica  e   teologia,  Roma:  Cita  Nuova,  1998;  J.  DUQUE,  Die  Kunst  als  Ort  immanenter  Transzendenz,  Frankfurt   a.  M.  1997.   6  ST  III,  349.  Poucas  décadas  depois,  já  não  poderia  dizer  o  mesmo,  sobretudo  após  os   alargados  estudos  de  G.  Ebeling,  E.  Fuchs,  E.  Jüngel,  P.  Knauer,  etc.  sobre  a  Palavra  de  Deus.   7  É  nesse  sentido  que,  muito  acertadamente,  Y.  TOURENNE,  op.  cit.,  385  diz  que  “as   reflexões  de  Rahner  sobre  a  poesia  são  uma  forma  de  teologia  fundamental...”.   8  Como  horizonte  mais  ou  menos  silenciado  de  quase  tudo  o  que  Rahner  afirma  sobre  a   arte,  ter-­‐se-­‐á  que  pressupor  as  sua  teoria  do  símbolo.  Nestes  primeiros  textos,  Rahner  não  expõe   ainda  essa  teoria,  em  toda  a  sua  plenitude  conceptual,  nem  sequer  utiliza  o  termo  «símbolo  real».   Contudo,  esboça-­‐se  desde  já  aquilo  que  mais  tarde  se  tornará  explícito.  Algumas  pistas  para  tal   desenvolvimento  encontram-­‐se,  já,  no  conceito  de  «beleza»  (ST  III,  357).  Mas  só  em  ST  IV,  275-­‐ 311  (Zur  Theologie  des  Symbols)  é  que  Rahner  irá  desenvolver  em  todas  as  suas  dimensões  essa   teoria.  Por  outro  lado,  nesse  processo  de  desenvolvimento,  procedeu  a  uma  certa   «ontologização»  do  símbolo,  acabando  por  o  desligar  da  dimensão  da  palavra,  em  que  se  situava   ainda  nos  primeiros  textos,  que  ora  nos  ocupam,  e  empobrecendo,  desse  modo,  a  sua  própria   concepção  (sobre  este  empobrecimento,  cf.:  R.  BROSSE,  Jésus,  l’histoire  de  Dieu.  Historicité  et   devenir:  deux  notions  clés  de  la  théologie  de  Karl  Rahner,  Fribourg  1996,  esp.85-­‐90.  Brosse  retoma   o  jovem  Rahner  e  a  sua  referência  à  palavra  para,  inspirado  em  Ricoeur,  propor  uma  interessante   –  e  importante  –  continuação  da  sua  teologia,  pelos  caminhos  da  hermenêutica,  da  temporalidade   e  da  linguagem.  Desse  modo  será  possível  ultrapassar  a  dicotomia  entre  modelo  transcendental  e   modelo  hermenêutico  de  teologia,  rumo  a  um  modelo  tensional,  precisamente  entre  referência  

corporeidade, na qual tudo o que agora experimentamos e pensamos primordialmente existe, na medida em que incarna nessa sua palavra-corpo” 9 . A dinâmica incarnacional que caracteriza a palavra poética marca a diferença em relação ao puro sinal ou signo, à pura “expressão semiótica e exterior de um pensamento”10. É a mesma teoria do símbolo que determina, então, a relação entre a palavra e a própria coisa (Sache) ou a realidade. Não se trata, aqui, de uma nomeação arbitrária da realidade, separada da mesma ou substituível. A palavra “transporta a própria realidade, torna-a «presente», actualiza e apresenta”11. A realidade, por seu turno, só atinge a sua própria perfeição quando é colocada ou trazida à luz. E isso acontece na palavra, ou seja, na medida em que essa mesma realidade é conhecida e pronunciada. Assim, “as coisas são transportadas, da sua escuridão, para a luz do ser humano”12. Resumindo com a bela e evocativa expressão do próprio Rahner: a palavra é “o sacramento primordial da realidade”13. Mas nem toda e qualquer palavra poderá ser considerada, automaticamente, sacramento primordial. É preciso distinguir entre palavras e palavras. Uma distinção importante e fundamental evita a confusão entre “palavras artificiais, técnicas ou utilitárias”14 e palavras primordiais, originárias ou germinais (Urworte). Só as últimas

