A arte da viagem a Terras Indígenas (paper, 2013)

August 16, 2017 | Autor: L. Salvo Guarani ... | Categoria: Turismo Comunitário
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Tercera Conferencia sobre Etnicidad, Raza y Pueblos Indígenas en América Latina y el Caribe

Panel 37. Turismo e Exclusão na América Latina

A arte da viagem a Terras Indígenas

Liliana Vignoli Salvo de Salvo Souza Centro de Pesquisa e Pós-Graduação Sobre as Américas (CEPPAC) Universidade de Brasília/ Brasil

Resumo

Essa reflexão investiga o potencial das viagens interétnicas enquanto um instrumento de aprendizado e respeito pela alteridade e busca servir como inspiração para pensar outros modelos de viagem junto aos povos indígenas no Brasil e na América Latina. As reflexões deste artigo são inspiradas pelas visões de Hakim Bey, intelectual anarquista norte-americano e Moira Millan, liderança indígena do povo Mapuche. O argumento central é de que a hospitalidade e a reciprocidade sustentam a experiência da viagem errante dos peregrinos, em oposição à mercantilização das relações e da cultura proporcionada pela experiência turística convencional. Assim, questiono o turismo e proponho sua superação rumo às “viagens solidárias”, uma alternativa capaz de valorizar as culturas indígenas e fortalecer sua autonomia e autodeterminação. Palavras – chaves: Viagens Solidárias; Hospitalidade e Reciprocidade; Turismo - Terras Indígenas. ***

A viagem sufi: um conhecimento oculto Na verdade, nós não apenas “suspeitamos” disso. Nós sabemos disso. Nós sabemos que existe uma arte da viagem. Nos Velhos Dias o turismo não existia. Ciganos, Tinkers e outros nômades de verdade até hoje vagam por seus mundos `a vontade, mas ninguém iria por isso pensar em chamá-los de “turistas”. O turismo é uma invenção do século 19 – um período da história que algumas vezes parece ter se alongado em uma duração não natural. De várias formas, nós ainda estamos vivendo no século 19. Hakim Bey, s/d.

O que diz Hakim Bey1 (s/d) sobre a arte da viagem me pareceu fundamental e inspirador para refletir sobre a problemática do turismo em terra indígena no Brasil. Nos dias atuais, a atividade turística está na agenda de muitos povos indígenas no Brasil e na América Latina. Como também está na ordem do dia das políticas públicas no Brasil: a meta de regulamentação do etnoturismo está expressa no Planejamento Plurianual do Governo Dilma (PPA 2012-2015) 2. Deste modo, há urgência de se refletir criticamente sobre o tema, considerando sua extrema complexidade e visando construir uma política pública mais adequada possível às diferentes realidades dos indígenas do país. Os povos indígenas do Brasil3, em sua grande diversidade cultural, veem muitos sentidos no turismo. Há casos de comunidades indígenas que desenvolvem a atividade, com ou sem colaboração, fiscalização ou monitoramento do órgão oficial indigenista e independentemente da regulamentação oficial. Alguns povos indígenas apostam nessa atividade definindo-a como alternativa econômica importante; outros, tratam o turismo como oportunidade de resgate cultural e afirmação étnica; alguns veem as articulações e a formação de redes solidárias como um benefício. Mas, para a grande maioria dos povos indígenas do Brasil, esse assunto ainda não amadureceu. Não se sabe o que é, nem o que representa. Acredito que mesmo os povos que já estão atuando no mercado do turismo tem uma inserção recente e periférica, sem planejamento do fluxo turístico e 1

