A Arte da Viagem a Terras Indígenas (Monografia de Especialização, CDS/Universidade de Brasília, 2009)

May 20, 2017 | Autor: L. Salvo Guarani ... | Categoria: Hospitality Studies, Viajeros, Turismo em terras indigenas, turismo e sustentabilidade
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UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA CENTRO DE DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL

A Arte da Viagem a Terras Indígenas

Liliana Vignoli de Salvo Souza

Orientador: Carlos Antônio Bezerra Salgado

Monografia de Especialização

Brasília, maio de 2009

UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA CENTRO DE DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL

A Arte da Viagem a Terras Indígenas

Liliana Vignoli de Salvo Souza

Monografia de Pós-graduação modalidade Lato Sensu submetida ao Centro de Desenvolvimento Sustentável da Universidade de Brasília, como parte dos requisitos para obtenção do Grau de Especialista em Desenvolvimento Sustentável, área de concentração em Indigenismo e Desenvolvimento Sustentável.

Aprovado por: __________________________________________ Msc. Carlos Antônio Bezerra Salgado, UnB (Orientador) __________________________________________ Dra. Valéria Medeiros Andrade, UnB (Examinador Interno) __________________________________________ Dr. Othon Henry Leonardos, UnB (Examinador Interno)

Brasília – DF, 14 de maio de 2009.

AGRADECIMENTOS

Agradeço à Vida e a Deus. À minha família, aos meus amigos e aos meus mestres. Ao professor Carlos Salgado, pela boa orientação. À professora Valéria Andrade, por ter me presenteado com um artigo do Hakim Bay. Às pessoas entrevistadas, pela sua disponibilidade. Aos colegas e professores do curso, pela oportunidade de aprender e trocar. Ao Allan Milhomens, por ter facilitado o meu acesso à sala de aula. E finalmente, ao universo por conspirar positivamente.

“Para além das fronteiras que parecem nos dividir, somos todos viajantes de um mesmo e único barco. Estamos embarcados na mesma viagem: a da vida humana na terra. Vivemos todos na mesma casa e, de algum modo, a médio ou a longo prazo, temos e teremos cada vez mais um mesmo destino. Um destino nosso e de toda a vida, que depende das forças naturais da Terra e da Vida na Terra, e do que estamos fazendo e estaremos fazendo com a Vida e a Terra”.

Carlos Rodrigues Brandão

RESUMO

A hospitalidade e a reciprocidade sustentam a experiência da viagem errante, em oposição à mercantilização das relações e da cultura, proporcionada pela experiência turística convencional. Este estudo investiga o potencial das viagens interétnicas enquanto um instrumento de aprendizado e respeito pela alteridade. Dialogando com indígenas, indigenistas e acadêmicos, re-significa a viagem como uma oportunidade de autoconhecimento e de conhecimento do Outro. Partindo das vozes de autores como Hakim Bay e Moira Millan, questiona o turismo e propõe a sua superação rumo as “viagens solidárias”, uma alternativa capaz de fortalecer a autonomia e a valorização cultural dos povos indígenas. Na interação respeitosa entre dois modelos civilizatórios, supõe haver um encontro de consciências e experiências distintas, onde o viajante tem a possibilidade de comprometer-se com aquilo que vivencia, e é capaz de desfazer o véu do preconceito. Reforça, ainda, o papel da educação na preparação de viajantes e anfitriões para o relacionamento intercultural e a necessidade de valorizar as formas de pensar e fazer tradicionais indígenas relacionadas ao acolhimento e à hospitalidade.

Palavras – chaves: Relacionamento Interétnico; Viagens Solidárias; Hospitalidade e Reciprocidade; Turismo - Terras Indígenas; Indigenismo.

ABSTRACT

Hospitality and reciprocity sustain the experience of a wandering journey as opposed to the ‘commercialisation’ of cultures and relationships offered by the conventional tourist experience. This study investigates the potential of inter ethnical trips as a learning tool for otherness. Dialoging with indigenous people, indigenists and scholars, explores the trip as an opportunity of self knowledge and knowledge of others. Starting with the voices of authors such as Hakim Bay and Moira Millan, who questioned the tourism and proposed to overcome it on a solidarity trip as an alternative capable of strengthening the autonomy and valorise the culture of the indigenous people. In a respectful interaction between two civilisation models, assumes that is a coming together of minds and distint conscienciouness, where the traveller has the possibility of commiting himself to what he experiences and is capable of undo the veil of prejudice. Strengthens further the role of education in the preparation of travellers and hosts for the intercultural relationships and the necessity to valorise ways of thinking and doing related with traditional indigenous reception and hospitality.

Keywords:

Inter-ethnical Relationship; Solidary Trips; Hospitality and Reciprocity;

Tourism – Indigenous Land; Indigenism.

LISTA DE SIGLAS

APACOPBIMN – Associação de Pescadores Artesanais e de Comercialização de Produtos Aquáticos dos Manguezais do Norte ASPECTUR - Associação Pataxó de Ecoturismo CDS – Centro de Desenvolvimento Sustentável CGPIMA - Coordenação Geral de Patrimônio Indígena e Meio Ambiente CNPI - Comissão Nacional de Política Indigenista DEPIMA - Departamento de Patrimônio Indígena e Meio Ambiente EMBRATUR - Instituto Brasileiro de Turismo FUNAI – Fundação Nacional do Índio FUNASA – Fundação Nacional de Saúde FSM - Fórum Social Mundial GTC Amazônia - Grupo Técnico de Coordenação de Ecoturismo para a Amazônia Legal GT - Grupo de Trabalho GTI – Grupo de Trabalho Interministerial IBAM - Instituto Brasileiro de Administração Municipal ICA - Núcleo Informação Conhecimento e Atitude IBAMA – Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística ISA - Instituto Socioambiental MMA – Ministério do Meio Ambiente Mtur – Ministério do Turismo OIT - Organização Internacional do Trabalho PDA - Projetos Demonstrativos PIX - Parque Indígena do Xingu PNMP - Parque Nacional do Monte Pascoal PNGATI - Política Nacional de Gestão Ambiental em Terras Indígenas PROECOTUR – Programa de Desenvolvimento do Ecoturismo na Amazônia Legal

SPI - Serviço de Proteção aos Índios TI – Terra Indígena UnB – Universidade de Brasília UERJ - Universidade Estadual do Rio de Janeiro UNIRIO - Universidade Federal do Rio de Janeiro

LISTA DE SIGLAS

SUMÁRIO INTRODUÇÃO......................................................................................................................11 1. CONCEITOS PARA O DIÁLOGO.....................................................................................14 1.1 VIAGEM, VIAJANTES E TURISTAS.........................................................................14 1.2 HOSPITALIDADE, RECIPROCIDADE E ALTERIDADE.............................................16 1.3 FÓRUM SOCIAL MUNDIAL: “UM OUTRO TURISMO É POSSÍVEL”?.......................19 2. O SENTIDO DA VIAGEM A TERRAS INDÍGENAS..........................................................22 2.1 INQUIETAÇÕES.........................................................................................................22 2.2 EXPERIÊNCIAS DOS KAINGANG E DOS PATAXÓ.................................................23 2.2.1 A experiência do turismo entre os Kaingang na Terra Indígena de Iraí...............23 2.2.2 A experiência do turismo entre o povo Pataxó. ..................................................25 2.2.3 Impressões sobre o turismo nas aldeias Pataxó de Barra Velha e Pé do Monte 29 2.3 EXPERIÊNCIA ENTRE O POVO KRAHÔ..................................................................30 2.4 VOZES E VISÕES DE INDÍGENAS ..........................................................................33 3. EM BUSCA DA HUMANIZAÇÃO DA VIAGEM..................................................................38 3.1 ABRINDO-NOS À ESCUTA ESSENCIAL...................................................................38 3.2 A MERCANTILIZAÇÃO DA CULTURA VERSUS VIVÊNCIAS SOLIDÁRIAS ............39 3.3 LEGISLAÇÃO INDIGENISTA ....................................................................................40 3.4 A DISCUSSÃO NO ÂMBITO DAS INSTITUIÇÕES PÚBLICAS..................................43 3.5 A SUSTENTABILIDADE E A ÉTICA DO CUIDADO...................................................47

CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................................50 REFERÊNCIAS.....................................................................................................................53 ANEXO I...............................................................................................................................57 ANEXO II..............................................................................................................................59 ANEXO III.............................................................................................................................64

INTRODUÇÃO

“É em nós que as paisagens têm paisagens”. Fernando Pessoa

O Brasil possui cerca de 190 milhões de habitantes 1. Já o dado relativo ao percentual indígena nesse contingente varia, pois não há um censo indígena propriamente dito. Dados da Fundação Nacional do Índio (Funai), da Fundação Nacional de Saúde (Funasa) e do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) apontam que existem entre 400 a 700 mil indígenas, integrantes de cerca de 220 povos distintos.2 Esses povos possuem uma riqueza sociocultural impar, falam mais de 180 línguas e mantêm e preservam, ainda hoje, em pleno século XXI, formas de viver e de se relacionar absolutamente diferentes da sociedade dominante. Também são os detentores de cerca de 13%3 do território nacional, entre terras bem conservadas, lugares de abundante beleza e paisagens extraordinárias. Os povos indígenas e o “homem branco” têm 500 anos de contato interétnico no território brasileiro. O encontro entre esses dois modelos civilizatórios foi e permanece sendo traumático. Principalmente porque nunca houve, da parte da sociedade nacional, nenhum movimento de acolhimento para com os povos indígenas. Considerou-se que os indígenas eram “primitivos”, seres humanos menores, até mesmo sem alma, e que o seu conhecimento não tinha valor comparável ao do conhecimento ocidental. Entretanto, turistas e viajantes nutrem pelos povos “exóticos”, desde sempre, uma curiosidade nata. Por isso, o tema do turismo em terra indígena é bastante atual. Há um crescente interesse do mercado turístico, nacional e internacional, para que se regulamente a atividade turística em terra indígena. Escolhi esse tema como objeto de reflexão na monoFonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Demografia_do_Brasil, acesso em 17/04/2009. A Fundação Nacional do Índio (Funai) informa que são 430 mil índios, distribuídos entre 220 sociedades indígenas. Este dado considera apenas os indígenas que vivem em aldeias. Estima também que, além destes, há entre 100 e 190 mil indígenas que vivem fora das terras indígenas, inclusive em áreas urbanas. E que há indícios da existência de mais ou menos 53 grupos ainda não-contatados, como também de grupos que estão requerendo o reconhecimento de sua condição indígena junto ao órgão federal indigenista. Fonte: Funai, www.funai.gov.br, acessado em 16/04/2009. O IBGE no último censo (no ano 2000) identificou 734 mil indígenas, sendo que destes 304 mil residiam em aldeias (41, 4%), em alguma das 604 Terras Indígenas reconhecidas pelo governo. Fonte: http://pib.socioambiental.org/ acesso em 17/04/2009. 3 Dado do sítio do Instituto Socioambiental: http://pib.socioambiental.org/pt/c/terras-indigenas/demarcacoes/localizacao-e-extensao-das-tis>, acessado em 29/04/2009. Já a Funai aponta que 12,41% do território brasileiro são terras indígenas em processo de demarcação. E que outras 123 terras ainda estão por serem identificadas, não sendo possível somar suas superfícies ao total indicado acima. Fonte: http://www.funai.gov.br/, acesso em 28/05/2009. 1 2

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grafia do Curso de Especialização em Indigenismo, no âmbito do Centro de Desenvolvimento Sustentável da Universidade de Brasília (CDS/UnB), porque considero que ele traz à tona questões centrais do Indigenismo. O Brasil abriga povos indígenas que ainda hoje lutam para afirmar sua soberania étnica. Cada um deles com grau de contato diferenciado. São realidades múltiplas, que abrangem desde povos indígenas autônomos, ainda sem contato permanente, a populações que estão socialmente desestruturadas, sem território que dê conta da reprodução das suas necessidades físicas e culturais e com graves problemas de desnutrição e alcoolismo; de povos que conseguiram preservar suas línguas e práticas culturais relativamente intactas àqueles que, em virtude da violência do contato, perderam quase tudo e estão em plena luta para garantir a sua territorialização4. Neste contexto tão variado, o que será que os povos indígenas têm a ganhar e a perder com o turismo? Será que o turismo poderá contribuir para a construção de um novo relacionamento interétnico? Será que poderá ajudar a dar visibilidade aos indígenas e às suas questões de direito? De outro lado, as viagens turísticas a terras indígenas podem ser experiências transformadoras para os visitantes e ajudar a sociedade ocidental a compreender uma vida social pautada por outros valores e uma relação com a natureza centrada não só na dádiva, mas também na reciprocidade? Será que estamos preparados para o encontro com a diferença e com os 500 anos de contato e fricção interétnica5? Enfim, de que turismo e de que viagens nós estamos falando? Almejando lançar luzes sobre essas e outras perguntas, construí um estudo buscando interligar conceitos e diálogos que se complementam. No capítulo 1, como forma de aprofundar a abordagem, trouxe conceitos ligados à temática da viagem e dos viajantes, como hospitalidade, reciprocidade e alteridade. Também levantei a discussão se “um outro turismo é possível”, conforme vem sendo travada nas edições do Fórum Social Mundial (FSM), e enveredei sobre a possibilidade de uma nova forma de viagem ou de contato interétnico. No capítulo 2, apresentei vozes e visões de indígenas e de pesquisadores relacionadas com experiências concretas em curso no Brasil, buscando formar um leque de opiniões variadas e consistentes sobre a temática do turismo em terra indígena. A partir de pesquisa bibliográfica, elegi algumas referências na literatura. Entre estas, três trabalhos de campo: a 4 A noção de territorialização é definida como um processo de reorganização social que implica: i) a criação de uma nova unidade sociocultural mediante o estabelecimento de uma identidade étnica diferenciadora; ii) a constituição de mecanismos políticos especializados; iii) a redefinição do controle social sobre os recursos ambientais; iv) a reelaboração da cultura e da relação com o passado. (OLIVEIRA, 2004, p.22) 5 Fricção interétnica é um conceito antropológico elaborado por Roberto Cardoso de Oliveira. Significa o encontro entre duas culturas, cada uma delas um sistema autosuficiente. A partir do contato como o outro, acabam assimilando conhecimentos, comportamentos e valores simbólicos e constituindo um novo sistema cultural, resultante desse encontro.

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publicação “Os Índios do Descobrimento: tradição e turismo”, de Rodrigo de Azevedo Grünewald (2001), fruto de sua tese de doutorado no Museu Nacional, com as comunidades Pataxó do Sul da Bahia e a dissertação de Maria Soledad Castro, “A Reserva Pataxó da Jaqueira: o passado e o presente das tradições”, apresentada em 2008 no Programa de PósGraduação em Antropologia da Universidade de Brasília. E ainda a dissertação de mestrado “O Turismo e os Kaingang na Terra Indígena de Iraí/RS” de Flávia Lac (2005), no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal do Paraná, com o povo Kaingang. Ainda no capítulo 2, apresentei um relato que contém as minhas observações enquanto uma “turista” de férias em Caraíva, vila que se localiza no limite da Terra Indígena de Barra Velha. Fruto de observação, conversas informais com indígenas e visita ao Centro Cultural Porto do Boi, na T.I. de Barra Velha, e ao Parque Nacional do Monte Pascoal, esta pesquisa de campo, realizada em janeiro de 2009, deu o “pontapé inicial” e influenciou o desenrolar da pesquisa monográfica, ajudando a formular muitas das questões aqui apresentadas. No capítulo 3, refleti sobre as vivências solidárias em oposição à mercantilização da cultura. Também pesquisei a legislação indigenista relacionada à temática e as diversas tentativas de construção de políticas públicas no âmbito da Fundação Nacional do Índio, do Ministério do Meio Ambiente e do Ministério do Turismo, desde o ano de 1996 até agora. Por fim, discuti a sustentabilidade sob a ótica indígena enquanto princípio norteador de qualquer ação indigenista e a educação como sustentação de um novo saber/fazer. No capítulo 4, teci considerações buscando respeitar o princípio da autonomia dos povos indígenas enquanto sujeitos de seu próprio desenvolvimento e responsáveis por definir os caminhos que melhor garantirão seu bem-estar, sua dignidade e sua integridade. Para o desenvolvimento desse estudo fiz uma pesquisa bibliográfica sobre o tema do turismo em terra indígena, mas também sobre temas afins ao desenvolvimento sustentável. Contudo, entre tantos autores importantes, gostaria de citar Moira Millan e Hakim Bay. Suas vozes foram essenciais e produziram o sumo para o diálogo que foi travado. Também o filme “Cannibal Tours” (1998), dirigido e produzido por Dennis O’Rourke foi um elemento balizador dessas reflexões. Sua dureza e objetividade me ajudaram a permanecer na rota. Conversas informais e entrevistas semi-estruturadas com lideranças indígenas e com indigenistas complementaram as minhas percepções.

