A Arte de Fazer Rir - Teatro Cómico Antigo: Uma Influência no Cinema e Cultura do Séc. XX e XXI

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FACULDADE DE LETRAS DA UNIVERSIDADE DE LISBOA

A Arte de Fazer Rir Teatro Cómico Antigo: Uma Influência no Cinema e Cultura do Séc. XX e XXI

Mestrado em História Antiga História da Grécia Antiga Docente: Prof. Doutor Nuno Simões Rodrigues

Realizado por: Filipe Miguel Nunes, nº 46378

Lisboa, 05 de Fevereiro de 2017 Ano Lectivo 2016/2017

Nota Introdutória Este trabalho teve início na questão - o que faz o homem grego da Antiguidade rir? Mas rapidamente outras questões começaram a surgir: será o mesmo que faz rir o homem do século XXI? Como se pode perceber e comparar dois mundos, dois contextos que não são comparáveis? Visto que não vivemos ou comunicamos directamente com a Antiguidade, pensámos em dedicar duas partes à Comédia como género teatral pertencente à Antiguidade, em especial, ao mundo grego (espaço onde esta especificidade artística terá nascido). O primeiro capítulo terá o objectivo de explorar os diferentes autores e tipos de comédia, de modo a melhor perceber um mundo que não é o nosso mas, que ao mesmo tempo, faz parte dele. Contudo, achámos que a perspectiva geral não chegava. Para se ter uma melhor percepção deste mundo perdido que é a Comédia da Antiguidade, seria necessário um segundo capítulo que viajasse pelas “especificidades autorais” que melhor conhecemos. Os inescapáveis Aristófanes e Menandro. A estes dois homens, representantes de dois tipos de comédia diferentes, mas com muitas semelhanças, decidimos dedicar mais espaço. Para se perceber o núcleo cómico deste mundo, viajar-se-á pelo mundo musical, literário, estrutural, biográfico, pictórico, enfim, pelo mundo histórico e artístico. Conhecer melhor algo que não se domina tão bem, ou não se percepciona de todo, é a explicação que se encontra para estas decisões. As duas últimas questões iniciais continuam sem resposta. Deste modo, pensamos que para fazer a ponte entre o que foi homem clássico e o que é o homem contemporâneo, alguns elementos cómicos presentes na sociedade, e em especial no cinema, serão onde se poderá encontrar a resposta. Tal como acontece, em parte, no mundo teatral, também o cinema é uma junção de um variado conjunto de artes. É na linguagem cinematográfica que se pode encontrar uma união global, pelo que será aqui que se conseguirá perceber algo essencial para o conhecimento da História da Humanidade: a ideia de que não existe Eu e o Outro, mas que somos todos o mesmo, apesar de não o sermos. É nas nossas diferenças e semelhanças que se encontra aquele âmago nuclear ao homem, a sua vontade de ser, criar, reinventar. A sua determinação em rir e fazer rir. Através de artistas, obras cinematográficas e diferentes tipos de comédia do período contemporâneo, iremos atingir a comprovação deste objectivo final: como o todo faz a parte e como a parte faz o todo. 2

Índice

I PARTE - Definição de um Género..................................................................... 5 Curta História da Comédia Ateniense....................................................... 5 Definição de Comédia................................................................... 5 Teorias sobre a “invenção” da comédia e seus “inventores”…….6 Comédia Antiga……………...................................................................10 As Primeiras Décadas da Comédia nas Dionísias.......................10 Comédia durante a governação de Péricles…….........................13 Idade de Ouro da Comédia Antiga…….....…….........................14 Comédia Média……………...................................................................24 Comédia Nova.……………....................................................................31 Outras Formas de Comédia….................................................................39 O Drama Satírico….................................................................... 41 II PARTE – Contextos Específicos: Aristófanes e Menandro……………….....48 Analisar quem e o quê?……....................................................................48 Aristófanes …….…….............................................................................51 Vida através da Obra....................................................................51 Elementos Estruturantes do seu Teatro........................................54 Peças Específicas – Rãs................................................................59 Peças Específicas – Lisístrata......................................................64 Peças Específicas – Pássaros……………...................................67 Peças Específicas – Vespas...……………...................................71 Peças Específicas – Pluto…………….........................................75 Menandro…………….............................................................................79 Influência do contexto político-social na sua Vida e Obra..........79 Temas essenciais…………………………..................................81 Elementos Estruturantes do seu Teatro……................................83 Peças Específicas – Discóbolo………………................................85 Peças Específicas – Perikeiromene…………..............................90 Peças Específicas – Árbitros........................................................93 Conclusão: Menandro e Aristófanes .......................................................98 3

III PARTE – A Ponte Cinematográfica……………………………………….101 Slapstick – Uma Influência da Comédia Antiga....................................101 Uma Comédia Física..................................................................101 Buster Keaton: Um Comediante Visual.....................................104 Screwball – uma influência da Comédia Nova......................................106 Particularidades..........................................................................106 Uma História em Filadélfia........................................................108 A Perpetuação da Influência e o Tabu Cómico......................................110 Sitcom e o Diálogo Crítico-Social..............................................110 Meme, uma Máscara Cómica da Web........................................112 A Ironia Trágico-Cómica da “Estranha ” Vaga Grega...............114 MCU (Marvel Comedic Universe).............................................117

CONCLUSÃO...................................................................................................120

BIBLIOGRAFIA...............................................................................................121

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I PARTE - DEFINIÇÃO DE UM GÉNERO “Plaudite, amici, comedia finita est.” (Aplaudam, meus amigos, a comédia acabou.)

Ludwig van Beethoven (proferido pouco antes de morrer )

Curta História da Comédia Ateniense Quando a comunidade científica internacional se refere a comédia antiga grega, dois nomes emergem de imediato: primeiro o de Aristófanes, de quem nos chegaram onze peças preservadas em manuscritos medievais. O segundo nome - Menandro, só nas últimas décadas foi realçado, tendo sido descobertas cinco das suas peças em papiro, no Egipto, maioritariamente completas. No livro editado por Jeffrey Rusten1 tenta-se ir mais longe explorando a comédia envolvida num contexto social e político. Através de fontes epigráficas e literárias foi possível datar o que poderá ter sido o princípio da comédia em Atenas, numa competição cómica nos festivais de Dioniso, c. 487 a.C.

Definição de Comédia A comédia é um tipo de drama, sendo este a representação de uma dificuldade ou

problema

apresentado

e

resolvido

pela

interacção

de

seres

(humanos e/ou não-humanos) cujas palavras e acções são apresentadas perante uma audiência através de actores. A comédia promove uma acção similar à da vida real, pode ser confundida com a farsa, que logra ser considerada comédia exagerada. Apenas podemos retirar uma definição de comédia a partir da psicologia e não da história. Comédia é um dispositivo activado pelo nosso sentido de divertimento coadjuvado com o nosso instinto de personificação. É isto que define o drama, uma representação de um enredo onde existe a questão, a complicação e a solução. Sem um destes elementos não existe drama. Não podemos saber qual foi a primeira comédia da história, talvez por não

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RUSTEN, Jeffrey (ed.); The Birth Of Comedy; The John Hopkins University Press; Baltimore; 2011.

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ter causado um impacto persistente, talvez por não ter a combinação de enredo e personificação. Qual a origem da comédia? Terá sido em Atenas ou noutro lugar? E se foi na Grécia terá sido mesmo na Ática? Muitas destas questões podem não ter uma resposta satisfatória, muito devido à nébula que rodeia este período anterior à Comédia Antiga. Teorias sobre a “invenção” da comédia e seus “inventores” Existem algumas fontes e teorias que apontam para a origem da comédia ateniense. Poderemos começar por referir a mímica que, inicialmente seria o momento onde um grupo de indivíduos se disfarçava de pessoas ou animais para actuar perante uma audiência através de gestos mímicos, podendo ou não ter um carácter dramático. Na Ática este tipo de comédia parece ter favorecido representações de animais. O pasquim - uma afirmação difamatória, terá sido muito frequente nesta região quando as multidões se reuniam para celebrações, seria uma qualquer frase ou discurso difamatório da parte dos celebrantes em direcção aos espectadores. Este poderá ter sido um dos elementos que veio a compor a comédia ática. Aristóteles ofereceu duas sugestões quanto aos antecedentes da primeira competição cómica. Na sua obra Poética 2 , o filósofo faz referência às canções da procissão fálica ou phallika, comum nas celebrações dionisíacas, onde se formula a hipótese de os tipos de comédia mais antigos, terem aí a sua origem e evolução. Estas eram procissões em homenagem a Fales, o companheiro de Dioniso que carregava o falo (uma viga que simbolizava a fertilidade humana) ao mesmo tempo que cantava. Assim seria a procissão que se dirigia a um lugar de culto central, caracterizando-se pelas “obscenidades e abuso verbal”

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usados. Sendo a representação de um falo

característica comum4. É a este tipo de celebração a que Aristóteles se refere, contudo estas festas tinham pouco valor dramático. Gilbert Norwood sugere que Aristóteles ao referir que a comédia se desenvolveu pelos que lideravam o ditirambo, está a querer dizer que estes líderes se vieram a separar cada vez mais dos seus seguidores (o coro), ao fazer discursos individuais e ao

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ARISTÓTELES, Poética, 4.1449a2-14 e Cf. “The origins of comedy” in DUNKLE, Roger; Introduction to Greek & Roman Comedy; Brooklyn College; Brooklyn; 2006. 4 PICKARD-CAMBRIDGE, Arthur; Tragedy, and Comedy; Dithyramb; 2ª edição; Cambridge; 1962, pp. 144162. 3

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ser acompanhado nesta distanciação por um actor, com o qual seriam representadas cenas dramáticas que acabaram por evoluir em tamanho, interesse e importância5. Aristóteles ainda indica uma segunda origem6, apontando para os megarenses7, gregos dóricos (ou seja, que falam o dialecto dórico utilizado maioritariamente na área do Peloponeso, em oposição ao dialecto usado em Atenas). Tal se afirma devido ao poeta Epicarmo que terá vivido no tempo em que dominava a democracia em Mégara, que se poderá localizar, aproximadamente, no fim do século VII a.C. 8. Este poeta seria muito mais velho que Quiónides e era proveniente da cidade de Mégara9. Outro possível “inventor” é Epicarmo, considerado um dos poetas cómicos mais antigos da Europa e, para alguns autores, o mais antigo10. Terá vivido e trabalhado na Sicília e depois em Siracusa no fim do século V e início do VI a.C., Elpis ou “Esperança” poderá ter sido uma obra quase dramática, mas que continuava apenas próxima da Comédia, com alguns dos seus elementos. Sugere-se que podia ser apenas a exibição de um parasita11. Não existe qualquer prova que uma outra obra: Odysseus Nauagos, não seja apenas uma espécie de sketch, que mostraria o herói a expor algum texto filosófico ao seu escudeiro estupefacto. A figura do mimo actual (apesar de estes falarem) poderá ser um bom exemplo para perceber este tipo de actuações. Algures entre a sua viagem da Sicília para Siracusa, Epicarmo ter-se-á deparado com o trabalho de Ésquilo, o grande autor trágico. Na sua obra Bousiris, por exemplo, deverá ter existido já um enredo estruturado. Problema: o que fará o prisioneiro? Complicação: o encontro de Busíris com a sua vítima; catástrofe: a revelação que a vítima é Héracles; desfecho: a vitória e celebração do herói. Esta poderá ter sido a primeira comédia dramatúrgica, simples mas imensamente influenciadora. Epicarmo havia crescido entre escritores de mímica que desenvolviam uma escrita onde não existia muita acção, apenas descrições. Assim que, na obra Hebes Gamos não existe muita oportunidade para acção cómica, apenas se terá feito uma narração. Epicarmo terá sido inovador no acto de transformar esta narração em acção.

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NORWOOD, Gilbert; Greek Comedy; Hill and Wang; Nova Iorque; 1963, p. 9. ARISTÓTELES; Op.Cit.; 3.1448a28-b2. 7 Mégara era a cidade dórica que se encontrava mais perto de Atenas. 8 WEST, M. L.; Studies in Greek Elegy and Iambus; Untersuchungen zur antiken Literatur und Geschichte 14; de Gruyter; Berlim; 1974; p. 67. 9 ARISTÓTELES, Id. Ibidem. 10 NORWOOD; Op. Cit.; p. 3. 11 Ver nota da p. 16. 6

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Uma outra sugestão quanto ao nascimento da comédia pode ser encontrada na Crónica de Paros, também conhecida como Mármore de Paros concebida por volta de 264 a.C., onde se identifica o “inventor” da comédia como sendo Susarião, também proveniente de Mégara. Ele é considerado por alguns autores como o criador da comédia métrica12, outros autores consideram-no o fundador da comédia ática. Assim se percebe que esta hipótese não é indissociável da anterior, pois permanece a reivindicação megarense para o facto da comédia se ter desenvolvido nessa região, seguindo-se a tradição da poesia iâmbica - género pertencente à poesia grega antiga, com origens nos cultos de Deméter e Dioniso, onde se incluíam insultos e linguagem obscena13. Outros autores clássicos referem-se ao género como sendo qualquer tipo de poesia informal, com intuito de entreter14. “Ó sim! Ó sim! Susarião, filho de Filineu, […] de Mégara diz: As mulheres são um mal; contudo é impossível, vizinhos, viver na nossa casa sem mal […]”15

Tal como Téspis, o fundador da tragédia, ele provinha de Icária e era também associado à primeira actuação, desta feita, numa peça teatral cómica. Quanto a certezas em relação à veracidade destas sugestões para a origem da comédia, talvez nunca as teremos, não deixam de ser hipóteses que precisam de ser indicadas e ponderadas. Podendo ser suposições especulativas, não pensamos que se possam chamar de inúteis, simplistas seria um termo mais apropriado, pois um género tão insurrecto e diverso, como a comédia, não deve ter apenas um inventor ou um padrão de crescimento ordenado. Rusten aponta o foco para a quantidade de tipos de desempenho com elementos cómicos que já existiam no século VI a.C., algo que se estendeu até ao início do século seguinte. “[…] desde o tempo em que um coro de actores cómicos foi estabelecido em Atenas, sendo os icarianos, os primeiros a actuar, e Susarião o seu inventor […]” Fragmento da Mármore de Paros16

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EDMONDS, John Maxwell; The Fragments of Attic Comedy; E. J. Brill Leiden ; 1957. GERBER, Douglas E.; Greek Iambic Poetry; Loeb Classical Library; [s.l.]; 1999; pp. 1-4. 14 BARRON, J.P.; e EASTERLING, P.E.; "Elegy and Iambus" in The Cambridge History of Classical Literature: Greek Literature; P.Easterling and B.Knox (ed.); Cambridge University Press; Cambridge; 1985; p. 120. 15 As cincos linhas iâmbicas descobertas e atribuídas a Susarião. 13

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Ilustração 1 - A Mármore de Paros; direitos de autor da Universidade de Oxford; Ashmolean Museum; secção A; 2001. Fotografia retirada de: http://www.ashmolean.org/ash/faqs/q004/q004001a.html, a 15/10/2016.

Quiónides e Magnes são, segundo Aristóteles, os mais antigos a compor comédia em Atenas, não existe menção de Susarião. Será provável que Quiónides tenha vencido o prémio na primeira competição oficial em 486 a.C., este autor pode não ser considerado um escritor de peças, per se, pois as suas peças não teriam enredos. Será mais provável que a sua contribuição se direccione para a forma e poder do quasedrama que se podia encontrar no coro e em cenas isoladas, algo que Susarião teria iniciado. Magnes, de acordo com uma fonte anónima17, foi “um ateniense que competiu em Atenas, vencendo onze vezes”. Aristóteles só nos diz que ele poderá ter sido um contemporâneo de Quiónides, sendo mais novo que Epicarmo. É referido por este autor, como um dos poetas que muito sofreram com uma audiência cruel e inconstante18, por se ter fartado do poeta. Conquanto, sabemos que o escritor seria célebre pois compôs fábulas de bestas populares e tinha uma obra lírica que terá sido adaptada por outros autores. Cratino é por vezes apontado como sendo um inovador que retirou trabalho a 16

JACOBY, F.; Die Fragmente der griechischen Historiker; E.J. Brill; Leiden; 1923; p. 239, A 39. Ver inscrição em WILHELM, Adolf; Urkunden dramatischer Aufführungen in Athen; Wien, A. Holder; Viena; 1906; p. 107. 18 ARISTÓFANES, Cavaleiros; 518-25. 17

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um antigo vencedor sem competição feroz. Por fim, Ecfântides será o último nome de interesse deste período primordial na comédia grega, mais velho que Magnes, ele seria o escritor de peças dramáticas cómicas mais antigo. Cratino parodia a sua forma lírica. Esta escola inicial de escritores de peças era literária, em contraste com os improvisadores que a precederam. Contudo, não existem provas de que eles tenham desenvolvido qualquer tipo de enredo, antes uma série de cenas com grande valor lírico. Segundo Aristóteles, a criação de enredos começa com Crates, discípulo de Cratino19. Ambos autores que trataremos melhor no próximo capítulo. Uma influência mais clara na comédia primitiva terá sido a peça satírica ateniense inicial, que tinha sido representada nas festas dionisíacas décadas antes da introdução da comédia. Também continha elementos fálicos, comportamento ridículo e paródias de mitos20.

Comédia Antiga As Primeiras Décadas da Comédia nas Dionísias21 (c. 486-445) Por volta do fim do século VI a.C. um festival dedicado a Dioniso passou a celebrar-se todos os anos no mês de Março. Era um grande festival cujo centro de interesse eram as actuações teatrais de tragédias e comédias dramáticas. Era o segundo festival mais importante, sendo o primeiro as Pan-Ateneias22, dedicadas à deusa Atena. O festival, conhecido como Dionísias, consistia em dois festivais combinados, as Dionísias Rústicas e Urbanas. As Dionísias Rústicas eram um festival fora da cidade, que inicialmente celebraria o cultivo da vinha. O evento principal seria a procissão, pompe, onde os falos ou phalloi eram transportados até ao fim da marcha. Seguiam-se competições de dança, música e grupos de coro que cantavam o ditirambo, um hino em honra de Dioniso. As cidades da Ática tinham estes festivais em dias diferentes, pelo que era possível um espectador ver mais que um festival por ano, apresentando-se também como uma 19

ARISTÓTELES; Op. Cit.; 1449b. VER o conjunto de dramas satíricos de ECFÂNTIDO, CÁLIAS, CRÁTINOS e FRÍNICO; e ainda FRÍNICO, Dionysalexander (obra perdida). Ver também capítulo dedicado ao drama satírico 21 PICKARD-CAMBRIDGE, Sir Arthur; The Dramatic Festivals of Athens; 2ª ed.; Clarendon; Oxford; 1953. 22 Sobre as Panateneias ver: YOUNG, David C.; A Brief History of the Olympic Games; Wiley-Blackwell, [s.l.]; 2004. 20

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possibilidade para os cidadãos atenienses saírem da cidade. Estas características das celebrações vieram a dar origem às companhias de teatro que se deslocavam, também elas, de modo a fazerem mais que um espectáculo durante o período do festival. Este festival foi parodiado por Aristófanes na peça satírica Os Acarnenses (não sendo esse o tema principal da peça)23. As Dionísias Urbanas ter-se-iam estabelecido por volta do século VI a.C. Começavam três meses depois do festival rústico e celebraria provavelmente o fim do Inverno e a colheita dos cultivos desse ano. Aqui também existia a mesma procissão, onde se transportavam os phalloi. A tradição diz-nos que o festival se criou pois a cidade de Eleutéria tinha mostrado vontade em fazer parte da Ática (localizava-se na fronteira entre a Ática e a Beócia)24. Assim, transportou-se uma estátua de Dioniso para Atenas que foi rejeitada pelos cidadãos da cidade. Dioniso, insatisfeito, puniu os atenienses lançando uma praga que afectava os genitais masculinos. Esta praga apenas se curou depois dos atenienses aceitarem o culto de Dioniso. Assim explicar-se-ia a procissão que era repetida todos os anos onde elementos fálicos eram os protagonistas.