Hakim Bey é um pseudônimo de Peter Lamborn Wilson. Escritor, ensaísta e poeta que se intitula como um "anarquista ontológico". 2 Por pressões institucionais e do movimento indígena, a FUNAI estabeleceu como meta “Regulamentar o etnoturismo e ecoturismo em terras indígenas de forma sustentável”, Programa 2065, “Proteção e Promoção dos Direitos dos Povos Indígenas”, Objetivo 0945. (FUNAI, 2012:132) 3 Conforme a Fundação Nacional do Índio (FUNAI), vivem hoje no Brasil 817 mil índios, cerca de 0,4% da população brasileira, segundo dados do Censo 2010. Eles estão distribuídos entre 688 Terras Indígenas e algumas áreas urbanas. Há também 82 referências de grupos indígenas não-contatados, das quais 32 foram confirmadas. Existem ainda grupos que estão requerendo o reconhecimento de sua condição indígena junto ao órgão federal indigenista. Disponível em: www.funai.gov.br. Acesso em: 30/09/2013. Segundo dados do Instituto Socioambiental (ISA), as Terras Indígenas no Brasil (TIs) ocupam uma extensão total de 112.984.696 hectares (1.129.847 km2) ou 13.3% das terras do país. A maior parte das TIs concentra-se na Amazônia Legal: são 414 áreas, 111.108.392 hectares, representando 21.73% do território amazônico e 98.47% da extensão de todas as TIs do país. O restante, 1.53% , espalha-se pelas regiões Nordeste, Sudeste, Sul e estado do Mato Grosso do Sul. Disponível em: http://pib.socioambiental.org/pt/c/terras-indigenas/demarcacoes/localizacao-e-extensao-das-tis. Acesso em 30/09/2013.

sem compreensão da complexidade do processo; à possível exceção dos Pataxó da Terra Indígena de Coroa Vermelha, no sul da Bahia, que há décadas atuam na arena turística como prestadores de serviços, e de certos povos indígenas do Acre4 que estão propondo um modelo de visitação turística de cunho cultural/espiritual, com o apoio do governo do estado e de instituições parceiras. O universo indígena representa uma das últimas fronteiras ontológicas de um mundo quase que totalmente esquadrinhado, dominado e dividido. Esse mundo desconhecido é extraordinariamente atraente para certos perfis de turistas e o mercado do turismo, que tem no lucro seu maior sentido, espera, impacientemente, para abocanhar o segmento. No Brasil, existem muitos relatos e análises de experiências e estudos de caso, sob várias abordagens metodológicas, tratando das tipologias do turismo - étnico, cultural, de base comunitária, ecoturismo, turismo de aventura, turismo social - que têm a natureza e a cultura dos povos tradicionais como atrativo turístico principal. E uma diversidade de pesquisas sobre os impactos sociais, culturais, ambientais e econômicos da visitação turística em localidades onde vivem populações autóctones ou, em particular, indígenas. Minha intenção, nesse artigo, não é exatamente fazer coro com esses estudiosos que se preocupam com o efeito da mercantilização das culturas indígenas e tradicionais face à atividade turística e à voracidade do mercado. Minha ideia é debater um modo de enxergar o turismo e as possíveis alternativas ao modelo turístico por meio de um viés singular, o das viagens intencionais, como formulado por Hakim Bey. No texto Superando o Turismo5, Hakim Bey (s/d) pretende influenciar viajantes individuais para que possam melhorar suas pegadas turísticas, ainda que reconheça que não é possível eliminálas totalmente. Bey oferece elementos reveladores sobre o que chama de “a arte da viagem”. Elementos que considero essenciais para a reflexão sobre turismo, etnoturismo ou turismo em Terra Indígena. Portanto, na primeira parte desse artigo vamos caminhar na trilha proposta por Bey; a seguir, avistaremos novas paisagens, dialogando com outros interlocutores, em especial, com Moira Millan6. Para entender a argumentação de Bey, algumas perguntas são chave: O que é um peregrino viajante e o que é um turista? E qual é a diferença do efeito da presença de um peregrino e de um turista em um lugar? Vamos descobrindo pelas pegadas... 4 Precisamente os povos Huni Kuin e Yawanawá, que realizam festivais de cultura abertos a visitantes e convidados. Para mais informações: NEGRET, J. F. ; ALMEIDA, L. M..Desafios na formulação de políticas públicas: a regulamentação do etnoturismo e seu processo de tradução. VI Simpósio Linguagens e Identidades da/na Amazônia, 2012. (formato digital). 5 Texto “Superando o Turismo” (s/d). Versão em inglês: Overcoming Tourism. Brooklyn, N.Y. : Alley Publications, 1990. Versão em francês: Voyage Intentionnel, Musée Lilim, Carcassone, France,1994. Disponível em: http://www.midiaindependente.org/pt/red/2006/05/354089.shtml Acesso em 02/10/2013. 6 Moira Millan, mapuche, madre de cuatro hijos ha sido protagonista de importantes movilizaciones y protestas para defender los derechos indígenas. Es vocera de la Comunidad Mapuche, cofundadora de la organización “11 de Octubre”, organismo de Comunidades Mapuche-Tehuelche e integrante del Frente de Lucha Mapuche y Campesina. Disponível em: http://revista-elumbral.blogspot.com.br/2008/01/biografias-moira-millan.html. Acesso: 04/10/2013.