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1. CONCEITOS PARA O DIÁLOGO

1.1 VIAGEM, VIAJANTES E TURISTAS

“Atravessei o mar. Conheci muitas terras...”. Jorge Luiz Borges

“Viajar é a experiência de deixar de ser quem você se esforça para ser e se transformar naquilo que você é” diz Paulo Coelho (apud RIBA, 2008). A viagem é sempre um risco. “Significa expor-se, arriscar-se à alteridade, à novidade, ao estrangeiro, ao incomum e ao incomensurável” (MICHAEL, 2000, apud FIGUEIREDO e RUSCHMANN, 2004). E arriscar-se a um mergulho em si mesmo, às próprias questões, a sua subjetividade, a sua realidade íntima e a realidade de outrem. Que razões levam as pessoas a viajar? Os naturalistas do séc. XVI, XVII e XVIII saíram da Europa rumo ao Novo Mundo em busca de aventura e da ciência. Esses viajantes ansiavam compreender o mundo e a sua própria existência, conhecer povos não contactados, viver e registrar novas experiências. Nos tempos atuais, viajar continua sendo um momento de rompimento com o cotidiano, com o rotineiro. A viagem permite que se aprofunde o contato consigo próprio, a reflexão interna, a descoberta da diversidade e da própria identidade. Pode ser um instrumento transformador e altamente educativo. O espírito de férias, o espírito da viagem é um estado de disponibilidade, um aventurar-se... Quem são os viajantes? Quem são os turistas? Há uma fronteira entre essas duas abordagens/dimensões. O turismo é caracterizado como uma viagem de lazer, de descanso, de ócio, típica das relações atuais que colocam o tempo livre em oposição ao tempo do trabalho. Envolve deslocamento e tempo, mas é superficial. O turista deseja romper a rotina da vida diária, porém pode simplesmente vivenciar a viagem como se nem saísse de casa. Mantendo seus hábitos de vida como companheiro de viagem, ele viaja sem sair da própria pele, e deixa por onde passa um rastro da sua cultura, da sua visão de mundo. As pessoas da cidade levam sua escala de valores próprios. Fortalecidos pelo dinheiro e nível educacional, em geral, melhor, elas se sentem superiores e se apropriam do espaço rural com fins comerciais e recreativos. A pai-

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sagem e os homens se tornam bens de consumo. (KRIPPENDORF, 1987, p.96-97 apud FIGUEIREDO, 1999, p.183-184).

E, ao usar seu tempo mercantilizando relações e desejos, sem aprofundar-se em nada, o turista tem pouca condição de se ver e de ver ao Outro. Sua viagem é uma viagem de consumo. Como diz Millan (2006), liderança indígena Mapuche da Argentina, “o turista consome sem comprometer-se, seu único interesse é abstrair-se de sua cotidianidade”. E o viajante, quem é? É aquele que busca novas paisagens, sejam internas ou externas. Fundamentalmente, está disponível para o desconhecido, para o encontro e para as transformações que a jornada proporciona. Como Bay (1994) friza: “[...] toda a jornada aos horizontes exteriores é também uma jornada aos horizontes interiores[...]”. Poucos autores são tão críticos ao processo turístico quanto Hakin Bay. Ele considera que o turismo é uma invenção do século XIX, que surgiu como um sintoma do imperialismo e da sociedade de consumo. A imaginação do "primeiro mundo" capitalista está exaurida. Ela não pode imaginar nada diferente. Então o turista deixa o espaço homogêneo do "lar" pelo espaço heterogêneo dos "climas estrangeiros" não para receber uma "benção", mas simplesmente para admirar o pitoresco, a mera visão ou instantâneo da diferença, para ver a diferença. [...] O turista procura cultura porque – no nosso mundo – a cultura desapareceu no bucho do Espetáculo, a cultura foi destruída e substituída por um shopping ou um talk-show – porque a nossa educação é nada mais que preparação para uma vida inteira de trabalho e consumo – por que nós mesmos cessamos de criar. Embora os turistas pareçam estar fisicamente presentes na Natureza ou na Cultura, na verdade podemos chamá-los de fantasmas assombrando ruínas, sem nenhuma presença corpórea. Eles não estão lá de verdade, mas sim movem-se por uma paisagem natural, uma abstração (“Natureza”, “Cultura”), coletando imagens mais que experiência. Muito frequentemente suas férias são passadas em meio à miséria de outras pessoas e até somam-se a essa miséria. [...] O turista é um parasita – pois nenhuma quantia de dinheiro pode pagar por hospitalidade. O verdadeiro viajante é um hóspede e por isso serve a uma função muito real, até hoje, em sociedades nas quais ideais de hospitalidade ainda não desapareceram da "mentalidade coletiva". Ser um anfitrião, nessas sociedades, é um ato meritório. Então, ser um hóspede é também conferir mérito. [...] (BAY, 1994, website.).

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Millan (2006) trata especialmente do turismo em terra indígena e endossa sua voz crítica. A indústria do turismo é talvez a invenção mais recente do capitalismo, já que não se contenta a ter o controle absoluto dos espaços de produção e suas grandes massas de trabalhadores, submetendo milhões de homens e mulheres a suas regras de jogo, senão que também julga conveniente controlar seu lazer, sua mal chamada recreação, tempo este aonde longe de criar ou “re-criarse como humanos” estes homens e mulheres são enganosamente induzidos a consumir os “produtos turísticos que oferece o mercado”, os quais tentam reproduzir o mesmo modo impessoal de relação que tem a sociedade econômica não somente entre os indivíduos mas também com o entorno. Esta forma de andar e transitar por diversas geografias e culturas impede as pessoas de um encontro profundo com a natureza e com os povos que a habitam. O desprezo pelo natural, o afã de conforto e, sobretudo, o vírus do consumismo que injeta esta sociedade geram desencontros nocivos entre o turista e as comunidades indígenas que tentam abrir-se a esta nova perspectiva de trabalho. (MILLAN, 2006, p. 67).

As diferentes visões e percepções sobre turistas e viajantes são importantes para as reflexões que farei no decorrer deste estudo. Por ora é importante perceber que o turista é um consumidor voraz de serviços turísticos constituídos especialmente para o seu bem-estar, para o seu prazer. Busca conforto, descanso, diversão e entretenimento. Já o viajante é um explorador do mundo, da humanidade e de si mesmo.

1.2 HOSPITALIDADE, RECIPROCIDADE E ALTERIDADE

A hospitalidade está intimamente associada à viagem. A ela correspondem os desejos e necessidades de acolhimento, alimentação, repouso, contato humano, e ainda mais profundamente, o desejo de refúgio, de segurança, o desejo de receber e o desejo de dar. Baptista (2002, p.157) define hospitalidade “como um modo privilegiado de encontro interpessoal marcado pela atitude de acolhimento em relação ao outro...” Sublinha ainda a dimensão ética desse encontro baseando-se no filósofo Emmanuel Levinas. Segundo a autora, “na presença de outro ser humano, estamos face a um outro mundo interior, povoado de segredos, de memórias, de temores e de sonhos”. E este contato, esta proximidade possibilita uma experiência fundamental de intercâmbio de subjetividades. 16

Na relação de hospitalidade, a consciência recebe o que vem de fora com a deferência e a cortesia que são devidas a um hóspede, oferecendo-lhe o melhor, sem, no entanto, desrespeitar a sua condição de outro. Pelo contrário, essa condição é valorizada ao ponto de nos sentirmos cúmplices do destino do outro. (BAPTISTA, 2002, p.159).

A hospitalidade tem haver, portanto, com o sentido de viver e compartilhar, de permitir o encontro entre pessoas, e a construção de ambientes e relações acolhedoras. Nessa envergadura a hospitalidade está baseada em relacionamento humano, em reciprocidade, em carinho, em interesse genuíno. Não é uma hospitalidade artificial, da relação comercial e da ‘falsa cortesia’. Pois o anfitrião oferece a si mesmo, a sua intimidade, a sua vida. É uma dádiva de si, da sua essência, para o convidado. Acolher o outro como hóspede significa que aceitamos recebê-lo em nosso território, em nossa casa, colocando à sua disposição o melhor do que somos e possuímos. Contudo, nossa casa continua a ser isso mesmo, a nossa casa. Do mesmo modo, o outro mantém a liberdade do forasteiro, continuando a seduzir-nos com a sua exterioridade e o seu segredo. A hospitalidade permite celebrar uma distância e, ao mesmo tempo, uma proximidade, experiência

imprescindível

no

processo

de aprendizagem

humana.

(BAPTISTA, 2002, p.162).

Para a autora, a noção de hospitalidade marca um contraponto em relação ao tempo atual, desencantado e cético, caracterizado pelas idéias de crise, de caos e ruptura social e de individualismo. A ideia de reciprocidade é complementar à noção de hospitalidade. Significa correspondência mútua. Bay (1994) acredita que é possível superar o turismo e construir uma viagem baseada na reciprocidade: Nós não apenas desdenhamos o turismo por sua vulgaridade e sua injustiça, e por isso desejamos evitar qualquer contaminação (consciente ou inconsciente) por sua virulência viral – nós também ousamos entender a viagem como um ato de reciprocidade mais que de alienação. Em outras palavras, nós não desejamos meramente evitar as negatividades do turismo, mas ainda mais atingir a viagem positiva, que visualizamos como uma relação produtiva e mutuamente aperfeiçoadora entre eu e outro, hóspede e anfitrião – uma forma de sinergia intercultural em que o todo excede a soma das partes. (BAY, 1994, website).

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No texto ‘Superando o Turismo’, Bay (1994) relata antigos costumes orientais dos nômades do deserto e peregrinos dervixes, monges iniciados, que tinham a perambulação e a hospitalidade como atos sagrados. Os dervixes eram bem recebidos e alimentados onde quer que fossem. O autor sugere que os dervixes viajantes traziam em si o santuário. Que recebiam hospitalidade e, em troca, distribuíam a ‘baraka’, ou seja, felicidade, graças e bênçãos. A esta relação ele chamou ‘economia do Presente’, que tem, em seu bojo, a reciprocidade, a atenção, a sinceridade. Nós gostaríamos de saber se a viagem pode ser realizada de acordo com uma economia secreta de baraka, de acordo com a qual não apenas o templo, mas também os peregrinos tenham "bençãos" a aspergir. [...] Antes da Era da Mercadoria, nós sabemos, houve uma Era do Presente, da reciprocidade, do dar e receber. Nós aprendemos isso dos contos de certos viajantes [...] (ibidem, website.).

Bay sugere, portanto, que a chave essencial para a viagem é a atenção. Atenção no sentido de tomar consciência da vida, da existência e da experiência do Outro. Com uma postura de reconhecimento e de confiança para com a pluralidade da vida. Essa atitude, esse “coração de viajante”, diz ele, nos permite “experimentar o mundo como uma relação viva e não como um parque temático”. [...] Dar atenção é receber atenção, como se o universo de alguma maneira misteriosa retribuísse nossa cognição com um influxo de graça natural. Se nós nos convencêssemos que a atenção segue uma regra de "sinergia" mais que uma lei de investimento, nós poderíamos começar a superar em nós mesmos a banal mundanidade da desatenção cotidiana, e a abrir nós mesmos a "estados mais elevados". [...] Em qualquer caso, permanece um fato que a não ser que aprendamos a cultivar tais estados, a viagem nunca vai significar mais que turismo. (BAY, 1994, website).

Assim, a viagem errante exige do viajante uma postura generosa, desapegada e respeitosa para com a alteridade. Alteridade que é ser capaz de apreender o Outro na plenitude da sua dignidade, dos seus direitos e, sobretudo, da sua diferença (BETTO, 2003). Significa sair do nosso ‘mundinho’ particular e nos abrirmos ao desconhecido. Ainda existem algumas fronteiras ontológicas no mundo e o universo indígena é uma delas. Até hoje a política indigenista brasileira não se deixou seduzir pelo discurso mercadológico que vende o turismo como panaceia para todos os males e que vem tentando, sistematicamente, autorização para penetrar essa fronteira. 18

Entendo que turistas não são dervixes peregrinos, com sua capacidade de trazer ‘baraka’ aos lugares. Pelo contrário. Turistas compram relações e serviços. Assim, não desejo que as aldeias se transformem em lugares turísticos. Mas acredito em outras viagens que permitem encontros de alteridades distintas. Encontros amorosos, respeitosos, solidários, espirituais, de confiança, verdadeiros e transformadores.

1.3 FÓRUM SOCIAL MUNDIAL: “UM OUTRO TURISMO É POSSÍVEL”?

O Fórum Social Mundial (FSM) é o maior fórum de discussão sobre os problemas mundiais contemporâneos e está em sua 9ª edição. Em janeiro de 2004, no IV Fórum Social Mundial realizado na Índia, o tema turismo entrou pela primeira vez em pauta. Foram abordados os graves impactos socioambientais provocados pela atividade turística no mundo inteiro, partindo-se da constatação inequívoca de que os grandes beneficiários do processo turístico não são as comunidades nos destinos, mas os grandes empreendimentos e empresas trans e multinacionais. Reconheceu-se que o turismo traz no seu bojo especulação e transformação dos usos dos territórios, expulsão de comunidades, exploração do patrimônio ambiental e cultural, mercantilização de bens, serviços e relações, desestruturação social, concentração da renda, aumento da pobreza e da desigualdade social, violação dos direitos humanos, exploração sexual, etc. Desde 2004 e nas edições seguintes, os movimentos sociais participantes do FSM vêm discutindo o tema e propondo um outro modelo de turismo, “um turismo comunitário, solidário, justo e sustentável”, com uma lógica oposta ao turismo tradicional ou de massa. De fato vem se estruturando, no Brasil e em diversas partes do mundo, experiências calcadas na participação comunitária e na valorização dos modos de vida das comunidades, estreitamente relacionados aos ecossistemas que garantem sua sobrevivência. São histórias de luta, resistência e defesa de territórios contra grandes grupos econômicos, histórias de afirmação de identidade e de direitos sociais. No último FSM, realizado em janeiro de 2009 na cidade de Belém, os movimentos sociais produziram uma carta que conclama : Todas as cidadãs e cidadãos do mundo a contribuir para a afirmação do turismo comunitário, solidário, justo e sustentável, através de suas organizações e como consumidores conscientes, e a produzir e trocar conhecimentos e experiências [...] e apoiar as lutas de resistência em todo mundo assim

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como as alternativas e experiências concretas de turismo comunitário e solidário6. (DECLARAÇÃO, 2009).