Ilustração 2 – Ânfora em terracota com uma representação de um coro pernilongo; datação entre 550 e 525 a.C.: in Getty Villa; retirada de James Logie Memorial Collection, Universidade de Canterbury, Nova Zelândia. Fotografia de Remi Mathis (2011).

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Cf. BROCKETT, Oscar Gross; History of the Theatre; Allyn & Bacon; Boston; 1968; pp. 18–26. REHM, Rush; Greek Tragic Theatre; Routledge; Londres e Nova Iorque, 1992.

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No primeiro dia do festival dava-se a pompe25, que contava com a participação de cidadãos, metecos (cidadãos residentes nas poleis gregas), e representantes de colónias atenienses. Marchavam todos em direcção ao Teatro de Dioniso, na encosta a sudeste da Acrópole, levando uma estátua de madeira de Dioniso Eleutério, e também phalloi feitos de madeira ou bronze e possivelmente, um falo com dimensões mais alargadas, sendo neste aspecto muito similar ao festival rústico. Os participantes mais conspícuos eram os chorēgoí, os líderes do coro, pois vestiam as roupas e ornamentos mais caros. Depois da procissão estes homens lideravam os seus grupos na participação em competições ditirâmbicas, onde os melhores tocadores de flautas e poetas, por exemplo, mostravam os seus dons líricos e musicais. Por fim, dava-se um baquete para todos os cidadãos de Atenas, seguido de uma procissão final chamada kōmos26. No dia seguinte acontecia o proagōn, a “pré-competição” onde os dramaturgos anunciavam o título das peças que iriam ser encenadas 27 . Os dois dias posteriores começaram por ser dedicados a competições ditirâmbicas, até ao ano de 468-487 a.C., quando poetas cómicos terão sido oficialmente aceites para o Agon, cada um dos cinco participantes apresentava apenas uma peça, não se sabendo exactamente quando elas eram encenadas. Depois de 449 a.C., para além de se premiar os autores de peças dramáticas, também se começou a premiar actores. Apesar de se poder pensar que a comédia teria menos importância, a verdade é que era uma enorme honra vencer-se a competição cómica nas Dionísias Urbanas. No dia final era realizada outra procissão e efectuada a celebração onde os juízes aclamavam os vencedores das encenações trágicas e cómicas. Os autores que venciam recebiam, para além de prestígio, uma coroa de hera. Teria a institucionalização da comédia algum intuito28? Como o de promover uma nova forma de discurso público? Ou seria uma forma de canalizar e mesmo limitar a sátira? É verdade que a introdução da comédia nas Dionísias pode ser associada à supremacia do demos. Quando a comédia passou a vigorar nestes festivais, por volta de 486 a.C., a eleição anual de arcontes aristocráticos foi substituída por um sorteio

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PAVIS, Patrice; Dictionary of the Theatre: Terms, Concepts, and Analysis; University of Toronto Press; Toronto e Buffalo; 1998. 26 HAIGH, Arthur Elam; The Attic theatre: a description of the stage and theatre of the Athenians, and of the dramatic performances at Athens; The Clarendon Press; Oxford; 1898. 27 BROCKETT; Op. Cit.; pp. 18-25. 28 Sobre Comédia antiga e o demos, VER: CAREY, Christopher; “Comic Ridicule and Democracy” in Ritual, Finance, Politics: Athenian Democratic Accounts Presented to D. M. Lewis; S. Hornblower e Robin Osborne (ed.); Oxford University Press; Oxford; 1994; pp. 69-83.

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eleitoral. Os anos de 487 a 484 a.C. foram marcados por inúmeros ostracismos 29 . Xenofonte, o orador e aristocrata que criticava a democracia, sugeriu que a comédia era um instrumento do demos na sua vontade de ir contra a aristocracia30. Esta, contudo, não será a função mais óbvia da comédia.

Comédia durante a governação de Péricles (c. 446-429) A partir da década de 440 a.C. começamos a poder conhecer algumas peças cómicas mais integralmente. Neste período existiam duas escolas de escrita cómica: a escola de Cratino, mais virada para questões políticas; e a escola de Crates, que se afastava desse tipo de comédia, aproximando-se mais de uma crítica social. Crates enquadrava-se mais na linha de Epicarmo. Magnes, por esta altura, seria um homem idoso. Cratino escrevia uma comédia mais para adultos. Os tópicos principais desta comédia seriam: hábitos contemporâneos, paródia de lendas, política e fantasia. Na fantasia explorava-se a imaginação do espectador ao levá-lo para mundos surreais – contando-se a história de um nascimento divino ou ridiculizando uma divindade, entre muitos outros temas relacionados com o mundo espiritual e religioso. A paródia de lendas foi um tema constantemente usado desde Epicarmo, estendendo-se a todas as Idades como um tipo de drama fácil e bem-sucedido. Contudo, o género mais frequente é o político, iremos referir alguns nomes de políticos que foram atacados nesta comédia, contudo, para o escritor o importante é atacar o governo, principalmente, o favorito do povo. Estas peças eram notáveis pela liberdade de expressão, mas também pela linguagem franca, quase sem escrúpulos. Apesar das obras datáveis de Cratino serem de 420 a.C., ele já era um competidor assíduo vinte anos antes. Das suas peças mais antigas Odysseuses, que seria um recontar da narrativa presente na Odisseia, ou Cleobulinas sobre uma poetisa conhecida pelos seus enigmas, serão apenas dois exemplos. Duas décadas depois já Aristófanes comparava a linguagem de Cratino com o correr de um rio, era severo e agressivo31, mas também rico em metáforas, palavras fora do comum e personificações. Crates, um escritor mais jovem que Cratino, veio a ganhar a reputação de abordar temas distintos, construindo peças com enredos novos, sem referências 29

ARISTÓTELESI; Constituição de Atenas; 22.3-6. ARISTÓTELES: Op. Cit.; 2.18. 31 CLEMENTE DE ALEXANDRIA; Miscelâneas; 1.24. 30

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mitológicas e sem serem ofensivas32. Aristófanes admirava a sua poesia, comparando-a a uma refeição elegante. Foi também na década de 440 a.C. que a comédia foi apresentada nas Leneias, um festival urbano dedicado a Dioniso, que seria mais apropriado para sátira política, nas palavras de Aristófanes 33 , devido à falta de espectadores estrangeiros (visto celebrar-se no Inverno). Isto levou também à possibilidade de não-participação nas Leneias por parte de Crates, que nunca as venceu, apesar de ser um célebre autor. Alguns anos depois existe informação que descreve uma proibição sobre a produção de comédia por parte de Péricles. Contudo, e devido a dados de fastos romanos 34 que referem produções de Cálias, por exemplo, mas também de outros autores, tem-se olhado para esta proibição com cepticismo. Péricles e a Guerra do Peloponeso foram bodes expiatórios de comédias como Fados de Hermipo - que vê as suas tácticas defensivas como cobardes, ou Dionisalexandre de Cratino, onde Páris se disfarça como o deus cobarde do festival que apoia Péricles, político que este autor não deixou de fazer referência em obras posteriores. Esta obra será uma forma subtil de criticar o político, contudo isto não era a norma, o normal seria chamá-los e ofendê-los pelo seu próprio nome. Nos anos 430 a.C., para além de Hermipo, começam também a surgir peças de Ferécrates. Este autor também se afastou da política, explorando temáticas mais fantásticas, prefigurou a Comédia Média ao dar relevância a comida, bebida, e perfumes, principalmente, de uma perspectiva feminina. Os fragmentos que nos chegaram contêm variedade métrica e um interesse crítico em música.

Idade de Ouro da Comédia Antiga (c. 429-390) Nos anos seguintes, Hermipo e Cratino continuaram a produzir peças que criticavam Péricles e as suas forças militares. Este período não é chamado de “Idade do Ouro” por essa razão, mas sim porque no ano de 427 a.C. é apresentado ao festival um novo possível vencedor. Falamos claro, de Aristófanes. Este também é o período mais rico em termos de fontes que nos chegaram. A sua primeira peça, Banqueteantes, mostrava um pai a lidar com o seu filho que se encontra desesperado devido às novas modas intelectuais. Seguiu-se Babilónios 32

ANÓNIMO; Sobre Comédia, Prolegomena sobre Comédia; III, 9. ARISTÓFANES; Acarnenses; 502-6. 34 FASTI ROMANOS, IG urbis Romae 215-22, IG XIV 1097; Mette 191. 33

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(em 426 a.C.), uma peça escandalosa, sendo o poeta acusado de difamar o povo e oficiais públicos perante estrangeiros, acabando mesmo por ser chamado de forasteiro. Terá sido com esta peça cujo enredo não conhecemos na sua integridade, ou com a peça de 425 a.C. de título desconhecido que terá vencido pela primeira vez. Neste mesmo ano ganhou o primeiro prémio no festival das Leneias com Acarnenses, onde se combina um enredo antiguerra e um conflito pessoal contra Cléon, aos quais se acrescenta uma paródia de Eurípides. No ano seguinte e de novo nas Leneias, com Cavaleiros, Aristófanes eleva o seu material e vence de novo o primeiro prémio. O enredo é um retracto de Cléon como um escravo criminoso. Esta peça continha uma parábase 35, onde disfarçando simpatia, o autor atacava o miserável Cratino, acusando-o de estar ultrapassado pois há muito não vencia e por isso procurava a bebida. Este terá sido um momento alto da sua carreira. Contudo, o ataque não podia ficar sem resposta, pelo que, Cratino ridiculizou o seu uso de Eurípides e acusou-o de plagiar Eupólide. No ano de 423 a.C., o vencedor das Dionísias foi Cratino com Pytine (garrafa de vinho), considerada a sua obra-prima. Terá sido a primeira peça em que o próprio autor era o protagonista. Casado com a Comédia, que quer o divórcio se ele não parar de beber. Chegaram-nos fragmentos do discurso de Comédia, onde faz queixas e tenta impedi-lo de beber monstrando-se a resposta dele, por vezes arrependida, por vezes desafiante. As Nuvens de Aristófanes, nem sequer em segundo lugar acabaram. “Nunca criarás nada brilhante ao beber água.” Linha de um epigrama de Cratino36

Em 422 Cratino terá falecido. Nas Leneias Aristófanes continuava a criticar Cratino em As Vespas, não conseguido vencer. Neste mesmo ano Eupólide, depois de Aristófanes ter deixado de fazer ataques ao seu alvo principal 37, este autor passou a tomar as rédeas da biga que guiava este tipo de comédia com Maricas, que fazia agora críticas ao sucessor de Cléon, Hipérbolo. O protagonista, tal como em Cavaleiros, tinha 35

Parte da actuação do coro, onde o autor, pela boca do corifeu, falava em nome próprio aos espectadores e expunha as suas queixas pessoais, opiniões políticas, as suas afeições e ódios. "parabase", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa, 2008-2013. 36 Cf. HORÁCIO; Epístolas; 1.19.3 37 Cléon também tinha morrido no ano de 422 a.C.

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um pseudónimo estrangeiro, e também era um escravo que obedecia a um mestre, havendo um coro que se dividia em homens ricos e pobres. Nas Dionísias do mesmo ano, este autor, de modo a rivalizar com As Nuvens, escreve Kolakes (Bajuladores) na qual Cálias, um homem de grandes posses, e não o poeta que referimos anteriormente, é exposto publicamente devido aos seus gastos com sofistas e parasitas 38 . Ao contrário de Nuvens, esta peça ganhou o primeiro prémio. Eupólide e Ferécrates prosseguiram, no resto da década de 420, com a produção deste género de peças, algo que Aristófanes criticou pois seriam imitações de Cavaleiros, sentiu-se frustrado pois o público queria continuar a ver críticas a Hipérbolo39. A década seguinte, os anos 430, começa por ser marcada pela peça Baptae (Mergulhadores), que ataca Alcibíades, uma figura política muito perigosa e popular. Ficou conhecida como uma peça veemente pois parodia a deusa trácia, Cótis, ao atacar este homem. Estrangeiros e estrangeirismos, como já percebemos, não eram bem aceites nesta sociedade. Seguiu-se a mais célebre peça de Eupólide, Demoi, que partilhava uma fas ideias de Cratino ao fazer ressuscitar pessoas/personagens40. Assim Sólon, Milcíades, Aristides e Péricles voltam à vida apenas para lidar com os degenerados da actualidade. A carreira deste autor acabou mais cedo pois suspeita-se que ele terá falecido numa batalha naval no Helesponto. Foi nesta década que alguns destes autores cómicos acabaram por falecer ou ser exilados. Aristófanes sobreviveu a esta “limpeza”, mas depois de 422 as suas vitórias limitaram-se a Rãs (405), Cócalo (387) e uma outra peça desconhecida. Porém, devido às características desta comédia, podemos olhar para a censura que existia como algo permanente, a comédia em geral era atacada, seja a indivíduos ou através de legislação repressiva. Mas temos de perceber também que esta não seria a norma pois nunca uma comédia retirou poder ou prestígio a um político, percebemos assim como o homem grego percepcionava a arte e a política. Duas áreas distintas. Eles

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Inicialmente era quem presidia ao ofício divino num templo grego, depois acabou por se tornar o nome dado a um tipo permanentemente popular na comédia grega, o do uma personagem que vive sempre dependente dos outros, desesperado que a sua inteligência e serviço lhe podiam garantir um convite para o banquete. Para mais informações sobre este tema ver DAMON, Cynthia; “Greek Parasites and Roman Patronage” in Harvard Studies in Classical Philology: Greece in Rome: Influence, Integration, Resistance (vol. 97); Harvard University; Harvard; 1995. 39 Opiniões que podemos observar na parábase da segunda edição de Nuvens. 40 A ideia do ressuscitar é muito usada hoje em filmes com viagens no tempo. Isto pode ser melhor compreendido depois de ver o filme Bill and Ted’s Excellent Adventure (1989), onde este instrumento permite que dois alunos do secundário tragam à vida Sócrates, Átila o Huno, Sigmund Freud e Abraham Lincoln.

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não deixavam de apoiar Cléon por ele ser o alvo de Aristófanes, nem deixavam de apreciar uma peça de Aristófanes por ter como alvo Cléon. Neste período também há que destacar dois autores de menos relevo. Frínico, que foi três vezes vencedor e mostrava interesse aparente em música e poesia e poderá ter criado a primeira personagem cómica que era um misantropo. Outro autor a referir é Platão, cuja carreira na comédia terá começado em 420 e prosseguido até 391, ele continua nesta linha de peças demagógicas com Cleofonte, Hipérbolo e Pisandro. Contudo Platão também era um inovador e um “recuperador”, no sentido em que retomou temas mitológicos, e inovou com temas sexuais e trágicos. Muito ao estilo da Comédia Média, ele tornava estes temas contemporâneos. Durante a década de 390 a.C., a Comédia passava por um período de transição. Os temas políticos caiam em desuso, os mitos e as para-tragédias começam a ser usados, mas também a própria componente coral altera-se. Aristófanes em As Mulheres na Assembleia, não usa qualquer agon ou parábase, em Pluto não usa um coro influente sequer - apesar de permanecer como parte das actuações41, as canções deste grupo de actores, já não desempenhavam a mesma função fundamental para a acção. A contínua popularidade da para-tragédia ao longo do século IV a.C. entra em directo contraste com a encenação repetida das tragédias de Ésquilo, Sófocles e Eurípides, mesmo nas competições das Leneias ou das Dionísias e após a morte destes autores. O tema que é tratado em As Rãs relaciona-se com esta questão. Contudo, os poetas da Comédia Antiga não tiveram este reflorescimento. Apesar de muitas peças serem reencenadas ainda enquanto os seus autores originais estavam vivos (muitas vezes nas Dionísias Rústicas, onde existia muito espaço para a comédia), não existem provas que qualquer peça cómica do século V tenha sido repetida no século IV, ou posteriormente nas Dionísias ou nas Leneias. Foram sim, os autores da Comédia Média e Comédia Nova os autores de tais “renascimentos”. Os gostos dos espectadores mudaram as produções42. As alusões políticas e uso de linguagem e vestimentas obscenas deixaram de fazer parte desse gosto. O que manteve a Comédia Antiga viva foi o interesse histórico que emanava sobre essa comédia. Autores como Teopompo, Filócoro, Aristóteles, os biógrafos peripatéticos e muitos outros, viam a Comédia Antiga como uma fonte. O próprio Plutarco que 41

SIFAKIS, Gregory M.; Studies in the History of Hellenistic Drama; Univesrity of London Classical Studies; Athlone Press; Londres; 1967; 113ff. 42 RUSTEN; Op. Cit.; p. 29.

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observava esta comédia como entretenimento irá usar fragmentos históricos para as suas biografias. Contudo, ao mesmo tempo que a Comédia Antiga estava a desaparecer do Teatro, estava a emergir com grande fervor noutros tipos de arte. No início do século IV a.C., as figuras em terracota de personagens grotescas começam a ser produzidas em Atenas e depois em todo o mundo grego.

Ilustração 3 - Terracotas conhecidas como "The New York Group"; Metropolitan Museum of Art, Rogers Fund, 13.225.13.-14, 16-28. Imagem retirada de WEBSTER, T. B. L.; GREEN, J. R., Monuments Illustrating Old and Middle Comedy; 3ª ed.; Institute of Classical Studies, University of London; Londres; 1978; pp. 45-60 (itens AT 9-AT 23).

Originárias de uma única tumba em Atenas, estão estes dois conjuntos de figuras cómicas, um amarelo e outro vermelho com cerca de 8-12 cm de altura, datando de c. 400 a.C., por se terem encontrado figuras e moldes semelhantes noutros locais. Cada figura tem um acabamento manual, que incluí frente e trás, com grande detalhe. Todos os homens têm barriga e rabo gorduchos e falos curvados. A vestimenta feminina tem enorme pormenor com várias camadas de pano, tendo as mulheres mais idosas sobrancelhas enrugadas. Na primeira fila de cima do lado direito podemos ver um homem a usar um laço na cabeça, o seu chitom aberto de modo a ver-se a barriga, com uma mão que mexe no seu falo e a outra a segurar algo.

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Ilustração 4 - Figura em terracota. Staatliche Antikensammlungen und Glyptothek, inv. 5389. Imagem retirada de WEBSTER, T. B. L.; GREEN, J. R., Monuments Illustrating Old and Middle Comedy; 3ª ed.; Institute of Classical Studies, University of London; Londres; 1978; AT39.

Homem idoso com uma máscara de c. 375-350 a.C., com 1.17 cm, usa também um chapéu cónico, enchumaço, perneiras, falo erecto e segura uma cama enrolada e um cesto. Por volta da mesma altura, existem as pinturas de vasos do sul de Itália, que mostram em grande detalhe cenas de comédias. Homens com falos expostos e vestimentas acolchoadas são características da Comédia Antiga.

Ilustração 5 - Cratera de Sino apuliana do pintor Cotugno, c. 380 a.C.; Malibu, J. Paul Getty Museum, Villa Collection; 96.AE.113. Imagem retirada de GREEN, J. R.; “Smart and Stupid: The Evolution of Some Masks and Characters in Fourth Century Comedy” in Theatres of Action: Papers for Chris Dearden; Polygraphia; Auckland; 2003; 125 n. 22.