Peregrinos e turistas: apetites distintos Conforme Bey (s/d), o santuário, local de peregrinação, produz ‘baraka’, traduzida como benção, como algo que é sentido, vivenciado, imaginado e que o peregrino leva consigo quando parte. Mas não é algo irreal porque vem do imaginário. O santuário é o lugar dos bens espirituais, sua oferta é ilimitada, não importa quantos peregrinos levem bençãos, elas continuam disponíveis para os que chegarão. Entretanto, o turista não quer baraka, mas diferença cultural. O peregrino anseia pelo sagrado, sutil, intangível, espiritual, imaginário; o turista deseja admirar o pitoresco, ver e consumir a diferença. Diferença que é física, situada na paisagem, na linguagem, nos costumes; diferença que se desgasta e pode acabar. O turista destrói significados; tem fome do autêntico, mas o autêntico se retira quando ele se aproxima (BEY, s/d, website).

Os dervixes peregrinos e sua visão A argumentação de Bey está focada nas informações que ele traz sobre os sufis, os místicos do Islã, considerados pelo autor como “os maiores e mais sutis praticantes da arte da viagem”. Bey relata que, de acordo com o livro sagrado Corão, a Grande Terra de Deus e tudo nela é sagrado criação divina ou sinal da realidade divina. As viagens estão no âmago da doutrina islâmica; o profeta Maomé7 protagonizou viagens e ainda hoje na religião a viagem é vista como um sacramento. “Até hoje dervixes perambulam por todo o mundo islâmico – mas até o século 19 eles perambulavam em verdadeiras hordas, centenas ou até milhares de uma vez, e cobriam vastas distâncias. Todos em busca de conhecimento” (BEY, s/d, website). Essas viagens intencionais tinham formas, manuais e métodos diversos, desenvolvidos para orientar seu fim meditativo, de acordo com cada uma das diferentes ordens sufis. Embora fossem distintas, comungavam com uma especificidade estrutural: “[…] uma visão de mundo "mágica", uma percepção da vida que rejeita o "meramente" aleatório em favor de uma realidade de sinais e maravilhas, de coincidências cheias de significado e "descobertas"” (ibidem). No texto, Bey relata antigos costumes dos nômades do deserto e peregrinos dervixes, monges iniciados, que tinham a perambulação e a hospitalidade como ato sagrado. A hospitalidade beduína constituía-se em uma relação de reciprocidade. O autor sugere que os dervixes viajantes traziam em si o santuário. Que recebiam hospitalidade, alimento e, em troca, distribuíam a ‘baraka’, ou seja, felicidade, graças e bênçãos. O dervixe retribui o presente da sociedade com o presente da baraka. Na peregrinação comum, o viajante recebe baraka de um lugar, mas o dervixe reverte o fluxo e traz baraka a um lugar. (…) o sufi é um tipo de santuário (per)ambulante (BEY, s/d, website). 7 Hajj, ou viagem de volta, é a viagem de retorno de Maomé à Meca. Hajj é o movimento em direção à origem e ao centro, ainda hoje uma obrigação de cada muçulmano. A peregrinação anual dá unidade ao sistema Islã. (Bey, s/n)

[…] O verdadeiro viajante é um hóspede e por isso serve a uma função muito real, até hoje, em sociedades nas quais ideais de hospitalidade ainda não desapareceram da "mentalidade coletiva". Ser um anfitrião, nessas sociedades, é um ato meritório. Então, ser um hóspede é também conferir mérito. [...] (ibidem).