Portanto, é interessante observar que mesmo neste importante fórum de discussões em busca de soluções para a construção de um novo modelo de sociedade, de uma nova forma de viver e se relacionar no planeta, o turismo não foi abolido. Em uma das mesas de discussão sobre o tema no FSM em 2009 encontramos Moira Millan, liderança Mapuche. Mas não havia nenhuma representação indígena brasileira, nem sequer na plateia, para debater esse tema. Já Millan vem participando dos diversos FSM e a sua voz tem trazido reflexões essenciais. Na sua visão, a sociedade capitalista criou o ecoturismo, o etnoturismo, o turismo indígena e o turismo solidário como alternativas para satisfazer a demanda de mercado que não se identificava com o turismo convencional sem, no entanto, mudar a sua essência mercadológica. Além de alertar para o risco de “coisificação” da cultura indígena, afirma que as comunidades mapuches que se inseriram na atividade turística perceberam que o círculo da reciprocidade não se completava, e que não havia dinheiro capaz de se equivaler ao que ofereciam aos visitantes: sua cosmovisão e sua sacralidade. Nossos conhecimentos culturais ancestrais que há apenas uma década devíamos ocultar para mostrar nossa cara civilizatória e europeia, hoje são objeto de curiosidade já não somente para os intelectuais estudiosos, os ólogos (antropólogos, arqueólogos, sociólogos, historiadores, etc.) mas também para o homem comum convertido em turista. Estes tecnocratas da economia pretendem que coisifiquemos nossa cultura e que a mostremos como um produto turístico. [...] A elaboração de uma iniciativa inteiramente econômica que invade a vida das comunidades através de um suposto intercâmbio de culturas não é outra coisa a não ser uma nova forma de desencontro e colonização. Os membros da comunidade alteram seus ritmos e afazeres em função dos visitantes, deixam de lado a espontaneidade de suas condutas comunitárias e se dispõem a preparar um pacote de atividades que resultem atrativas aos turistas. A coisificação de sua identidade, cultura e essência despoja seus membros de autenticidade convertendo-lhes em um mero espetáculo pitoresco. (MILLAN, 2006, p. 67-68).

Para a autora, o perigo do turismo é contaminar um modo de viver que ainda resiste, apesar de toda a pressão da sociedade envolvente, pois: “O turismo, da mesma forma que todas as atividades econômicas desse sistema, provoca definitivamente em si mesmo a síndrome do capitalismo e economicismo que nos coloniza e destrói nossa visão holística do mundo”. Ela aponta a necessidade de propor uma alternativa ao turismo, baseada na ‘reciDeclaração de Belém - Fórum Global sobre Turismo Sustentável. Fórum Social Mundial, Belém do Pará – Brasil, 28 de Janeiro a 1º de Fevereiro de 2009. 6

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procidade solidária’, onde visitantes interessados em conhecer comunidades indígenas podem participar de cursos ou trabalhos comunitários e assim vivenciar verdadeiramente o cotidiano indígena por meio de uma relação mais profunda, solidária e comprometida. A visão de Millan é compartilhada por Quintero (2006, p. 63), não-indígena, liderança da Associação de Pescadores Artesanais e de Comercialização de Produtos Aquáticos dos Manguezais do Norte – APACOPBIMN, Província de Esmeraldas, Equador, para quem: “o turismo7 para as comunidades ancestrais é uma atividade milenar, estava baseado na solidariedade, no respeito e no intercâmbio cultural entre povos irmãos, sem pensar na retribuição econômica”. Sua comunidade construiu uma proposta de ‘Intercâmbio Solidário com Identidade’ considerada como uma “estratégia de resistência aos modelos neoliberais da globalização e ao mercado da vida” e uma alternativa econômica que complementa outras iniciativas existentes. Ele afirma que: [...] A partir de nossa experiência, pensamos que é elementar falar de duas coisas para fortalecer as capacidades e as condições: As formas de organização e a capacidade de controle. É importante que a organização comunitária esteja clara ao estabelecer sua proposta política, para garantir seu projeto de vida, baseado em seus conhecimentos tradicionais – respeito e equidade. [...] É necessário fechar esta cadeia com uma proposta de auto-suficiência camponesa para o consumo local, e assim reativar as economias das comunidades e recuperar a segurança alimentar e os sistemas de produção sustentáveis. É importante identificar que tipo de visitante queremos em nossas comunidades e para quê. Em nossa situação particular, temos três tipos de visitantes: estudantes, que são os mais frequentes; turistas que vêm para conhecer e ficam por dois ou três dias; e visitantes que vêm com outra visão de solidariedade e respeito para compartilhar nossa forma de vida e o trabalho artesanal, para conhecer qual é o processo histórico de nossa luta e cultura. Ao final, estes terminam sendo aliados do processo comunitário e o apóiam de várias maneiras como com denúncias, em seus respectivos países, sobre a problemática, a destruição e os impactos sociais, econômicos, ambientais e outros que as empresas causam em nossas comunidades e a diferentes recursos existentes. Também entram em contato com outros grupos, no intuito de estimular a visita a esses lugares ou comunidades [...]. É certo que o fato de ter este tipo de visitantes que terminam sendo aliados não é uma casualidade, mas, melhor dito é o resultado de um trabalho árduo de organizações comunitárias e afins, comprometidas em fortalecer este modelo [...]. (QUINTERO, 2006, p.65). 7

Embora não o batizassem com esse nome.

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2. O SENTIDO DA VIAGEM A TERRAS INDÍGENAS

“Nosso destino nunca é um novo lugar, senão uma nova forma de ver as coisas”. Henry Miller

É compreensível que em um mundo em crise econômica e em crise de valores sociais, morais e espirituais, as pessoas tenham cada vez mais necessidade de buscar novos valores, novas formas de ser e estar no mundo, individualmente e em sociedade, e novas formas se relacionar com a natureza. Os povos indígenas do Brasil foram vítimas de toda violência da colonização e permanecem tendo uma relação tortuosa com a sociedade envolvente, no que diz respeito aos conflitos de posse do território, ao uso dos recursos naturais existentes, ao direito de viverem de acordo com sua própria cultura. Por outro lado, ao continuarem resistindo, constituem um mundo à parte, desconhecido, e, por isso mesmo, muito atraente.

2.1 INQUIETAÇÕES

Vivemos em uma época carente de respostas para as indagações mais profundas. Na atual conjuntura, o desenvolvimento econômico e o desenvolvimento humano estão postos em cheque. Não podemos, a essa altura, assimilar os conceitos de mercado e empurrá-los para as sociedades indígenas, sem um pensamento crítico e cuidadoso. É preciso refletir com objetividade e visão crítica um tema que está na agenda dos povos indígenas - em busca de alternativas econômicas sustentáveis e bem-estar para as suas populações - como também das agências de viagens, do mercado nacional e internacional, que esperam uma brecha na política indigenista para mergulhar nesse filão. Tenho muitas inquietações: o que significa uma viagem à terra indígena? O que busca o visitante? Como adentrar com respeito no espaço físico, na vida, na sociabilidade do Outro? Como estas questões dialogam com o etnodesenvolvimento e com as políticas públicas voltadas para os indígenas no Brasil, hoje? Que impactos as propostas de turismo em TI pode trazer para as populações anfitriãs? Que tipo de trocas culturais estão previstas? Quais são os seus reflexos? O que está em jogo? O turismo pode ser encarado como uma 22

alternativa de desenvolvimento sustentável ou de etnodesenvolvimento para as comunidades indígenas no Brasil? Há outra viagem possível?

2.2 EXPERIÊNCIAS DOS KAINGANG E DOS PATAXÓ

Para tentar trazer luz a essas questões vou, primeiramente, tratar de duas experiências de turismo em terra indígena no país, no Paraná, com o povo Kaingang e no sul da Bahia, com o povo Pataxó. Existem outras, mas escolhi estas porque encontrei uma literatura consistente, que serviu como base para análise.

2.2.1 A experiência do turismo entre os Kaingang na Terra Indígena de Iraí

A dissertação “O Turismo e os Kaingang na Terra Indígena de Iraí/RS”, de Flávia Lac, apresentada em 2005, serviu como suporte para a discussão a seguir. Segundo Lac (2005, p. 138) a Terra Indígena Iraí, localizada no município de Iraí, foi demarcada em 1992, com 279,9 hectares e com uma população de aproximadamente 500 pessoas. Iraí é um município turístico que fundamentou seu produto a partir das suas águas termais, da construção de um balneário e uma estação hidromineral. Hoje é um destino em decadência, embora a renda do turismo ainda tenha grande importância para o município. Os Kaingang8 têm mais de duzentos anos de contato interétnico com a sociedade envolvente. Vivem em terras muito reduzidas, ambientalmente degradadas pelo uso excessivo do solo e dos recursos naturais, sem condições que garantam a perpetuação do modo de vida tradicional Kaingang, que envolve a caça, a coleta e a agricultura. São mais de 30 Terras Indígenas nos Estados do Paraná, Santa Catarina, São Paulo e Rio Grande do Sul, em áreas que representam uma pequena parcela de seus territórios tradicionais. A Terra Indígena de Iraí é a menor área demarcada no Estado do Rio Grande do Sul. Diante da insuficiência de recursos, a comunidade especializou-se na produção e no comércio de artesanato. Além da venda de artesanato, os Kaingang também recebem visitantes ocasionais. Eles foram apropriados enquanto atrativo turístico do município, inclusive aparecem nos prospectos turísticos.

8 Fonte: http://pib.socioambiental.org/pt/povo/kaingang, acessado em 30/04/2009. (Texto de Tommasino, Kimiye e Fernandes, Ricardo Cid, 2001).

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O “resgate da cultura” é feito pelos jovens da comunidade Kaingang de Iraí através da interrogação aos mais velhos desta e de outras comunidades. O fato de poder demonstrar a cultura para não índios é um ponto crucial neste processo e é visível até mesmo na atuação dos kuiã ou pajés que recebem hoje maior respeito dos não índios. O artesanato, da mesma forma, não é apenas a principal fonte de renda da comunidade Kaingang de Iraí como também estabelece uma série de relações entre índios e não índios servindo como base para o turismo. Verifica-se pois que a atividade turística passa a ser vista como fonte de interesse Kaingang e para isso as comunidades índia e não índia de Iraí tentam entrar em acordo para estabelecer suas relações nesta atividade. (LAC, 2005, 16).

Entre os vários hotéis de Iraí, dois promovem eventuais visitas à Terra Indígena. Essas visitas, parte integrante de um “city tour” que dura duas horas e meia, são organizadas pelos próprios estabelecimentos com a anuência prévia dos Kaingang. A visita a T.I. dura em média 45 minutos e compõe-se de uma apresentação de dança “tradicional” e da venda de artesanato. Na ocasião, os índios cobram pelas fotos tiradas, constituindo uma comercialização da sua imagem pessoal e da paisagem. Pela proximidade com a cidade, também entram carros e ônibus na Terra Indígena de Iraí sem autorização dos Kaingang. Muitos desses turistas nem descem dos carros, observam de longe a aldeia. Nesses casos, os indígenas sentem-se tratados como animais em um zoológico. Lac (ibidem, p.106) afirma que a marca do turismo na Terra Indígena de Iraí é a hospitalidade: [...] Os índios não apenas aceitam que os turistas o visitem o local de suas residências como apresentam suas danças, fruto do “resgate cultural” ou ainda designam um índio para falar de seus costumes. Nenhuma destas atividades é remunerada, o que levanta a questão: o que estes índios estão trocando com os turistas e porque fazem todo este esforço? [...] Mas afirmaram que a hospitalidade indígena também tem uma certa expectativa em relação ao comportamento do hóspede: que ele não recuse ou se queixe do que lhe é ofertado. Portanto os turistas são recebidos desta maneira tradicional.

Para Lac, o que os Kaingang buscam é o respeito. Eles veem o turismo como algo positivo, mas que pode ser melhorado. E essas melhorias nem sempre estão ligadas ao lucro monetário que o turismo pode proporcionar, mas, principalmente, a forma com que eles se expressam e se apresentam na arena turística. Assim, pela importância crescente que a atividade adquiriu, constituíram uma Comissão de Turismo Kaingang, que tem o papel de res24

guardar a autonomia e a soberania da comunidade indígena e ajudar a regulamentar a atividade e o diálogo com o setor público e privado de Iraí vinculados ao turismo. Nas entrevistas realizadas por Lac com lideranças indígenas emergem questões essenciais ao debate. Para Augusto Opê da Silva, coordenador da Comissão de Turismo da Terra Indígena de Iraí, membro do Movimento de Resistência Indígena e ex-cacique: “o turismo é um jeito de divulgar nossa causa”. Para Jairo Sales, morador recente da T.I. de Iraí: “através do turismo o índio será moralizado, reconhecido e ouvido. Se o turista tiver uma boa impressão melhora o preconceito. O turismo é a nossa arma”. Luiz Salvador, outro membro da comissão indígena de turismo, afirma que: “respeito é importante e ter conhecimento de outras culturas para que não haja mais conflito”. (LAC, 2005, p.125). Ao refletir sobre o estudo de Lac, vejo que os Kaingang da Terra Indígena de Iraí percebem o potencial do turismo em favor de uma relação interétnica mais respeitosa, entretanto, ainda se colocam muito timidamente no contexto turístico da localidade (não sei se houve alguma mudança de 2005 até agora). No entanto, talvez sejam ingênuos ao imaginar que os turistas do balneário são um público capaz de se tornar “aliado”, a partir de uma visita tão rápida. Na verdade, é imprescindível a realização de uma pesquisa com os visitantes antes e depois da visita, para medir sua percepção sobre os indígenas. Considerando que os Kaingang da Terra Indígena de Iraí percebem o turismo como uma atividade capaz de melhorar a sua economia em curto prazo, e com autonomia, acredito que devem focar-se mais nos benefícios econômicos que a atividade pode trazer, cobrando pela visita à aldeia, pela conversa com os mais velhos, pela comida típica, pela apresentação cultural, enfim, se apropriando do fluxo de turistas já existente e protagonizando a gestão do seu produto turístico. Exatamente como manifesta Santos, ex-cacique e conselheiro Kaingang: “Turismo é muito importante para nós. Queremos aprender a usá-lo, ao invés de sermos usados por ele”. (LAC, 2005, p.11).

2.2.2 A experiência do turismo entre o povo Pataxó.

A publicação “Os Índios do Descobrimento: tradição e turismo”, de Rodrigo de Azevedo Grünewald (2001a), fruto de sua tese de doutorado no Museu Nacional do Rio de Janeiro serviu com elemento principal da reflexão que se segue. Mas também me embasei na dis25

sertação “A Reserva Pataxó da Jaqueira: o passado e o presente das tradições”, de Maria Soledad Maroca de Castro, apresentado ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade de Brasília em 2008. Os textos se referem ao processo turístico dos Pataxó das Terras Indígenas de Coroa Vermelha e Barra Velha. Abordo, ainda, as minhas percepções de uma visita de campo realizada à T.I. de Barra Velha, em janeiro de 2009. O turismo vivenciado em Coroa Vermelha, Bahia, é o turismo de massa. Os turistas compram pacotes de viagem para Porto Seguro, com tudo incluído, e visitam por um dia a localidade símbolo da 1ª missa do Descobrimento. Normalmente, gastam muito pouco dinheiro na cidade. Ali chegam turistas que nunca tiveram contato anterior com povos indígenas. Grünewald (2001a) afirma que parte dos turistas fica admirada e satisfeita com o contato, outra acha os índios aculturados e sem identidade. Segundo Grünewald, os Pataxó de Coroa Vermelha vivem praticamente da venda do artesanato. Por serem compradores das suas peças, os turistas são vistos positivamente pelos indígenas. Em 1999, na Gleba B da Terra Indígena Coroa Vermelha, na chamada Reserva da Jaqueira, foi iniciado o 1º projeto de visita à Terra Indígena no Brasil, para assistir as danças (awê e toré), degustar comida e bebida típica e vivenciar um passeio numa pequena trilha de Mata Atlântica. A partir da percepção dos Pataxó sobre o interesse dos turistas na cultura indígena, conceberam o projeto de Ecoturismo na Reserva da Jaqueira pela necessidade que tinham de proteger o pequeno pedaço de mata que lhes restava, e também como forma de criar uma nova alternativa econômica. Passados dez anos, a experiência da Reserva da Jaqueira serve de modelo e inspiração para outras aldeias que recebem visitação, como as aldeias de Barra Velha e Pé do Monte, situadas na Terra Indígena de Barra Velha, município de Porto Seguro. Visões sobre a cultura Grünewald (2001a) afirma que no próprio âmago do processo turístico e relacionado ao vínculo comercial entre turistas e indígenas, também emerge um forte componente de revitalização e conservação da identidade indígena. As representações, para o autor, são importantes não apenas pelo valor financeiro do “pacote”, mas porque reforçam as tradições e orgulho étnico que é difícil de ser mantido se os Pataxó de Coroa Vermelha forem constantemente acusados de serem “índios descaracterizados”. Grünewald diz que “a indústria do turismo encoraja ativamente as expressões de orgulho étnico e as renovações dos padrões tradicionais, e as agências de renovação étnica, por sua vez, encorajam o turismo”. Por outro lado, reconhece como ‘etnicidade reconstruída’ o encontro entre etnicidade e turismo. Descreve-a como um tipo de ‘etnicidade para turismo’, 26