Zeus (à direita com coroa e ceptro contendo uma águia no topo) apressa-se na direcção de alguém. No centro está um idoso, homem ou mulher, com um himation a esvoaçarlhe acima da cabeça. De notar que Zeus ainda não vê a sua face, talvez pensado que será uma bela rapariga. À esquerda está um escravo, desnudado, que mantém uma pose confiante com uma mão à cintura e outra a segurar um bastão. 19

Ilustração 6 - Figura-vermelha de Paestum de uma cratera de sino da autoria de Asteas, c.360-350 a.C.; Hermitage State Museum; São Petersburgo; 1660. Imagem retirada de TRENDALL, A. D.; Phylax Vases; 2ª ed.; BICS suplemento 19; Instituto de Estudos Clássicos, Universidade de Londres; 1967; nº 32.

Apolo no centro, com arco, ramo de louro e coroado senta-se mais alto numa plataforma, talvez por cima de um trípode. Esta personagem encontra-se virada de costas para Héracles, parecendo assustar-se. O herói está atrás desta estrutura com o intuito de roubar um cesto de comida sacrificial. Do lado direito, à frente de Apolo, um escravo levanta a sua mão em alarme. Pode ainda ser observada uma máscara no canto superior esquerdo.

Ilustração 7 - Cratera de sino apuliana do pintor McDaniel, c. 380-370 a.C.; British Museum; Londres; F 151. Imagem retirada de TRENDALL, A. D.; Phylax Vases; 2ª ed.; BICS suplemento 19; Instituto de Estudos Clássicos, Universidade de Londres; 1967; nº 37, CA 61-2.

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Um homem idoso (inscrição refere que se chama Chiron) com uma máscara de grandes dimensões, cabelo e barba brancos, olhos fechados, enchumaçado, com perneiras, um bastão retorcido e o falo pendurado sobe uma rampa, ao centro da imagem. Atrás dele está uma pessoa que também usa uma máscara e veste roupas similares ajudando-o a chegar ao alpendre. Mais acima do lado esquerdo (inscrição refere [Xan]thias), está um homem também com uma máscara, desta feita com cabelo e barba pretos, enchumaçado também, com perneiras e falo pendurado. No alpendre está uma trouxa de viagem embrulhada em forma de bola, com um pano e um pilos à mostra. Do lado direito, perto destas três figuras está um jovem com uma expressão séria, envolvido com um himation. Acima numa fissura em forma de V estão duas mulheres (inscrição diz Nymphai), viradas uma para a outra a falar, ambas têm máscaras cómicas com grandes lábios e narizes bicudos, os seus braços são rechonchudos.

Ilustração 8 - Cratera de sino de Paestum, da autoria de Asteas, c. 350-340 a.C.; British Museum; Londres; F 150. Imagem retirada de TRENDALL, A. D.; Phylax Vases; 2ª ed.; BICS suplemento 19; Instituto de Estudos Clássicos, Universidade de Londres; 1967; nº 36.

Um homem galardoado sobe uma escada em direcção a uma janela onde se encontra uma jovem mulher a espreitar. Do lado direito, outro homem galardoado com uma tocha e um balde de comida encontra-se em pé. Ambos olham para cima.

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Ilustração 9 - Cratera apuliana, c. de 370 a.C.; Boston Museum of Fine Arts; Otis Norcross Fund; 69.951.; Imagem retirada de RUSTEN, Jeffrey (ed.); The Birth Of Comedy; The John Hopkins University Press; Baltimore; 2011; p. 453.

Do lado esquerdo uma herma (escultura com cabeça e possivelmente torso, acima de uma secção quadrada, na qual os genitais masculinos são representados, à altura apropriada), com a cabeça parcialmente coberta, tem um vaso apoiado em si. A figura do lado esquerdo está nua e usa uma fita no cabelo e cabelo escuro ondulado. O seu braço esquerdo estende-se, balançando um bastão apenas com o indicador. Do lado direito, um homem idoso, também nu despeja óleo na sua mão através de um aryballos. Atrás dele, do lado direito, estão dois cestos agarrados por uma parelha, cada um com um cabrito. Perto dos cestos está um ganso vivo. Os elementos desta cena podem ser encontrados na figura que se segue.

Ilustração 10 - "New York goose play", Cratera apuliana com figura-vermelha da autoria do pintor de Tarpoley, c. de 400 a.C.; Metropolitan Museum of Art; Fletcher Fund; Nova Iorque; 1924; 24.97.104.; Imagem retirada de

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TRENDALL, A. D.; Phylax Vases; 2ª ed.; BICS suplemento 19; Instituto de Estudos Clássicos, Universidade de Londres; 1967; nº 84.

Ao centro, um homem idoso, nu, com ambos os braços erguidos, as mãos juntas e apenas sustentado pela ponta dos seus dedos do pé (uma inscrição que sai da sua boca diz “ele prendeu as minhas mão em cima”, apesar de não ser representada nenhuma corda). Atrás dele, do lado esquerdo, um jovem confiante, também nu, permanece em pé, com uma mão na anca ameaçando-o com a outra mãe que segura um bastão, que usa para cutucar o homem, da sua boca sai uma inscrição que diz algo sem sentido (“norarettoblo”). À direita, num alpendre, está uma mulher idosa, com a mão erguida, uma inscrição que lhe sai da boca diz “eu entrego-o”. Ao seu lado, também na plataforma, está um cesto com um cabrito no seu interior, encontrando-se perto dele um ganso morto. Do lado esquerdo, fora da cena e com uma vestimenta que não seria cómica, está um jovem desnudado (com a inscrição “tragoidos”). Do lado direito em cima, está uma máscara suspensa. O facto de na cena anterior o ganso estar vivo e agora estar morto, poderá indicar algo importante para a acção. Podemos supor que o homem emprisionado está a ser punido por ter morto o ganso. Rusten sugere ainda que poderá existir uma ligação entre a mensagem destas duas imagens e Satyricon de Petrónio43: “[…] três gansos se precipitaram sobre mim e me cercam […]. Então deixei-me de branduras, arranquei um pé à mesita e pus-me a dar luta […]. E não me fiquei por umas pancadas de passagem, antes saciei a minha vingança com a morte do ganso”44. Serão estas representações um renascimento da Comédia Antiga? Rusten 45 sugere que são apenas inspiradas em arte ática perdida. Nem em Atenas existem traços de um ressurgimento, há, no entanto, elementos que podem ter sido mantidos, como o falo. A Comédia Antiga terá terminado com a queda de Atenas no fim da Guerra do Peloponeso em 404 a.C., depois deste período, uma enorme mudança nas produções cómicas terá reinado. Esta situação aplica-se à mudança no mundo dramático, concomitante com as alterações do mundo político. O interesse em ver estas peças não tinha desaparecido, mas a ânsia que se havia experimentado já não existia. Mais se acrescenta que materialmente também existiu um decréscimo, subsistindo menos 43

RUSTEN; Op. Cit.; p. 454. PETRÓNIO; Satyricon.; Capítulos 136-7. 45 RUSTEN; Op. Cit.; p. 30. 44

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homens disponíveis para investir na produção de peças teatrais. A razão do coro ter desaparecido pode aqui ser encontrada, pois esta era uma das partes mais caras do espectáculo. O velho aglomerado teatral foi substituído por um grupo mais banal, menos profissional. A queda dos fundos levou a uma alteração do método cómico. Este passou a ter uma linguagem mais decente, prosaica, simples, com menos música e dança e muito mais enredo. A comédia de hábitos contemporâneos tornara-se o único género. Esta transição pode ser estudada em Platão, o cómico, e Aristófanes (em Ecclesiazusae e Plutus, por exemplo), todavia, outros quatro autores também devem ser considerados. Teopompo, não o historiador, mas o cómico, terá vivido no mesmo período que Aristófanes, apesar de ter produzido peças depois da morte deste. Ele terá sido um poeta da Comédia Antiga e Média, igualmente conceituado em ambos os períodos com a produção de vinte peças conhecidas. Não temos conhecimento de alguma vez ter ganho o primeiro prémio. Muitos dos seus dramas eram literários, e mais diletantes. Plutarco conta-nos que Teopompo comparou os Espartanos com donos de tabernas, pois, depois de darem aos Gregos um golo no doce sabor da liberdade, eles deram-lhes vinagre46. Strattis terá sido um poeta fraco mas agradável, cuja carreira começou no final do século V e continuou até, pelo menos, 375 a.C., com cerca de dezanove peças. Este autor não tinha uma grande reputação. Já Lisipo terá pertencido à Comédia Antiga, contudo a sua passagem mais conhecida pertencente a uma obra maior (Bachae) tem pouco deste período, pois seria um guia vivo, onde existiam vinte e quatro choreutae47, cada um representando uma cidade. Por fim, há que fazer referência a Alceu, que seria em 388 a.C., um dos quatro rivais de Aristófanes e escrevia sobretudo dramas eróticos (algo que sabemos pelos títulos das suas obras).

Comédia Média Aponta-se para a data de 404 a.C., a captura de Atenas e a destruição deste império por Lisandro, como o início de uma escrita com características divergentes da anterior. Autores da Antiguidade atribuíram Anaxândrides, Antífanes (do início dos anos 370 a.C.) ou Timocles (c. 340), como autores já pertencentes à chamada Comédia 46 47

PLUTARCO; Lisandro; XIII. Dançarinos do coro.

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Média. Contudo, para estes homens, a definição deste período era mais nebulosa que os espaços temporais antecedente e sucessor. Platónio em Sobre Distinções entre Comédias48 refere que os poetas da Comédia Média mudaram os enredos e abandonaram as líricas corais, pois não tinham choregoi que pudessem tocar no coro. Os alvos das narrativas do período anterior seriam generais, júris incompetentes ou criminosos, agora gozava-se com as histórias contadas por outros poetas e não dos poemas de Homero ou das tragédias. Isso já não seria uma gargalhada garantida. Na Comédia Antiga Tardia podemos, desde logo, encontrar peças com estas características, neste período e no seguinte as máscaras cómicas terão começado a ser, deliberadamente, mais absurdas, de modo a evitar qualquer semelhança com o sujeito em questão, as comédias de Menandro, tinham máscaras com sobrancelhas e bocas distorcidas.

Ilustração 11 – Relevo de uma sepultura (meados do século IV a.C.) proveniente de Atenas, actualmente no Lym Hall, Stockport, Inglaterra. Cf. Lyme Hall Museum; National Trust, Newton Collection; Lyme Park..

Um poeta desconhecido da Comédia Média segura um rolo na sua mão esquerda, e uma máscara cómica na sua mão direita. Uma outra máscara encontra-se posicionada acima da anterior, conseguindo-se observar os exageros expressivos.

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VER: KOSTER, W. J. W.; Scholia in Aristophanem; Vol. 1a; Prolegomena de comeodia; Brouma’s Boekhius; Groningen; 1975; I pp. 3-6.

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Ilustração 12 – Uma pequena placa pintada de terracota (10 cm x 10 cm), proveniente de Amphipolis, início do século III a.C.; Archeological Museum of Kavala, 240 E489; in WEBSTER, T.B.L.; GREEN, J.R.; Monuments Illustrating Old and Middle Comedy; Institute of Classical Studies; University of London; 1978; BICS suplemento 39.

Seis representações de máscaras pequenas mas com cores e complexidade de pormenores capilares bem preservados. Webster 49 sugere que as máscaras foram ordenadas em pares verticais. Existiam algumas identificações das máscaras. À esquerda está o “velhote principal”; no painel seguinte está um “jovem admirável”; no centro está a “secundária não-é-de-facto-virgem”; que se coaduna com a “rapariga do cabelo encaracolado”, também ao centro; do lado direito está o “escravo principal”; que se liga, no painel seguinte com o que pode ser tanto um homem como uma mulher50.

Ilustração 13 – Lamarina de terracota possivelmente de manufactura egipcía com seis máscaras; c. 125-75 a.C.; Paris; Musée du Louvre; S 1724. in WEBSTER, T.B.L.; GREEN, J.R.; Monuments Illustrating Old and Middle Comedy; Institute of Classical Studies; University of London; 1978; BICS suplemento 39.

Estas máscaras poderão ser identificadas com os tipos de personagem seguintes (da esquerda para a direita): Mulher idosa “gorda”; Protagonista ou secundário do “cabelo encaracolado”; a cozinheira; “não-é-de-facto-virgem”; alcoviteiro; “avô”; “protagonista” ou escravo “protagonista do cabelo encaracolado”.

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WEBSTER, T.B.L.; GREEN, J.R.; SEEBERG, A.; Monuments Illustrating New Comedy; Institute of Classical Studies; University of London; 1995; BICS suplemento 50. 50 Estas descrições dos tipos de máscaras e a que personagem pertencem podem ser encontradas em POLLUS; 1.143-54.

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Uma outra fonte51 refere o seguinte sobre os três tipos de comédia: “A Comédia Antiga tentou ser demasiado engraçada; a Comédia Nova continuou a ser engraçada, mas de forma mais civilizada; a Comédia Média é uma mistura de ambas”. Autores mais recentes, como Nesselrath52, oferecem uma outra perspectiva delineadora das três comédias. Este estudioso defende que a questão era temática e que muitos dos temas continuaram a ser trabalhados, não só a crítica e sátira política, mas também a mitologia. Platão, em A República, delineia um complexo de ideias pelas quais os fragmentos da Comédia Média têm especial apetência. No diálogo entre Glauco e Sócrates53 parece que os objectos e estilos de vida não são suficientes, acrescentar-se-ão sofás, mesas, ou outro tipo de mobiliário, opsa (que se pode traduzir como deliciarias, apesar do termo ser mais abrangente), perfumes, incenso, prostitutas e bolos, cada um dos quais com uma enorme variedade. Davidson54 descreve esta ideia de opsa como sendo um banquete que inclui prazeres de todos os tipos, fetiches com comida (em especial peixe), vinho, perfume, e sexo com prostitutas. Podemos perceber melhor a apreciação pela cvozinha com o seguinte excerto de Alexis que demonstra o escrutínio total dado a esta temática: “Sabias que o prazer dado pela maioria das artes não depende apenas do executante, parte é atribuída ao seu público […]. O único dever do cozinheiro é preparar o prato de forma competente. Agora, se a pessoa que o irá comer e avaliar for pontual, está a ajudar o artista. Mas se chegar atrasado: ou a comida tem de ser reaquecida porque já foi cozinhada, ou tem de ser retirada. Em qualquer dos casos, o prazer estético é arruinado. Assim percebo que os cozinheiros devem estudar tanto como um professor […]55”. A este complexo de ideias Rusten chama “o banquete da Comédia Média” 56. Este banquete divide-se em várias partes. Começar-se-ia por ir às compras, sendo a compra mais importante o peixe, a seguir cozinhava-se, aclamando ou criticando os pratos individuais. Os banquetes incluíam jogos, bebida e música, fazendo deles parte personagens como o glutão, o camponês, o escravo, e o parasita57. 51

TRACTATUS COISLINIANUS; XV.55ff; in KOSTER; Op. Cit.; p. 67. NESSELRATH, Heinz-Günther; Die attische mittlere Komödie: Ihre Stellung in der antiken Literaturkritik und Literaturgeschichte; [s.l.]; 1990; pp. 190 e 204-41. 53 PLATÃO; República; 1.373a. 54 DAVIDSON, James; Courtesans and Fishcakes: The Consuming Passions of Classical Athens; Harper Collins; Londres; 1997. 55 ALEXIS; fr. 149. 56 RUSTEN; Op. Cit.; pp. 30-32. 57 Todas estas personagens, como veremos no sub-capítulo dedicado a Menandro, estão presentes na comédia menandrina. 52

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Os diálogos incluíam temáticas como escolhas de tipos de vida; família; escravos e seus donos; velhice; riqueza e pobreza; honestidade e engano; mulheres, casamento, prostitutas e sexo; morte, dor e azar; costumes de Atenas; ou simples observações da sociedade em que os autores estavam inseridos. Nesselrath 58 ainda sugere outros temas principais como a paródia de linguagem ditirâmbica associando-a a comida; o gozar com filósofos, associando-os também com comer; referência a figuras públicas que são obcecadas por alimento; políticos estrangeiros, generais e reis são todos representados em refeições, os próprios deuses e heróis são colocados neste contexto. Contudo, e apesar de poder parecer ser esta a temática mais linear encontrada há que considerar a percentagem de fragmentos por autor. Cerca de 60% dos fragmentos produzidos que nos chegaram da Comédia Média pertencem a Ateneu, que em Deipnosophists, partilha esta mesma obsessão alimentar. Autores de Comédia Antiga rondam a percentagem dos 10% e da Comédia Nova os 38%. Podemos assim concluir que a homogeneidade temática pode ser um engano59. No entanto podemos afirmar que os principais tópicos da Comédia Média eram: comida, sexo, adivinhas, filosofia, literatura e vida quotidiana. Estes temas eram tratados de forma simples. Apesar da divisão que se estabeleceu para a comédia na antiguidade (que se pode observar em autores como Platónio, acima citado) e que foi aceite por autores contemporâneos, a citação de Tractatus Coislinianus será a que melhor se encaixará na verdade dos factos, pois não terá existido uma divisão concreta entre comédias, antes mudanças que se foram desenvolvendo e estabelecendo. Tal como toda a história, devemos olhar para a Comédia como um género indissociável que evolui, transformando-se. Não quer isto dizer que, para ambos os pensadores, e mesmo para a melhor compreensão desta história, esta divisão não seja necessária, contudo, quando analisamos cientificamente as fontes podemos perceber que existem elementos conectores e elementos diferenciadores ao longo dos tempos estabelecendo-se um padrão evolutivo. Muitos dos temas que foram aqui listados podem ser encontrados ao longo de toda a história da Comédia grega. Esta temática da refeição, por exemplo, não estava restringida ao século IV a.C.60.

58

NESSELRATH; Op. Cit.; pp. 241-66. Dados retirados de RUSTEN; Op. Cit.; p. 32. 60 Sobre a temática da comida e sua dispersão temporal na Antiguidade grega; Cf. WILKINS, John; The Boastful Chef: The Discourse of Food in Ancient Greek Comedy; Oxford University Press; Oxford; 2000. 59

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Uma outra característica própria da Comédia Média é o facto dos grandes poetas desta época terem as suas origens fora de Atenas. Anaxândrides de Cólofon ou Camiro; Antífanes talvez de Rodes; ou Alexis de Túrio, perto de Tarento. Ao terem uma popularidade mais abrangente, o seu corpus de trabalho também se veio a tornar mais robusto. Aristófanes, do período anterior, produziu cerca de 44 peças durante mais de quarenta anos, já Antífanes terá escrito cerca de 365 peças e Aleixo cerca de 245. Será improvável pensar na não existência de repetições nas actuações ou em elementos narrativos. Demonstra também que estes autores eram adorados pelos seus contemporâneos, mas não podemos deixar de notar que alguma trivialidade e leveza deviam pairar sobre estas produções. O século IV foi um período de grande produção de prosas. Há ainda que acrescentar o facto de cada autor explorar uma qualidade sua específica. Antífanes seria o mestre da interpretação moral. Tímocles faria lembrar a sátira política da Comédia Antiga. Alexis seria o que mais se destacava em termos de diversidade e longevidade, criando ou aperfeiçoando os estereótipos de personagens como o cozinheiro, o parasita, o hedonista ou o moralista filosófico. Chegou ainda a escrever peças que se viriam a relacionar com a Comédia Nova, e a tratar temas políticos. Anaxândrides explorava temas mais românticos e sedutores. Antífanes produziu a sua primeira peça em c. de 387 e venceu treze vezes, é dito que lhe foi dada cidadania ateniense por Demóstenes. Alexis, por sua vez, também se naturalizou ateniense e era tio de Menandro. Parece ter vivido mais de cem anos, razão pela qual é igualmente apontado como pertencente à Comédia Nova. Sobre Anaxândrides temos mais algumas informações. Produziu a sua primeira peça em 376 a.C., tal como nos diz a Mármore de Paros, terá escrito sessenta e cinco comédias e ganho dez vezes. Ele é o único poeta da Comédia Média mencionado por Aristóteles, que nos aponta para o facto de Filémon (comediógrafo da Comédia Nova) ter sido seu actor61. Todos eles eram autores literários, discutiam a sua própria profissão, citavam não só os autores mais antigos, mas citavam-se a si mesmos também. Plagiavam-se sem problemas e faziam paródia dos tragediógrafos. As paródias a Eurípides eram as mais comuns existindo títulos de peças como O Amante de Eurípides, de Axionico. Mas acima de tudo gostavam de parodiar lendas. O objectivo desta comédia seria trazer estas

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ARISTÓTELES, Retórica; III, 2.