Turismo e guerra, qual é a semelhança? Conforme Hakim Bey, três razões arcaicas dão sentido às viagens: “ a guerra”, “a troca” e “a peregrinação”. Sobre qual dessas bases se originou o turismo? Bey responde que o senso comum diria peregrinação - o peregrino vai ver algo ou vai em busca de algo; normalmente traz algum souvenir na volta; dá um tempo na vida diária e tem objetivos não-materiais. Contudo, a peregrinação possibilita alteração na consciência ordinária; é uma forma de iniciação e uma abertura para outras formas de cognição. No decorrer dos séculos, talvez, um dado lugar sagrado tenha atraído milhões de peregrinos – e ainda assim, de algum modo, apesar de toda a contemplação e admiração e reza e compra de souvenirs – o lugar reteve seu significado. E agora – depois de 20 ou 30 anos de turismo – esse significado se perdeu. Aonde ele foi? Como isso aconteceu? (BEY, s/d, website). As verdadeiras raízes do turismo não se encontram na peregrinação (ou mesmo na troca "justa"), mas na guerra. Estupro e pilhagem foram as formas originais de turismo, ou melhor, os primeiros turistas seguiram diretamente rumo à agitação da guerra, como urubus humanos procurando em meio à carniça do campo de batalha por um butim imaginário – por imagens. (BEY, s/d, website).

Bey afirma que o turismo é uma invenção do século XIX, apêndice do imperialismo e da sociedade de consumo, [...] o turista procura Cultura porque – no nosso mundo – a cultura desapareceu no bucho do Espetáculo, a cultura foi destruída e substituída por um shopping ou um talk-show – porque a nossa educação é nada mais que preparação para uma vida inteira de trabalho e consumo – por que nós mesmos cessamos de criar. Embora os turistas pareçam estar fisicamente presentes na Natureza ou na Cultura, na verdade podemos chamá-los de fantasmas assombrando ruínas, sem nenhuma presença corpórea. Eles não estão lá de verdade, mas sim movem-se por uma paisagem natural, uma abstração (“Natureza”, “Cultura”), coletando imagens mais que experiência. Muito frequentemente suas férias são passadas em meio à miséria de outras pessoas e até somam-se a essa miséria. (ibidem, website)

No evento do turismo não há reciprocidade entre anfitrião e hóspede, pois [...] O turista é um parasita – pois nenhuma quantia de dinheiro pode pagar por hospitalidade. (ibidem) O turista é um consumidor voraz de imagens e lhe falta corporeidade para relacionar-se.

O sentido da viagem intencional O dervixe realiza a viagem intencional com o propósito de ser resgatado dos efeitos

hipnóticos do mundo ordinário/cotidiano (Bey, s/d). A viagem permite ao peregrino experimentar um estado de consciência particular; o estado espiritual de Expansão. Neste estado, o mundo

material e “o Mundo da Imaginação” se interpenetram, revelam e unificam; e os dervixes experienciam uma consciência profunda. O estado da Presença. O dervixe viajante procura a Expansão, alegria espiritual baseada na verdadeira multiplicidade da generosidade divina na criação material. De modo a apreciar os múltiplos indicadores da Grande Terra precisamente como o desenvolvimento dessa generosidade, o sufi cultiva o que pode ser chamado de olhar teofânico: – a abertura do "Olho do Coração" às experiências de certos lugares, objetos, pessoas, eventos, como locações da passagem do brilho da Luz divina. (BEY, s/d, website)