no qual culturas exóticas figuram como atrações-chave e os nativos esforçam-se para satisfazer a demanda turística ou para ‘fazer-se-nativo-para-turistas’. Como confirma o Ipê, indígena Pataxó, em entrevista: “tem muito índio em Coroa Vermelha que ‘tá’ longe de ser índio, ‘tá’ mais para o lado branco” e só se dá conta de sua etnicidade para fora, ou seja, para exibir “algo que nem sabe o que é”. (GRÜNEWALD, 2001a, p. 160). O autor fala que os Pataxó de Coroa Vermelha são uma comunidade que se vende como os indígenas do tempo do 'descobrimento'. E por que os Pataxó constroem sobre si essa imagem para expor na arena turística? No meu entendimento, constroem assim porque imaginam que é isso o que os turistas esperam ver. Afinal, entre os Pataxó muitos sabem que os indígenas que habitavam aquelas bandas nos idos de 1500 eram os povos Tupiniquim e Aimorés, e que foi um longo processo de genocídio e perseguição que constituiu o que hoje são os Pataxó. Mas muitos visitantes têm a ilusão de estar frente a frente com um índio em 1500. Parece, portanto, que os Pataxó acham que o turista quer ver ‘índios genéricos’, vestidos com pena, cocar, borduna, pintura corporal, ou nus. Assim, informações sobre o contato interétnico, os direitos étnicos, a luta para manter a identidade indígena, os conflitos internos e externos, são abordados superficialmente, para que se ofereça ao turista um entretenimento. E eles possam ganhar ‘kaiambá’.9 Mas é importante perguntar qual o reflexo dessa reconstrução étnica no cotidiano indígena, nas relações sociais e econômicas da aldeia, no ser Pataxó. O exótico e o touree Segundo Van Den Berghe (Van Den Berghe & Keyes, 1984, p.346 apud Grünewald, 2001a, p.56) o turismo étnico10 transforma população nativa em touree11, um espetáculo vivo para ser escrutado e fotografado. Para o autor, o turista étnico quer ver nativos intactos, “nativos inexplorados”. A presença do turista, como um observador da cultura, torna o nativo um ator, que modifica seu comportamento, que inventa práticas, que faz um espetáculo de si mesmo. Assim, a busca pelo exótico destrói a autenticidade nativa, devido a esmagadora influência do observador sobre o observado. Entretanto, Grünewald (2001a) diz que no caso Pataxó não há falsificações, mas recriações de elementos culturais. Afirma que na aldeia de Barra Velha os indígenas não procuram representar-se a si mesmos, o seu modo de vida, para o turista ver. Apenas vendem Dinheiro, na língua Pataxó, chamada de Patxôhã, em processo de recriação. Segundo Castro (2008) após sete anos de pesquisa, os Pataxó acumulam um vocabulário em torno de 2.500 palavras. 10 “[...] a última onda do capitalismo explorador para a mais remota periferia do sistema mundial [...]”. 11 O touree é um nativo que virou ator, quer consciente ou inconscientemente – enquanto o turista é o espectador. (Van Den Berghe & Keyes, 1984, p.346 apud Grünewald, 2001, p. 56). 9

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artesanato no interior das suas casas. E “[...] se o turismo surgiu como uma alternativa econômica diante principalmente da escassez da terra, acabou por se tornar também um meio de fortalecer e ostentar a sua etnicidade”. (ibidem, p.60). Castro (2008), numa abordagem bem distinta da apresentada por Grünewald, oferece insights bastante interessantes às perguntas apresentadas, a partir da perspectiva e dos sentimentos dos Pataxó. Para ela, um olhar raso pode apreender a Reserva da Jaqueira como um empreendimento comercial e capitalista, cuja finalidade última seria a produção de renda para os indígenas que lá trabalham recebendo visitantes: Quanto aos elementos tradicionais ali apresentados, veríamos neles apenas simulacros destituídos de significado, cópias de uma tradição localizada em um passado distante e inapreensível. Em suma: em uma perspectiva utilitária e exclusivamente econômica, a Reserva da Jaqueira seria concebida como uma encenação falsa ou mentirosa, incapaz de produzir efeito sobre aqueles que encenam. (CASTRO, 2008, p.130).

De acordo com Castro, foi justamente o trabalho desenvolvido pelos Pataxó na Reserva da Jaqueira com grande esforço, visando conhecer mais profundamente a trajetória histórica de seus antepassados, e resgatar a tradição, que lhes devolveu um senso de identidade, dignidade e orgulho. Assim, “suas experiências nos dão a medida de como se situam no mundo, e de como esse mundo, no qual se situam, os constituiu e ainda os constitui enquanto sujeitos”. (ibidem, p.130). “[...] ao contrário de nossas teorias, eles não opõem continuidades e descontinuidades históricas; não opõem, tampouco, tradições resgatadas e tradições inventadas. [...] Na verdade, para eles, a dicotomia não se apresenta porque, ao se situarem como seres-no-mundo, sublinham principalmente sua própria capacidade criativa enquanto sujeitos”. [...] chamo a atenção para as atividades da Reserva como um ato performativo, capaz de produzir efeito sobre os sujeitos. O que vivem e experimentam ali, todos os dias, constitui uma parte importante daquilo que concebem como ser índios. Essa experiência também é compartilhada por outros Pataxó que, embora não frequentem a Jaqueira diariamente, participam de processos de criatividade semelhantes quando se pensam a si mesmos como índios e se envolvem nos projetos comuns ao grupo. (ibidem, p. 133-134).

As visões de Grünewald e Castro me fazem perceber quão imbricadas são as questões e o quanto é necessário, ao analisar os fatos e a realidade como ela se apresenta, ter como

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referência o sentido e a experiência indígena, sob risco de, mesmo sem intenção, nos colocarmos mais uma vez como colonizadores.

2.2.3 Impressões sobre o turismo nas aldeias Pataxó de Barra Velha e Pé do Monte12

Em viagem à Bahia em janeiro de 2009, vivi duas situações que me chamaram atenção e as relato a seguir. A primeira ocorreu durante visita ao Centro Cultural Porto do Boi13, especialmente construído para receber turistas. Na ocasião, durante a palestra expositiva, o anfitrião indígena rapidamente contou a história dos Pataxó e alguns ‘causos’ engraçados, tais como o costume do casamento, e disse que o produto turístico que eles apresentavam constituía-se como uma oportunidade de troca cultural. Na hora ocorreu-me perguntar que troca era essa? Pois não senti que havia realmente uma troca, senti que os Pataxó apresentavam uma cultura ‘espetaculizada’ e eu consumia e pagava. Achei que era pouco para constituir-se como uma troca, ou então, que a troca a que ele se referia era exclusivamente financeira. Dias depois, em visita ao Parque Nacional do Monte Pascoal (PNMP) 14 decidi dormir no Centro de Visitantes, para poder conviver um pouco mais com os Pataxó. Naquela noite, o cacique me convidou para ir a “esmola de São Benedito 15”. Além de participar da festa, fui convidada a jantar com os foliões16. Mas se houvesse ali uma visitação constante, será que essas práticas resistiriam? Se sim, elas seriam compartilhadas com os visitantes? Até que ponto é possível compartilhar a experiência do sagrado com pessoas de fora? Acho que provavelmente haveria restrições, pois há muita intimidade num ato de fé e de reza, não há como compartilhar isso com turistas ávidos por tirar fotografia. Além do mais, como é uma festa católica, não condiz com o imaginário do turista sobre os indígenas. E, ainda, como a festa é extremamente simples, não há ‘espetaculização’, haveria pouco interesse turístico. Mas há o outro lado da questão: se já houvesse um fluxo grande de visitantes, possivelmente os Pataxó não teriam tanto tempo de se dedicar à festa, pois estariam ocupados, servindo-os. Fotos no Anexo I. Produto turístico desenvolvido por uma família Pataxó, baseado na experiência da Reserva da Jaqueira. Constituí-se de um passeio de voadeira do porto de Caraíva até o Centro Cultural, caminhada numa trilha de cerca de 500 metros, exposição de artesanato, apresentação de dança indígena (awê), palestra e degustação de culinária tradicional (peixe moqueado e bebida de mandioca fermentada). O passeio durava em torno de 3 horas e custava R$ 50,00 por pessoa, em janeiro de 2009. 14 Em 1999, pouco antes das festividades dos 500 anos do ‘Descobrimento’, os Pataxó retomaram o Parque Nacional do Monte Pascoal. Abriram o PARNA para a visitação pública e gerenciam as atividades turísticas desde então. Na entrada do PNMP localiza-se a Aldeia Pé do Monte, que se estende até a Aldeia do Trevo. 15 Compunha-se de terço e cantoria em homenagem ao Santo Católico e toda a comunidade estava presente. 16 Foliões são os devotos do Santo em questão. 12 13

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No dia seguinte, após fazer a trilha do Monte Pascoal, passei na casa do cacique para me despedir e me presentearam com uma jaca. Aceitei a dádiva. Retribuí com a atenção e interesse, e um pouco de açúcar e carne que havia comprado. Entretanto, o valor de estar ali, compartilhar com eles a vida, a festa, a fé, não poderia ser medido. Qual seria o preço a ser cobrado? Enquanto ‘turista’, perguntei ao cacique Pataxó qual era o preço da dormida e do jantar. Não obtive resposta. Algumas coisas ali ainda não eram “precificáveis”. Ou seja, ali a hospitalidade ainda não se constituía como uma relação comercial. Deu-me uma sensação de estar em dívida. Como diz Carlos Rodrigues Brandão (2008, p.59) as relações humanas envolvem éticas e lógicas de vida fundadas na troca e na reciprocidade. Perguntei-me que troca tinha sido essa. Ela não foi financeira, embora visivelmente aquele fosse um povo com recursos financeiros escassos. Senti que a única troca possível era o compromisso de respeito e de solidariedade para com o povo Pataxó. Também me perguntei o que significa o dinheiro como algo que compra hospitalidade. As relações de dádiva e de solidariedade morrem, ou sofrem grandes danos quando o dinheiro penetra. Se tudo o que se faz ou se oferece tem preço, onde está à dádiva, o compartilhar? Tudo vira moeda. É mesmo esta sociedade que queremos para nós? É esta sociedade que consideramos como modelo? É essa experiência que vamos reproduzir e ajudar a multiplicar com as viagens turísticas a terras indígenas?

2.3 EXPERIÊNCIA ENTRE O POVO KRAHÔ17

“Não é deslocando a direção do nosso olhar iludido que conseguimos torná-lo lúcido e calmo. É criando em nós um novo modo de olhar e de sentir”. Fernando Pessoa

Esta experiência foi planejada e organizada por Marcella Camargo18, antropóloga e pesquisadora social que trabalha com um grupo de jovens formado por alunos da Escola Britânica, de classe alta, e por moradores do morro da Babilônia, uma favela vizinha à escola, no bairro da Urca, Rio de Janeiro. Em junho de 2008, ela, um professor, cinco meninos e cinco 17 18

Este relato baseou-se em uma entrevista semi-estruturada, realizada por telefone, em 12 de abril de 2009. Integrante da ONG Núcleo Informação Conhecimento e Atitude – Núcleo ICA

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meninas integrantes deste grupo, com idades entre 13 e 21 anos, passaram uma semana entre os Krahô. A viagem foi planejada durante dois anos. Antes de ir com o grupo, a professora esteve por duas vezes na Terra Indígena Krahô. Conversou com o indigenista Carlos Salgado sobre a cultura do povo Krahô e os cuidados necessários para que a experiência de relacionamento intercultural ocorresse de forma respeitosa. Pedra Branca foi a aldeia escolhida para acolher o grupo especialmente pela possibilidade de recepção de Cawcré Krahô, diretor da escola Agroambiental Catxêkwyj 19, que orientou Marcella Camargo e os alunos durante toda a estadia. Nos dois anos de preparação para a experiência, o grupo de jovens discutiu, por meio de dinâmicas e leituras, a temática da diferença. A proposta de investigação da viagem era descobrir como viviam os jovens Krahô. Seguem-se trechos da entrevista: Preparação da viagem Uma antropóloga [...] que trabalhou com os índios do Pará, [...] colocou como poderia ser prejudicial para os indígenas essa nossa ida lá. O consumismo, outras referencias, o olhar de pobreza, olhar para eles e não reconhecer a diferença, mas a pobreza e a falta. Ela colocou isso, e a gente discutiu muito, a gente leu Malinowski, Rousseau [...].

Abordagens sobre turismo A gente pensou o seguinte, que tipo de turismo é esse? Um turismo que vai lá e olha, como se vai num zoológico ou é uma coisa que você vai e se envolve? Essa é a grande questão, não dá para passar impune [...]. A gente ficou discutindo como a gente poderia ser, que tipo de atitude a gente poderia tomar para não ser um turismo pernicioso, entendeu, para ser bom, ganhaganha para as duas partes. De fato, os meninos não têm dúvida de quanto eles ganharam, de quanto aquilo mexeu com eles. Mudou o olhar deles sobre a vida [...]

Preocupações e contradições [...] A gente foi pra lá super preocupados. São tantas questões lá, né? Questão da bebida, as pessoas ficarem pedindo roupa, a questão de valorizar tudo de fora, e aí fica esta expectativa que eles têm que ser sei lá, bons selvagens, mas também, será que tem? [...] Aí que entra, se a gente der coisas para eles a gente está prejudicando, a gente está fazendo mal?

19 A escola Catxêkwyj vem buscando, por meio da valorização da educação tradicional indígena, estabelecer um novo tipo de relacionamento interétnico, baseado na reciprocidade e na autodeterminação Krahô.

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Efeito da viagem entre os Krahô A gente queria responder essa pergunta, qual o efeito nos Krahô? Se foi bom, se foi ruim? [...] Eu fiquei muito preocupada com essa coisa da gente trazer uma falsa ilusão de, sei lá, uma vida melhor. Não sei se é melhor, é diferente, né? Todo mundo ficou preocupado com isso lá, e todo mundo achou que a vida deles é bem melhor. [...] Uma coisa que eles conversaram muito, que eles têm a mesma vontade de vir para cá [...]. Todo mundo quer conhecer o outro [...] A gente queria ajudar os Krahô, e isso é um outro projeto, a construir o Museu da Machadinha, e outra coisa, promover nas escolas internacionais a visita as Terras Indígenas Krahô. Mas isso é um troço super complicado que até agora a gente não sabe se isso é bom ou se é ruim, é uma grande questão.

Efeito da viagem entre os jovens da cidade É muito pessoal essa experiência [...] todos eles comentaram que mexeu muito com eles, pela simplicidade dos Krahô, pelas crianças, é muito difícil descrever que é uma coisa da vivência, deles poderem ver como a vida é simples [...]. Tem umas declarações, no último dia, que eu coletei individualmente de cada um falando logo que a gente saiu da aldeia o que tinha acontecido lá, tinha que falar como se sentiu, como estava antes e agora. E foram coisas super bonitas, maravilhosas, que tem a ver com uma visão de mundo melhor, respeitar a diferença, de direitos humanos [...]

Nesta viagem experimental chama a atenção o fato do grupo de jovens, ao viverem o universo indígena, terem sido capazes de olhar para dentro de si mesmos, de perceber como eles eram, de criar vínculos entre si, apesar de serem tão diferentes, uns de elite e outros da favela. Perceberam a própria humanidade, as coisas que tinham em comum. Criaram laços de solidariedade e reciprocidade, tanto que estão trabalhando para a continuidade das ações de intercâmbio com os jovens Krahô, e assumiram o compromisso de ajudar a construir o Museu da Machadinha. Também é relevante o preparo feito para adentrar a Terra Indígena, o cuidado com que a viagem foi planejada e o próprio objetivo: conhecer o Outro, o jovem Krahô. Mas, a pergunta central da professora responsável pela viagem continuou sem resposta: o que a viagem significou para os Krahô? Foi bom ou foi ruim?