transcendental  e  referência  hermenêutica  de  toda  a  teologia;  Cf.,  ainda:  D.  SIMON,  Rahner  and   Ricoeur  on  Religious  Experience  and  Language,  in:  «Église  et  Théologie»  28  [1997]  77-­‐99).     9  ST  III,  350.   10  Ibidem.     11  Ibidem,  354.   12  Ibidem,  356.  Poder-­‐se-­‐iam  comparar  estas  expressões  de  Rahner  com  o  conceito  de   verdade  em  M.  Heidegger  (ver,  acima,  o  respectivo  capítulo)  –  até  porque  é  evidente  a   proximidade  da  terminologia  (Licht  [luz]  –  Lichtung  [clareira]).  Contudo,  não  será  de  ignorar  que   Rahner  baseia  a  sua  posição  numa  explícita  antropologia,  enquanto  que  a  filosofia  heideggeriana   pretende  ser  uma  ontologia  fundamental:  de  um  lado,  está  a  luz  do  ser  humano;  do  outro,  a   clareira  do  Ser.  Apesar  desta  nítida  diferença,  não  será  de  todo  descabido  pensar  que  Rahner,   neste  preciso  aspecto,  tenha  sido  influenciado  pelo  “primeiro”  Heidegger  (sobretudo  de  Sein  und   Zeit).   13  ST  III,  358.  Neste  contexto,  não  se  pode  deixar  de  fazer  uma  primeira  observação   crítica.  Segundo  Rahner,  a  força  real-­‐simbólica  da  palavra  constitui-­‐se  como  função  do  sujeito   cognoscente.  O  desvelamento  que  a  realidade  experimenta  através  da  palavra  é,  no  fundo,  um   acto  do  dizer  cognitivo.  Embora  a  inter-­‐personalidade,  a  liberdade  e  o  «amor»  desempenhem   também  um  importante  papel,  mantém-­‐se  a  justificada  impressão  de  que,  no  fim  de  contas,  para   Rahner  apenas  o  sujeito  do  conhecimento  –  o  espírito  que,  na  palavra  cognoscente,  regressa  a  si   próprio  –  é  que  se  encontra  em  jogo.  É  impossível  iludir  a  forte  carga  hegeliana  do  pensamento   de  K.  Rahner,  relativamente  a  este  assunto  (noutros  aspectos,  é  anti-­‐hegeliano).  Para  um   aprofundamento  da  crítica,  neste  mesmo  sentido,  ver:  J.  SPLETT,  Die  Bedingungen  der  Möglichkeit.   Zum  transzendentalphilosophischen  Ansatz  Karl  Rahners,  in:  B.  J.  HILBERATH  (Ed.),  Erfahrung  des   Absoluten  –  absolute  Erfahrung?,  Düsseldorf  1990,  68-­‐87;  P.  EICHER,  Die  anthropologische  Wende.   Karl  Rahners  philosophischer  Weg  vom  Wesen  des  Menschen  zur  personalen  Existenz,  Fribourg   1970,  eps.  196;  W.  KASPER,  Glaube  und  Geschichte,  Mainz  1970,  esp.  60ss.       14  ST  III,  351.  

possuem a capacidade de apresentar verdadeiramente a realidade, de ser seu sacramento primordial. Tais palavras primordiais são oferecidas ao ser humano, não é ele que as produz, segundo a sua própria vontade. Por isso, não são definíveis. O que não significa que sejam de origem mítica, qual presente extra-terrestre dos deuses. Pelo contrário: todas elas possuem o seu próprio destino e a sua própria história. Mas distinguem-se das palavras racionais de um pensamento claro e distinto, na medida em que “evocam o mistério”15. O mistério não apenas como enigma do desconhecido, mas sobretudo como fundamento que nos abarca e abarca a nossa própria realidade. “Nesta palavra deverá irromper o que é incompreensível, o que não tem nome, o que possui de forma silenciosamente impossível, o incaptável, o abismo, no qual temos fundamento, a escuridão da hiper-luminosidade, que envolve toda a claridade do dia a dia, numa palavra: o permanente mistério, a que chamamos Deus, o início que perdura, mesmo quando chegamos ao fim”16. As reflexões filosóficas atingem, assim, um contexto propriamente teológico ou, pelo menos, filosófico-religioso. De facto, as palavras primordiais “são sempre como que carregadas de um soar leve do infinito” 17 . A palavra que reúne e concentra/congrega, através da qual o mistério silencioso irrompe no mundo, que atinge o coração no seu mais íntimo recanto, que, no seio da sua clara finitude, é a corporeidade do mistério infinito, é a palavra poética18. Portanto, o poeta é alguém “que consegue dizer palavras primordiais de forma poética”19. E, na medida em que o faz, atinge o “regressar-a-si-próprio”, o “estarconsigo-mesmo” – “ele diz-se, em verdade, a si mesmo”20. É isso que o distingue do sacerdote (e do teólogo?), o qual não se diz a si próprio, mas sim a palavra de Deus, que lhe é dada. Mas a Graça de Deus encontra-se no mundo, de modo que a palavra de Deus também é palavra humana. Sendo assim, também o sacerdote e o teólogo podem dizer 15  Ibidem,  353.   16  ST  IV,  442.   17  ST  III,  353.  