Bey assegura que, ao resgatar o sentido da peregrinação dos dervixes, não o faz por nostalgia. Apenas quer demonstrar que existe um outro modelo de viagem. Uma viagem sustentada pela economia secreta de baraka, onde não somente o templo (o lugar), mas também os peregrinos têm bençãos a distribuir. Pergunta “se queremos e se vamos superar 'o turista interior'”, essa falsa consciência que nos separa da experiência dos sinais da Grande Terra e nos impede de vivenciar essa identidade profunda a todo momento. Nós não apenas desdenhamos o turismo por sua vulgaridade e sua injustiça, e por isso desejamos evitar qualquer contaminação (consciente ou inconsciente) por sua virulência viral – nós também ousamos entender a viagem como um ato de reciprocidade mais que de alienação. Em outras palavras, nós não desejamos meramente evitar as negatividades do turismo, mas ainda mais atingir a viagem positiva, que visualizamos como uma relação produtiva e mutuamente aperfeiçoadora entre eu e outro, hóspede e anfitrião – uma forma de sinergia intercultural em que o todo excede a soma das partes. (BEY, website).

Sugere, portanto, que a chave essencial para a viagem é a atenção. Atenção no sentido de tomar consciência da vida, da existência e da experiência do Outro. Com uma postura de reconhecimento e de confiança para com a pluralidade da vida. Essa atitude, esse “coração de viajante”, diz ele, nos permite “experimentar o mundo como uma relação viva e não como um parque temático”. [...] Dar atenção é receber atenção, como se o universo de alguma maneira misteriosa retribuísse nossa cognição com um influxo de graça natural. Se nós nos convencêssemos que a atenção segue uma regra de "sinergia" mais que uma lei de investimento, nós poderíamos começar a superar em nós mesmos a banal mundanidade da desatenção cotidiana, e a abrir nós mesmos a "estados mais elevados". [...] Em qualquer caso, permanece um fato que a não ser que aprendamos a cultivar tais estados, a viagem nunca vai significar mais que turismo. (BAY, s/d, website).

O autor chamou ‘economia do Presente’ esta relação permeada pela atenção. Que tem, em seu bojo, a reciprocidade, a sinceridade e a abertura do “olho do coração” como condição essencial para se realizar uma outra forma de viagem.

Arte da viagem a Terras Indígenas? Após sintetizar o que propõe Hakim Bey, volto ao tema central – o etnoturismo ou o ecoturismo, ou ainda, a viagem a Terras Indígenas. Algumas perguntas devem reorientar nossa breve reflexão: O que significa uma viagem à Terra Indígena? O que busca o visitante? Que impactos o turismo em TI pode trazer para as populações anfitriãs? Que tipo de trocas culturais

estão previstas e quais são os seus reflexos? O turismo pode ser encarado como uma alternativa de desenvolvimento sustentável para as comunidades indígenas no Brasil? Em que condições? Há outra viagem possível? Moira Millan (2006), trata do tema com uma visão bastante crítica: A indústria do turismo é talvez a invenção mais recente do capitalismo, já que não se contenta a ter o controle absoluto dos espaços de produção e suas grandes massas de trabalhadores, submetendo milhões de homens e mulheres a suas regras de jogo, senão que também julga conveniente controlar seu lazer, sua mal chamada recreação, tempo este aonde longe de criar ou “recriar-se como humanos” estes homens e mulheres são enganosamente induzidos a consumir os “produtos turísticos que oferece o mercado”, os quais tentam reproduzir o mesmo modo impessoal de relação que tem a sociedade econômica não somente entre os indivíduos mas também com o entorno. Esta forma de andar e transitar por diversas geografias e culturas impede as pessoas de um encontro profundo com a natureza e com os povos que a habitam. O desprezo pelo natural, o afã de conforto e, sobretudo, o vírus do consumismo que injeta esta sociedade geram desencontros nocivos entre o turista e as comunidades indígenas que tentam abrir-se a esta nova perspectiva de trabalho. (MILLAN, 2006:67).