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2.4 VOZES E VISÕES DE INDÍGENAS

Em busca de um olhar o mais abrangente possível, entrevistei também três lideranças indígenas - Mario Wapichana20, do povo Wapichana, Almir Narayamonga Suruí21, do povo Paiter e Elcio Severino da Silva Manchineri (Toya Manchineri) 22, do povo Yne, para conhecer suas visões sobre o turismo em terra indígena e a relação com a cultura, com o sagrado e com a sua autonomia. Embora nenhuma desses povos desenvolva atividades turísticas nas suas terras, as entrevistas23 abaixo demonstram que o assunto já está nas agendas indígenas. As falas pontuam reflexões e preocupações centrais a respeito deste tema. Sobre o sagrado e a cultura Mario Wapichana (2009), da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, explica que seu povo vem discutindo a possibilidade de trabalhar com o turismo, mas com grande preocupação quanto à questão do sagrado: [...] os pontos sagrados, no momento que a pessoa que não sabe vai lá, isso pode prejudicar ela também. Pode se transformar em doença, pode se transformar em qualquer dano para a pessoa que vai visitar. E a gente avisa logo que, para manter essa vida sagrada, a gente faz uma ligação direta com a espiritualidade indígena, é considerar que aquele lugar, saindo de lá, aquilo pode dar um impacto muito forte na comunidade como um todo, ela tira a direção da comunidade. E a comunidade não é mais considerada como que tem alguma história, como que tenha o sagrado. É muito mais do que um desrespeito, seria tipo uma destruição mesmo do ponto sagrado [...] Por exemplo, o lago Caracaranã é um ponto turístico. Mas a gente sabe que no meio do lago Caracaranã tem seres que, se a gente não obedecer a lei da natureza ou a lei espiritual indígena, eles podem se voltar contra nós, indígenas, e podem até matar todos os indígenas. Pode não acontecer com as pessoas que não tem uma ligação direta com aquele ambiente, mas pode acontecer conosco. Isso que a gente considera sagrado. Tem o monte Mario Nicácio Wapichana é uma liderança Wapichana e técnico em Agronomia e Gestão Ambiental formado pelo Centro Indígena de Formação e Cultura Raposa Serra do Sol, Roraima. Atualmente, atua como assessor no Programa Projetos Demonstrativos dos Povos Indígenas – PDPI/MMA e no Centro Indígena de Estudos e Pesquisa (Cinep). 21 Almir Suruí, liderança do povo Paiter, da Terra Indígena 7 de Setembro, em Rondônia, é membro titular da Comissão Nacional de Política Indigenista (CNPI) e membro titular do Grupo de Trabalho Interministerial (GTI), constituído para elaborar a proposta de Política Nacional de Gestão Ambiental em Terras Indígenas. 22 Toya Manchineri, liderança do povo Yne, da Terra Indígena Mamoade, no Acre, é membro titular da Comissão Nacional de Política Indigenista (CNPI) e membro suplente do Grupo de Trabalho Interministerial (GTI) constituído para elaborar a proposta de Política Nacional de Gestão Ambiental em Terras Indígenas. 23 O texto integral das entrevistas encontra-se no Anexo II. Todos os entrevistados são lideranças ativas do movimento indígena. As entrevistas foram feitas durante o Seminário de Gestão Ambiental em Terras Indígenas, promovido pela Funai e pelo Ministério do Meio Ambiente em 31 de março e 1o de abril de 2009. 20

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Roraima, tem o lago Caracaranã, tem a serra da Lua. A gente pensa em desenvolver o turismo, mas com essas explicações. O turismo não é só ver a beleza, tem que ver o histórico daquele ponto turístico. Acho que isso tem que ser bem claro, não tem que ver o lago grande, com praia bonita, mas tem que entender porque não pode andar no meio do lago. Acho que isso é um turismo bem puro, né? (WAPICHANA, 2009).

Ainda com relação à cultura e ao sagrado, Toya Manchineri (2009) reflete que um projeto de turismo deve considerar a dinâmica cultural de cada povo indígena. Ela que determina o que pode ou não ser divulgado: Tem coisas da cultura que tu pode mostrar, tem muitas coisas que não. As coisas sagradas, tu nem coloca no pacote. É uma coisa da própria comunidade, que tu não deve mexer. A não ser que a comunidade toda se reúna, e fale que agora é o momento da gente apresentar esse outro lado da nossa cultura. São caminhos, passo a passo, que a comunidade tem que tomar no seu projeto de caminhada. Que a gente sabe muito bem que a cultura se desenvolve a cada ano que passa, cada geração tem uma outra mentalidade. (MANCHINERI, 2009).

Sobre o elo entre economia e cultura Acho que o turismo nas comunidades indígenas é importante, não só para ganhar dinheiro, mas para também fortalecer essa divulgação do histórico, das tradições, tal. [...] A gente está procurando isso, para poder fazer uma conexão entre ajudar a sustentabilidade indígena, porém mantendo a espiritualidade indígena com relação à tradição e a cultura [...] (WAPICHANA, 2009).

Sobre o fortalecimento identitário [...] às vezes o turismo que as pessoas veem em nós só é o índio pintado pra dançar. Isso às vezes é feito de forma artificial na escola dos brancos, [...] mas eu acho que o turismo é muito mais do que isso. O que a gente está tentando resgatar, pelo menos lá em Roraima, é essa forma de incluir o turismo na manutenção da vida indígena como ela é originalmente, e aprofundar mais no resgate das culturas [...]. Manter todas essas restrições para nós mesmos, para a gente poder transmitir para as pessoas. A gente que somos da nova geração temos que conhecer primeiro para depois poder conscientizar aquelas pessoas que tem uma cultura diferente [...]. (WAPICHANA, 2009).

Claramente, as lideranças entrevistadas consideram o potencial benefício econômico que o turismo pode trazer às comunidades. E esse é um ponto importante na atual conjuntu34

ra da política indigenista: encontrar alternativas sustentáveis que possam ser gestionadas pelas populações indígenas de forma autônoma. Mas as falas das lideranças explicitam também preocupações com a dimensão do sagrado e a necessidade de cuidados para não causar danos ao mundo visível e invisível. O turismo tradicional, com seu foco econômico, tende a tratar a cultura como espetáculo. Se a cultura indígena for tratada assim no interior das aldeias, na última fronteira onde está relativamente segura, estaremos ajudando a fortalecer o etnocídio. No universo indígena, a dimensão cultural e espiritual são totalmente articuladas. Se as viagens turísticas, as viagens solidárias, ou as viagens de aprendizado forem realizadas em Terras Indígenas, é preciso considerar, antes de tudo, a ordem do mundo indígena, seus valores sagrados, sua alma ancestral. As lideranças também falam sobre a capacidade que o turismo tem para apoiar o fortalecimento da cultura, promover a autogestão e ampliar a comunicação, o diálogo e o intercâmbio intercultural. Se o turismo for do interesse do grupo indígena, deve ser precedido por um planejamento cuidadoso, como afirma Almir Suruí (2009): Turismo, na minha opinião, não pode ser feito assim, ir chegando e implantando dentro de um território indígena. Eu acredito que, para ter um ecoturismo numa terra indígena, precisa de um diagnóstico de levantamento potencial do impacto que ele pode trazer também. Então, a partir dali, a própria comunidade pode decidir como é que eles querem trabalhar [...] Acredito que tem impactos desde meio ambiente desde cultura, porque você vai cada vez mais aprendendo um pouco o que esses visitantes futuros, o que podem levar de bem ou mal para dentro de uma terra indígena, mesmo que você tenha critérios que podem ser estabelecidos dentro desse plano de turismo, se for numa terra indígena. Então, eu acho que eu não descarto a possibilidade, porque isso é um dos potenciais de muitas terras indígenas, mas precisa que tenha esses critérios, esses estudos, os planos de longo prazo para implementar, planejar, como que pode ser desenvolvido numa terra indígena [...] (SURUÍ, 2009).

Sobre o benefício que a atividade poderia trazer, as falas das lideranças são claras: O benefício para o povo indígena seria o econômico [...], mas também pode possibilitar levar informações sobre a cultura do povo indígena dentro da sociedade como um todo. Pode trazer grande reflexão de respeitar e conhecer, não discriminar. (SURUÍ, 2009). A questão do turismo é uma coisa bastante interessante. Concordo com o Almir Suruí que primeiro vem a questão financeira, um trabalho que pode

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beneficiar toda uma população indígena, as diferentes etnias. E também o ganho que eu vejo é a divulgação da cultura, jogar a cultura desse povo no mundo, para que os próprios regionais, a própria população do Estado possa conhecer mais profundamente a cultura desse povo, que muitas vezes não se conhece. [...] Uma forma de mostrar a diferença que tu tem, os valores que aquela terra tem. Eu penso que é um setor que vai dar bastante recurso para a comunidade indígena, em vez de vender madeira, em vez de vender ouro e coisa e tal, trabalhar com turismo. E tem que saber trabalhar por que senão tu cria mais um problema dentro da comunidade, pela parte financeira, tu não distribui, tu não tem claro dentro do projeto para onde vai os recursos. (MANCHINERI, 2009).

Sobre a gestão e a autonomia, Toya Manchineri explica como seu povo vem tratando o assunto e como encaram a gestão da atividade: [...] nós do Estado do Acre, o povo Manchineri, desde 2004 vem discutindo a questão do turismo. Nós já elaboramos uma proposta. O que nós pensamos é trabalhar o turismo cultural, mostrar os valores que o povo tem, desde a questão da religiosidade, da cultura, das danças, da mitologia, da história e definindo para onde vai o recurso. O grande problema dos projetos, muitas vezes, é a dificuldade do recurso, de partilhar ele. Nós temos muito claro isso, com a proposta que nós trabalhamos, que 40% iria para bancar a infra-estrutura, o resto seria distribuído ou feito programas em outras comunidades. [...] Nós construímos um projeto mais não colocamos em prática ainda. Temos que fazer toda uma reunião com o povo para legitimar o projeto. A nossa ideia é que seja um espaço especificamente para o turismo não interferir na vida da comunidade. Que a partir desse local, pudesse receber os turistas, visitar as áreas de animais, fizesse as festas, trabalhasse a religiosidade para eles participarem com a gente. Mas a partir dali. Claro que estipulando também regras de funcionamento, principalmente a questão da poluição do ambiente, do rio [...]. Uma outra coisa é a questão do gerenciamento. [...] Nós queremos trabalhar o turismo, mas não queremos servir de entregadores de artesanato, não. O projeto prevê todo o gerenciamento, desde a questão do transporte, pelo povo Manchineri. Isso traz autonomia financeira [...]. (MANCHINERI, 2009).

Mario Wapichana disse que depois da demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, os indígenas de Roraima estão “começando a definir os planos pra não mostrar os indígenas como esse monstro, onde nada pode ser feito na Terra Indígena”. Há proposta de desenvolver o turismo, com base nos aspectos levantados por ele na entrevista. Já Almir Suruí afirmou que este não é um projeto que seu povo estuda. Mas argumentou que: 36

Cada pessoa, cada terra indígena, cada povo tem situações diferentes, é muito difícil você, a partir da sua ideia, da sua visão, tratar e inserir todos os povos indígenas do Brasil. Por que quer seja ou não, cada um deles tem seu ano de contato diferente, tem 500 anos de contato, tem 40 anos de contato, tem 20 anos de contato, tem 10 anos de contato, e vai indo. Depende muito como que o povo quer enfrentar cada situação igual a essa. (SURUÍ, 2009).

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3. EM BUSCA DA HUMANIZAÇÃO DA VIAGEM

“A vida é o que fazemos dela. As viagens são os viajantes. O que vemos não é o que vemos, senão o que somos”. Fernando Pessoa

3.1 ABRINDO-NOS À ESCUTA ESSENCIAL No que consiste saber escutar? Escutar é parte constituinte do processo de comunicação e pressupõe respeito mútuo. Ao falar, nos abrimos ao Outro, expressamos o que somos, expomos nossa alma. O Outro, que escuta, acolhe. Relações humanas genuínas são baseadas em falas sinceras e em escutas sensíveis. “Quando escutamos, nos colocamos na disposição de aceitar que existem outras formas de ser, diferentes da nossa.” (ECHEVERRIA, 2008, website). Significa que aceitamos a diferença como legítima e reconhecemos o direito à autonomia. Estamos abertos ao Outro. Quando não há respeito pela diferença, projetamos a nossa própria imagem, não aceitamos o Outro como ele é, mas como julgamos adequado. Restringimos a comunicação. Bloqueamos os canais. “Produzimos a fantasia de escutar ao outro enquanto estamos, basicamente, escutando a nós mesmos” (ibidem). Segundo Echeverria (ibidem, p. 7, website), Maturana expressa esse mesmo ponto de vista quando sustenta que “a aceitação do outro como um legítimo outro” é um requisito essencial da linguagem. [...] Cada vez que colocamos em dúvida a legitimidade do outro; cada vez que nos colocamos como superiores ao outro, com base na religião, sexo, raça (ou qualquer outro fator que possamos utilizar para justificar posições de egocentrismo, de etnocentrismo, de chauvinismo, etc.); cada vez que sustentamos ter um acesso privilegiado à Verdade e à Justiça; cada vez que presumimos que nossa maneira particular de ser é a melhor maneira de ser; cada vez que nos esquecemos que somos apenas um observador particular, dentro de um feixe de infinitas possibilidades de observação; cada uma destas vezes, nosso escutar se ressente. (ECHEVERRIA, 2008, p.7, website).

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Assim, pergunto que comunicação seremos capazes de estabelecer com os povos indígenas durante a experiência da viagem. Estaremos abertos ao diálogo – que neste caso significa escutar o Outro, o indígena, com sua cultura e seu modo de ser e viver no mundo sem restrições, sem preconceitos? Ao invés de tratá-lo como um ser exótico, infantil e primitivo, como sempre fizemos, desde a conquista portuguesa? E, neste escutar, aprender a respeitar e considerar a sua sabedoria de vida, sua ciência, sua cultura, sua espiritualidade como conhecimentos que podem se somar aos nossos, responder nossas questões, trazer luzes às nossas trevas, apresentar caminhos?