18  Cf.:  ST  IV,  448.   19  ST  III,  356.  Quando  Rahner  diz:  “Todo  o  ser  humano  pronuncia  palavras  primordiais...”,  

baseia  a  diferença  do  poeta  apenas  na  «forma»  (poética)  das  suas  palavras.  Mas  quando  afirma:   “Onde...  a  palavra  primordial  é  verdadeiramente  dita,  onde  a  coisa  (Sache)  surge  na  palavra,  como   no  primeiro  dia:  aí  está  o  poeta”,  então  desvanecem-­‐se  as  fronteiras  entre  o  poeta,  o  filósofo  e  o   teólogo.  Não  pronunciam,  todos  eles,  palavras  primordiais?   20  ST  III,  364.  

a palavra de Deus, enquanto se dizem a si mesmos – aliás, terão sempre que o fazer. Por outro lado, a própria auto-dicção do poeta é, sempre, uma palavra primordial da saudade (Sehnsucht) de infinito, ou seja, de uma questão que é movida pela transcendência. Como tal, o poeta nunca se diz, apenas, a si próprio. E a essa questão responde a palavra de Deus, com palavras primordiais do ser humano que, transformadas pelo Espírito, se tornaram palavras de Deus – sem deixarem de ser profundamente humanas. Tanto a questão como a resposta podem ser, portanto, palavras poéticas – em sentido vasto, terão sempre que o ser. Daí a intrínseca – não meramente formal – ligação entre poesia e teologia, quer a primeira constitua uma espécie de propedêutica para a segunda (como articulação de uma especial capacidade de escuta, mesmo de escutar o silêncio, para além da palavra), quer a segunda se articule, ela mesma, em palavras poéticas21.

2. Para além da palavra No escrito A palavra da poesia e o cristão, podemos ler: “Antes de começarmos, deverá dizer-se que não falamos sobre a arte em geral, mas só sobre a poesia da palavra, porque... o cristianismo, enquanto religião da palavra anunciada, da fé que escuta e de uma Sagrada Escritura, sem sombra de dúvida possui uma especial relação com a palavra poética”22. Neste aspecto particular, Rahner encontra-se em acordo com não poucos filósofos, que pretendem salientar o parentesco entre a filosofia e a poesia23. Aqui, é salientada tal proximidade, em contexto teológico. Mas as suas condições de possibilidade terão que ser pensadas a nível primeiramente filosófico, como o próprio Rahner exemplarmente faz. De qualquer modo, mais de vinte anos depois, Rahner parece ainda defender a posição de que a arte da palavra está, “por sua própria natureza, muito aparentada com a teologia, que também se diz através da palavra”24. Mas o texto em que se encontra 21  Y.  TOURENNE,  op.  cit.,  387s,  aplica  a  mesma  circularidade  à  relação  entre  poesia  e  a   graça  da  incarnação:  “É  certo  que  foi  o  Evangelho  do  Verbo  incarnado  que  revelou  o  valor  infinito   da  palavra  humana,  mas,  por  outro  lado,  a  Incarnação  revela  a  aptidão  da  palavra  humana  para   acolher  a  palavra  do  Deus  infinito”  (388).   22  ST  IV,  441-­‐442.   23  Um  dos  casos  mais  conhecidos  (para  não  falar  em  Hegel)  e  originais  é,  sem  dúvida  e   como  acima  foi  visto,  a  obra  do  «segundo»  Heidegger,  para  quem  as  poesias  de  Hölderlin,  Stefan   Georg  e  Rilke  constituem  uma  importante  fonte  de  inspiração  ou  um  constante  parceiro  de   diálogo.  Actualmente,  para  além  da  posição  moderada  de  H.-­‐G.  GADAMER  (sobretudo  GW,  vol.s  8  e   9,  Tübingen  1993-­‐1994),  poder-­‐se-­‐ia  pensar  em  muitos  filósofos  da  dita  pós-­‐modernidade  (com  J.   Derrida  à  frente),  que  pretendem,  mesmo,  anular  as  diferenças  entre  os  vários  tipos  de  discurso   ou  de  texto.   24  ST  XVI,  364.  