O turismo, enquanto viagem de lazer e descanso, coloca o tempo livre em oposição ao tempo do trabalho. Usualmente, o turista deseja romper com a rotina da vida cotidiana. Entretanto, mantém os hábitos e pensamentos como companheiros de viagem, viaja sem sair da própria pele e deixa, por onde passa, um rastro da sua cultura e da sua visão de mundo. Ao usar seu tempo mercantilizando relações, objetos e desejos, o turista tem pouca condição de se ver e de ver o Outro. Como reflete Millan (2006), “o turista consome sem comprometer-se, seu único interesse é abstrair-se de sua cotidianidade”. Millan participou de algumas edições do Fórum Social Mundial 8 e trouxe para o evento suas reflexões enquanto liderança feminina do povo Mapuche. Na sua visão, a sociedade capitalista criou o ecoturismo, o etnoturismo, o turismo indígena e o turismo solidário como alternativas para satisfazer a demanda de mercado que não se identificava com o turismo convencional sem, no entanto, mudar a sua essência mercadológica. Além de alertar para o risco de “coisificação” da cultura indígena, afirmou que as comunidades mapuches que se inseriram na atividade turística perceberam que o círculo da reciprocidade não se completava, e que não havia dinheiro capaz de equivaler ao que ofereciam aos visitantes: sua cosmovisão e sua sacralidade. Nossos conhecimentos culturais ancestrais que há apenas uma década devíamos ocultar para mostrar nossa cara civilizatória e europeia, hoje são objeto de curiosidade já não somente para os intelectuais estudiosos, os ólogos (antropólogos, arqueólogos, sociólogos, historiadores, etc.) mas também para o homem comum convertido em turista. Estes tecnocratas da economia pretendem que coisifiquemos nossa cultura e que a mostremos como um produto turístico. [...] A elaboração de uma iniciativa inteiramente econômica que invade a vida das comunidades através de um suposto intercâmbio de culturas não é outra coisa a não ser uma nova forma de desencontro e colonização. Os membros da comunidade alteram seus ritmos e afazeres em função dos visitantes, deixam de lado a espontaneidade de suas condutas comunitárias e se dispõem a preparar um pacote de atividades que resultem atrativas aos turistas. A coisificação de sua identidade, cultura e essência despoja 8 O Fórum Social Mundial (FSM) é o maior fórum de discussão sobre os problemas mundiais contemporâneos e está em sua 13ª edição. Em janeiro de 2004, no IV Fórum Social Mundial realizado na Índia, o tema turismo entrou pela primeira vez em pauta.

seus membros de autenticidade convertendo-lhes em um mero espetáculo pitoresco. (MILLAN, 2006:67-68).

Para a autora, o perigo do turismo é contaminar um modo de viver que ainda resiste, apesar de toda a pressão da sociedade envolvente: “O turismo, da mesma forma que todas as atividades econômicas desse sistema, provoca definitivamente em si mesmo a síndrome do capitalismo e economicismo que nos coloniza e destrói nossa visão holística do mundo”. Ela aponta a necessidade de se construir uma alternativa ao turismo, baseada na ‘reciprocidade solidária’, onde visitantes interessados em conhecer comunidades indígenas possam participar de cursos e trabalhos comunitários e, assim, vivenciar o cotidiano indígena por meio de uma relação mais profunda, comprometida e solidária. Tessituras da jornada Para Baptista (2002:159) a hospitalidade é um acontecimento ético, diz respeito a todas as formas de acolhimento e de civilidade. Parodiando Baptista, acredito que a hospitalidade torna a humanidade mais humana. Por isso, busquei ressignificar a viagem como uma via importante para a reelaboração do mundo e a celebração do nosso próprio sentido de ser humano. Desde a chegada dos colonizadores nas Américas, as populações indígenas são tratadas com com enorme desrespeito e violência - uma violência física, emocional, espiritual, epistêmica. Embora a legislação brasileira tenha construído marcos legais que garantem aos povos indígenas os direitos sobre suas terras tradicionais e a perpetuação de seus modos de vida, o etnocídio e a tentativa de assimilação dos grupos indígenas à sociedade nacional permanece vigente. Assim como, devido à constante expansão da fronteira agrícola e aos interesses de grandes grupos econômicos por minérios, petróleo e energia, crescem as ameaças e pressões sobre seus territórios e os recursos naturais disponíveis. Nessa conjuntura adversa, talvez as viagens a Terras Indígenas possam auxiliar a construir pontes interculturais, a partir da experiência de conviver com o Outro, de dar-se conta do Outro, de abrir-se ao Outro, e desta forma, ajudem a dar visibilidade à realidade que os povos indígenas enfrentam para garantir seus direitos constitucionais. Uma experiência de viagem menos focada nas atividades externas e mais atenta aos sentidos internos, aos sentimentos, pode constituir-se em um aprendizado para o encontro respeitoso entre mundos, o compartilhamento de subjetividades distintas e a construção de alianças. Quando conheci Putumuju9 (2009), indígena Pataxó e condutor de visitantes no Parque Nacional do Monte Pascoal, na Bahia, ele comentou: “tem gente que nunca viu, nunca teve contato com um indígena”. Putumuju avalia que o preconceito contra os indígenas pode ser vencido com o 9