3.2 A MERCANTILIZAÇÃO DA CULTURA VERSUS VIVÊNCIAS SOLIDÁRIAS

Ao reconhecer que os povos indígenas têm o que dizer e o que contribuir nesse momento histórico em que se fala da emergência da construção de um novo modelo de desenvolvimento para o Brasil e para o mundo, indago se o turismo pode ser uma porta para a sociedade nacional começar a se relacionar com as etnias no mundo delas. A questão é: uma visita a um grupo indígena que pratica o turismo de forma organizada pode aprofundar a visão do visitante sobre o “índio genérico” ou “o bom selvagem” - aquele “índio” de pena, cocar, borduna, arco e flecha, que está no imaginário popular do brasileiro? Seria interessante que a partir da experiência da viagem, o visitante entendesse um pouco mais sobre o mundo indígena e história do Brasil, a colonização, a resistência indígena, os conflitos, e aprendesse a respeitar e a valorizar as diferenças culturais. O mergulho no modus vivendi indígena pode trazer ao viajante uma reflexão sobre a história do grupo indígena, sobre a história do país e até sobre o modelo de sociedade que construímos e perpetuamos. Servirá ao reconhecimento e valorização das culturas indígenas? Nesse caso, o turismo poderia se tornar uma forma de resistência cultural e política. Mas será mesmo assim? Ou a atividade e o contato com o visitante aumentarão o risco de mercantilizar as relações humanas nas aldeias de uma forma irreversível, tal como ocorreu na maior parte dos territórios onde o turismo se desenvolveu? Sabemos que a mercantilização das relações parece ser um nó indissolúvel na estrutura do turismo. Seja o turismo tradicional, o turismo de massa, o ecoturismo, não importa o nome que se dê. Oferecem-se produtos e serviços e o turista compra. As relações deixam de ser espontâneas e tornam-se “comerciais”. E, em muitos lugares onde o turismo se desenvolve, à medida que a quantidade de turistas aumenta, as atitudes tornam-se encenadas e se transformam em mercadoria. Os indígenas tendem a tornarem-se atores, que encenam 39

sua cultura para turistas. As comunidades são transformadas em “pseudo-comunidades” que se sobrepõe às comunidades étnicas. Há muitas questões aí. A mercantilização das relações foi um dos altos preços pagos pelo desenvolvimento e modelo de vida capitalista. Como diz Millan (2006), liderança do povo Mapuche (Argentina), as relações dos povos originários são baseadas no sagrado, na solidariedade e na reciprocidade. Assim, o perigo que se corre ao comercializar as relações é muito grande para as sociedades indígenas. O risco de tornar tudo um simulacro, de perder valor espiritual, de se acostumar com relações falsas, construídas sob bases mercantis. Mas sério ainda, o risco de enfraquecer as relações internas, os valores legítimos do povo indígena, sustentados pela sacralidade. Ou de marginalizar ainda mais o povo indígena, colocando-o como um mero prestador de serviços, numa posição desvantajosa com relação ao visitante. Ou ainda, de criar desigualdade social com a entrada de dinheiro mal distribuído nas comunidades. No filme “Cannibal Tours” (O’ROURKE, 1988), que conta a história de turistas europeus e norte-americanos que, a bordo de um luxuoso cruzeiro pelo mar da Papua-Nova Guiné, visitam 18 aldeias de uma tribo, localizadas na floresta ao longo do rio Sepik, uma liderança indígena diz que não entende o que os turistas fotografam tanto. Nem ele nem nenhum nativo das 18 ilhas de Papua-Nova Guiné. Também não entende porque os europeus e norte americanos têm tanto dinheiro e mesmo assim, sempre barganham o preço do artesanato que compram dos nativos. Ele diz que não acha justa a relação de barganha, e que se tivesse dinheiro talvez se tornasse um turista na terra dos estrangeiros. Nitidamente, as relações interétnicas são mercadológicas, chegam a ser cruéis. Os turistas tratam os nativos como se fossem “objetos turísticos à disposição de seu entretenimento” e não veem as suas necessidades reais. O filme é um retrato chocante de um turismo pouco respeitoso com a alteridade, com a humanidade, com a diferença. Os povos indígenas devem saber defender-se de relações deste tipo.

3.3 LEGISLAÇÃO INDIGENISTA

Os instrumentos jurídicos que norteiam as políticas indigenistas no país são o Estatuto do Índio, de 1973, a Constituição Federal, de 1988, e a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), sobre povos indígenas e tribais, de 1989. Segundo Leitão e Araújo (2008), o Estatuto do Índio (Lei 6.001), ainda hoje em vigor, estabeleceu o instituto da 40

tutela sobre os índios. Coube ao órgão indigenista federal, a Fundação Nacional do Índio (Funai)24, exercer o papel de tutor dos indígenas, responsabilizando-se pela defesa dos seus direitos e interesses. Por trás da tutela: [...] a visão preconceituosa de que os índios seriam seres inferiores, primitivos e carentes de educação que lhes permitisse manifestar suas opiniões e determinar suas próprias vidas. [...] o Estatuto anunciava, já no seu primeiro artigo, o propósito de “integrar os índios à sociedade brasileira, assimilando-os de forma harmoniosa e progressiva”; em outras palavras, fazendo com que pouco a pouco deixassem de ser índios. (LEITÃO e ARAÚJO, 2008, p.70).

O Estatuto do Índio está em revisão pelo Congresso Nacional desde 1991 e atualmente, uma nova proposta de Estatuto está sendo discutida no âmbito da Comissão Nacional de Política Indigenista (CNPI)25, composta por representantes indígenas e governamentais. A Constituição de 1988 teve suas bases calcadas sob um prisma diametralmente diferente do Estatuto do Índio, reconheceu o direito étnico e originário, criando as condições para o estabelecimento de uma sociedade pluri-étnica e multicultural, [...] reconhecendo serem eles coletividades culturalmente distintas, os habitantes originais de nossa terra e, por isso mesmo, detentores de direitos especiais. (LEITÃO e ARAÚJO, 2008, p. 71).

A lei maior do Estado brasileiro, no Capítulo VIII – Dos Índios, Art. 231 expressa: São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens. (MAGALHÃES, 2005, p. 27). No direito instituído pela Constituição, ruiu por terra o “dogma” da assimilação/incorporação dos indígenas à sociedade nacional e construiu-se uma alternativa jurídica para os indígenas permanecerem sendo indígenas, de acordo com a sua vontade e interesse, independentemente do grau de contato com a sociedade dominante. A Convenção 169 da OIT, que foi ratificada pelo Congresso Nacional em 2002 e promulgada pelo Decreto no 5.051 em 19 de abril de 2004, garante aos povos indígenas e tribais de todo o mundo o direito de, se assim o desejarem, salvaguardarem suas culturas e identidades no contexto das sociedades que integram. Tem entre seus conceitos básicos, que norA criação da Funai foi autorizada pela Lei 5.371 em 05/12/1967. Este mesmo instrumento extinguiu o Serviço de Proteção aos Índios (SPI), que funcionou de 1910 a 1967. 25 A CNPI foi instituída por meio de decreto presidencial em 22/03/2006 e tem como atribuição principal a elaboração do anteprojeto de lei para a criação do Conselho Nacional de Política Indigenista, que será integrado ao Ministério da Justiça. 24

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teiam a interpretação de seus dispositivos, a consulta e a participação dos povos interessados e o direito desses povos decidirem sobre as suas próprias prioridades de desenvolvimento e sobre tudo o que afete suas vidas, crenças, instituições, valores espirituais e a própria terra que ocupam ou utilizam. (CONVENÇÃO, 2004, p.08). A nova Convenção assegura aos povos indígenas e tribais a igualdade de tratamento e de oportunidades no pleno gozo dos direitos humanos e liberdades fundamentais, sem obstáculo ou discriminação e nas mesmas condições dispensadas aos demais povos. (CONVENÇÃO, p. 09).

Ao ratificar a Convenção, o Brasil aderiu ao instrumento de direito internacional mais abrangente nesta matéria, se comprometendo a adequar sua legislação e a política pública pertinente aos seus termos e disposições. O turismo em Terras Indígenas é uma atividade ainda não regulamentada e nem a Convenção 196, nem a Constituição Federal tratam especificamente do tema26. Apenas o Estatuto do Índio no art.58, capítulo II – Dos crimes contra os índios do título VI – Das Normas Penais, faz menção e estabelece: Constituem crimes contra os índios e contra a cultura indígena: [...] II - utilizar o índio ou comunidade indígena como objeto de propaganda turística ou de exibição para fins lucrativos. Pena – detenção de dois a seis meses. (MAGALHÃES, 2005, p. 38).

Entretanto, segundo Magalhães (ibidem, p. 28) as normas legais anteriores a 1988 devem ser interpretadas em conformidade com as atuais garantias constitucionais, em especial aquelas contidas no Capítulo VIII – Dos Índios. Assim sendo, devemos considerar como orientadores os princípios da Constituição Federal e da Convenção 169, que consideram os indígenas como sujeitos do seu próprio desenvolvimento. Sendo que a eles cabe decidir sobre os potenciais inerentes de cada comunidade e de cada grupo indígena, tendo com base um desenvolvimento calcado na cultura, na sua identidade étnica, nos seus valores internos e na sua autonomia de gestão. Como afirma Luciano27 (2008, p. 65): “De fato, a grande questão que se coloca no campo interétnico é deixar que os índios sejam sujeitos efetivos de suas decisões”. Para superar a dependência histórica, a tutela e o paternalismo com que o Estado brasileiro tratou os povos indígenas é essencial fortalecer a sua autonomia. Na visão de Luciano,

26 No âmbito da CNPI está em processo de construção um novo Estatuto dos Povos Indígenas. O fomento às atividades produtivas, entre as quais o ecoturismo, está sendo tratado como um tema. 27 Gersem Luciano é Baniwa do Alto Rio Negro, professor, doutorando em antropologia na Universidade de Brasília – UnB. Atualmente, chefia o Departamento de Educação Indígena do Ministério da Educação.

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esta está intrinsecamente relacionada a três conceitos e práticas políticas integradas: interculturalidade, autonomia e sustentabilidade. (LUCIANO, 2008, p.59).

3.4 A DISCUSSÃO NO ÂMBITO DAS INSTITUIÇÕES PÚBLICAS

Para entender como as discussões em torno de uma política pública visando à normatização do turismo em Terras Indígenas ocorreram, pontuo uma série de fatos ocorridos entre 1995 e 2009. Segundo o documento intitulado “Seminários Regionais e Seminário Nacional sobre Turismo em Terras Indígenas”, elaborado em 2005 por Rodrigo Pádua Chaves, consultor do Ministério do Turismo, a Funai participa de discussões sobre o tema do ecoturismo em terra indígena desde 1996. Foi no âmbito do Grupo Técnico de Coordenação de Ecoturismo para a Amazônia Legal (GTC Amazônia)28, criado através da Portaria Interministerial nº. 21, de 30.11.1995, que a discussão desse tema teve início. Participavam do GTC Amazônia o Ministério do Meio Ambiente29 (MMA), por meio da Secretaria de Coordenação da Amazônia, o Ministério da Indústria, Comércio e Turismo, por meio do Instituto Brasileiro de Turismo (Embratur), e o Ministério da Justiça, por meio da Funai. O GTC Amazônia desenvolveu um projeto intitulado Programa Piloto de Ecoturismo em Áreas Indígenas, a partir da contratação de uma empresa consultora especialista em ecoturismo, a Ecobrasil.

No âmbito dessa consultoria realizou-se, em março de 1997, um

workshop em Bela Vista de Goiás. Em continuidade dos trabalhos, em outubro de 1997 foi feita uma visita técnica as Terras Indígenas Metutire e A-Ukre (Mebêngôkre / Povo Kayapó) visando estudar a viabilidade de uma experiência piloto. Em dezembro de 1997, foi lançado o livreto “Manual Indígena de Ecoturismo” e, em julho de 1998, a empresa apresentou o Relatório Final da consultoria, com uma proposta fechada de pacote turístico para os Kayapó (A-Ukre e Pinkaiti). Após a finalização do contrato de consultoria, não houve continuidade nos trabalhos propostos. Analisando os documentos, percebo que apontam questões relevantes, que merecem atenção caso esta discussão seja formalmente retomada. Considero especialmente válidos os princípios estabelecidos, os critérios para a seleção das áreas e a árvore de problemas, construídos durante o workshop30.

28 Conforme a portaria interministerial, o objetivo do GTC Amazônia era coordenar a elaboração e a execução da Política e o Programa Regional de Ecoturismo. 29 À época chamava-se Ministério do Meio Ambiente, dos Recursos Hídricos e da Amazônia Legal. 30 Os documentos podem ser consultados no Programa de Desenvolvimento do Ecoturismo na Amazônia Legal (Proecotur/MMA), em versão mimeo. (www.mma.gov.br/proecotur). No Anexo III, encontram-se as partes referidas do documento.

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Entre 1999 e 2000 as tentativas de construção de um termo de cooperação entre MMA e Funai para a regulamentação da atividade de ecoturismo em terras indígenas e a proposta de criação de um GT com a participação do Ministério do Meio Ambiente, Funai, Ministério dos Esportes e Turismo e Ministério da Saúde foram frustradas. Segundo André Ramos, técnico de Funai e membro do GTC Amazônia de 1999 a 2002, esta demanda provavelmente não foi atendida porque havia um entendimento no setor jurídico do órgão indigenista de não havia base legal para permitir o desenvolvimento do turismo em Terras Indígenas. Segundo Lange (2009) quem primeiro conduziu essa discussão no âmbito do Ministério do Meio Ambiente foi o indigenista Silbene de Almeida, gerente técnico do Programa de Desenvolvimento do Ecoturismo na Amazônia Legal (Proecotur) à época. Ela relata que Silbene tinha certo receio do turismo adentrar a intimidade das comunidades indígenas. Assim, pensava em construir “hotéis indígenas” distanciados das moradias indígenas, para evitar um contato muito próximo dos turistas no cotidiano das aldeias. Em 2000, o Departamento de Patrimônio Indígena e Meio Ambiente31 da Funai (DEPIMA) enviou um questionário às Administrações Regionais visando levantar dados sobre as iniciativas de ecoturismo em Terras Indígenas. Do total de 47 questionários enviados, 19 foram respondidos e destes, 13 informaram a existência de visitação nas comunidades, ou seja, quase 30% das Administrações confirmaram alguma atividade relacionada. Os Pataxó da TI de Coroa Vermelha, Reserva da Jaqueira (BA), por exemplo, foram pioneiros na visitação ecoturística enquanto alternativa de renda. Em 1999 começaram a desenvolver um projeto de recepção de visitantes, e o MMA, via Proecotur, foi financiador do projeto, firmando um convênio com a Associação Pataxó de Ecoturismo (ASPECTUR), com a chancela da Funai. Entre 2001 e 2002, representantes dos povos Kalapalo e Kamayurá, que vivem no Parque Indígena do Xingu (PIX), solicitaram apoio do Proecotur/MMA para a implementação de experiência piloto de ecoturismo nas suas aldeias. Após anuência da Funai, foi feito um termo de referência para a contratação de uma consultoria específica com recursos do MMA. Entretanto, antes da contratação propriamente dita, os Yawalapiti se manifestaram contra a proposta de ecoturismo no PIX, justificando que qualquer atividade turística no Xingu impactaria não apenas as aldeias Kalapalo e Kamayurá, mas a terra indígena como um todo. Não houve acordo e o projeto foi paralisado. Mais recentemente, entre 2002 e 2003, o MMA apoiou o projeto “Jaguaterei Nhemboé” (Caminhando e Aprendendo) do povo indígena Guarani-Mbya da Terra Indígena Guarani do

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Hoje é a Coordenação Geral de Patrimônio Indígena e Meio Ambiente (CGPIMA).

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Aguapeú, por meio do Subprograma Projetos Demonstrativos32 (PDA). Possivelmente, o Ministério do Meio Ambiente teria apoiado outros projetos, mas como não teve suporte do órgão indigenista oficial, gradualmente diminuiu seu interesse pelo tema. Ainda segundo Chaves, em 2005, quando realizava sua pesquisa, havia 18 processos arquivados relacionados à atividade de ecoturismo, encaminhados a Funai entre 1999 e 2005. A maioria solicitava apoio técnico e recursos financeiros para a implantação da atividade, outros denunciam exploração indevida da imagem indígena ou do território. A memória desta discussão traz a tona questões importantes. Uma série de atores participou das iniciativas, mas ficou claro que tiveram interesses e percepções distintas, e nunca houve consenso. Como afirmou Ramos (2009), o tema encontrou eco nos indigenistas que estavam à frente das discussões por que: Existia uma ansiedade em busca de alternativas, e não existiam de fato alternativas concretas construídas. [...] Essa busca de saídas, essa busca de alternativas que não obrigassem os povos a se submeterem a atividades econômicas predatórias, predatórias não no sentido só ambiental, mas no sentido do ser deles, essa busca era uma ansiedade [...]. (RAMOS, 2009).

