A arte da cópia » ou « O artista-copista

May 27, 2017 | Autor: Caroline Ting | Categoria: Art History, Art Theory, Visual Arts, Painting Conservation, Fine Arts
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« A arte da cópia » ou « O artista-copista » Caroline Pires Ting 丁小雨 1

Ao percorrer as salas dos museus europeus e estadunidenses, é comum nos depararmos com pessoas instaladas diante de obras originais, realizando cópias dos antigos mestres. Esta prática é antiga e fez parte do curso de aprendizado de grandes artistas. No século XIX, o ensino Neoclássico, cuja sistematização era feita através do sistema conhecido como Academismo, estabelecia uma série de normas práticas e teóricas. Neste sistema, os quadros dos mestres antigos serviam como exemplo de excelência a ser seguido. No século XV, o pintor italiano Cennino Cennini (c. 1370 – c. 1440) já apresentava em seu manuscrito Il Libro dell’Arte, datado de 1437, os procedimentos técnicos dos artistas florentinos de sua época. O capítulo 27 do seu tratado se intitula justamente "Como proceder para copiar e desenhar a partir de tão poucos mestres o quão possível for". Observemos as diretrizes: Tendo inicialmente destinado um tempo a praticar o desenho (...) deves trabalhar e deliciar-te copiando sempre as melhores coisas que encontrares pelas mãos dos grandes mestres. E se estás em um lugar onde existiram muitos grandes mestres, melhor ainda. Mas aconselho-te: lembre-te de escolher sempre o melhor mestre e o de maior fama. A cópia permite ao estudante adquirir o domínio de diferenças gestuais dos mestres e aumentar assim seu repertório de possibilidades, seu vocabulário visual e estilístico. Ainda nos dias de hoje, escolas baseadas no método dos ateliês tradicionais advogam o exercício da cópia (de mestres antigos ou contemporâneos) como parte significativa do amadurecimento da própria personalidade artística. Na França, há um enquadramento legislativo para a atividade do Artista-Copista nos museus. Ela é regulamentada pelo decreto n°1255, de 11 de março de 1957, artigo 41. O trabalho deve ser sujeito a uma autorização prévia da Direção do museu, através do preenchimento de um formulário e da redação de uma 1

Caroline Pires Ting é doutoranda em História e Crítica da Arte pela UERJ. Com bolsa da Fondation des ÉtatsUnis de Paris, obteve, na Sorbonne, mestrado em Filosofia da Arte e Literaturas Comparadas e graduação em História da Arte e Arqueologia. Obteve a maior bolsa de mérito da National Academy of Fine Arts (NY, EUA). Foi artista-residente na Academia Imperial de São Petersburgo (Rússia) - Ilya Repin, além de artista-copista oficial do museu do Louvre e do Petit-Palais (Musée des Beaux-arts de la Ville de Paris).

carta de intenção ao Conservador do Museu ou ao Chefe do Gabinete de Copistas, dependendo da instituição. A autorização de reprodução de uma obra é sujeita às condições seguintes: - por razões de segurança (devido à precisão da cópia), suas dimensões devem ser minimamente 1 ̸ 5 (um quinto) inferiores ou superiores às do quadro original ; - o copista não tem autorização de reproduzir a assinatura do autor da obra original. O cartel da obra realizada pelas mãos do copista, no final, receberá a assinatura do mesmo, acompanhada da menção: « da obra de… » ou « d’après… »; - no momento da entrada da tela virgem no museu, esta deve ser carimbada em sua frente e em seu verso. O conservador apõe o número de autorização, a data de entrada da tela no museu e o número do decreto oficial enquadrando a data de entrada do copista; - o museu provê cavalete, banco e depósito para os mesmos. O restante dos materiais são a encargo do artista-copista. A metodologia O conhecimento das tecnologias da pintura do mestre a ser copiado é fundamental. O suporte: Uma cópia fiel é realizada sobre o mesmo suporte que a obra original : uma tela de linho, um painel de madeira, um papel montado sobre madeira etc. O revestimento: A fim de receber corretamente a pintura, o suporte (tela, madeira ou papel) deve ser devidamente revestido por uma camada à base de cola de pele de coelho (o mais tradicional), ou à base de caseína ou de produtos mais modernos como o gesso. Seguir o mesmo tipo de revestimento utilizado pelo mestre copiado é importante para conferir à cópia o mesmo efeito do quadro original. Certos tipos de telas podem exigir várias camadas de revestimento com polimento após cada camada. As tintas: A maior parte das cópias é realizada a óleo, seguindo as cores do artista. O médium: é o líquido utilizado para « dirigir » a pintura sobre a tela, para conferir à mesma um aspecto liso ou rugoso, fosco ou brilhante, fino ou empastado. Em geral o médium é composto de uma parte de óleo (de linhaça ou de crisântemos) e outra parte de diluente. É importante lembrar em que estágio a tinta está antes de retrabalhá-la. Uma regra importante é o "gordo sobre magro". Isso significa que a primeira aplicação de tinta precisa de mais solvente e menos óleo. Cada camada terá mais óleo e menos solvente.