Morador da Aldeia Pé do Monte, Terra Indígena de Barra Velha, sul da Bahia. É uma área de sobreposição de uma Terra Indígena e um Parque Nacional, constituindo um regime jurídico de dupla afetação. Quando estive lá, em 2009, os indígenas Pataxó da Aldeia Pé do Monte eram cogestores do Parque Nacional.

convívio. Para Magalhães (2009), servidor indigenista da Fundação Nacional do Índio (FUNAI), o ponto de partida do turismo em Terra Indígena tem que ser o conhecimento do Outro: “o turista deve ir à Terra Indígena como um aluno”. Ele acredita que dar oportunidade à cultura ocidental de se colocar diante de outra cultura de forma serena, sem superioridade, pode criar uma nova dinâmica na sociedade “[...] porque ela pode se apropriar desses novos entendimentos, porque estabeleceu uma relação humana, de amizade, de respeito, [...] duradoura [...]”. Em um processo de interação cultural “aonde quem vai, volta diferente; e quem recebeu, percebe essa diferença”. Destarte, um caminho para um desenvolvimento das viagens solidárias ou intencionais é garantir que a experiência traga bem-estar para as comunidades indígenas, assim como para os visitantes. Onde as relações sejam baseadas na complementaridade, na cooperação e no benefício mútuo. Enquanto um processo pedagógico, deve desconstruir as relações mercadológicas que o turismo promove. Concordo com Millan (2006) quando diz que: Para transformar o sistema devemos primeiro revolucionar a sociedade, e talvez o primeiro ato de insurgência e revolução em direção a um mundo melhor e possível seja não somente mudar a linguagem, mas fundamentalmente criar novos conceitos de vida. O compromisso então de contribuir para o desaparecimento do turismo para que emerja uma relação entre culturas diferentes baseada na reciprocidade solidária. Esta última pode ser uma alternativa ao turismo. (MILLAN, 2006:68)

Interculturalidade significa encontro de culturas, de mundos distintos, de consciências. Culturas que se complementam em suas diversidades e que dialogam horizontalmente. Compreende a construção de um projeto social, cultural, político, ético e epistêmico voltado à descolonização e a transformação (WALSH, 2007:47). A compreensão da pluralidade identitária e cultural do planeta e a aceitação do valor diferenciado do Outro. Ao desenvolver estratégias pautadas no diálogo intercultural, podemos estar contribuindo com a luta pela autodeterminação dos povos indígenas e com o desafio da construção de um mundo menos colonialista e mais livre de preconceitos e subalternidades. Para tanto, é relevante um processo de educação onde os valores dos povos indígenas sejam considerados em primeira instância. Antes de tudo, é mister construir processos educativos abertos, em fóruns adequados, com tempos em sintonia com os tempos dos interessados. Deve-se preparar o visitante para enxergar o humano, e não o exótico; o interior, o invisível, e não somente o exterior dos indígenas. De modo que haja acolhimento entre as pessoas e o visitante sinta-se convidado a mergulhar no seu íntimo, a rever o véu dos conceitos preestabelecidos e a abrir-se para a riqueza de um outro mundo - a vida dos povos indígenas, no Brasil, hoje. Essa ideia de viagem, desenhada com a inspiração das visões distintas apresentadas ao longo do artigo, envolve o aprendizado da essência do que os povos indígenas têm a ensinar à sociedade envolvente. Ao colaborar para dar visibilidade aos povos indígenas e às suas lutas, as viagens intencionais poderão fortalecer a consciência étnica no Brasil e apoiar a necessária redefinição do lugar que os povos indígenas ocupam na sociedade nacional e no projeto de país.