Mesmo assim, a Funai resguardou-se de apoiar efetivamente qualquer iniciativa de regulamentação, pois não sentia que havia respaldo na legislação, ou porque não tinha certeza se a atividade traria ou não benefícios para os povos indígenas. Os resultados alcançados pelas experiências de turismo em Terras Indígenas realizadas com apoio do MMA e de outras instituições até hoje não foram avaliados. Seria interessante sistematizar essas experiências, metodologias e lições aprendidas, de modo a servir como referência. Está aí uma importante ação para o aprofundamento da análise. A Embratur participou do GTC e, portanto, do início das discussões do turismo em Terras Indígenas. Com a criação do Ministério do Turismo, este assumiu a interlocução. Em meados de 2005, Chaves, o consultor contratado pelo Mtur, propôs uma série de seminários regionais para discutir o tema diretamente com os indígenas. Mas os eventos não aconteceram. Em dezembro de 2005, em um seminário “Diálogos do Turismo, uma viagem de inclusão”, organizado pelo Mtur e pelo Instituto Brasileiro de Administração Municipal (IBAM), realizado em Brasília, abordou-se entre outros assuntos, o tema do turismo em terra indígena. O Professor José Ribamar Bessa Freire33, convidado a palestrar sobre a temática, o fez a partir de um documentário intitulado “Cannibal Tours” (O’ROUKE, 1988). O Subprograma Projetos Demonstrativos – PDA, criado em 1996, faz parte do Programa Piloto para a Proteção das Florestas Tropicais do Brasil, do Ministério do Meio Ambiente. 33 Coordenador do Programa de Estudos dos Povos Indígenas da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e Professor do Programa de Pós-Graduação em Memória Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UNIRIO). 32

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O contraste é gritante. De um lado, os nativos apresentam dança tradicional, encenada especialmente para essa ocasião, e mostram seu artesanato, suas pinturas faciais, seus rituais, suas narrativas, suas casas de reza. De outro, os turistas entram nas aldeias, invadem as casas, barganham o preço de colares, pulseiras, máscaras de madeira e outras peças de artesanato, buscando o exótico, o diferente, o ‘autêntico’. Os nativos querem e precisam vender aquilo que o turista compra: artesanato, paisagem, exotismo, danças, festas, pintura corporal, oportunidade de fotografar, filosofia de vida e outras produções culturais. São justamente esses interesses comuns que tornam viável a interação entre ambos. (FREIRE, 2005).

Em sua argumentação Freire considerou simplista a ideia de que o ‘nativo’, guardião da tradição, tem sua cultura “contaminada” pelo turista. Pelo contrário, ele enfatizou que os grupos indígenas que estão à frente dos processos de desenvolvimento do turismo não são vítimas ou elementos passivos de um processo de ‘perda de cultura’, mas se constituem em agentes de sua própria transformação cultural. Porém apontou questões importantes para garantir o melhor desenvolvimento da atividade, tais como a necessidade das comunidades indígenas estarem preparadas para receber os visitantes e, da mesma forma, os turistas receberem informações que os capacite para lidar com a diversidade cultural. A necessidade de elaborar normas para o turismo em áreas indígenas, com a formulação de uma legislação própria e o estabelecimento de medidas cautelares para registrar, patentear e proteger os etnosaberes. Por fim, apontou como requisito a demarcação territorial e o controle das comunidades indígenas sobre a gestão das atividades turísticas nas suas áreas, e também a importância de fomentar pesquisas para conhecer os impactos sociais, culturais, econômicos e ambientais do turismo em áreas indígenas. Atualmente, no âmbito do Estatuto dos Povos Indígenas e da Política Nacional de Gestão Ambiental em Terras Indígenas34, em construção, o tema do turismo deverá voltar à pauta de discussão. Nesse momento será importante atentar para o valor da dimensão educativa. A preparação/capacitação dos indígenas para receber visitantes e dos visitantes para o contato com os indígenas exige tempos diferenciados para cada um dos envolvidos, mas, necessariamente, deve incorporar as formas de pensar e fazer indígenas. Devem-se criar condições para valorizar a hospitalidade tradicional indígena e fortalecer a transmissão desses conhecimentos aos jovens, por meio da educação tradicional indígena, visando à reafirmação étnica e cultural.

Portaria Interministerial - Ministérios da Justiça e do Meio Ambiente, nº. 276/2008, que cria o Grupo de Trabalho Interministerial com a finalidade de elaborar proposta de Política Nacional de Gestão Ambiental em Terras Indígena. 34

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3.5 A SUSTENTABILIDADE E A ÉTICA DO CUIDADO

Conforme Luciano (2008) há milhares de anos, os povos indígenas desenvolveram formas sustentáveis de vida, mesmo em territórios com recursos naturais escassos. Construíram modos de viver fundamentados em saberes reais, acumulados por meio da observação e da prática, e compartilhados e transmitidos de geração em geração. O conhecimento e respeito à natureza foram e ainda são fonte da vida material e espiritual, e a garantia da sua sustentabilidade ambiental, social e cultural. A economia indígena é centrada na fartura e no bem-estar da comunidade, sendo que, no território, estão os recursos naturais disponíveis para as necessidades individuais e coletivas. As atividades produtivas têm como fim garantir o bem-estar das pessoas, da comunidade e do povo. Assim, vale indagar como as ideias aqui apresentadas dialogam com a percepção da sustentabilidade sob a ótica indígena. Reconhecemos o modelo de vida tradicional indígena como sustentável e o direito dos povos indígenas de perpetuarem seus modos de vida em seus territórios. Ao mesmo tempo assumimos que, fruto de um contato interétnico cruel e/ou equivocado, as condições de vida da maioria dos grupos indígenas hoje são insatisfatórias, sendo necessário construir alternativas que garantam sua sobrevivência digna, sua reprodução cultural, sua autonomia social e política. Como afirma Luciano (2008, p. 63): Décadas de contato com a sociedade nacional produziram mudanças substanciais e irreversíveis na vida das aldeias e dos índios. Novas necessidades e demandas fazem parte da luta diária da maioria das comunidades, e com elas novas formas de “resolver” ou de “atender” as novas e as velhas necessidades.

Luciano (2008) aponta uma questão fundamental, que deve permear a nossa reflexão sobre os passos a seguir na busca de soluções: a noção de que desenvolvimento humano está associado à desenvolvimento econômico; de que desenvolvimento econômico é a solução dos problemas da humanidade; e de que bem-estar é sinônimo de desenvolvimento econômico são conceituações da sociedade ocidental, mas não são das sociedades indígenas. Como explicita Jara (2001, p.75): É o sistema capitalista, vivendo da carência, da ilusão, da quimera e dos sonhos futuros, que deixa o homem, em especial o impotente comprador-consumista, numa imaginação compulsiva, intangível, porque o consumo não alimenta o espírito.

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Se a sociedade ocidental constituiu-se em um mundo fundamentado no consumo, em valores externos e não em valores internos, no ter e não no ser, o sentido de felicidade para populações indígenas reside em outra esfera. Os povos indígenas têm uma visão comunitária e sagrada da natureza. “Seu território é o conjunto de seres, espíritos, conhecimentos, tradição que dão sentido à vida individual e coletiva” (LUCIANO, 2008, p.59). Portanto, deve-se cuidar para que atividades propostas como alternativa para melhorar as condições de vida dos povos indígenas, incluindo-se aí o turismo ou às viagens solidárias, não desvalorizem as formas tradicionais de organização social, política e econômica. Para que não sejam introduzidos modelos que privilegiem a competição, o lucro, a injustiça, a valorização dos interesses privados em detrimento dos interesses coletivos. É especialmente necessário fortalecer o diálogo interno, proporcionando uma auto-reflexão das comunidades indígenas sobre o caminho a seguir, a partir dos seus planos de vida e interesses, e reafirmar sempre os princípios de reciprocidade, troca, intercâmbio, solidariedade e autonomia produtiva. Com tudo isso, não se pode esquecer que a apropriação da lógica e dos instrumentos da sociedade dominante abre espaço para as ilusões do modelo capitalista. Como observa Luciano (2008, p.66): A ilusão de um ideal de vida do mundo moderno baseado no suposto poderio da tecnologia e da economia de mercado seduz os povos indígenas e os deixam atônitos quantos aos seus horizontes socioculturais próprios. O poder político e econômico individualizado e diferenciado não apenas seduz, mas ainda corrompe.

Por isso, é vital a atenção dos povos indígenas sobre o caminho que escolhem trilhar, aprendendo a lidar com os mecanismos externos como instrumentos estratégicos para a sobrevivência sociocultural. Pois, segundo Canclini (1997, p. 239 apud FIGUEIREDO, 1999, p. 87) “nem a modernização exige abolir as tradições, nem o destino fatal dos grupos tradicionais é ficar fora da modernidade”. Como estratégia, parece uma opção mais confiável a inspiração e a parceria com as experiências e redes comunitárias afinadas com a construção de modelos éticos voltados para a sustentabilidade, como a socioeconomia solidária e o turismo de base comunitária, em oposição ao processo de desenvolvimento dominante, centrado no capital e nas leis de mercado, que privilegiam uns poucos e excluem e marginalizam a maior parte da população. Como afirma Arruda (2008, p. 90) a economia dos povos nativos é solidária, e seu legado 48

cultural, econômico e político é uma fonte de inspiração ilimitada para a construção de uma economia solidária em sociedades complexas. Por fim, ao refletir sobre sustentabilidade e viagens a Terras Indígenas, considero importante trazer para o diálogo algumas considerações de Indigenistas, ouvidos durante o processo de construção deste estudo: [...] o nosso pensamento ainda está calcado num velho paradigma de que o outro é inferior, de que o outro é do passado, que sou eu lá atrás, né? Quando na verdade você está falando de dois processos civilizatórios... [...] Aí você pega, vende um pacote para o cara, e manda ele pra dentro da aldeia? O embate é certeiro. A crise que vai se abrir dentro dessa aldeia a partir daí é certeira, porque nós já conhecemos os pressupostos. Então, com esses pressupostos não dá para trabalhar, o ponto de partida tem que ser outro: o conhecimento o outro. [...] É isso mesmo, é reconhecendo a diferença das culturas, o que deve ser feito para trabalhar com essa intersecção. [...] A partir daí está garantida a possibilidade de intercâmbio. E aí, é lógico que o projeto tem que ser desenhado nesse sentido.

[...] (MAGA-

LHÃES, 2009). [...] O Silbene tinha muito receio do turista. [...] Perguntava do turismo e ele colocava essa história de fazer aldeias fictícias, de pintar pena de galinha, tinha muito dessas coisas [...]. O Silbene não acreditava nessa historia de entrar na intimidade, que sempre dá um pouco de medo. [...] Mas eu acho que essa coisa de usar o turismo, [...] dos índios usarem, não serem usados, para resolver os seus problemas, isso é legal. Desse prisma, desse lado. [...] Tem turistas específicos, aí que acho dá, mas pensar num turista genérico? [...] Os índios já têm problemas demais. Não tenho uma avaliação se é mais vantajoso ou danoso. [...] Se você me perguntar, se sou a favor do turismo? Não, a princípio, não! Mas acho que é legal levar essa discussão para a CNPI. É o fórum mais adequado, mais legítimo. (LANGE, 2009).

O olhar indigenista é cauteloso. O ‘como fazer’ ainda é uma indagação que permeia as falas. Outra percepção importante é que os indígenas devem se apropriar dos resultados. A viagem tem que servir a eles. E é no âmbito da construção da política indigenista que esse debate deve ser travado.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Vivemos um tempo de crise de espiritualidade, de solidariedade, de confiança e de capacidade de sentir o outro. Temos medo de rever o sentido da vida, de perceber o que é essencial, de admitir a nossa própria ignorância e de abrir caminhos em novos horizontes. Carlos Jara

Para Baptista (2002, p.159) a hospitalidade é um acontecimento ético, diz respeito a todas as formas de acolhimento e de civilidade, tornando a cidade um lugar mais ameno. Parodiando Isabel Baptista, acredito que a hospitalidade torna o mundo e os homens, de todas as culturas, mais humanos. Assim, teci ideias buscando re-significar a viagem como uma via importante para a reinvenção do mundo e da nossa própria humanidade. Usei a perspectiva levantada pelo Fórum Social Mundial, de que ‘um outro mundo é possível’. Esse mundo começa em cada um e em todos nós. Em nossa capacidade de senti-lo e vivenciá-lo de forma holística, criativa, solidária, abrangente, receptiva, generosa e corajosa. Desde 1500, o Brasil trata para as populações indígenas com desrespeito. Embora a legislação tenha avançado, na prática, a política de etnocídio e integração das populações indígenas à sociedade nacional permanece até hoje. Acredito que as viagens às terras indígenas podem ajudar a construir pontes interculturais a partir da experiência de conviver com o Outro, de dar-se conta do Outro, de abrir-se ao Outro. E, ao colaborar para tirar os indígenas da invisibilidade, podem ajudar a fortalecer uma nova consciência étnica no Brasil e a apoiar a redefinição do lugar dos povos indígenas na sociedade brasileira e na construção do futuro do país. Como disse Putumuju (2009), indígena Pataxó e condutor de visitantes, em conversa durante a trilha do Monte Pascoal, “tem gente que nunca viu, nunca teve contato com um indígena”. Ele, enquanto condutor de visitantes do Parque Nacional Monte Pascoal (BA), na Aldeia Pé do Monte, Terra Indígena de Barra Velha, está disponível para ser escutado pelos visitantes e tem orgulho de estar ali, preservando seu território, afirmando sua identidade étnica, ganhando dinheiro e participando desse intercâmbio de experiências de vida. Putumuju também acredita que o preconceito contra os indígenas pode ser vencido com o convívio. Para Magalhães (2009), o ponto de partida do turismo em terra indígena tem que ser o conhecimento do Outro: “o turista deve ir à terra indígena como um aluno”. Ele acredita que 50

dar uma oportunidade da cultura ocidental estar diante de outra cultura de forma tranqüila, sem superioridade, pode criar uma nova dinâmica social positiva na sociedade “[...] porque ela pode se apropriar desses novos entendimentos, porque estabeleceu uma relação humana, de amizade, de respeito, [...] duradoura [...]”. Em um processo de interação cultural “aonde quem vai, volta diferente, e quem recebeu, percebe essa diferença”. Assim, um caminho para um desenvolvimento equilibrado das viagens turísticas, ou das viagens solidária, é garantir que a experiência traga bem-estar para cada um e para todos os membros da comunidade indígena, assim como para os visitantes. Experiências pautadas em uma nova relação econômica e social, baseadas na complementaridade e na cooperação, onde prevaleça o benefício mútuo. Portanto, a viagem enquanto um processo educativo formativo deve, primeiramente, desconstruir às relações mercadológicas. E, embora as visões indígenas explicitem claramente a importância econômica dessa atividade para os povos indígenas, acredito ser necessário cuidar para não mercantilizar a experiência, e assim, ir além do turismo. Concordo com Millan (2006, p.68) quando diz que: Para transformar o sistema devemos primeiro revolucionar a sociedade, e talvez o primeiro ato de insurgência e revolução em direção a um mundo melhor e possível seja não somente mudar a linguagem, mas fundamentalmente criar novos conceitos de vida. O compromisso então de contribuir para o desaparecimento do turismo para que emerja uma relação entre culturas diferentes baseada na reciprocidade solidária. Esta última pode ser uma alternativa ao turismo.