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narrativas lendárias para o seu tempo, e através das incongruências, fazer a piada emergir62. Também existia alguma apetência para escrever sobre os nascimentos divinos, tal como acontecia na Comédia Antiga, mas que deixará de existir na Comédia Nova. Um dos fragmentos mais conhecidos pertence a Antífanes é o seguinte: “O teu poeta trágico é o mais sortudo dos poetas. Primeiro, o seu enredo é conhecido antes de uma linha ser proferida – apenas precisa de uma dica. Se eu disser „Édipo‟, eles sabem o resto: o seu pai era Laio, a sua mãe Jocasta, os nomes dos seus filhos e filhas, o que ele fez e o que lhe acontecerá […]. Nós os escritores de comédia não temos esses recursos: temos de inventar tudo – nomes, eventos passados e presentes, a ideia inicial, a crise […]”63. Aqui se percebe os problemas que afectavam os poetas cómicos neste período e mesmo alguma inveja perante os poetas trágicos. Isto prova também, em parte, que com o tempo, a Tragédia ganhou mais relevância que a Comédia. Este terá sido um tipo de comédia instável, a própria forma da peça cómica, com a queda de importância do coro leva-nos a acreditar nessa ideia. O coro não deixou de ser usado, mas as suas actuações encontravam-se nos interlúdios que acabaram por não sobreviver, podendo nunca ter sido sequer copiados para as edições publicadas. Os cómicos, do período médio, foram mais influenciados por Eurípides que por qualquer dramaturgo da comédia. Exemplos disso é o interesse denotado por temáticas como interesses amorosos ou o reconhecimento por amuletos64. É clara a grande característica desta Comédia: o facto de estar entre as duas outras comédias, tendo alguma audácia da Comédia Antiga e algum inclinar em direcção à crítica social da Comédia Nova. “Ele trouxe uma espectacular lei nova, que os peixeiros devem fazer o seu negócio estando em pé: no próximo ano devem fazê-lo estando enforcados65”. Este é apenas um exemplo do que atrás foi dito, podemos deixar apenas mais um: “Tu és bem mais desconfiado que um caracol que carrega a sua própria casa consigo66”. Assim, de forma resumida podemos afirmar que as principais diferenças entre Comédia Antiga e Média eram a mudança de tópicos; as canções corais que começaram a ser menos usadas desaparecendo a parábase; e a distorção das máscaras. Temos também de dar a perceber que a sua característica mais notável seria a falta de qualidade presente nestes trabalhos, o nível literário que a palavra “poesia” dá. Claro que isto não 62

Algo similar ao trabalho de Mark Twain: A Yankee at The Court of King Arthur. ANTIFANES, fr. 189-191. 64 VER EURÍPIDES, Ion, como exemplo. 65 Id.; fr. 126. 66 ANAXILAS, fr. 34. 63

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se aplicava a todos os escritores, como poderemos verificar no fragmento de Plutarco que se segue: “De acordo com uma piada de Antífanes estava tão frio numa certa cidade que as palavras congelaram no momento em que foram proferidas: mais tarde, quando descongelaram, os homens ouviram no Verão as conversas que haviam tido no Inverno. Assim as palavras de Platão são por nós captadas na juventude, mas só tarde e dificilmente a maioria de nós percebe o seu significado quando ficamos velhos”67.

Comédia Nova Não existe uma transição clara entre a Comédia Média e a Nova, apesar do domínio macedónio ter alterado a vida política grega, trazendo também mudanças ao drama cómico. Atenas havia já perdido a sua independência, os assuntos públicos eram vastamente dirigidos por administradores estrangeiros. Assim os escritores de peças tornaram-se cada vez mais pessoas singulares e não cidadãos. Mais se acrescenta que o mundo era maior, muito devido às conquistas de Alexandre. A vida tornou-se mais aventurosa e precária68. Algumas das mudanças incluíram: o desaparecimento do coro como pertencente à acção69. Afirmamos isto apesar de o coro se ter mantido até meados do século II a.C., devido ao facto de ter apenas a função de repartir a acção através da música e dança. Terá sido esta a origem da divisão por actos70. Curiosamente isto aproximaria o coro da sua função primordial, como grupo em marcha, como comos. A parábase sofreu um destino diferente, metamorfoseando-se ou pelo menos partilhando características com o prólogo, cuja génese se poderá encontrar na tragédia e em Aristófanes. Esta prática tinha começado a deixar de ser usada na Comédia Média. O drama moralizante e de “estudo de personagem” do período Médio, altera-se para uma comédia de costumes, onde o enredo revela personagens e as personagens criam enredo, tudo numa atmosfera de condições sociais contemporâneas. A tríade clássica da Comédia Nova inclui Filémon, Difilo, e Menandro, todos activos desde a década de 320. Para audiências posteriores da Antiguidade, este período 67

PLUTARCO; In virtute profectus; 79A. MURRAY, Gilbert, A History of Ancient Greek Literature; D. Appleton and Company; Nova Iorque; 1900; p. 378. 69 Cf. LEGRAND, Philippe-Ernest; Daos; Princeton University; Princeton; 1910; p. 422. 70 NORWOOD; Op. Cit.; p. 59. 68

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terá sido o mais popular dos três espaços temporais aqui apresentados, algo que Velleius Paterculus nos diz nas seguintes palavras: “No espaço de poucos anos, uma única geração trouxe à luz a tragédia através de três homens de inspiração divina: Ésquilo, Sófocles e Eurípides. [Uma única geração] ofereceu-nos a Comédia Antiga sob Cratino, Aristófanes e Eupólide. E Menandro e Dífilo e Filémon, seus iguais mais em idade que em façanhas, em poucos anos inventaram a Comédia Nova deixando-a incomparável”71. Contudo, os seus fragmentos estão dispersos por uma escassa variedade de fontes, deixando pouco para os estudiosos espremerem. Apenas de Menandro, cujos trabalhos o tornaram tão célebre como Homero ou Eurípides, existem fragmentos extensos e peças completas na sua maioria, descobertas no século III a.C., a partir de papiros egípcios, local onde a língua da educação era o grego72. Para o género em geral podemos retirar informações de encenadores romanos como Plauto ou Terêncio, no fim dos séculos III e II a.C., visto que apesar da língua usada ser o latim, os contextos, nomes de personagens e enredos são similares aos que podem ser encontrados em Menandro. Assim através dos prólogos e anotações destes dois autores podemos perceber melhor os trabalhos perdidos dos três grandes autores da Comédia Nova, principalmente de Filémon e Difilo. Logo, a Comédia Nova é estudada a partir de cerca de um conjunto de 19 a 34 peças, cujos enredos são largamente conhecidos. Difilo foi um contemporâneo de Menandro (não temos conhecimento de datas exactas), tendo nascido em Sinope e falecido em Esmirna, ambas cidades hoje pertencentes à Turquia. Terá composto cerca de cem peças, estando mais perto da Comédia Média que os seus colegas, visto escrever sobre comédia mitológica, parodiante. Algumas das personagens que explorou foram Héracles, Teseu e Sapo. Afirma-se ainda que ele terá actuado nas suas próprias peças tendo, uma das vezes, a ideia corrido tão mal, que foi obrigado a sair do teatro73. Filémon era um siciliano que conseguiu obter cidadania ateniense. Produziu cerca de noventa e sete peças. Afirma-se que ele se terá tornado célebre no período de Alexandre o Grande, pouco antes de Menandro, e que terá vivido até aos cem anos. Era considerado o segundo melhor, a seguir a Menandro, derrotando-o várias vezes. Ele Sendo o preferido dos leitores de peças, não o era dos espectadores de teatro74. Conta-se 71

VELLEIUS PATERCULUS; 1.16.3. EASTERLING, P.E.; “Menander, Loss and Survival.” In Greek and Roman Actors: Aspects of an Ancient Profession; Cambridge University Press; Cambridge; 2002. 73 Ver LICEU DE SAMOS; ap. Athen.; XIII, 583f. 74 DEMÉTRIO; De Eloc.; 193. 72

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a história de um encontro entre os dois homens onde Menandro lhe terá perguntado: “[…] diz-me Filémon, quando me ganhas, não coras?” 75 . Ele tinha uma enorme admiração por Eurípides, chegando a afirmar que "[…] se os mortos realmente tivessem uma consciência, como alguns dizem, eu enforcar-me-ia de modo a ver Eurípides”76. Outro autor menos conhecido, mas que também será interessante fazer referência é Filípides. São-lhe atribuídos quarenta e cinco trabalhos, sendo associado com a 111ª Olimpíada (c. 336-2 a,C.). As “comédias novas” gregas foram escritas, como já referimos, num tempo de agitação política em Atenas. Alguns exemplos que podemos nomear serão a rebelião contra Antípatro e a oligarquia de Fócion (323-318), o estabelecimento de Cassandro do regime de Demétrio de Faleros (317-307), a democracia restaurada e ocupação de Demétrio I da Macedónia (307-300), o golpe de Lacares de Atenas em 300, que cancelou as Dionísias, e a sua tirania que teve a duração de cinco anos. Apenas para destacar alguns dos mais relevantes. Toda esta instabilidade política pode ter abalado o orgulho da cidade no seu passado e a sua identidade distintiva. Entre as reformas que tiveram um impacto directo no teatro estão a abolição do choregos 77 , sendo substituído pelo Agonothetes, o superintendente das cerimónias sagradas. Contudo, para a comédia, apesar do contexto onde encaixava, este foi um tempo de estabilidade e uniformidade. Existiam traços, que pela primeira vez definiam a comédia como um género claramente delineado. Personagens recorrentes (a família de classe alta ateniense e seus dependentes) e um enredo particular, que começaria com os impulsos sexuais e românticos de jovens que levavam a várias formas de engano, culminando na restauração de uma família há muito tempo separada78. Konstantakos infere o facto de muitas destas ideias não serem originais pois já na Comédia Média se denota o que poderá ter sido o princípio destes enredos79. As crises dos enredos desta Comédia centram-se nestas famílias socialmente elevadas, onde: os pais trabalham em negócios tipicamente atenienses sendo manufactureiros, proprietários, ou comerciantes; as mães são teimosas e provêm de boas

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AULO GÉLIO; XVII, 4. FILÉMON; fr. 130. 77 Seria quem organizava e treinava com o coro, com a queda desta função também cai o cargo. 78 Sobre estes impulsos masculinos cf. FOXHALL, Lin e SALMON, John; Thinking Men: Masculinity and Its Self-Representation in the Classical Tradition; Routledge; Londres; 1998. 79 KONSTANTAKOS, Ioannis; “Towards a Literary History of Comic Love”; in C&M; 53: 141-72. 76

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famílias; os filhos são mimados e as filhas têm o único objectivo de se casarem com o homem escolhido pelo seu pai ou, mais frequentemente, casando-se e engravidando do jovem vizinho. O mundo cómico desta comédia torna-se mais pequeno, porque é mais particular na sua temática. Uma hipótese que pode sugerir o que causou esta mudança poderá ser o facto de a audiência ser mais rica devido ao término do fundo dos espectadores80. Apenas temos a certeza que as suas personagens de facto pertenciam a esta posição social. As personagens são “filisteus prósperos81” ou quem os serve, como os escravos, parasitas, meretrizes e cozinheiros. Apesar desta especificidade temática, muitos dos temas da Comédia Média são retomados, à excepção da paródia e das adivinhas. A ênfase, no entanto, que podia ser dada era bastante diferente. Em relação ao tema da comida, parece existir um menor interesse por peixe, mas uma admiração enorme que se continua a dar aos cozinheiros. Alguns fragmentos afirmam que o cozinheiro deve ser um artista, ele deve perceber todos os ramos do conhecimento – música, medicina, filosofia, guerra, literatura, etc. Diz-se ainda que foi o cozinheiro quem afastou o homem do canibalismo82. O parasita também continua a ser uma das personagens recorrentes. Os tempos turbulentos que se viviam eram incluídos apenas sob a forma de soldados que tinham voltado da guerra, capturas ou piratarias que afectavam homens e mulheres, ou a figura do negociante de escravos que faz das mulheres reféns ou as vende como parceiras sexuais. O motivo destes enredos é sempre o eros, o amor, sendo possível distinguir elementos narrativos, ou seja, conflitos que movem a narrativa como: um homem apaixona-se à primeira vista, o que acaba por levar a uma violação; um jovem que engravida uma rapariga da vizinhança mas não pode casar com ela; dois homens que rivalizam pelo amor da mesma rapariga; a reacção de um homem contra uma namorada que parece ser infiel, mas que não o é, entre outros que levam ao enfrentar de problemas pelas personagens. Complicações como estas, na tragédia levam a miséria e/ou morte. Na comédia isso não acontece resolvendo-se qualquer problema com um truque, um twist: a descoberta oportuna de um parentesco inesperado através de provas de nascimento; uma cena sentimental de pedido de desculpas da parte do apaixonado, ou um acordo matrimonial entre as famílias envolvidas. A moral usada é similar à da Comédia Média, 80

Assistir a uma peça deixou de ser grátis. Expressão retirada de WILAMOWITZ-MOELLENDORFF, Ulrich von; “Die Kunst Menanders” in Menander: Das Schiedsgericht (Epitrepontes); Weidmann; Berlim; 1925; p. 159. 82 ATÉNIO; III, 369. 81

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como podemos perceber nos seguintes fragmentos: “Amor pelo dinheiro é a raiz de todos os males”83; “O tempo é a cura universal”84; “Não corrijas os erros de um idoso: é difícil transplantar uma árvore envelhecida”85. Também existem variações nestes enredos. Personagens de condição social mais baixa podem tornar-se dominantes na narrativa, falamos dos já referidos escravos, parasitas ou prostitutas. O papel do soldado apaixonado pode ser representado como um personagem simpático, mas também ridículo. Algumas peças têm um contexto nãoateniense, Captiviti não tem mulheres nem história romântica e Persa só tem protagonistas que são escravos. As convenções teatrais da Comédia Nova também se simplificaram, os interlúdios corais, são usados, como já referimos, para dividir a peça em actos ou partes86. Os falos e outros adereços exuberantes desaparecem, e as máscaras tornam-se mais realistas, mas lineares, organizando-se numa galeria de tipos de personagem. Nas imagens que se podem observar em seguida, estão representadas cenas cómicas provenientes de vasos do sul de Itália, mosaicos, relevos, e outras formas de arte do mundo romano com cenas de peças menandrinas.

Ilustração 14 - Mosaico de Mytilini, séc. III a.C.; Mytilini Archaelogical Museum, T10; in CHARITONIDIS, Serapheim; KAHIL, Lilly; e GINOUVÈS, René; Les mosaïques de la maison du Ménandre à Mytilène; Bern; Francke; 1970; AK Beiheft 6; p. 51-52.

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APOLÓNIO GÉLIO; fr. 4. FILÍPIDES; fr. 32. 85 FILÉMON; fr. 147. 86 Com Horácio, em Ars Poetica 189, estas “partes” tornam-se na norma para toda a produção dramática ocidental até ao Renascimento. 84

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Inscrito está o título de uma das obras atribuídas a Menandro, Mulheres de Messenia, Acto 5. À esquerda está identificado o escravo “Siro”, à direita o servo “Tíbio”, ambos puxam para seu lado o mestre “Carino”.

Ilustração 15 - Mosaico da autoria de Dioscorides de Pompeios; 150-50 a.C.; Naples; Museo Archeologico Nazionale; 9987; in CHARITONIDIS; KAHIL; GINOUVÈS; Op. Cit; pl. 5.2.

Mulher idosa e duas jovens sentadas a uma mesa, servidas por uma criança escrava. Provavelmente da peça de Menandro Mulheres Tomam o Pequeno-Almoço ou Synaristosai. Foi esta cena que deu o título à peça, na qual uma velha procuradora toma o pequeno-almoço com a sua filha meretriz, e amiga, também uma prostituta.

Ilustração 16 - Mosaico assinado por Dioscorides de Pompeios; 150-50 a.C.; Naples; Museo Archeologico Nazionale; 9987; in CHARITONIDIS; KAHIL; GINOUVÈS; Op. Cit; pl. 6.2.

Um Rapaz mudo, uma rapariga com flauta, e dois jovens (aparentemente sem máscara, ao contrário do que acontece na ilustração anterior) dançam ao som de címbalos e tambor perto de uma porta. Pensa-se que esta cena faz parte da peça de Menandro, Rapariga Possuída.

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Ilustração 17 - Relevo, segunda metade do século I a.C.; Naples; Museo Archeologico Nazionale; 6687; in WEBSTER, T.B.L.; GREEN, J.R.; SEEBERG, A.; Monuments Illustrating New Comedy; Institute of Classical Studies; University of London; 1995; vol.1 Type XZ 41 (p.95).

Com um fundo arquitectonicamente elaborado está a decorrer uma luta entre um grupo de homens. Do lado esquerdo um homem mais velho é segurado por outro, do lado direito um jovem em êxtase que se apoia ou faz o outro personagem, um escravo, encolher-se. Ao centro está um rapaz com flauta. Na imagem coadjuvada podemos ver a mesma cena representada num camafeu.

Precisamente quando estas personagens começam a perder o seu interesse, por se tornarem exclusivamente personagens-tipo (muitas delas hereditárias de Alexis), por se tornarem previsíveis, Menandro subverte-as. O autor apresenta um escravo que é tão leal como um homem livre, um mercenário que se apaixona pela sua prisioneira, uma prostituta que exige casar, uma cortesã que é mais leal que o seu dono, um cozinheiro que é tímido e inseguro, ou a moral de uma personagem “heróica” cujos motivos são questionáveis. Para além da poesia se ter tornado mais rara, as alusões de fundo político são poucas. Contudo existem alguns exemplos, tendo sido um dos mais interessantes escrito por Filípides contra Estrátocles, o excerto refere que “[…] ele que corta o ano para um mês, que tomou a Acrópole como um hotel e trouxe cortesãs à presença da Deusa Virgem, através de quem o frio estragou as vinhas, cuja impiedade transformou o robe sagrado em pedaços, quando ele transformou a honra dos deuses em orgulho mortal. São estas coisas, não a Comédia, que destroem o Estado”87. Estas palavras demonstram, para além do ataque a um indivíduo, que a Comédia tinha sido alvo de críticas.

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FILÍPIDES, fr. 24.

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Os séculos IV e III a.C. foram marcados por grandes mudanças, não só nas peças, como enredos que são, mas também alterações que vieram a reformular a estrutura, os performers, e a própria audiência. Autores e actores eram cada vez mais não-atenienses; o sistema de choregoi privados foi substituído por um agente público, que como já referimos era o Agonothete, responsável pela produção da competição; assistir a uma peça já não era gratuito. A partir de 311 começaram-se a incluir nas competições o renascer de peças dramáticas mais antigas (chamadas palaia) com peças contemporâneas (kaina). Chegou-se até a fazer uma associação de escritores e actores, chamada, “Artesãos de Dioniso”. Em c. 279 a.C., um Agonothete erigiu, na encosta-sul da Acrópole, um monumento colunado cujas paredes tinham nelas inscrita uma produção histórica das Didaskaliai, dos vencedores das Dionísias e das Leneias. Os anos 270 a.C., fecharam uma época na comédia. Os festivais dramáticos atenienses, no final do século III e princípios do II, seriam apenas sombras do que haviam anteriormente sido, muitos anos nem sequer eram celebrados. Isto não significa que os festivais dramáticos cessaram de existir. Existiam antes competições dramáticas de alto perfil nos santuários de Delfos e Delos, associações de actores profissionalizaram todos os aspectos de uma actuação. Estes artistas eram procurados internacionalmente e tinham de ser itinerantes. Assim, enquanto a tragédia e a Comédia Nova eram populares em todo o mundo que falava grego, os festivais de Atenas não o eram, pelo que tinham uma competição feroz. Sabemos que estes espectáculos existiram, mas fora de Atenas, os títulos raramente são revelados, e portanto, a componente literária das actuações perdeu-se. Existe uma excepção muito importante, falamos de Tito Andronico que trouxe de Tarento para Roma, pois pertencia a uma associação de escritores e actores, uma série de peças da Comédia Nova traduzidas para latim. O expandir da Comédia Nova foi rápido e vasto, entre a morte de Menandro e a primeira adaptação romana existe uma lacuna de menos de cinquenta anos.