essa frase está, no seu conjunto, dedicado à tentativa de superar, precisamente, tal afirmação, afim de evidenciar a relação da teologia com as outras artes. Literalmente: “...surge por isso a questão se, através de uma redução da teologia a uma teologia da palavra, não se reduz também, de forma injusta, a dignidade, especificidade e o sertomadas-ao-serviço-por-Deus das outras artes”25. No fim de contas, todas as artes são auto-dicção da pessoa humana, “nas quais o ser humano, de algum modo, se torna a si mesmo presente”26. E uma verdadeira teologia é, segundo Rahner, também verdadeira antropologia. Esta constitui, mesmo, o ponto de partida obrigatório para qualquer trabalho teológico. A partir desse horizonte antropológico, desenvolve Rahner toda a sua exposição sobre a imagem, que constitui objecto da presente análise. Nela, começa por defender uma pluralidade de experiências sensíveis, “as quais não podem ser reduzidas umas às outras”27. O cristianismo só atingirá toda a sua dimensão, quando for recebido “através de todas as portas dos seus [do ser humano] sentidos, e não só do ouvido, pela palavra”28. A imagem, por exemplo, possui um significado religioso autónomo, que nenhuma palavra poderá substituir. “O facto de a teologia não falar – ou raramente e quase só em observações laterais – desse específico e insubstituível significado não constitui qualquer argumento contra tal afirmação” 29 . Pelo contrário, será antes necessário pensar numa conversão da mentalidade teológica corrente, para melhor fazer justiça à realidade humana – que também é a artística, na sua globalidade e diferenciação. Indo mais longe, Rahner defende uma estreita complementaridade entre palavra e imagem (outras artes poderiam ser acrescentadas, sem alterar o pensamento básico), o que falta – ou é apenas esboçado – nos seus primeiros escritos. Mas, ao tentar descrever a forma concreta de tal complementaridade, Rahner recorre 25  Ibidem,  365.  Note-­‐se  que,  entretanto,  tinha-­‐se  desenvolvido  –  de  forma  radical,   absoluta,  exclusivista  e,  por  isso,  redutora  –  a  famosa  «Teologia  da  Palavra»,  em  contexto   protestante,  o  que  terá  levado  Rahner  a  repensar  o  papel  absoluto  da  mesma,  relativizando-­‐o.   26  Ibidem,  364.   27  Ibidem,  352.   28  Ibidem,  354.  Quando,  com  Paulo,  se  diz  que  “a  fé  vem  pelo  ouvir”  (Rm  10,  17),  ou  se   confere  ao  «ouvir»  um  sentido  demasiado  lato,  abrangendo  toda  a  receptividade  humana,  ou  se   reduz  o  fenómeno  da  fé  a  apenas  uma  das  suas  múltiplas  dimensões.  O  próprio  Rahner  não  se   poupará  a  esta  crítica,  embora  algumas  das  suas  afirmações  possam  conduzir  a  pensar  o   contrário.  No  fundo,  a  maioria  dos  seus  escritos  não  anda  muito  longe  de  tal  redução  –  como,  por   exemplo,  uma  das  suas  primeiras  e  principais  obras,  mesmo  já  no  título:  «Ouvinte  da  Palavra»   (Hörer  des  Wortes).     29  ST  XVI,  357.  

novamente a uma marcada preponderância ou domínio da palavra: “E portanto, uma imagem necessita naturalmente de uma interpretação na palavra, a fim de adquirir valor cristão para uma comunidade”30. Em resumo, poder-se-ia dizer que Rahner reconhece, nos seus últimos escritos, o significado da arte em geral, isto é, de todas as artes, para além do âmbito restrito da poesia. Contudo, a sua preferência pela arte da palavra faz com que à poesia seja concedido um lugar privilegiado, em inevitável detrimento das outras artes, tal como vinha sendo hábito de uma teologia marcada, como quase todo o pensamento ocidental, pela ditadura do «logocentrismo». Apesar de chamar a atenção para um problema a superar, Rahner não chega, na prática, a superá-lo verdadeiramente. No entanto, não é de minimizar, com isso, a importância de uma clara enunciação do problema, para possíveis propostas de superação do mesmo. Ainda no que se refere à teologia da imagem, seria de acrescentar que Rahner permanece no horizonte teórico da sua filosofia e teologia do símbolo real, desta vez abordada mais claramente pelo lado da corporeidade. De facto, a imagem adquire o seu significado ontológico a partir a necessidade, que habita o espírito (e o conceito), de em si mesmo ser constituído por um momento sensível (a isso se refere a temática da conversio ad fantasma). Na medida em que a imagem – ou a obra de arte, em geral – constitui esse momento, é parte integrante do próprio espírito. É o espírito que, para poder tornar-se presente a si mesmo, se exterioriza no outro de si próprio (na matéria)31.