Para essa elaboração, é relevante um adequado processo de educação e formação, onde os valores indígenas sejam considerados em primeira instância. Mas também se ofereça informações aos povos indígenas sobre as mazelas da vida da sociedade envolvente, na sua busca insana pelo desenvolvimento econômico, e as consequências daí originadas. Nesse sentido, é mister construir processos educativos abertos, em fóruns adequados, com tempos em sintonia com os tempos dos interessados. Retomar a discussão do turismo em Terras Indígenas de modo que se permita a construção de um saber/fazer autônomo, com protagonismo indígena na formulação das políticas pertinentes. Construído com a participação das representações do movimento indígena, e também, a partir das discussões e vivências internas nas comunidades. Interculturalidade significa uma globalização que não é somente baseada na economia, mas no encontro de culturas, de mundos distintos, de consciências. Culturas que se complementam em suas diversidades. A compreensão da pluralidade identitária e cultural do planeta e a aceitação do valor diferenciado do Outro. Sobretudo, a experiência indígena pode en51

sinar como viver com simplicidade dentro de um mundo tão complexo. E também mostrar à sociedade ocidental como cuidar das suas raízes, da casa Terra, da casa humana. Ao desenvolver estratégias pautadas no diálogo intercultural, contribuímos com a autodeterminação e o desenvolvimento étnico dos povos indígenas. E com a construção de um mundo mais igualitário, livre de preconceitos, ambiental e socialmente sustentável. É um grande desafio posto à mesa. Para o país e para o planeta, pois a cultura da tolerância, da aceitação das diferenças é uma necessidade mundial. Logicamente, este caminho também traz contradições, incertezas, riscos. São inerentes à vida e ao viver. Mas nesta jornada, se assim a desejarem os povos indígenas, estaremos celebrando a diversidade, a fraternidade, a complementaridade e a paz. Uma paz que se faz ao viajar com consciência. Essa é a minha proposta de viagem. Envolve o aprendizado da essência do que os indígenas têm a ensinar à sociedade envolvente. Uma experiência da viagem menos focada nas atividades externas e mais nos sentidos internos, nos sentimentos. Uma jornada que se faz com a alma. Que permitirá um contato respeitoso entre dois mundos e o compartilhamento de subjetividades distintas. Para que essa jornada aconteça, antes de tudo deve-se preparar o visitante para enxergar o humano, e não o exótico, o interior, o invisível, e não somente o exterior. De modo que haja acolhimento entre as pessoas, e o visitante se sinta convidado a mergulhar no seu íntimo, a retirar o véu dos conceitos pré-estabelecidos, e a abrir-se para a riqueza de um outro mundo - a vida indígena, no Brasil, hoje. Caminhamos para a autodeterminação dos povos indígenas, e ninguém melhor do que eles para nos ensinar a receber com os braços abertos, de corpo e alma, os viajantes. E assim, neste contato respeitoso, finalmente retomar os passos da história com espírito desarmado.

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RIBA, Lídia Maria (compiladora). Desejo-lhe boa viagem. Tradução Maria Alzira Brum Lemos. Cotia, SP: Vergara & Riba Editoras, 2008.

FONTES ORAIS: CAMARGO, Marcella, 2009. Entrevista concedida em 12/04/2009. LANGE, Ana, 2009. Entrevista concedida em 14/04/2009. MAGALHÃES, Frederico, 2009. Indigenista da Funai, entrevista concedida em 09/04/2009. MANCHINERI, Toya, 2009, povo Yne. Entrevista concedida em 1o de abril de 2009. PATAXÓ, Putumuju, 2009, povo Pataxó. Entrevista concedida em janeiro de 2009. RAMOS, André, 2009. Indigenista da Funai, entrevista concedida em 14/04/2009. SURUÍ, Almir Naraiamoga, 2009, povo Paite. Entrevista concedida em 1o de abril de 2009. WAPICHANA, Mário, 2009, povo Wapichana. Entrevista concedida em 1o de abril de 2009.

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A exposição e venda de artesanato faz parte da visita turística ao Centro Cultural Porto do Boi.

As rezas da esmola de São Benedito, na casa do Cacique Pataxó, Aldeia Pé do Monte.

Caminhada na mata no Centro Cultural Porto do Boi, TI de Barra Velha.

ANEXO I

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Apresentação do Awê no Centro Cultural Porto do Boi.

Apresentação do Awê no Parque Nacional do Monte Pascoal, Aldeia Pé do Monte.

ANEXO II

Entrevistas com Mario Wapichana (RR), Almir Suruí (RO) e Toya Manchineri (AC), realizadas em 1º de abril de 2009, em Brasília, durante o Seminário Gestão Ambiental em Terras Indígenas, organizado pela Funai e Ministério do Meio Ambiente.

1) Entrevista com Mario Nicácio Wapichana Eu tenho uma interação muito forte com os povos indígenas. Apesar de fazer parte de dois povos, eu sou o resultado de Macuxi e Wapichana. E a gente tem uma ligação muito forte com a espiritualidade indígena. Diferente de ter religião. Religião traz uma realidade distinta pra gente e o sagrado que a gente considera aquele impacto muito forte no povo indígena como no meio ambiente. Por exemplo, tem várias histórias que a gente ouve lá, tem vários locais que o indígena pode ir, que isso acontece contra ele. E os pontos sagrados, no momento que a pessoa que não sabe vai lá, isso pode prejudicar ela também. Pode se transformar em doença, pode se transformar em qualquer dano para a pessoa que vai visitar. E a gente avisa logo para manter essa vida sagrada que a gente faz uma ligação direta com a espiritualidade indígena é considerar que aquele lugar, saindo de lá aquilo pode dar um impacto muito forte na comunidade como um todo, ela tira a direção da comunidade. E a comunidade não é mais considerada como que tem alguma história, como que tenha o sagrado. É muito mais do que um desrespeito,seria tipo uma destruição mesmo do ponto sagrado, dos pontos, que tem vários que a gente considera. E pra quem vai lá é legal ver cachoeira, mas a pessoa não sabe o que tem ali. Pra gente tudo é vida, tudo é vivo. Na área dos Wapichana, tem uns locais, cachoeiras que não pode ir. Tem as praias. Mulheres wapichana, o homem wapichana não podem ir. Mudar de fase e pode prejudicar a vida delas. É muito detalhe que precisa entender, não é só dizer que não pode ir lá, acho que tem que dar o histórico para a pessoa não voltar dizendo que a gente não permitiu. Que tem sempre lugares que nem mesmo nós temos acesso, só com autorização espiritual, que infelizmente em alguns momentos as religiões estão tentando destruir, mas a gente esta tentando fortalecer essa coisa sagrada, não considerar que aquele instrumento de braços abertos é uma coisa sagrada, mas o que tem ali é uma coisa sagrada, tem a ver com a vida na realidade. Esse é o ponto que a gente considera muito significante. Por exemplo, o lago Caracaranã é um ponto turístico. Mas a gente sabe que no meio do lago Caracaranã tem seres que se a gente não obedecer a lei da natureza ou a lei espiritual 59

indígena eles podem se voltar contra nos indígenas e pode até matar todos os indígenas. Pode não acontecer com as pessoas que não tem uma ligação direta com aquele ambiente, mas pode acontecer conosco. Isso que a gente considera sagrado. Tem o monte Roraima, tem o lago Caracaranã, tem a serra da Lua. A gente pensa em desenvolver o turismo, mas com essas explicações. O turismo não é só ver a beleza, tem que ver o histórico daquele ponto turístico. Acho que isso tem que ser bem claro, não tem que ver o lago grande, com praia bonita, mas tem que entender porque não pode andar no meio do lago. Acho que isso é um turismo bem puro, né? Tem que conhecer a historia desse turismo, não é só chegar. O lago Caracaranã, os turistas sempre vão lá. Na época que era gerenciado pelo branco, que está saindo agora de lá, pra ele era mais receber turista para receber dinheiro, mas não contava a historia desse lago, que a gente conta. Para nós o turismo é importante não só para a renda, mas para fortalecer a espiritualidade do indígena. Porque o Monte Roraima também é uma historia, os seres de lá... Tem as pedras que são os indígenas que morreram. Toda a história. Acho que o turista precisa perceber essa história. Acho que o turismo nas comunidades indígenas é importante, não só para ganhar dinheiro, mas para também fortalecer essa divulgação do histórico, das tradições, tal. O mundo que está ao redor. Às vezes ele (o branco) não conhece. Conhece a beleza visual, física, mas tem a beleza interior de cada lugar. E a gente tem uma ligação muito forte com isso. A gente esta procurando isso, para poder fazer uma conexão entre ajudar a sustentabilidade indígena, porém mantendo a espiritualidade indígena com relação à tradição e a cultura, naquele lugar ou naqueles lugares. Você não pode pensar só turismo onde tem lago, rio, ou tem mato e ponto de trilhas não, você tem que pensar um local onde o homem está também. Uma comunidade indígena pode ser um local turístico, mas desde que tenha os arranjos históricos (....). Por exemplo, a gente fez um intercâmbio na Europa para conhecer os pontos turísticos de lá, de Paris (...). O que eu vi lá é que cada local tem uma história e acho que no Brasil tem que ter história também porque ali mantém a história de um povo há séculos. Infelizmente esses locais, o Monte Roraima, por exemplo, é um parque administrado pelo Instituto Chico Mendes e a gente vê que a participação indígena ali é pouca. Às vezes o indígena participa nas deliberações, mas não participa na execução. A maioria dos pontos turísticos até as invasões não estava na responsabilidade dos indígenas, por que tinha invasor lá. Era ponto estratégico dos brancos de ganhar dinheiro. É claro para ele estruturar aquele local. Por isso que a gente não tem uma história de turismo e às vezes o turismo que as pessoas veem em nós só é o índio pintado pra dançar, isso às vezes é feito de forma

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artificial na escola dos brancos para lembrar, mas eu acho que o turismo é muito mais do que isso. O que a gente está tentando resgatar, pelo menos lá em Roraima, essa forma de incluir o turismo na manutenção da vida indígena como ela é originalmente, e aprofundar mais no resgate das culturas que tem naquele lugar ou nos lugares. Manter todas essas restrições para nós mesmos, para a gente poder transmitir para as pessoas. A gente que somos da nova geração temos que conhecer primeiro para depois poder conscientizar aquelas pessoas que tem uma cultura diferente. A gente não pode restringir uma coisa que nós mesmos não conhecemos. Para não dar informações erradas, ou acabar prejudicando ele mesmo. Grande resgate, uma luta ainda em Roraima, a gente está tentando resgatar e até fortalecer. Mas é isso que a gente está discutindo. (...) A gente está pensando numa coisa a longo prazo, que várias gerações possa continuar. Não só para ganhar dinheiro, mas uma coisa cotidiana e que pode acabar se não conhecer toda a realidade. O turismo é isso que a gente entende, pelo que a gente está começando a discutir, antes das demarcações, depois dessa articulação comunitária está começando a definir os planos pra não mostrar o índio como esse monstro, de que toda a coisa não pode ser feita, mas sim deve ser feita de acordo com as orientações, conhecimento, tal, para não ter uma coisa muito vaga para quem vai lá só aproveitar e ver as coisas, mas não tem orientação...

2) Entrevista com Almir Suruí. Turismo na minha opinião não pode der feito assim ir chegando e implantando dentro de um território indígena. Eu acredito que para ter um ecoturismo numa terra indígena precisa de um diagnóstico de levantamento potencial do impacto que ele pode trazer também. Então a partir dali a própria comunidade pode decidir como é que eles querem trabalhar. Ele pode dizer não, a gente pode estudar outra maneira que traga poucos impactos porque seja não quero não turismo, acredito que tem impactos desde meio ambiente desde cultura, porque você vai cada vez mais aprendendo um pouco o que esses visitantes futuros o que podem levar de bem ou mal para dentro de uma terra indígena, mesmo que você tenha critérios que podem ser estabelecidos dentro desse plano de turismo, se for numa terra indígena. Então, eu acho que eu não descarto a possibilidade porque isso é um dos potenciais de muitas terras indígenas, mas precisa que tenha esses critérios, esses estudos, os planos de longo prazo para implementar, planejar, como que pode ser desenvolvido numa terra indígena. Acho que área sagrada é do povo, esses critérios têm que ser estabelecidos no momento que você discute um ecoturismo dentro de uma terra indígena, porque esses como área 61

sagrada, coisas materiais e espirituais, o patrimônio indígena, então nenhum ser humano não vai deixar que alguém vai lá e entra de qualquer jeito no seu patrimônio. Acho que isso tem que ser bastante esclarecido, estabelecido e respeitado pelo visitante que tiver um plano igual esse numa TI. O benefício para o povo indígena seria o econômico, crescer e valorizar a própria cultura, a partir dessa valorização porque também não só a cultura do não indígena, mas também pode possibilitar ser levado informações sobre cultura do povo indígena dentro da sociedade como um todo. Pode trazer grande reflexão de respeitar e conhecer, não discriminar. Então acho que o beneficio podia ser mais nessa área de economia mesmo, o resultado positivo se fosse, se por acaso acontecer isso. Essa é a visão que eu tenho, não é um projeto que meu povo estuda, mas é uma opinião pessoal minha, eu acho que pode estar discutida dessa maneira. Cada pessoa, cada terra indígena, cada povo tem situações diferentes, é muito difícil você, a partir da sua ideia, da sua visão, tratar e inserir todos os povos indígenas do Brasil. Por que seja quer ou não, cada um deles tem seu ano de contato diferente, tem 500 anos de contato, tem 40 anos de contato, tem 20 anos de contato, tem 10 anos de contato, e vai indo. Depende muito como que o povo quer enfrentar cada situação igual a essa.

3) Entrevista com Toya Manchineri A questão do turismo é uma coisa bastante interessante. Concordo com o Almir Suruí que primeiro vem a questão financeira, um trabalho que pode beneficiar toda uma população indígena, as diferentes etnias. E também o ganho que eu vejo é a divulgação da cultura, jogar a cultura desse povo no mundo, para que os próprios regionais, a própria população do Estado possa conhecer mais profundamente a cultura desse povo, que muitas vezes não se conhece. Muitas vezes os gringos entendem mais daquele povo, o pessoal de São Paulo, do Rio, do que a população do Estado. Uma forma de mostrar a diferença que tu tem, os valores que aquela terra tem. O que falta é uma política mais voltada para atividade na área de etnoturismo. E nós do Estado do Acre, o povo Manchineri desde 2004 vem discutindo a questão do turismo. Nos já elaboramos uma proposta, o que nós pensamos é trabalhar o turismo cultural, mostrar os valores que o povo tem, desde a questão da religiosidade, da cultura, das danças, da mitologia, da história e definindo para onde vai o recurso. O grande problema dos projetos, muitas vezes é a dificuldade do recurso, de partilhar ele. Nós temos muito claro isso, com a proposta que nós trabalhamos, que 40% iria para bancar a infra-estrutura, o resto seria distribuído 62

ou feito programas em outras comunidades. Nós construímos um projeto mais não colocamos em prática ainda. Temos que fazer toda uma reunião com o povo para legitimar o projeto. A nossa ideia é que seja um espaço especificamente para o turismo não interferir na vida da comunidade. Que a partir desse local pudesse receber os turistas, visitar as áreas de animais, fizesse as festas, trabalhasse a religiosidade para eles participarem com a gente. Mas a partir dali. Claro que estipulando também regras de funcionamento, principalmente a questão da poluição do ambiente, do rio, porque tu vai receber uma quantidade, nós vamos ter que cuidar também para apresentar, senão é um problema a mais para a comunidade. Uma outra coisa é a questão do gerenciamento. O governo do Estado do Acre, nós estamos conversando, queria que a gente fizesse esse conselho para entrar no turismo. Mas fui claro que não, nós queremos trabalhar o turismo, mas não queremos servir de entregadores de artesanato não. O projeto prevê todo o gerenciamento, desde a questão do transporte pelo povo Manchineri. Isso traz autonomia financeira. Essa ideia do trabalho nós tivemos em 2003 no Peru. Os Manchineri de lá trabalham com o turismo, só que eles alugam o espaço para um gringo. Em Madre de Deus, a aldeia Diamante, no município de Bocamano. Eles alugam o espaço por 5 mil dólares por mês. Eu penso que é um setor que vai dar bastante recurso para a comunidade indígena, em vez de vender madeira, em vez de vender ouro e coisa e tal, trabalhar com turismo. E tem que saber trabalhar por que senão tu cria mais um problema dentro da comunidade, pela parte financeira, tu não distribui, tu não tem claro dentro do projeto para onde vai os recursos. Tem coisas da cultura que tu pode mostrar, tem muitas coisas que não. As coisas sagradas tu nem coloca no pacote. È uma coisa da própria comunidade que tu não deve mexer. A não ser que a comunidade toda se reúna, e fale que agora é o momento da gente apresentar esse outro lado da nossa cultura. São caminhos, passo a passo, que a comunidade tem que tomar no seu projeto de caminhada. Que a gente sabe muito bem que a cultura ela se desenvolve a cada ano que passa, cada geração tem uma outra mentalidade. Além do beneficio econômico, o beneficio na divulgação da cultura. Muitas vezes não é valorizada porque as pessoas não conhecem o diferente e acham estranho. A partir do momento que divulga, as pessoas começam a te entender como é que tu é, até o teu jeito de conviver.

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Conteúdos do Manual Indigena de Ecoturismo, produzido pelo Ministério do Meio Ambiente em 1997.

ANEXO III

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