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Outras Formas de Comédia Neste capítulo vamo-nos debruçar, para além do drama satírico, sobre os tipos de drama fora da Ática que haviam tido pouca popularidade e valor artístico, sendo estes: a farsa espartana, a farsa italiana e a mímica. Os dois primeiros são uma derivação local do último. Ateneu diz-nos

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que entre os espartanos havia uma forma antiga de

divertimento cómico, e que os seus participantes eram chamados de mímicos, mas que receberiam muitos outros nomes. Muitas das suas actuações podiam não ter cariz dramático. As peças espartanas seguiam um modelo muito simples. Não existem exemplos deste tipo de peças, e mesmo Ateneu, aqui referido, não consegue citar um destes trabalhos, estabelecendo apenas um paralelo com a comédia ateniense. As farsas do sul de Itália tiveram maior dispersão tanto em espaço como em tempo. Eram denominadas, juntamente com os seus actores, de phlyakes, o conhecimento que temos deles provém, principalmente, de pinturas de vasos. O seu palco era medíocre, usavam acolchoamento tanto à frente como atrás, e o falo. Tratavam cenas ridículas do dia-a-dia ou paródia de lendas. Um dos autores conhecido de peças phlyax tinha o nome de Rínton e era proveniente de Tarento. Ele retractava temas trágicos de uma forma absurda. Será possível que ele tenha originado um novo tipo de farsa, pois o nome rhinthonica é muitas vezes usado para descrever características específicas neste género. Terá vivido no tempo de Ptolomeu, o Primeiro, que reinou de 304-285 a.C.. Ele seria diferente de Epicarmo na sua produção pois produzia paródias de lendas que seriam também paródias de peças trágicas. Contudo, também temos de salientar que Cratino e outros escritores trabalharam em peças deste tipo. A originalidade de Rínton estava na adaptação da paródia literária ao drama cru que o phlyax era. Os fragmentos que nos chegaram são muito pequenos, alguns dos títulos conhecidos são Héracles, Ifigénia em Aulis, Orestes e Medeia. Sópatro de Pafos era contemporâneo e mais jovem que Rínton. O que sabemos de si provém de Ateneu, que nos diz que Sópatro nasceu nos dias de Alexandre e sobreviveu até ao fim do reinado de Ptolomeu o Segundo (285-247 a.C.). Os fragmentos

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ATH. XIV, 621 d-f.

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de Sópatro estão um pouco mais completos, existindo mesmo sugestões89 de que três das suas peças formam uma sequência, intituladas: Bacchis; Os Pretendentes de Bacchis; O Casamento de Bacchis. Estes títulos não sugerem uma paródia burlesca como acontecia com Rínton, apesar de terem títulos que entram nessa linha. Os seus fragmentos demonstram que estava um pouco longe do que as phlyakes supostamente seriam, assemelhando-se mais com a Comédia ateniense, algo que se reforça devido à linguagem, ritmo e dialecto usados. Rínton vivia mais a ocidente, Sópatro vivia em Alexandria, pelo que é possível que a peça do tipo phlyax tivesse sofrido desenvolvimentos diferentes em locais diversos. A mímica, ao que já nos referimos nos capítulos anteriores de forma breve, continha uma vitalidade inextinguível, algo que se afirma se evidenciarmos que ainda hoje existe esta forma de expressão, espalhada por praticamente todo o mundo, claro com adaptações e grande variedade temática. A mímica era uma espécie de actuação não coral da vida contemporânea, o que gerava grande interesse popular, algo que se acrescia com o uso de gestos e expressões faciais exagerados. Estas características, apesar de similares, variavam conforme o lugar, tempo e autor. Isto levaria a que pudesse ser uma actividade completamente ridícula ou com detentora de alguma elegância. Um mimo podia ter uma performance puramente indecente, outro podia partilhar uma filosofia popular edificante. Para alguns dos artistas era necessário um cenário, um espaço físico onde actuar, outros trabalhavam em jantares de modo a divertir os convidados. Nenhuma mímica, pelo que se sabe, possuiu enredo. Esta forma de expressão ainda era assistida e usual no período de Epicarmo, permaneceu acabando mesmo por suplantar o drama tanto no mundo romano, como no greco-romano. Durante a Idade Média houve um florescimento, com destaque para Bizâncio, apesar da oposição da Igreja, que acabou por aderir ao seu método de modo a apresentar histórias sagradas e doutrinas. Ligou-se, em seguida, ao que foi o início do drama moderno.

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NORWOOD; Op. Cit.; p. 76.

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O Drama Satírico

Ilustração 18 – Vaso Pronomos. Cratera de figura-vermelha ática; c. 410 a.C. do pintor de Pronomos. Naples, Museo Nazionale 81673. Imagem retirada de Art Resource, Nova Iorque; Museo Archeologico Nazionale, Naples, Itália.

Em baixo à esquerda encontra-se um sátiro, que exemplifica bem os seus movimentos exuberantes, principalmente se o compararmos com as figuras que se encontram à sua volta. Destaca-se completamente delas. Também será curiosa a proximidade com as únicas personagens que tocam ou seguram instrumentos musicais.

Ilustração 19 – Figura-vermelha ática dinos, 420-400 a.C.; Atenas, Museo Arqueológico Nacional 13027. Imagem Retirada de SHAW, Carl A.; Satyric Play – The Evolution of Greek Comedy and Satyr Drama; Oxford University Press; Nova Iorque; 2014; p. 11.

Ao centro está um tocador de aulos, do seu lado direito encontra-se um actor que faz de sátiro. Mais uma vez se nota a diferença de vestimenta e de gestos da parte do sátiro. Também se pode voltar a observar o falo eternamente erecto e representado.

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Ilustração 20 – Figura-vermelha stamnos; c. 500-490 a.C.; Pintor Eucarides. Paris, Louvre Inv. CP10754; Retirada de Les Freres Chuzeville; RMN-Grand Palais / Art Resource, Nova Iorque.

Sátiro membro do coro com aspecto rude, apesar de humanóide.

Ilustração 21 – Figura-vermelha ática kalpis; 480-460 a.C.; pintor de Leningrado; Boston; Museum of Fine Arts. Francis Bartlett Donation of 1900, 03.788. Imagem Retirada de SHAW, Carl A.; Satyric Play – The Evolution of Greek Comedy and Satyr Drama; Oxford University Press; Nova Iorque; 2014; p. 49.

Coro de sátiros dança à frente de um tocador de aulos. Estes sátiros divergem dos anteriores no aspecto. São mais animalescos, algo que se percepciona devido ao uso de caudas. Apesar disso, o comportamento desvairado, ao qual a música se associa, está sempre presente.

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Carl A. Shaw na obra, Satyric Play 90 , introduz este tipo de drama com uma citação das As Mulheres que Celebram as Tesmofórias de Aristófanes, onde um personagem - que é um poeta trágico chamado Agathon - diz que o dramaturgo tem de adoptar as personalidades e comportamentos das suas personagens de modo a representá-las de forma bem-sucedida. Uma outra personagem, parente de Eurípides, responde da seguinte forma: “Bem, diz-me quando estiveres a escrever peças satíricas; eu colocar-me-ei atrás de ti com a minha tesão e mostro-te como se faz” 91 . Esta resposta agressiva, por ter um cariz intencionalmente sexual, mostra precisamente a natureza sexual dos sátiros e dos dramas satíricos, combinando-a com o humor abusivo e sexual da comédia. Esta é também a única passagem existente de toda a produção cómica grega que refere peças satíricas, contudo é possível estabelecer uma ligação através de produções das Dionísias e através de peças passadas para livro e vindas de Alexandria, que permitem perceber esta simbiose via literária, estética, histórica, religiosa e geográfica. Uma definição simples de drama satírico diz apenas que uma peça deste tipo combina elementos cómicos e trágicos. Contudo, o mundo académico (como fazemos também aqui neste trabalho, não fugindo muito da tradição) tem tendência para contrastar e melhor perceber a tragédia e a comédia, deixando um pouco de lado a derivação que será o drama satírico. O próprio Aristóteles, que lista e caracteriza os géneros dramáticos presentes em festivais gregos, deixa de lado este grupo. Griffith92 diz-nos mesmo que esta descrição de Aristóteles não deve ser usada se quisermos perceber as possibilidades da experiência dramática, utilizá-la seria não fazer justiça à variedade cronológica, genérica e geográfica das tradições teatrais gregas. O drama satírico tinha uma relação próxima tanto com a comédia como com a tragédia, sendo apresentada durante séculos ao lado destes dois géneros, nas Dionísias. Os mesmos elementos teatrais formais são partilhados: o espaço de actuação, o tempo e ocasião, passando pelo falar dos actores em verso, um coro que dança e canta, máscaras, vestimenta, instrumentos musicais, aos metros análogos. Tradicionalmente a peça satírica é apresentada como algo que complementa a tragédia, visto ser apresentada ao

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SHAW, Carl A.; Satyric Play – The Evolution of Greek Comedy and Satyr Drama; Oxford University Press; Nova Iorque; 2014. 91 ARISTÓFANES; As Mulheres que Celebram as Tesmofórias; vv. 157-58. 92 GRIFFITH, M.; “Greek Middle-Brow Drama (Something to do with Aphrodite?)”, in REVERMANN, M. e WILSON, P.; Performance, Iconography, Reception: Studies in Honour of Oliver Taplin; [s.n.]; Oxford; 2008.

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mesmo tempo que se apresenta a tragédia. Elas eram actuadas depois de três tragédias, com o mesmo grupo de actores e com o mesmo coro. Tal como a Tragédia usavam a métrica de forma conservadora. Contudo, o drama satírico também se relacionava com a Comédia. Ambos os géneros terminavam com um final feliz partilhando, geralmente, muitas das personagens, enredos, títulos, e temas. A vestimenta do drama satírico, que não é tão directamente grotesca como a da Comédia, é também ela diferente do ideal ateniense e coloca de igual modo um foco no falo93. Outros traços similares incluem o uso habitual de uma linguagem menos intelectual, dando aso a: coloquialismos, sons não-verbais, trocadilhos, e alusões sexuais, tal como referências a comida, mamas, rabos, pénis, peidos, agarramento da virilha, erecções, penicos, e outros itens e actos não encontráveis na Tragédia. As actuações dos sátiros incluem ainda danças energéticas, movimentos saltitantes, rastejamentos no chão e gestos masturbadores94. O maior ponto de contacto, contudo, era o coro, a Comédia por vezes até usava um destes grupos de sátiros95. Com tudo isto dito, à que perceber que o drama satírico deve ser visto como um género por si só e não associado a outros géneros, não devendo ser definido nem como comédia nem como tragédia mas como algo que se distingue. A Comédia e o drama satírico são conceptualmente mais próximos, enquanto a Tragédia é formalmente mais chegada a este tipo de produções96. Textualmente a sátira e a tragédia são dificilmente distinguíveis, sendo complicado para os estudiosos modernos fazerem esta separação. Contudo, as representações teatrais originais apresentariam uma distinção mais clara97, que se nota no tom, mas definida também pelo coro de sátiros que nunca aparecia em peças trágicas. Um sátiro era um ser parte homem, parte híbrido de cavalo, sem cabelo, com orelhas pontiagudas, cauda comprida, e um falo constantemente erecto (estas características podiam mudar podendo ser mais parecido com um animal, por vezes uma 93

Sobre esta divergência do ideal ateniense na peça satírica Cf. ROTHWELL, K. S.; Nature, Culture, and teh Origins of Greek Comedy: A Study of Animal Choruses; [s.n.]; Cambridge; 2007; pp. 33-34. 94 Sobre a frontalidade cómica e mais vulgar Cf. LISSARRAGUE, F.; “The Sexual Life of Satyrs” in HALPERIN, D. M.; WINKLER, J.J.; e Zeitlin, F. I.; Before Sexuality; [s.n.]; Princeton; 1990; pp. 55-57. 95 GRIFFITH; Op. Cit; Capítulo IV. 96 Ideias defendidas por Seidensticker, que sugere uma maior proximidade com a comédia, excepto em forma. Cf. “Das Satyrspiel” in Das griechische Drama; ed. G. A. Seeck; Darmstadt; 1979; pp. 247-48. 97 Griffith é um dos poucos académicos a ver o drama satírico como “uma forma dramática com o seu próprio apelo *...+”, isto apesar de realçar o facto da Tragédia e o drama satírico serem compatíveis (e não a Comédia). VER GRIFFITH, M.; “Satyr-Play and Tragedy Face to Face, from East to West” in TAPLIN, O.; e WYLES, R.; The Pronomos Vase and its Context; [s.n.]; Oxford; 2010; p. 52 para citação.

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carneiro; ou com um homem, tendo pernas de homem mas no lugar dos pés cascos). Ele era companheiro de Dioniso e tinha mais sabedoria e estatuto divino que o Homem, sendo ao mesmo tempo mais vil que o Homem. Esta criatura tinha um apetite infundo para o consumo de vinho, e a prática de dança e sexo. Para o espectador de teatro ateniense, um coro preenchido por estas figuras, colocava a preto e branco a diferença entre tragédia e drama satírico. Curiosamente pode-se afirmar que uma peça satírica nunca poderia substituir uma peça trágica, precisamente devido à presença destes seres que estavam demasiado longe da fronteira do permitido pela tragédia, como género dramático que era e tendo as suas especificidades. Mas, na teoria, uma peça com estas características não destoava se fosse encontrada no lugar de uma peça cómica. Apesar das diferenças, seria possível para o público percepcionar o espectáculo como cómico. Já nesta altura a comédia podia abranger em si outros géneros, ou subgéneros, que podiam ser acomodados nesta sua capacidade total. Capacidade essa possivelmente limitada pelo significado do que era aceite como sendo “cómico”. Alastair Fowler 98 demonstra como e o porquê da existência de uma possível interacção entre Comédia e drama satírico ao longo de séculos, afirmando que todo o trabalho literário metamorfoseia os géneros aos quais se liga. Uma obra de cada um destes géneros seria diferente, mas existiam traços definidores de ambos tão similares, que estas peças se acabavam por relacionar e influenciar uma à outra. Exemplo disso era o próprio contexto onde se inseriam, existindo actuações no mesmo espaço e tempo. Muitas das técnicas teatrais eram similares: o coro, os actores, o diálogo, a vestimenta, entre outras. Esta relação também era influenciada pelo território de difusão que era partilhado, pela sua história (ou pré-história) ritual relacionável e pelas suas funções estéticas coincidentes. A Comédia desde o século V ao século III a.C. pode ser caracterizada, de forma insuficiente, como sendo uma actuação dramática que tem o intuito de divertir e causar riso a uma audiência. O drama satírico seria uma actuação dramática com um coro de sátiros99. Assim, peças cómicas que incluam um coro de sátiros podem ser tecnicamente 98

FOWLER, H.; Kinds of Literature: An Introduction to the Theory of Genres and Modes; [s.n.]; Cambridge; 1982, p. 23. 99 Estas definições não conseguem sequer começar por descrever as complexidades de ambos os géneros. Contudo, se aceitarmos que eles são mutáveis podemos aceitar estes conceitos como genéricos e prosseguir, visto “não ser possível nem desejável chegar a uma alto nível de precisão ao usar termos genéricos”. Citação em Idem, Ibidem; p. 130. Isto pode ser observado como sendo verdadeiro se estudarmos as peças satíricas de forma geral e percebermos que elas provêm de vários períodos e locais.

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peças satíricas. Um elemento ainda mais relevante são os próprios sátiros. Estando sempre presentes ou em peças satíricas românticas, rústicas, mitológicas, sarcásticas, urbanas ou actuais, tentavam sempre fazer rir através do seu comportamento animalista, divertidamente desordeiro, e, acima de tudo: sexual. Tudo exemplos, de formas de expressão cómica que fazem as pessoas rir. Os sátiros masturbam-se por diversão e risadas, tanto a sua como a da audiência. Esta intenção de “fazer rir” também pode ser, obviamente, encontrada na Comédia. Poderá ser verdade que a quantidade de risos dos dramas satíricos não seria igual à de muitas peças cómicas, mas algo similar pode se dito, destas peças teatrais, entre si. O humor do drama satírico não significará que este género era Comédia, mas sim que era cómico. O drama satírico cumpria os critérios mínimos para encaixar na descrição genérica de Comédia (que não o define totalmente). Deste modo e apesar de serem duas coisas diferentes, “não podemos nunca dizer onde uma acaba […] e a outra começa”100. Muito diferente das tragédias onde existe uma linha precisa de distinção: o coro de sátiros. Assim podemos afirmar que é interessante, o facto da maioria das funções literárias, religiosas, políticas e sociais serem partilhadas por ambos os géneros. Nem todas as peças têm estes elementos comparáveis mas existem exemplos dos dois géneros a parodiar a tragédia, a reafirmar uma consciência colectiva de homens atenienses, a criar uma espaço de fantasia masculina, a venerar Dioniso, a relaxar a mente, a unir elementos citadinos e campestres, a representar um ritual, a explorar o tema do “outro”, a servir como paradigma negativo educacional, a difundir as fronteiras entre figuras de alta e baixa patente, e mesmo a criticar figuras populares e políticas101. Apesar de tudo o que foi dito, esta ligação terá de permanecer no campo da especulação. As fontes literárias destes géneros são demasiado fragmentárias, das mais de mil peças encenadas em Atenas apenas doze sobreviveram na sua integridade: onze de Aristófanes e uma de Menandro. Esta situação piora quando nos deslocamos para o drama satírico, que é representado por apenas uma peça completa, Cíclopes de Eurípides. Apesar disto, o possível estudo destes géneros não se esgota aqui, existem títulos de peças, descrições de enredos e fragmentos literários de ambos. A estes ainda

100

HOME, Henry; e KAMES, Lord; Elements of Criticism; [s.n.]; Edimburgo; 1762; V. 3, 219. A função política é muito mais usada na Comédia, em especial, na Antiga, mas o drama satírico de Píton, Agen, também explora essas marés. 101

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se acrescentam as informações que podemos retirar de pinturas de vasos, de registos teatrais, e de comentários de críticos literários da Antiguidade. Uma outra dificuldade surge quando se tenta estudar estas peças ao longo da sua história, que se estende por grande parte da Antiguidade. Neste âmbito genérico a nível geográfico e cronológico será muito difícil fazer observações de amplo espectro que satisfaçam todos os períodos, locais e tipos de actuação. Dito isto, será ainda possível perceber qual a experiência original destes públicos, muito devido ao facto da poesia ser habitualmente composta e actuada não se separando do contexto em que se inseria, será possível assim limitar mais a sua raia. Alguns exemplos disso seriam os contextos dos festivais, períodos ao longo do ano de actuação, e um ambiente competitivo em geral. Cada peça estava abraçada à sua própria tradição através das expectativas do público. Neste caso podemos perceber que a rede lógica de acções e acontecimentos históricos nos ajuda a estudar estes géneros, visto que o sistema em que assentavam não encorajava uma evolução rápida nem inorgânica. Mesmo as inovações mais radicais eram encenadas, testadas e julgadas em peças menos ortodoxas102.