3. A arte como teologia Segundo o pensamento de Rahner, é o comum ponto de partida antropológico que possibilita uma intrínseca ligação entre arte e teologia. “Na medida em que o ser

30  Ibidem,  362.  Penso  que  a  realidade  das  artes,  assim  como  a  própria  história  das   imagens  contradiz,  claramente,  essa  afirmação.   31  Deste  modo,  é  valorizado  o  mundo  sensível,  como  um  momento  da  própria  realidade   total,  e  não  como  queda  do  espírito  (segundo  a  tradição  neo-­‐platónica).  No  entanto,  a  teoria   rahneriana  do  símbolo  permanece,  ainda,  demasiado  sob  influência  da  fenomenologia  do  espírito   hegeliana,  para  poder  libertar-­‐se  do  movimento  imanente  ao  próprio  espírito.  Como  tal,  o   sensível  é  considerado  a  fronteira  mais  afastada,  inferior  do  espírito  que  regressa  a  si  mesmo.  No   fundo,  a  teoria  do  símbolo  real  não  consegue  resolver  aquilo  que  pretendia,  ou  seja,  pensar  o   equilíbrio  entre  essência  e  aparição,  unidade  e  multiplicidade,  espírito  e  matéria,  transcendência   e  história,  etc.  (R.  BROSSE,  op.  cit.,  esp.  85ss,  é  da  mesma  opinião,  sobretudo  no  que  se  refere  à   integração  da  história,  no  seu  carácter  de  evento  temporal).  Rahner  permanece  na  tradição   ocidental  de  uma  «filosofia  do  mesmo»,  tão  fortemente  criticada,  nos  nossos  dias,  por  E.  Levinas.   Além  do  mais,  Rahner  parece  não  ter  abandonado  a  habitual  atitude  racional  (ou  racionalista?),   frente  às  imagens  e  a  todo  o  tipo  de  arte  (Cf.:  ST  XVI,  355-­‐356).  

humano... se diz em todas as artes e também na teologia, as diferentes artes e a teologia encontram-se em parentesco e mútua relação”32. Como tal, ter-se-á que partir da realidade humana da arte, para conseguir compreender o seu verdadeiro significado para a teologia. É o que pretende Rahner, quando, na sua filosofia da religião e teologia fundamental, relaciona intimamente a auto-dicção (aberta) do ser humano e a auto-doação (comunicante) de Deus, na graça33. A respeito do poeta, falava-se de uma aspiração, desejo ou saudade, que se exprimiam numa questão. Dessa maneira se abre uma porta para o infinito, pela qual ele poderá entrar. “O poeta é movido pela transcendência do espírito. Ele já está, em segredo, sem disso ter consciência, submergido pela nostalgia que a graça do Espírito Santo colocou no coração do ser humano”34. A palavra que se auto-anula, representa a sua própria superação. Trata-se, pois, de um “gesto excedente, que aponta para o infinito, para além de tudo o representável ou representado”35. O que se diz da poesia é aplicável a todas as artes. Aquilo que nela acontece realiza-se, de maneira única e insubstituível, nas outras artes. “A arte, a verdadeira, é sempre mais do que aquilo que é. Se fosse praticada pelo simples amor ao valor estético, cessaria de ser arte. Seria destituída ao estatuto de um narcótico, destinado a acalmar a angústia da existência. Mas esse «mais», que faz parte dela e da qual ela vive, não é a arte que o pode dar-se a si mesma”36. Pode falar-se, mesmo, de uma orientação de todo o ser humano – e não apenas daquilo que é exprimível linguisticamente – para a transcendência. Quando Rahner «define» o ser humano como um “ser da transcendência”, quer com isso exprimir a experiência religiosa fundamental de toda a pessoa humana, na medida em que, no conhecimento de si próprio, dos outros e do mundo – assim como no seu agir livre – se torna a si mesma presente e, nesse “estar-consigo” ( Bei-sich-Sein), aponta para o seu fundamento.

32  ST  XVI,  365.   33  Desta  forma  é  evocado  o  pensamento  teológico  rahneriano  na  sua  mais  profunda   dimensão  –  o  que,  neste  contexto,  não  pode,  como  é  óbvio,  passar  de  uma  simples  evocação:  só   será  referido  aquilo  que  se  revela  de  maior  importância  para  a  temática  aqui  tratada.  O  horizonte   pressuposto  é  constituído  pela  ideia  fundamental  de  que  o  ser  humano  é,  ele  próprio,   acontecimento  da  auto-­‐comunicação,  enquanto  auto-­‐manifestação  e  auto-­‐doação  do  próprio   Deus  (a  graça  como  “existencial  sobrenatural”).  Cf.:  K.  RAHNER,  Grandkurs  des  Glaubens,  Freiburg  i.   Br.  /  Basel  /  Wien,  1984  (orig.  1976),  sobretudo  42ss.  88.92.  132-­‐138  (ver,  adiante,  o  respectivo   estudo).   34  ST  III,  374.   35  Ibidem,  358.   36  Ibidem,  374.  