Bibliografia

BAPTISTA, Isabel. Lugares de hospitalidade. In: Hospitalidade: Reflexões e Perspectivas. / Célia Maria de Moraes Dias (org.). Barueri, SP: Editora Manole LTDA, 2002. p.157-163. BEY, Hakim. Overcoming Tourism. Brooklyn, N.Y. : Alley Publications, 1990. (“Superando o Turismo”, tradução livre). Disponível em: http://www.midiaindependente.org/pt/red/2006/05/354089.shtml Acesso em: 02/10/2013. CASTRO, Maria Soledad Maroca de. A Reserva Pataxó da Jaqueira: o passado e o presente das tradições. 2008. Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade de Brasília. Brasília – DF. DECLARAÇÃO de Belém - Fórum Global sobre Turismo Sustentável. Disponível em: . Acesso em 14/03/2009. DIAS, Célia Maria de Moraes (org.). Hospitalidade: Reflexões e Perspectivas. Barueri, SP: Editora Manole LTDA, 2002. ECHEVERRIA, Rafael. Ontologia del Linguaje. Santiago, Comunicaciones Noroeste Ltda., 2009. FUNAI. Proteção e promoção dos direitos dos povos indígenas: Balanço e perspectivas de uma nova Política Indigenista - PPA 2012-2015. Brasília: FUNAI, 2012. 199 p. GRÜNEWALD, Rodrigo de Azeredo. Os Índios do Descobrimento: tradição e turismo. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2001a. _________. Turismo e o “resgate” da cultura Pataxó. In: Turismo e Identidade Local: uma visão antropológica. / BANDUCCI Jr., Álvaro e BARRETTO, Margarida (org.). Campinas, SP: Papirus, 2001b. p. 127-148. MILLAN, Moira. Turismo sustentável X reciprocidade solidária. Um outro turismo é possível! Reflexões sobre Desigualdades, resistências e alternativas no desenvolvimento turístico. Esther Neuhaus e Jefferson Souza da Silva (Org.). Fortaleza/CE 2006. Disponível em: . Acesso em: 22/04/2009. NEGRET, J. F.; ALMEIDA, L. M. . Desafios na formulação de políticas: a regulamentação do etnoturismo e seu processo de tradução. In: VI Simpósio Linguagens e Identidades da/na Amazônia. Rio Branco, VI Simpósio Linguagens e Identidades da/na Amazônia, 2012. QUINTERO, Modesto Segura. Estratégias de resistência frente aos impactos do turismo em Esmeraldas, Equador. In: Um outro turismo é possível! Reflexões sobre Desigualdades, resistências e alternativas no desenvolvimento turístico. Esther Neuhaus e Jefferson Souza da Silva (Org.). Fortaleza/CE 2006. Disponível em: . Acesso em 22/04/2009. SOUZA, L.V.S. A Arte da Viagem à Terras Indígenas. Monografia (Especialização em Indigenismo e Desenvolvimento Sustentável) - Centro de Desenvolvimento Sustentável da Universidade de Brasília. Brasília, 2009. WALSH, Catherine. Interculturalidad Y Colonialidad Del Poder: Un pensamiento y posicionamiento “otro” desde la diferencia colonial. In El giro decolonial: reflexiones para una diversidad epistémica más allá del capitalismo global / compiladores Santiago Castro-Gómez y Ramón Grosfoguel. – Bogotá: Siglo del Hombre Editores; Universidad Central, Instituto de Estudios Sociales Contemporáneos y Pontificia Universidad Javeriana, Instituto Pensar, 2007.

Fontes orais: MAGALHÃES, Frederico, 2009. Indigenista da Funai, entrevista concedida em 09/04/2009. PATAXÓ, Putumuju, 2009, povo Pataxó. Entrevista concedida em janeiro de 2009. Web: http://revista-elumbral.blogspot.com.br/2008/01/biografias-moira-millan.html . Acesso: 04/10/2013.

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