102

MASTRONARDE, D. J.; “Euripidean Tragedy and Genre: The Terminology and its Problems”; in Illinois Classical Studies pp. 24 e 25; art. pp. 23-39.

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II PARTE - CONTEXTOS ESPECÍFICOS: ARISTÓFANES E MENANDRO “Uma tragédia é uma tragédia, e no fundo, todas as tragédias são estúpidas. […] Qualquer palerma com mãos estáveis e um par de pulmões a funcionar consegue construir uma casa de cartas e depois destruí-la.

Mas só um génio consegue fazer as pessoas rir.” Stephen King

Analisar quem e o quê? Conforme evidenciámos na primeira parte do trabalho, muitos comediantes existiram (leia-se escritores de comédia, sem nos esquecermos das faces e toda a equipa necessária para a elaboração deste espectáculo). Contudo, na nossa perspectiva – a perspectiva dos “revisitadores”, somente dois autores podem ser referenciados e estudados com um pormenor mais acentuado. Falamos do incontornável Aristófanes e do menosprezado Menandro (adjectivos aceitáveis apenas na actualidade). Ambos eram atenienses. Aristófanes teve uma carreira criativamente produtiva que data ao período entre o último quarto do século V a.C. e a primeira década do século seguinte. Grande parte da sua vida foi contemporânea da Guerra do Peloponeso que culminou na derrota e rendição de Atenas. Menandro trabalhou entre o fim do século IV e o início do século III a.C., quando as conquistas de Alexandre O Grande trouxeram mudanças às vidas das cidades-estado gregas. Ele viveu durante o reinado de dez anos de Demétrio de Faleros e a consequente restauração da constituição democrática com Demétrio I, filho de Antígono Monoftalmo. Assim, para os historiadores, a hipótese de se analisarem obras completas, ou em fragmentos substanciais, de autores pertencentes a dois períodos/”género” distintos será algo que não devemos relativizar. Obviamente que das cerca de mil peças cómicas produzidas, doze103 não chegam para estudar este período. O que não deve significar 103

Aqui referenciamos as obras completas dos autores. Onze delas pertencentes a Aristófanes (Lisístrata, As Vespas, As Nuvens, Os Acarnenses, Os Cavaleiros, A Paz, As Mulheres que Celebram as Tesofórias, As

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que estas obras existentes não possam, pelo menos, oferecer um vislumbre do que poderá ter sido o início da arte de fazer rir. Sendo a Comédia Antiga cheia de vida cómica, no sentido em que usa todas as artimanhas possíveis que um grego possa imaginar para suscitar a gargalhada geral, era também um “género” exuberante e fortemente satírico, rico em fantasia e energia. A Comédia Nova, por contraste, pende para o naturalismo, bastando uma frase de Aristófanes de Bizâncio - “Ó Menandro e vida, qual de vocês imitou o outro?” - para perceber o nível de imersão do autor neste mundo. Os seus protagonistas, movimentados pela paixão, teriam de recorrer à sorte e coincidências típicas do género para serem bem-sucedidos. Pode-se pensar que estudar Menandro é debruçarmo-nos sobre fontes escassas, fazendo-se construções a partir delas, ou que é uma comédia menor. A verdade é que apesar de ser uma comédia diferente, menos vistosa, para o estudo da história deve ser vista como mais uma fonte que examina parte dos problemas sociais da época. Questões como: a condição de dependência de mulheres cidadãs ou de cortesãs estrangeiras; a tensão social entre famílias ricas e pobres; a dicotomia espaço urbano e campestre; conflitos geracionais; entre outras104. Nesta parte do trabalho, temos o objectivo final de levar o leitor a perceber a forma como estas peças são efeito de questões culturais, formando narrativas que os atenienses, em especial, definiam e explicitavam a si mesmos. Um pouco, na linha da ideia de criação narrativa do próprio, da autoria de Bennington: “A ideia de nação é inseparável da sua narração: que esta tente, interminavelmente, constituir identidade contra a diferença, o interior contra o exterior, e a assumida superioridade deste interior”105. O intuito será observar estes textos literários como um lugar onde tensões sociais e contradições são representadas, “a literatura refaz os dados culturais, fraccionando as imagens prevalecentes da cultura em novas formas”106. A sociedade é desigual, algo que se percebe na complexidade e instabilidade da ideologia destes grupos. Devido à natureza formal e organizada de um trabalho dramático, estas

Rãs, As mulheres na Assembleia e Pluto). A única outra peça completa existente de Menandro é o Díscolo, contudo, também temos em grande parte outras obras como: O Escudo, Os Árbitros, A Rapariga do Cabelo Rapado, A Miúda de Samos e Sikyonioi. 104 Sobre esta necessidade de reflectir a sociedade criticamente Cf. FERGUSON, William Scott; Hellenistic Athens: An Historical Essay; Macmillan; Londres; 1911; pp. 74-87. 105 BENNINGTON, Geoffrey; “Postal Politics and the Institution of the Nation” in BHABHA, Homi K. [ed.]; Nation and Narration; Routledge; Londres e Nova Iroque; 1990; p. 132. 106 KONSTAN, David; Greek Comedy and Ideology; Oxford University Press; Nova Iorque e Oxford; 1995; p. 5.

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multiplicidades podem ser arrumadas numa composição una que, contudo, não deixa de ter presente personagens que se definem por contradições. Tal como acontece em grande parte da comédia praticada profissionalmente, deve existir uma defesa da interpretação social da Comédia Antiga. Algo que afirmamos pois alguns críticos insistem, que o objectivo, tanto de Aristófanes como de Menandro, era entreter, única e exclusivamente. A ideia, de que qualquer relação que se possa estabelecer com a política ou sociedade da época será criação do crítico, ou de que, esta relação pode existir mas como resultado de um acaso107. Autores como Heath defendem que o elemento unificador da comédia aristofânica é o enredo que é subordinado às necessidades cómicas da peça108. Neste trabalhado e na linha de Konrad, defendemos que estes trabalhos comprometem-se com temas sociais. Não se exclui a existência de elementos narrativos que tenham o único intuito de provocar o riso (algo que podemos associar hoje à comédia de circo ou de alguns mimos, um pouco até, a muita da comédia dita “americana” com exemplo prático nos Three Stooges e no cinema com Dumb and Dumber). Contudo, também não se pode excluir que existia uma vontade de comentar, criticar, e criar sobre a sociedade em que estes autores viviam. Seria interessante, fazer um estudo comparativo para muitos dos tipos de comédia que existem hoje, que emergem da mesma necessidade que alguns artistas têm em fazer as pessoas rir, onde se dividiria os que criticam e comentam a sua sociedade e os que apenas têm o simples intuito de fazer rir. Pensamos que a primeira coluna se erigia mais alto, visto que a comédia que apenas faz rir, sem pensar, acaba por não satisfazer o âmago cómico, e ao mesmo tempo interessado, que cada um tem em si. Tudo isto não significa que exista um programa, uma mensagem clara a transmitir sobre esta ou aquela temática. O que existe é um complexo de elementos ideologicamente valorizados que não sendo concordantes, mas que combinados podem oferecer efeitos ideológicos específicos. Um ângulo de observação onde algumas possibilidades sociais são ocultadas e outras se tornam visíveis109. Ao fazer piada sobre o que é convencional e sobre personagens específicas, eles revelam o que é arbitrário. A audiência é vista com um olhar partilhado do que é 107

Sobre a importância política da obra de Aristófanes ver: EDWARDS, Anthony; “’Aristophanes’ Comic Poetics” in Transactions of the American Philological Association; [s.n.]; [s.l.]; 1991; 178 n. 52. 108 HEATH, Malcolm; Political Comedy in Aristophanes; Hypomnemata 87; 1987; pp. 43-53. 109 Sobre as relações de Aristófanes com a ideologia popular ver: EDMUNDS, Lowell; Cleon, Knights, and Aristophanes’ Politics; University Press of America; Lanham, Maryland; 1987 e HENDERSON, Jeffrey; “Peisetairos and the Athenian Elite” in DOBROV, Gregory, ed.; Aristophanes’ Birds and Nephellokokkugia: Charting the Comic Polis; Papers do seminário APA; Trugedy Press; Siracusa, Nova Iorque; 1990; pp. 8-16.

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engraçado, “uma piada sobre determinado tópico, pode não ter piada em determinado lugar”110. Os autores testam os limites do campo semântico que partilham com a sua audiência, pensando sempre que pode existir alguém que não seja capaz de entrar neste mundo de significados partilhados. Aqui se encontra o espaço que possibilita a comédia. As contradições que existem na sociedade não são apagadas, mas sim transformadas de forma imaginativa em novas formas. O que era entendido como convencional transforma-se em algo engraçado, revelador e socialmente incisivo.

Aristófanes Vida através da Obra Sabemos menos sobre Aristófanes que sobre a sua obra. Esta é, em verdade, a maior fonte que temos para podermos fazer uma biografia do autor. Alguns dos dados biográficos podem ser encontrados nas suas parábases. Estes factos, contudo relacionam-se maioritariamente com a sua carreira, não tanto com a sua vida privada111. Ele era um poeta cómico numa época em que era convencional esta profissão estar associada à de didaskalos112, o que também lhe permitia transmitir à audiência o facto de ser um crítico influente no comentário de matérias significantes para a sociedade113. Aristófanes afirmou que escrevia as suas peças para uma audiência inteligente, consciente 114 . Também refere que observava a recepção popular do seu trabalho e guiava-o de acordo com esses dados115. Ele caricaturava pessoas influentes nas artes, nomeadamente Eurípides (o qual chegou a admitir relutantemente que o influenciava116); na política, onde à que referir o popular Cléon; e na filosofia - o incontornável Sócrates.

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GOLDHILL, Simon; The Poet’s Voice: Essays on Poetics and Greek Literature; Cambridge University Press; Cambridge; 1991; p. 194. 111 KONSTAN; Op. Cit.; p. 6. 112 Nome que se pode referir à palavra actual de “professor”, o que poderá demonstrar que o autor da peça também seria o encenador, trabalhando com o coro e o restante corpo de actores. Cf. BROCKET, Oscar G.; History of the Theatre; Allyn & Bacon; 8ª ed.; Needham Heights, Manchester; 1999; p. 24. 113 ARISTÓFANES; DOVER, K.J. (ed.); The Clouds; Oxford University Press; Oxford; 1970; p. 14. 114 HALL, F.W.; e GELDART, W.M. (ed.); Aristophanis Comoediae; Tomo 1; Oxford Classical Texts; Clouds; pp. 520-525. 115 Idem, Ibidem; pp. 560-562. 116 BARRETT, David; e SOMMERSTEIN, Alan (ed.); The Birds and Other plays; Penguin Classics; [s.l.]; 2003; p. 9.

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Atenas era um poder imperial quando a primeira peça de Aristófanes, Os Banqueteantes, foi produzida, haviam decorrido apenas quatro anos na Guerra do Peloponeso. As suas peças costumam expressar orgulho nos sucessos da geração sua antecessora (nomeadamente os vitoriosos de Maratona 117 ). Contudo, elas não eram excessivamente “patrióticas”, opondo-se muitas vezes com a guerra contra Esparta. Existe uma crítica específica em relação aos beneficiados com a guerra, dos quais figuras como Cléon eram proeminentes. Quando a sua última peça foi produzida, por volta de 386 a.C., Atenas tinha sido derrotada militarmente, o seu império tinha sido estilhaçado, sofrendo a transformação de superpotência antiga política, em centro intelectual grego118. Neste âmbito, a obra de Aristófanes é deveras importante de estudar pois ela mesma altera conforme os contextos onde se insere. A estrutura das suas peças evolve de Comédia Antiga para o tomar de traços do que viria a ser a Comédia Nova. O sucesso de Aristófanes terá começado com a peça perdida Os Banqueteantes, que ganhou o segundo prémio nas festas dionisíacas e com Os Babilónios, que lhe deu o primeiro prémio. Esta última peça causou alguma comoção na esfera política. Alguns autores apontam para uma possível acção legal contra o poeta, que estaria - ao representar os cidadãos das cidades fora de Atenas, pertencentes à Liga de Delos, como escravos a trabalhar num moinho119 - a ir contra a polis. Aristófanes, em Os Acarnenses esclarece que não era esse o seu intuito: “Havia entre nós uns fulanos – não me estou a referir à cidade (fixem bem isto, não é à cidade que me estou a referir!) – uns tipinhos miseráveis, de mau quilate, uns infames, que não valem nem um tostão furado, meios estrangeiros […]”120. É a partir daqui que Cléon se torna o seu alvo favorito, o que não afectou a carreira do político. Poucas semanas depois de Cavaleiros, ele foi eleito para o quadro prestigiante dos dez generais121. Cléon também parecia não ter qualquer controlo sobre a produção aristofânica visto que as caricaturas continuaram, mesmo depois da sua morte. Nem sempre o poeta era o encenador. Nas peças de Aristófanes, por exemplo, o encenador poderia ser outro homem como Calístrato. Isto coloca um problema na 117

ARISTÓFANES; Vespas; vv. 1075-1101; Cavaleiros; vv. 565-576; Acarnenses; vv. 692-700. ARISTÓFANES; SOMMERSTEIN, A.H. (ed); Lysistrata, The Acharnians, The Clouds; Penguin Books; [s.l.] 1975; pp. 13-14. 119 LEVI, P.; “Greek Drama” in BOARDMAN, J.; GRIFFIN, J.; MURRAY, O. (ed.);The Oxford History of the Classical World; Oxford University Press; Oxford; 1986; p. 177. 120 ARISTÓFANES; Os Acarnenses; vv. 515-519 (Trad. Profª Mª Fátima Sousa Silva). 121 BARRETT; Op. Cit.; p.34. 118

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acepção de que as opiniões expressadas são do autor, visto que, também podiam ser do encenador. Dito isto, algumas das referências são identificáveis directamente com o autor. Algo exemplificativo dessa ideia pode ser encontrado em Nuvens 122 onde se afirma que o autor não teria mais de dezoito anos quando escreveu a sua primeira peça. Outras alusões sugestivas podem ser encontradas em: Vespas 123 , que fala de uma acomodação temporária com Cléon; em relação à controvérsia com Babilónios; ou em relação a Cavaleiros

124

. Em Nuvens e Paz

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sugere-se que o poeta ficou

prematuramente calvo. Sabemos que um dos filhos de Aristófanes também era autor cómico e que tinha estado envolvido na produção de Pluto II em 388 a.C. 126. Outros seus descendentes enveredaram na mesma carreira do pai, nomeadamente, Filipos e Nicóstrato ou Filetero127. Em O Banquete de Platão, Aristófanes e Sócrates são convidados num jantar cujas conversas são apresentadas ao longo da obra. Este jantar decorria sete anos depois da produção de Nuvens, onde se satirizava fortemente Sócrates. Um dos convidados Alcibíades, chega mesmo a referenciar a peça, ao provocar Sócrates em relação à sua aparência128. Apesar disto, não existe qualquer indicação de mal-estar entre o poeta e o filósofo. O Aristófanes de Platão é demonstrado como uma personagem genial, o que tem sido debatido como sendo um sinal de amizade entre ambos129, ou apenas um sinal de que Platão aprecia a obra aristofânica e, portanto, referenciava traços dessa comédia no seu próprio trabalho130. Aristófanes sobreviveu à Guerra do Peloponeso, a duas revoluções oligárquicas, e duas restaurações democráticas, isto tem sido interpretado como prova de que o autor, apesar de interessado em assuntos políticos, não participava activamente nesse âmbito131.

122

HALL; Op. Cit.; pp.. 528-532. Cf ARISTÓFANES; SOMMERSTEIN; Op. Cit.; p. 9. ARISTÓFANES; Vespas; vv. 1265-1291. 124 MACDOWELL, Douglas; Aristophanes Wasps; Oxford University Press; Oxford; 1978; n.32; p. 299. 125 HALL; Op.Cit.; Clouds, vv. 540-545; Peace; vv. 767-774. 126 ARISTÓFANES, Testimonium 1, ll. 54-56; in KASSEL-AUSTIN; Poetae Comici Graeci; vol. III. 2; Berlin; 1984; p. 4. 127 ARISTÓFANES; Clouds; Peter Meineck (trad.) e Ian Storey (intr.); Hackett Publishing; [s.l.]; 2000; p. 18. 128 PLATÃO; Simpósio; 221B. 129 ARISTÓFANES; SOMMERSTEIN; Op. Cit.; p. 10. Ver também BARRETT; Op. Cit.; p. 10. 130 Algumas destas referências são: PLATÃO; Simpósio; 189b que se coaduna com HALL; Op. Cit; Knights vv. 507-550. 131 ARISTÓFANES; DOVER; Op. Cit.; p. 9. 123

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Elementos Estruturantes do seu Teatro A linguagem usada na Comédia Antiga era vista, pelos críticos do período clássico, como um modelo do dialecto ático. O orador Quintiliano acreditava que este arquétipo deveria ser estudado e seguido, considerando-o inferior apenas aos poemas homéricos 132 . Nas peças de Aristófanes, o dialecto ático está formulado em versos, podendo o seu trabalho ser apreciado apenas pela sua qualidade poética. Para o autor e seus contemporâneos as obras de Homero e Hesíodo formavam os pilares da história e cultura helénica. Estavam perfeitamente conscientes em relação às modas e tradições literárias, existindo, como já vimos, inúmeras referências a outros poetas, como Eupólide, Hermipo, Magnes, Crates, Cratino, Ésquilo, Sófocles e Eurípides (estes três últimos são mencionados em Rãs). Alguns autores sugerem a ideia de que Aristófanes decidiu modelar a sua interpretação da linguagem em Eurípides 133. De modo a poder apreciar verdadeiramente o trabalho do poeta será necessário perceber quais as formas poéticas que aplicava com grande qualidade, e as suas diferentes associações e ritmos134. Existiam três grandes formatos poéticos. O diálogo iâmbico - efeito que se assemelha ao discurso natural através do uso do trímetro iâmbico, o seu uso realista do metro torna ideal tanto o diálogo como o monólogo, como se pode observar em Acarnenses: “Quantos desgostos tenho eu tido a roerem-me a alma! Lá alegrias, essas são poucas, bem poucas mesmo, uma meia dúzia delas! Mas aflições!... às centenas, como areias tem o mar”135. Aqui o poeta usa uma ferramenta habitual, colocando o clímax cómico na última palavra, algo similar à punchline136 originária do Vaudeville. Os prazeres do herói são tão poucos que ele os consegue numerar (τέτταρα, quatro) mas as suas razões de queixume são tantas que uma descrição numérica não serve, há necessidade de inventar uma palavra para elas (ψαμμακοσιογάργαρα, literalmente „às-centenas-areias-montão‟, sendo o primeiro uma terminação e os outros dois elementos substantivos. A tradutora decidiu algo que se enquadrasse mais com o português coloquial). O uso de palavras compostas e inventadas é outro engenho cómico frequentemente usado nas peças.