Ora, o ser humano também é um ser da experiência sensível. Mesmo até o conhecimento religioso “é necessariamente sustentado pela percepção, a qual se baseia na experiência sensível e, portanto, também histórica” 37 . Desse modo é abordado o difícil problema da coexistência, no ser humano, de transcendência e historicidade38. A analogia constitui, para Rahner, o caminho de mediação entres esses dois «princípios», aparentemente opostos. “A analogia possibilita a compreensão de uma realidade como revelação misteriosa de outra realidade mais alta, mais abrangente”39. Sendo assim, desenvolve-se uma relação de condicionamento e possibilitação mútuos, entre transcendência e história. Neste preciso ponto, o recurso à arte pode tornar-se sumamente rico. Ela é, de facto, enquanto realidade histórica e intimamente aliada ao sensível e concreto, mas também como expressão privilegiada da questão transcendente de todo o ser humano, um meio indicado para representar e realizar a irrepresentável transcendentalidade do ser humano, ligado à história. Nela se manifestam os momentos fundamentais que determinam as condições de possibilidade de um acolhimento da auto-revelação de Deus: transcendência e história, eternidade e tempo, unidade e diversidade. E isso sem que uns sejam absorvidos e superados – portanto, anulados – pelos outros. Sendo assim, a arte não poderá ser apenas considerada como um fenómeno com certo parentesco com a teologia, mas sim como um momento verdadeiramente interno à própria teologia – o que raramente acontece, sobretudo na prática do trabalho teológico. As imagens não poderão ser tomadas apenas como littera laicorum ou biblia pauperum, mas sim no seu significado teológico específico e insubstituível 40 . Mesmo uma «teologia poética» seria possível ou até desejável: “Também se poderia dizer que falta uma teologia poética”41. E também se poderia perguntar, com o próprio Rahner: “Será que a teologia melhorou com o facto de os teólogos se terem tornado prosaicos?”42.

37  ST  XVI,  349.   38  Problema  que  R.  BROSSE,  op.  cit.,  considera  a  chave  de  leitura  de  toda  a  teologia  de  

Rahner.   39  ST  XVI,  368.   40  Cf.:  Ibidem,  355-­‐356.   41  Ibidem,  366.   42  ST  III,  374.  

4. Questões Para além das observações críticas que, de modo mais ou menos lateral, foram feitas ao longo destas linhas, resta esboçar algumas questões de fundo, a colocar à compreensão rahneriana da arte e à respectiva relação com a teologia. Concentrar-meei em dois aspectos que julgo fundamentais: 1. a interpretação do fenómeno artístico – na sua essência – como (mero) pressuposto da teologia e 2. o carácter marcadamente «subjectivista» do pensamento rahneriano sobre a arte. Em relação à crítica que se segue, deverá adiantar-se que não se trata de uma crítica totalmente «externa», ou seja, baseada em pressupostos totalmente alheios ao pensamento do próprio Rahner; pelo contrário, pretende-se questionar alguns dos seus aspectos, partindo de outros que lhe são manifestamente «internos». Como se verá, é possível encontrar suficientes afirmações do próprio Rahner que vão contra a sua posição tida como fundamental – o que sempre tornou difícil, senão praticamente impossível, criticar a sua teologia «em bloco». 1. “O poético é, na sua essência última, pressuposto para o cristianismo”43. Nesta frase se resume, como vimos já, aquilo que o texto a que ela pertence, na sua totalidade, pretende dizer. Nela se resume, também, a posição fundamental – não única – de Rahner, frente ao possível relacionamento entre arte e teologia. Para além da intenção espiritual-pedagógica do referido texto, nele se afirma uma das fundamentais ideias do autor, a qual também domina outros textos anteriores, relativos ao mesmo tema. Desse modo, arte e teologia contactam-se de maneira bastante extrínseca. Assim como o sacerdote recorre ao poeta, a fim de melhor poder dizer a Palavra de Deus44, também o teólogo (e o cristão, em geral) terá que ser capaz de captar a poesia, a fim de a utilizar teologicamente. Em tal utilização, por parte da teologia, a autonomia da arte é colocada em perigo, se não mesmo anulada, sendo a sua utilidade reduzida a uma preparação pedagógica para o acolhimento – ou a formulação – da palavra teológica. Tal subjugação não pode, no entanto, ser aceite pela arte, que se pretende autónoma (pelo menos, desde a renascença, como vimos). Outro caminho de relacionamento terá que ser percorrido, senão mesmo inaugurado. A partir de algumas observações