Enfim, copiar uma obra de arte original é uma tarefa delicada e complexa; é necessário partir da pesquisa dos materiais utilizados pelo artista, acompanhar suas nuances de cores e gestos, estudar a composição de seus quadros. As referências à história da arte são imprescindíveis, não somente para se explorar sua abordagem técnica, mas para se compreender os fundamentos de sua estética, escola ou ateliê. A cópia, enquanto exercício de aprofundamento técnico, interessa como fonte inesgotável de aprendizagem no que se refere à composição e à materialidade (perspectiva, luz, pigmentos…).

Para o historiador da arte, há também um interesse em se realizar cópias. A disciplina « Tecnologias de pintura » faz parte do programa do curso de graduação em História da Arte na Universidade de Paris 1, por exemplo. Isso porque o conhecimento da periodização dos quadros e a leitura iconográfica permitem penetrar parcialmente o universo do pintor, mas a compreensão dos aspectos físicos é também imprescindível. Para o artista-copista profissional, a prática aperfeiçoa, ao mesmo tempo, as mãos e os olhos. O objetivo é obter uma visão do interior da obra estudada, de sua materialidade, ao invés de tratá-la como uma simples imagem. O fato de se trabalhar a uma curta distância da pintura original permite analisar as diferentes camadas de tintas, os tipos de pincéis empregados, de suporte e de revestimento. Trata-se de uma « conversa privilegiada e mais íntima » com o autor da obra.

Terminada a obra, o artista-copista possui autorização de vendê-la. São comuns encomendas feitas por colecionadores particulares, instituições de ensino e museus. Tais encomendas se dão nos dias de hoje assim como, no passado, colecionadores menos ricos recorriam aos artistascopistas que realizassem cópias de obras famosas. Portanto, copistas trabalham hoje da mesma maneira que Michelangelo da Caravaggio (1571 – 1610) pintava, em Roma, cópias destinadas a amadores de arte que não podiam se permitir a aquisição de um original. A Academia Imperial de São Petersburgo – Ilya Repin, na Rússia, possui seu próprio sítio eletrônico ( http://academart.com/commision_copy.htm ) através do qual comissões de cópias de obras são feitas aos graduandos. Aproveitando-se o fato de que os estudantes realizam cópias oficiais no Museu Hermitage e no Museu Estadual de São Petersburgo, a instituição de ensino promove encomendas feitas por particulares e por empresas a seus próprios estudantes, os quais são altamente qualificados. A arte da cópia, no entanto, tem uma importância muito maior do que a simples substituição de um original. O museu de arte da Universidade de Princeton, em New Jersey, Estados Unidos,

tem contribuído para divulgar a maneira como esta prática ocorre em distintas localidades do mundo, inclusive no Extremo-Oriente. Uma mostra em 2001 se intitulava Vendo em dobro: as cópias e o processo da cópia nas artes da China ("Seeing Double: Copies and Copying in the Arts of China2). O objetivo da mostra foi justamente apresentar a arte da cópia como ato fundamental para o desenvolvimento da pintura e da caligrafia (bem como para a escultura e para a cerâmica). Nesta milenar civilização, a cópia significa mais do que um gesto de reprodução mecânica. Ela é parte integrante do processo de fermentação artística: necessária para se forjar uma identidade pessoal artística de todo aprendiz, com base na sabedoria e no extenso vocabulário visual legado pelos mestres do passado.

Caroline Pires Ting e o Retrato da Sra. Isaac Cuthbert, de Thomas Lawrence (Inglaterra, 1769-1830), Museu do Louvre, Paris, França. Fevereiro de 2013.

Referência bibliográfica para citação deste artigo:

TING, Caroline P. A arte da cópia ou O artista-copista. In: XEXEO, M. F. B.; BARACAL, A. B. ; TING, Caroline P. “Três culturas e uma pintura: a morte de Germânico”, Museu Nacional de Belas Artes, p. 21 - 25, 18 maio 2016.

2

https://www.princeton.edu/pr/news/01/q1/0220-artchina.htm, consultado em 7 de maio de 2016.

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