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O ORADOR A TREINAR QUINTILIANO, 10.1.65-6, citado in BARRETT, Op. Cit., p.15. BARRETT; Op. Cit.; p.9. 134 MACDOWELL; Op. Cit.; p. 21. 135 ARISTÓFANES; Acarnenses; vv. 1-3 (Trad. profº Mª Fátima Sousa Silva). 136 CARRELL, Amy; Primer of Humor Research: Humor Research 8; Mouton de Gruyter; Berlin, Nova Iorque; 2008; p. 312. 133

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Outra forma poética são os versos tetramétricos catalécticos 137, isto é, longas linhas de anapestos, troqueus, ou iambos 138 que podiam ser usadas em diversos contextos: debates entre as personagens (ritmo anapéstico), diálogo acelerado (ritmo trocaico), argumento aceso (anapéstico ou trocaico), longos discursos proferidos pelo coro nas parábases (ritmo iâmbico). O ritmo anapéstico é desenvolto, confiante; o metro trocaico serve para proferir rapidamente as palavras, demonstrado por vezes quando um coro entra em cena, com um espírito agressivo 139 . Estes ritmos são misturados e reutilizados com diferentes objectivos. Numa passagem anapéstica de Rãs, a personagem de Ésquilo demonstra uma perspectiva séria sobre a poesia, usando este ritmo, mas que é comicamente interrompida por Dioniso: “Orfeu, por exemplo, ensinounos os mistérios e a afastarmo-nos das mortes, Museu as curas das doenças e os oráculos, e Hesíodo os trabalhos da terra, as estações dos frutos, a agricultura. E o divino Homero donde recebeu honra e glória senão de que ensinou coisas úteis como linhas de combate, virtude military, armamentos de homens? DIONISO – Contudo não ensinou Pântacles, o grandíssimo desajeitado. Há pouco, quando seguia na procissão, colocou primeiro na cabeça o capacete e tentava depois prender o penacho” 140 . O ritmo começa por ser anapéstico, desacelerando para fazer reverência a Hesíodo e Homero, mas acelera de novo até à sua conclusão cómica. Tais variações usadas com subtileza levam a que sejam apontados pontos sérios, sem nunca se esquecer do apetite da audiência para a próxima piada. A última forma poética que falaremos é a lírica. Pouco se sabe sobre a música que acompanhava a lírica grega, e o metro pode ser tão variado e complexo que é difícil para leitores modernos perceberem qual seria o resultado pretendido. Contudo, Aristófanes ainda consegue impressionar com o charme subtil e simplicidade dos seus versos líricos141. Alguns dos mais memoráveis são hinos afastados da acção cómica142. Tenho mostrado muitas vezes / Que sou cortês e não grosseiro / Como Amínias / Filho de Selo, da raça / De Cróbilo, que um dia vi / Comer à mesa de Leógoras. / Levando apenas uma maçã e uma romã / Não tem menos fama que Antífone, / Uma vez foi em 137

Verso grego ou latino a que, propositadamente, falta uma sílaba. VER "catalécticos", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa; disponível em https://www.priberam.pt/dlpo/catal%C3%A9cticos [consultado a 11-01-2017]. 138 Unidades rítmicas da poesia. 139 PARKER, L.P.E.; The Songs of Aristophanes; [s.n.]; Oxford; 1997; p. 36. 140 ARISTÓFANES; As Rãs; vv. 1030-1038 (Trad. profª Mª Fátima Sousa Silva). 141 BARRETT; Op. Cit.; p. 27. 142 LEVI; Op. Cit.; p. 175.

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deputação / A Farsália, / Na Tessália, / Mas ali só conviveu com Penastes / E era mais miserável que eles143. Aqui a lírica é um interlúdio cómico, usando-se um ritmo trocaico. A sintaxe do grego original é natural e não forçada, podendo ter sido acompanhada por música alegre que nos levava até ao trocadilho feito às custas de Amínias (“penastes”). Trocadilhos como este eram algo recorrente, usando-se, como é o caso, vocábulos similares, palavras inventadas (junção de dois ou mais termos ou acrescentos a uma mesma palavra) ou vocábulos com duplo sentido. Um bom exemplo desta artimanha cómica está presente em Acarnenses144, aqui se vê uma cena inteira que é construída em torno de um trocadilho, referimo-nos ao agricultor megarense e aos seus “porcos”. Este agricultor desafia o embargo ateniense contra o comércio megarense, tentado comerciar as suas próprias filhas disfarçadas de porcos. O trocadilho estava presente pois a palavra grega de “porco” também era calão para se referir à vagina. Tendo sido o embargo contra Mégara o pretexto para a Guerra do Peloponeso145, o poeta é obrigado a concluir que toda a confusão se sucedeu devido a “três coninhas” algo que se mascarava com o outro significado da palavra – “três porcas”. Outros elementos presentes na linguagem podem ser apontados como cómicos. A imagética era algo particularmente importante, em especial, o uso de símiles, metáforas e expressões pictóricas 146 . Alguns exemplos podem ser achados em Cavaleiros, onde as orelhas de um personagem com “audição selectiva” são representadas como guarda-sóis que abrem e fecham; em Rãs, diz-se que Ésquilo compõe os seus versos da mesma forma que um cavalo se rebola na areia. De modo a perceber melhor este tipo de expressão artística, teremos de contextualizar melhor o leitor no mundo, cheio de especificidades, que era a Grécia Antiga. O uso de máscaras individuais, no lugar da actual expressão facial, era algo muito específico ao teatro grego antigo. Estas eram usadas na Tragédia e na Comédia Nova como identificação fácil de personagens-estereótipo, contudo, na Comédia Antiga chegavam-se mesmo a usar máscaras que caricaturavam a face de pessoas reais. Em Cavaleiros é-nos dito que os criadores das máscaras tinham medo de caricaturar Cléon,

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ARISTÓFANES; As Vespas; Trad. de A. Lobo Vilela; Editorial Inquérito; Lisboa; 1990; vv. 1265-1274. ARISTÓFANES; Acarnenses, vv. 729-835. Os tradutores decidiram não referir este duplo significado, provavelmente por ser complicado de perceber sem uma explicação prévia. 145 Pretexto sumarizado em BUCKLEY, T.; Aspects of Greek History; [s.n.]; Londres; 1996; capítulo 17. 146 MACDOWELL; Op. Cit.; p. 17. 144

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pelo que disfarçavam-no, mas que, de qualquer modo, o público seria suficientemente inteligente para o identificar147. O espaço físico onde as peças decorriam era também ele algo específico ao mundo grego, ideia que depois se disseminou e chegou ao nosso próprio tempo. A ilusão teatral era também usada como elemento cómico. Em Acarnenses, a Pnyx está a apenas alguns passos da porta do protagonista; em A Paz, Olimpo vê-se separado de Atenas através do suposto voo de alguns momentos num escaravelho gigante. Esta autoconsciência do espaço em que se encontra a acção narrativa permite quebrar, já neste período, o que é hoje chamado de “quarta parede”. Quando o protagonista em Paz regressa a Atenas do seu voo ao Olimpo, ele diz à audiência: “Vocês aí são como formiguinhas, vistos lá de cima. Mas se mesmo do céu me pareciam uns patifes acabados, então daqui… ainda me parecem bem mais patifórios”148. Outro elemento que as audiências modernas não percebem, por poderem facilmente estar descontextualizadas, é a frequente paródia de tragédias que se explica pela coexistência de representações cómicas com trágicas, tornando fácil para a audiência a identificação da referência cómica. Isto não se esgotava nas tragédias, pois os autores também se parodiavam uns aos outros, e mesmo a si próprios. É possível que Aristófanes tenha usado a sua própria calvez para fazer o público rir. Em Acarnenses o coro goza com ele, dizendo que seria a sua pessoa a maior arma de Atenas contra Esparta. Algumas das cenas eram particularmente engraçadas, mas só alcançavam um elevado nível cómico no espaço em que se inseriam. Como já referimos e vimos, este tipo de comédia era obsceno existindo piadas com enorme detalhe e que teriam muito mais efeito se fossem proferidas em contexto. Em Acarnenses, o coro amaldiçoa Antímaco149, que tinha sido acusado de conduta mesquinha, desejando que ele fosse assaltado à noite quando voltasse de uma festa, bêbado. O coro passa então a imaginar a cena com Antímaco a pegar numa pedra para afugentar o assaltante, só que invés de pegar numa pedra, pega num bocado de bosta fresca a qual arremessa, mas falha o alvo e acerta antes em Cratino (que como referimos era inimigo e colega de profissão de Aristófanes). Tudo isto se passava enquanto a maldição era cantada e dançada por um coro de vinte e quatro homens adultos, conhecidos pela audiência como cidadãos 147

ARISTÓFANES; Cavaleiros; vv. 230-233. ARISTÓFANES; Paz; vv. 821-823 (Trad. profª Mª Fátima Sousa Silva). 149 ARISTÓFANES; Acarnenses; vv. 1164-1173. 148

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respeitáveis. Depois de explicada a situação onde se inseria, a cena permanece com um espírito cómico. O coro era elemento central nas peças da Comédia Antiga. Das onze peças existentes de Aristófanes, oito delas retiram o seu nome do coro usado. No seu tempo, o coro trágico era composto por doze actores e seria usado como comentador da acção. Mas na comédia teatral, deste período, o coro tinha vinte e quatro membros, envolvia-se activamente no enredo e a sua entrada em acção era preparada e pomposa, os movimentos eram coreografados de forma precisa e podiam-se coadjuvar com os dos actores 150 . Os gastos e treino que o coro tinha mostram que este era um elemento essencial para a espectacularidade do programa151. O guarda-roupa também era usado como construção cómica. Este sim servia como forma de identificação fácil de personagens, nomeadamente na definição de homens ou mulheres. Os homens usavam colãs por cima de enchumaços ridículos, com um enorme falo de pele mal tapado por uma pequena túnica. As personagens femininas eram homens que usavam longas túnicas 152 . Em Rãs, estas pistas visuais foram deliberadamente misturadas com intuitos cómicos. A personagem de Dioniso apresentase em palco com uma longa túnica, os coturnos dos actores trágicos, e um manto de pele de leão que caracterizava Héracles, roupas que serviam para provocar a gargalhada geral, não só ao próprio Héracles, mas também à audiência. Todos estes elementos estavam presentes num espírito social de festividade, pois era o que estas competições e celebrações em específico eram, parte de comemorações religiosas recheadas de entretenimento. Este espírito pode explicar o elemento que se segue: o anticlímax caricato. A tensão dramática, na comédia, era inúmeras vezes apaziguada a meio ou no fim da peça. As cenas seguintes eram consequências jocosas numa sucessão de cenas ligadas de forma solta. Isto parece-nos quebrar o objectivo de qualquer história narrativa, mantendo o espectador ou leitor investido no que está a ver, mas neste contexto algo se sobrepunha a isso: a necessidade de deixar a audiência relaxar, divertir-se de forma descomplicada, apreciando a música, as piadas e celebrações que caracterizavam o resto da peça. A celebração da vitória do protagonista

150

ARISTÓFANES; Ibidem; vv. 280-301; Cavaleiros; vv. 247-272; Vespas, vv. 452-460. BARRETT; Op. Cit; p. 9. 152 ARISTÓFANES; SOMMERSTEIN; Op. Cit; p. 29. 151

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terminaria numa conquista sexual, podendo tomar a forma de um casamento, providenciando a acção com um alegre sentido de fim153.

Peças Específicas - Rãs As Rãs relembra a época de Ésquilo como um tempo ideal. Neste a adesão cívica coincidia com o critério aparentemente natural do nascimento e, ao mesmo tempo, conjurava uma visão inclusiva de igualdade grega e mesmo humana. Essa igualdade, estaria em parte fundada na abertura dos ritos eleusinos a todos os helenos, o que ameaçava o paroquialismo da polis clássica. Dioniso é o deus mais mutável, as suas muitas aparências como um herói burlesco, iniciador e patrono do Teatro correspondem a uma sequência contraditória de momentos no reportório ideológico ateniense.

Ilustração 22 - Primeira página de Rãs no Codex Ravennas. O texto, ao centro, está escrito de forma linear, confiante, característico da segunda metade do século X. As inscrições na margem são mais antigas.

153

ARISTÓFANES; BARRETT, David (ed.); The Frogs and Other Plays; Penguin Classics; [s.l.]; 1964, pp. 1314.

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Produzida em 405, nas Leneias, vencendo o primeiro prémio, a peça derrotou As Musas de Frínico. O enredo da peça relaciona-se com uma viagem de Dioniso ao Submundo para ir buscar os grandes tragediógrafos de modo a poder restituir alguma dignidade ao mundo artístico de Atenas. Depois de muita atribulação e disfarce, vestindo-se ora de Héracles, ora voltando a ser Dioniso, ele alcança os poetas Eurípides e Ésquilo que entram em competição pelo regresso ao mundo dos vivos. O deus também tem encontros com Plutão, o deus do Submundo, Héracles, Proserpina 154 e é sempre acompanhado pelo seu escravo Xântias. A peça ganha o seu nome devido ao desafio vocal de Dioniso com o “coro invisível” das rãs que povoam o Aqueronte. Aristófanes, a nível político, mantém-se como um conservador que relembra sempre os tempos de maior prestígio ateniense. Já sabemos que ele era contra a Guerra do Peloponeso, não vendo nenhuma vantagem no seu prolongamento. Em peças aqui comentadas – Vespas, Lisístrata, e outras que não incluímos – Acarnenses, Cavaleiros, Paz, a serenidade social e política é um dos principais focos temáticos, tal como acontece em Rãs. Neste sentido, existem ataques não a Cléon, mas a Cleofonte, continuando a dizer que este tipo de dirigente é proveniente de um extracto social menos elevado (o que seria transmitido como ofensa). Interroga os dois poetas a respeito de Alcibíades, “a última esperança de salvação de Atenas”155. Apesar do autor colocar Eurípides a criticar o General, dizendo que é ambicioso e egoísta, também oferece palavras de elogio da parte de Ésquilo: “quando se deixa crescer um leão na cidade, há que suportá-lo depois”156 . No aspecto literário existem mais alguns ataques pessoais. Tal como nos diz Green, ele poupa Cléon e honra Lâmaco (ambos ridicularizados em Cavaleiros e Acarnenses, respectivamente), “mas Eurípides ele não o deixará em repouso nem no túmulo”157. A crítica surge por este tragediógrafo celebrar na sua obra uma evolução ateniense durante a guerra, a qual, Aristófanes não consegue ver. Hoje pensa-se que esta aparente aversão ao autor trágico não subtraía necessariamente uma mesma admiração. Algo similar, mais veemente se sucederá com a utilização do deus Dioniso. Um deus bonacheirão, com todos os defeitos de um homem vulgar, uma paródia que deve ser assim entendida. No século V nenhum cómico foi condenado por impiedade 158, pelo 154

Também conhecida como Persefata ou Perséfone. ARISTÓFANES; As Rãs; Trad. de Américo Costa Ramalho; edições 70; Lisboa; 2008; p. 17. 156 ARISTÓFANES; Op. Cit.; vv.1426-1435. 157 GREEN, W.C.; The Frogs of Aristophanes; Cambridge University Press; Cambridge; 1879; p. 15. 158 STANFORD, W. B.; Aristophanes: The Frogs; Macmillan & Co; Londres; 1963; pp. 18-19. 155

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que a piada era percebida como piada e não como algum traço de irreligiosidade. Muito pelo contrário, como cidadão preocupado, o poeta defendia os ritos tradicionais da cidade, considerando-os mesmo um pilar para o funcionamento desta sociedade. No excerto que se segue 159 participam três personagens na acção. É um dos muitos jogos cómicos de máscaras. Neste, em específico, Xântias – o escravo, está mascarado de Dioniso, pelo que a piada chega com a vinda de Éaco que pretende descobrir qual dos dois é o verdadeiro Dioniso, o verdadeiro deus, para tal, chicoteia-os de modo a ver qual suporta a dor. Dos dois, o que suportasse, era divino. Mas esta peça é um trabalho cómico, pelo que, ambos têm dores, que disfarçam com locuções evocativas de pessoas que vão a passar, de frases célebres, ou perguntas que se lembrem. Inicialmente, eles conseguem manter-se firmes. Perto do fim da cena já só deus está a levar pancada, incentivada vorazmente pelo seu escravo. Pancada essa que se vem a perceber ser completamente desnecessária. O contexto, os participantes, e a inutilidade da situação em si, são tudo elementos cómicos que ainda hoje têm piada.

ÉACO (A Ambos) […] Despi-vos lá! XÂNTIAS Como é que nos julgarás com justiça? ÉACO Da maneira mais fácil: pancada a um, pancada a outro. XÂNTIAS Muito bem. Vamos lá! (Éaco bate; Xântias fica impassível.) […] ÉACO Já te bati? XÂNTIAS Por Zeus, não me parece de maneira nenhuma que o tenhas feito. ÉACO Agora dirijo-me a este e vou bater-lhe. (Bate em Dioniso.) DIONISO Quando?

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ARISTÓFANES; Op. Cit.; vv. 641-674.

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ÉACO E de facto já te bati DIONISO E como é que eu não espirrei?160 ÉACO Não sei. Agora vou experimentar este aqui outra vez. (Bate em Xântias) XÂNTIAS Não te despacharás? (Bate-lhe de novo.) Oh, oh, oh! ÉACO O que é esse oh, oh, oh? Por ventura sentiste dor? XÂNTIAS Não, por Zeus, mas pensei quando é que são as festas de Héracles nas Diomeias. ÉACO Santo homem! Tenho de ir outra vez ao outro. (Bate em Dioniso.) DIONISO Iú, iú! ÉACO O que é? DIONISO Vejo cavaleiros. ÉACO E porque choras? DIONISO Cheira-me a cebolas. ÉACO Então, nada te preocupa? DIONISO Não quero saber de nada. ÉACO Tenho, pois, de ir ter com o outro, de novo. XÂNTIAS Uhi!

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Espirrava devido à deslocação do ar provocada pelo movimento do chicote.

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ÉACO O que é? XÂNTIAS (Mostrando o pé) Arranca-me um espinho! ÉACO Que negócio é esse? Tenho de voltar ao outro. (Bate em Dioniso.) DIONISO (Queixando-se) Apolo! (Mais calmo) «Tu que tens Delos ou Pitô» XÂNTIAS Doeu-lhe, não ouviste? DIONISO Não, visto que eu recordava um iambo de Hipónax. XÂNTIAS Nada consegues, verdadeiramente. Mas amassa-lhe de pancada os costados. ÉACO Não, por Zeus. (A Dioniso.) Mas apresenta já o ventre! DIONISO (Queixando-se) Posídon! XÂNTIAS Alguém sentiu dor… DIONISO …«que nas profundezas do mar, governas o promontório Egeu ou a glauca planura». ÉACO Não, por Deméter, não consigo eu saber qual de vocês dois é o deus. Mas entrai. O patrão conhecer-vos-á decerto, ele e Perséfone, porque são ambos deuses. DIONISO Dizes bem, mas eu teria preferido que te lembrasses disso, antes de eu apanhar as pancadas. (Entram.)