tardias

43  ST  IV,  449.  

44  Cf.:  ST  III,  367s.  

do

próprio

Rahner,

poder-se-ia

tentar

descrever

um

relacionamento intrínseco entre arte e teologia, baseado nos pontos de contacto entre as respectivas estruturas fundamentais, sem destruir a autonomia de cada uma delas. O principal ponto de encontro estrutural pode descobrir-se, precisamente, na orientação transcendente-imanente de ambas. Aqui, no entanto, seria necessário diferenciar algo mais a posição rahneriana. Nos textos acima analisados, permanece a impressão de uma confusão – senão mesmo identidade – entre experiência artística da transcendência e experiência teológica da mesma. Tal identidade não corresponde, contudo, à realidade, que se sentiria, muitas vezes, forçada a ser aquilo que não pretende ser. O papel central do acontecimento crístico e da fé, para uma visão teológica da realidade, não pode ser esquecido, como parece suceder nos referidos textos. Mas tal esquecimento não é, de facto, mais do que aparente. Se tomarmos a teologia de Rahner no seu conjunto – sobretudo a sua última fase, na qual se torna mais evidente a sua intenção teológica fundamental – verificamos que a componente especificamente teológica, centrada no acontecimento histórico da pessoa de Jesus Cristo e na interpretação crente do mesmo e do ser, constitui o horizonte último de todo o seu pensamento. Como tal, também o relacionamento arte – teologia é afectado por essa leitura da realidade. A arte, sem abdicar da sua autonomia, não se afirma como um mundo autárquico, mas é também atingida pela força salvífica de Jesus Cristo. Como tal, pode ser meio implícito da auto-manifestação e auto-doação de Deus, passando a estar intrinsecamente ligada à teologia, sem estar meramente ao seu serviço, sem ser nela absorvida (e, como tal, superada), como no caso típico de Hegel. Só na interacção recíproca poderá ser pensada adequadamente a sua relação mútua. Possíveis consequências práticas dessa forma de relacionamento: uma obra teológica poderá possuir forma artística, sendo simultaneamente obra de arte, assim como uma obra de arte poderá possuir, por princípio, carácter teológico45. Necessária será, contudo, uma concepção multidimensional de teologia, não só no que respeita ao seu conteúdo – que se pauta pelo «pluralismo» de ideias, de pontos de partida e de

45  Na  história  da  teologia  e  da  arte  existem,  de  facto,  muitos  exemplos  de  obras  de  

teologia  que  são,  simultaneamente,  poesia  (como,  por  exemplo,  muitos  hinos),  assim  como  de   muitas  obras  de  arte  explicitamente  teológicas  (como  a  música  religiosa  de  Bach,  assim  como   muita  da  música  de  Olivier  Messiaen,  ou  mesmo  muitas  obras  da  pintura  moderna  e   contemporânea,  etc.).  De  forma  implícita  e  vaga,  qualquer  obra  de  arte  autêntica  possui,  no   fundo,  um  carácter  teológico  (Cf.:  G.  STEINER,  Von  realer  Gegenwart,  München  1990).  

destinatários, de que Rahner é um dos primeiros defensores – mas também quanto à forma – pluralidade de discursos e de formas de articulação das obras teológicas. Salvo raras excepções – como certas tentativas da chamada «teologia narrativa»46 – continua a dominar a teologia de tipo científico, isto é, sistemático-argumentativo. É evidente que uma teologia plural nunca poderia pôr de parte a teologia argumentativa tradicional – indispensável para “dar razões da esperança”, no contexto complexo do pensamento contemporâneo, respeitando o valor do “melhor argumento” (J. Habermas) – mas apenas relativizar o seu absolutismo, abrindo espaço teológico a outras vias de auto-articulação. 2. O segundo aspecto da presente crítica não poderá ser aqui analisado em toda a sua vastidão, uma vez que nele é abordado um dos aspectos mais polémicos de toda a teologia rahneriana – e, no fundo, de toda a filosofia contemporânea, que se define por uma tentativa geral de superação do subjectivismo (ou até mesmo do próprio sujeito). Limitar-me-ei, portanto, a alguns tópicos essenciais. “O poeta diz aquilo que traz consigo. Ele diz-se, em verdade, a si mesmo. Até mesmo essa dicção é, também, um pedaço daquilo que ele próprio é”47. De forma explícita, Rahner pensa a arte (neste caso, a arte da palavra) a partir do artista, à maneira da «estética da produção», que estende as suas raízes ao início da modernidade, sobretudo ao processo de subjectivação da estética – e também do próprio fenómeno artístico, distinto da estética – sob o impulso da terceira crítica kantiana. Segundo tal tendência, toda a arte se baseia, originariamente, na actividade criadora de um génio, no qual encontra a sua verdadeira origem, e o qual se exprime a si mesmo, na arte. Se, em Kant, esse génio ainda assumia a tarefa de manter a ligação a uma natureza que o transcende, é sobretudo a partir de Hegel que a natureza é superada pelo espírito, sendo a arte manifestação sensível da verdade, que é esse espírito na sua forma absoluta, enquanto sujeito, auto-consciência, razão e conceito. A subjectivação do fenómeno artístico atingiu o seu auge com o romantismo, em que o culto do génio se transformou numa espécie de histeria colectiva – ou então, numa forma de religião. A reacção a esse culto caiu, com certa facilidade, no oposto, ou seja, na dita «estética da recepção». Mas, uma vez que a actividade receptiva é vista, ou como uma espécie de congenialidade em relação ao artista produtor, ou

46  Ver:  J.  DUQUE,  Dizer  Deus  na  pós-­‐modernidade,  cap.  VII.   47  ST  III,  364.  

como uma criação original – também ela genial – do receptor, o novo modelo não deixa de confirmar e aprofundar o subjectivismo da concepção estética. Tal abordagem de matriz subjectivista da arte foi, várias vezes, posta em causa, ao longo do século XX. Heidegger, por exemplo, tentou uma abordagem da arte a partir da obra, propondo-se superar, assim, a estética tradicional48. Tal ponto de partida encontrou apoio e eco em muitos trabalhos no campo da ciência da arte, sobretudo na teoria da literatura, mas também na «iconologia» e até na musicologia. Filosoficamente, a posição heideggeriana foi, sobretudo, continuada por Gadamer, que critica explicitamente a posição kantiana – ou melhor, a utilização errónea de tal posição, pela posterior filosofia da arte49. A arte não é, aí, concebida apenas como uma actividade genial do ser humano nem como pura auto-expressão de um sujeito. A obra afirma-se, pelo contrário, na sua fundamental e inabarcável alteridade, em relação ao produtor como ao receptor, transcendendo constantemente todas as tentativas de uma total apropriação. Ora, tal alteridade poderá ser assumida como ponto de partida para compreender a arte como lugar de abertura à transcendência fundante. Ela é um – não o único – lugar privilegiado, no qual irrompe na história o mistério que a transcende, o qual nunca poderá ser compreendido – no sentido de uma apreensão ou apropriação total – mas apenas acolhido no espaço que lhe é aberto. Este mistério que sustenta, abarca e envolve o próprio ser humano e o seu mundo, pode ser chamado «ser» (Heidegger), «história / linguagem» (Gadamer) ou «Deus» (Rahner) – o que, naturalmente, não é o mesmo, evidenciando-se, assim, os pressupostos claramente teológicos de Rahner. Mas a sua diferença não pode significar separação ou incompatibilidade. Na arte, podem encontrar-se o mistério do ser, o da história e da linguagem, no mistério fundante do próprio Deus. Desta forma, Rahner é novamente criticado, a partir de si próprio. Se apenas tivermos em conta o desejo – o eros – e a actividade do espírito humano, permaneceremos no âmbito imanente da antropologia (ela própria reduzida, dessa forma, até na sua dimensão de desejo, como acima se viu). Mas se – como o próprio Rahner – concebermos o ser humano como um ser que é, primordialmente possuído e encontrado pelo Outro, então teremos que pensar de outra forma a arte e a própria 48  Ver,  acima,  o  respectivo  estudo.  

48-­‐86.    

49  Cf.:  H.-­‐G.  GADAMER,  Wahrheit  und  Methode,  Gesammelte  Werke  1,  Tübingen  1986,  esp.  

teologia, bem como a relação entre ambas. “Apesar de ser sujeito livre, o ser humano experimenta-se como possuído, e isso num acto de possuir sobre o qual ele não pode pôr e dispor”50. Para além do conceito, a arte deverá ser, em todas as suas manifestações, compreendida como um fenómeno, através do qual o ser humano experimenta, do modo mais denso, a sua situação de ser possuído pelo mistério, ou seja, encontra-se não tanto como um ser da procura, mas sobretudo como um ser do acolhimento. Ele é encontrado, mais do que alguém que deseja encontrar. Ele é reposta, mais do que questão. Não uma resposta que re-solve, dis-solvendo, a questão; mas res-posta51 que se experimenta perante algo ou alguém que, simultaneamente, a transcende e a interpela. Desse modo, a arte poderá determinar a teologia de forma intrínseca – mas também ser determinada pela teologia: no fim de contas, o seu mistério não reside em si mesma, mas ultrapassa-a constantemente. Tanto a arte como a teologia repousam no mistério fundante do Deus transcendente, do qual brotam e ao qual regressam. A miséria de uma e de outra reside no eventual esquecimento dessa sua origem e desse seu fim. A grandeza de ambas reside na sua dimensão escatológica.

50  K.  RAHNER,  Grundkurs  des  Glaubens,  52.   51  No  sentido  que  a  palavra  alemã  Antwort  (resposta)  parece  evocar:  Ant-­‐  (perante)  e  

Wort  (palavra).  A  ela  está  ligada,  também,  a  palavra  Verantwortung  (responsabilidade).  

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