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Peças Específicas - Lisístrata Lisístrata explora o estatuto das mulheres como estrangeiras sociais, de modo a construir um modelo alternativo de solidariedade grega baseada em identificação e cooperação. A unidade das cidades gregas em guerra é representada através da imagem do corpo feminino como substrato da identidade helénica. Contudo, o desejo das mulheres também é contido na ligação aos seus lares. A peça conclui-se ao ratificar as reivindicações competitivas das cidades rivais pelas suas partes separadas na topografia feminizada da Grécia. Mais uma vez, a caracterização exagerada dos motivos das mulheres nas funções dramáticas funciona como veículo para retractar uma ideologia contraditória, o que também deixa a sua marca na lógica da acção. Esta peça foi produzida em 411 a.C. nas Leneias. Não sabemos com que sucesso161 foi recebida aquando da sua produção, mas sabemos que hoje é considerada uma das melhores peças das onze disponíveis162. Muito desta adulação se deve a uma desapropriação do que era a mensagem original, os dois públicos são detentores de uma sensibilidade diferente. Costuma-se associar a protagonista que dá o nome à peça como emancipadora feminista, como paradigma para a luta dos direitos da mulher. O que é um pouco diferente dos objectivos das grevistas em Atenas, pois adjacente ao enredo existe um contexto histórico-social que particulariza a problemática. A Guerra do Peloponeso decorria já há vinte anos, um tratado de paz parecia algo impossível de alcançar. Sendo Aristófanes um defensor da paz, ele pretende fazer realçar a sua opinião sobre os conflitos militares. Muitos foram os ganhos e as perdas territoriais, mas nenhum terá sido mais marcante (nesta altura) que a expedição à Sicília, entre 415-413 a.C., tendo sido feito um avantajado investimento que levou a um enorme desperdício de esforços. Homens como Demóstrato, que tinham apoiado a diligência, tornam-se alvos163 e momentos como o das mulheres se lamentarem na festa de Adónis, ou o mau presságio das “capações” a Hermes164, quando alguém mutilou as figuras do deus em vésperas de partida não ajudaram. Concomitantemente, Lisístrata é fortemente afectada pelo cenário político-militar na Atenas sua contemporânea. Existiam nesta cidade-estado novos perigos políticos, como os interesses oligárquicos, aos quais não se respondeu da forma mais eficaz. A falta de meios era uma 161

DOVER, Aristophanic Comedy; B. T. Batsford; Londres; 1972; p. 150. Sobre o êxito da peça em Portugal Cf. SILVA, M. Fátima (coord.); Representações de Teatro Clássico no Portugal Contemporâneo; II; Lisboa; pp. 146-151. 163 ARISTÓFANES; Lisístrata; vv. 390-397. 164 Id.; Ibid.; v. 1094. 162

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condicionante na tentativa de se voltar a ter a supremacia armada 165. A tentativa de responder ao problema militar por outros meios, nomeadamente com a instalação de uma base militar em Samos, não teve resultados166. A resposta foi não só insuficiente, mas também desajustada, ao que se juntou a tal vontade de poder político oligárquico perante os escassos fundos ainda disponíveis. Isto afectou a opinião pública do poder político, o comércio da cidade e mesmo os últimos dos fundos salvaguardados por Péricles. A solução podia ser encontrada na diplomacia. Esta, contudo, não era vista como algo sério, sendo sempre aproximada com desconfiança pelo regime. A solução sugerida por Aristófanes encontra-se na cooperação que foi tão bemsucedida na resposta às investidas persas em território grego. Artemísio e Termópilas, foram conquistas possíveis, devido ao apoio mútuo de espartanos e atenienses, subjugas que levaram à liberdade e a uma Grécia unida.167 O autor celebra o passado e relembra que este pode ser usado como exemplo para o futuro que pode vir a ser. Critica-se esta necessidade de supremacia que leva à luta entre gregos e tenta-se reverter o que deve e não deve ser tomado com seriedade, numa divergência entre guerra, corrupção, declínio e paz, cooperação e crescimento. A peça, após indicar os principais problemas, urge um pan-helenismo. O poeta apresenta uma sociedade com a qual os gregos se podiam identificar, partindo daí para um conflito de sexos e de opiniões: os homens querem guerra168, as mulheres querem paz, não uma igualdade de direitos sociais e políticos, mas apenas paz 169. Visto que os homens são demasiado obstinados nas suas ideias, resta às mulheres, através dos seus meios, arranjar uma solução. Alimentação, sexo, apaziguamento familiar são tudo traços que os homens teriam de abdicar se quisessem continuar a guerra. Mais do que tudo, as esposas desejam voltar à normalidade. A amálgama de mulheres revoltosas que Aristófanes escolhe não é apenas ateniense. O comediógrafo percebe que este sofrimento se generaliza por toda a Grécia, pelo que acrescenta as cidades de Corinto, Beócia, Salamina, Acarnas, Lacónia, projectando assim a ideia, mais uma vez, de uma Grécia unida, cooperante com a perspectivação de um mesmo objectivo.

165

Id.; Ibid.; vv. 421-423. Id.; Ibid.; v.313. 167 Id.; Ibid.; vv. 1248-1261. 168 Id.; Ibid.; vv. 32-35. 169 Id.; Ibid.; vv. 473-475. 166

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Será interessante apontar o fraquejar das mulheres na defesa da sua própria greve (mas nunca da protagonista que nunca deixa de ver que os meios justificam os fins). Lisístrata consegue através desta vontade voltar a unir Atenas e Esparta para um bem-comum. O coro é essencial para transmitir esta ideia, dividindo-se entre velhos e mulheres, acaba por se juntar numa só unidade, gerando assim a imagem física de harmonia e normalidade. Esta regularidade só será atingível através de uma satisfação possibilitada na existência de uma situação normal entre os dois sexos, “porque o bem estar para um homem não existe, se não está bem com a mulher”170. Esta não foi a única peça com propiciadores de acção femininos. Teríamos também de referir Tesmofórias e Mulheres na Assembleia. Criar situações, neste contexto, vistas como ridículas e por tal cómicas correspondia a uma velha tradição préliterária da comédia. O motivo da peça é o sexo, todas as atitudes provêm deste núcleo central. Algo que se percebe na convocatória inicial, com a discussão sobre se “a coisa é grande e grossa” ou “pequena e fraca”171. Esta que é a sua fraqueza é também a sua força acabando por submeter a vontade dos homens. Outro vício apresentado é o prazer pelo vinho, que funciona como colmatar da vontade sexual. É com este líquido que se faz o juramento solene de adesão à greve, pois numa apologia pela paz, o sangue não serviria. Mas a estes vícios a nossa protagonista não cede. Ela é a incentivadora do protesto, nunca deixando os seus ideais fraquejarem, procura mesmo usar as prostrações da mulher em seu proveito, criando e executando um plano para a salvação do mundo grego. Ao se destacar das outras ela transforma-se numa Artemísia ou Amazona, ou seja, num símbolo de superioridade feminil. O papel de mulher, esposa, dama, e senhora é preenchido por Mírrina. Contudo ambas as personagens não se deixam vergar na defesa de um projecto superior, do qual não abdicam. No excerto que se segue172 poder-se-á vislumbrar o lugar que a mulher ocupava nesta sociedade, apresentando-se também a sua maior fraqueza como sendo o sexo no contexto da convocatória para a greve. Já nesta parte introdutória se começa a delinear a firmemente convicta personagem de Lisístrata.

170

Id.; Ibid.; vv. 165-166 Id.; Ibid.; vv. 23.-30. 172 Id.; Ibid.; vv. 21-42 171

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CALONICE Elas vêm, minha amiga, vais ver. Porque para uma mulher sair de casa é o cabo dos trabalhos. É uma que fica às voltas com o marido, outra a acordar um escravo, outra a deitar o filho, a dar-lhe banho, a fazer-lhe a papa. LISÍSTRATA A verdade é que há coisas que deviam ser mais importantes para elas que tudo isso. CALONICE Mas afinal, minha querida, o que se passa Lisístrata? Porque é que nos convocaste a nós, mulheres? De que coisa se trata? De que dimensão? LISÍSTRATA Grande. CALONICE E grossa também? LISÍSTRATA Grossa também, sim. CALONICE (surpreendida) Então como é que não estamos já cá todas em peso? LISÍSTRATA É grossa, mas não é nesse sentido. Se fosse, era num instante que nos reuníamos. É uma questão que eu tenho andado a ponderar, a agitar, durante muitas noites em que não tenho pregado olho. CALONICE Então a coisa deve ser pequena, para se agitar assim! LISÍSTRATA Bem pequena, realmente, porque é nas mãos das mulheres que está a salvação da Grécia inteira. CALONICE Nas mãos das mulheres? De bem fraca coisa depende ela então.

Peças Específicas - Pássaros Os Pássaros ou As Aves173 retracta um regime utópico que é complexamente imaginado tanto passiva como implacavelmente agressivo, unido num comunalismo

173

Trad. de Maria de Fátima Silva; edições 70.

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primitivo, apesar de guiado por impulsos de domínio e fracturado por tensões hierárquicas. No meio de uma tentativa ateniense, por volta do ano de 414 a.C., em dominar todo o Mediterrâneo, a peça projecta uma fantasia de poder ilimitado que, em simultâneo, reafirma o ideal conservador de uma época passada onde poderá ter existido harmonia social. As Aves foi produzida em 414 a.C., nas Dionísias, ganhando o segundo prémio174. Os estudiosos continuam a debater qual a análise crítica correcta desta peça. Ainda hoje não existe um consenso. Esta é a única comédia aristofânica cujo tema não é facilmente definível. Uma justificação simples pode ser encontrada na necessidade de afastamento da cidade poluída que seria Atenas, sendo a contemporaneidade ateniense e o seu quotidiano os panos de fundo desta comédia. Esta peça insere-se num contexto onde os comediógrafos se sentiam algo oprimidos pela força de um decreto com autoria de Siracósio, escrever uma peça como Os Cavaleiros, onde se ataca de forma focada uma figura política seria desajustado e arriscado175. Isto não significa que existia um afastamento da necessidade de exercer o seu comentário social, de pensar no seu público e de o educar. Esta peça oferece uma oportunidade de reflexão colectiva. A democracia ateniense vivia no seu expoente máximo expansionista. O que justifica a expedição de Alcibíades, que foi amaldiçoada na sua véspera por uma mau presságio – as estátuas fálicas de Hermes haviam sido castradas. Isto foi um escândalo que afectou profundamente o General sendo perseguido e vendo-se obrigado a partir de Atenas e refugiar-se em terreno inimigo sobre a asa espartana. É no momento em que a campanha se mostrava difícil e dispendiosa que Aves aparece. Muitos esforços e poucos resultados levaram a uma derrota incomensurável. A dúvida sobre o valor da sua própria sociedade instalava-se na mente dos poetas. A. Komornicka176 sumariza duas perspectivas analíticas do significado da obra. Uma perspectiva alegórica à contemporaneidade grega, onde cada personagem ou cena se liga à vida ateniense; outra vê esta obra como uma construção propositadamente fantasiosa, onde a referência ao mundo real é substituía por uma utopia de pureza e felicidade. A professora Maria Fátima de Sousa e Silva indica a possibilidade de 174

DOVER, Op. Cit.; p. 140. Ver O Solitário; fr. 26k. Sobre a possível imunidade do poeta e as limitações a si dirigidas, cf. SILVA, M. F. Sousa; Crítica do Teatro na Comédia Antiga; Coimbra; 1987; [s.n.] pp. 44-51. 176 KOMORNICKA, A; Métaphores, personnifications et comparaisons dans l’oeuvre d’Aristophane; Cracóvia; 1964. Cf. WHITMAN, C. H.; Aristophanes and the comic hero; Cambridge; 1964; pp. 167-169. 175

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existência das duas perspectivas, visto poderem ser parcelares dentro da realidade da peça. Nefelocucolândia ou Vila Nova dos Cucos é assim a “réplica caricatural de Atenas” que veste o fato do fantástico, projectando ao espectador a ideia de realismo fantásticometafórico. Os dois protagonistas são Pistetero e Evélpides que tentam desenvolver uma nova sociedade localizada entre humanos, aves e deuses 177 . Estes dois homens apresentam-se como suplicantes, sendo contra o flagelo dos processos judiciários 178 , contra a rotina diária do ateniense, pretendem descobrir uma sociedade paradisíaca. É aqui onde se localiza o motivo profundo da peça, que se percebe como sendo uma sátira do espírito ateniense num amplo mais abrangente e não na perspectiva individual. Pistetero é ousado, criador, oportunista, capaz de apresentar e defender as suas próprias ideias; enquanto Evélpides será aquela personagem menos clarividente que se deixa enganar pelas jogadas políticas. Assim percebemos que o autor nos quer oferecer uma imagem fantástica da Atenas do século V, criticando-a através da criação de uma narrativa que deve ser vista, não nas suas particularidade, mas na sua totalidade com a qual podemos perceber, talvez, o verdadeiro intuito. É uma obra que junta caricatura social com “momentos poéticos de puro bucolismo” 179 . É também uma peça paradigmática no sentido em que almeja alcançar, através do sonho de grandeza de Pistetero, um espírito ático de ambição expansionista sem fim, desta feita, bem-sucedido. No excerto que se segue 180 podemos assistir a um diálogo entre múltiplas personagens. Duas delas funcionam como as que têm a conversa séria, necessária para o desenvolvimento do enredo, as outras duas como comic relief, não tendo qualquer outra função que não provocar o riso no espectador. Para tal usam-se duas personagens muito conhecidas do mundo da Comédia grega: Héracles, o herói glutão, o brutamontes estúpido (aqui traduzido como Hércules) e Tribalo, o estrangeiro que ninguém consegue entender. Em papel a cena pode perder um pouco da sua piada, mas pensamos que será possível perceber o ritmo cómico do autor usando o comportamento relacional deste grupo de personagens.

177

Tema que seria comum na Comédia Antiga, sobre isto ver Plutos de Cratino; Anfitriões de Teleclides; Animais de Crates; e Peixes de Arquipo 178 ARISTÓFANES; As Aves; Vv. 39-41, 110. 179 SILVA, M. F. Sousa; Op. Cit; p. 17. 180 ARISTÓFANES; Op. Cit.; vv. 1563-1617.

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(Chegam Posídon, Hércules e Tribalo) POSÍDON Cá está a famosa cidade, a Nefelocucolândia, aonde nos dirigimos em embaixada. (a Tribalo) Ei, que estás a fazer? Pões a túnica da direita para a esquerda? E se a pusesses da esquerda para a direita, assim, seu palerma (procura compor-lhe a túnica) […] (a Tribalo que lhe dificulta a tarefa) Raios te partam! És de longe o deus mais bárbaro que já vi em toda a minha vida. (voltando-se para Hércules) Bom, que vamos fazer Hércules? HÉRCULES Já te disse: estou disposto a apertar as goelas a quem quer que seja que bloqueou os deuses com as muralhas POSÍDON Esqueces-te, meu caro, que nos elegeram embaixadores para negociarmos um acordo. HÉRCULES Mais uma razão para eu lhe ir às goelas. (Pistetero regressa com os escravos, munidos de apetrechos de cozinha e com algumas aves já prontas para cozinhar) […] POSÍDON Olha lá, amigo, mortal como és, aceita os cumprimentos de nós os três, que somos deuses. PISTETERO (fingindo-se muito ocupado) Estou a ralar o sílfio. HÉRCULES (que se aproxima) Estas aqui, que carnes são? […] PISTETERO (que identifica Hércules imediatamente) Olá, Hércules. O que há? POSÍDON Estamos aqui como embaixadores, da parte dos deuses, para acabar com a guerra… PISTETERO (aos escravos, sem prestar atenção a Posídon) Não há azeite na almotolia. […] 70

POSÍDON … porque, do nosso lado, não temos nada a ganhar com guerras. […] PISTETERO Bom, o caso é que não fomos nós a começar a guerra convosco, e estamos dispostos, desde já, se se assentar nisso, a fazer a paz, desde que de vosso lado se disponham a agir dentro das regras da justiça. […] HÉRCULES Por mim, é quanto basta. Voto a favor… POSÍDON (a Hércules) O quê, miserável? Isto é que tu és um asno! E guloso como não há outro! Propões-te tirar a soberania ao teu pai? PISTETERO E então? Já repararam que vocês, os deuses, só ficavam a ganhar, se as aves governassem lá em baixo? […] POSÍDON Por Posídon! Caramba, tens razão! HÉRCULES Também acho. PISTETERO (a Tribalo) E tu, que dizes? TRIBALO Nabaisatreu. HÉRCULES Estás a ver? Ele também está de acordo.

Peças Específicas - Vespas Vespas dramatiza os esforços de um jovem ateniense em afastar o seu pai do vício em participar nos tribunais dos júris, convertendo-o aos prazeres aristocráticos do simpósio (ou “banquete”). A caracterização exagerada do velhote feliz com o sistema de julgamentos, de nome Filócleon, representa, ao mesmo tempo, um herói dos júris indigentes, e um dono de casa com ligações, através do seu filho, ao círculo da elite

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política de Atenas. Esta peça será, portanto, uma crítica ao sistema jurídico-democrático que funciona como um foro para a uma postura auto-indulgente. Produzida em c. 422181 nas Leneias, conseguindo o segundo lugar182, Vespas foi representada no ano seguinte ao insucesso da segunda representação de Nuvens. Esta peça teve um grande êxito, apesar de ser uma sátira à maneira como era administrada a justiça pelos atenienses. Péricles havia dado aos atenienses uma extraordinária prosperidade económica, mas a guerra do Peloponeso consumiu as receitas do Estado, fez suspender as obras públicas em curso; o território da Ática foi assolado; o trabalho dos escravos fazia uma concorrência esmagadora ao trabalho livre. Os tribunais e a assembleia do povo esvaziavam-se por não existir disponibilidade horária da parte dos cidadãos assalariados. Péricles tentou resolver o problema oferecendo aos participantes o subsídio de um óbolo por cada sessão em que tomassem parte. Agírrio estendeu esse benefício à eclésia. Na época em que foi representada esta peça, o subsídio era de três óbolos183. Contudo este salário só estava disponível aos primeiros que compareciam e não a todos, por não existirem receitas públicas suficientes. Todos os cidadãos maiores de 30 anos podiam exercer as funções de juiz. Estes eram designados pela sorte entre as dez tribos da cidade, sendo também escalonados à sorte pelos dez tribunais de Atenas (não contando o Areópago). Esta extensão dos direitos políticos era uma arma poderosa disponível ao povo, que nem sempre a usava correctamente. “Quando as funções judiciais ficam sob a tutela da política, os juízes perdem a sua integridade e a justiça torna-se uma palavra vã. Foi o que sucedeu em Atenas”184. O comentário desta comédia relaciona-se com o apontar destes abusos, onde se podia encontrar irresponsabilidade dos juízes e arbitrariedade de sentenças, chegando-se ao ponto de anular testamentos. Bdelícleon pretende afastar o pai dos tribunais e tranca-o em casa, vigiado pelos escravos, para o impedir de comparecer no tribunal onde exerce as funções de juiz. O idoso tenta ingloriamente fugir pela chaminé. Antes do amanhecer um grupo de juízes passa pela casa de Filócleon, o idoso, para irem com ele como de costume, para o tribunal, vêm todos mascarados de vespas e armados de aguilhão – o símbolo das

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A. Lobo Vilela sugere antes a data de 423, período em que Cléone ainda era vivo, sendo a comédia anterior à batalha de Anfípolis, no nono ano da Guerra do Peloponeso. Cf. ARISTÓFANES; Trad. de A. Lobo Vilela; As Vespas; Editorial Inquérito; Lisboa; 1990. 182 DOVER, Aristophanic Comedy; p. 121. 183 ARISTÓFANES; Op. Cit.; p. 20. 184 Idem, Ibidem; p. 20.

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funções que exercem. É este grupo que forma o coro e dá o nome à peça. Filócleon implora o seu auxílio, mas os escravos intervêm para lhe impedir a fuga. Bdelícleon procura resolver a questão convencendo o pai e os restantes juízes de que são escravos dos demagogos e não detentores de um poder, como pensam ser. Decide-se então organizar um tribunal, doméstico, para julgar todos os delitos da casa. Filócleon concorda. Assim, improvisa-se um tribunal e procede-se ao julgamento do cão Labes que tinha roubado um queijo. Esta cena é uma sátira contra Laques, comandante da frota enviada à Sicília e acusado de peculato. Instruído o processo e ouvidas a acusação e defesa, o juiz resolve condená-lo, mas, lançando o voto, por equívoco, na urna das absolvições, vê-se forçado a absolver o réu. Bdelícleon consola o pai e incita-o a levar uma vida menos austera. Filócleon perde, deste modo, o seu antigo rigorismo. Integrado nos prazeres mundanos, torna-se libertino. A peça termina com danças, à maneira das peças de Frínico, e com sátiras a Cárcino e aos filhos. Nestes excertos

185

participam os dois personagens principais Filócleon,

partidário de Cléon e Bdelícleon, adversário de Cléon. A escolha dos nomes seria mais uma das muitas sátiras que o poeta fez a Cléon, nesta e noutras peças, nomeadamente a peça perdida Babilónios. Em seguida encontram-se três vislumbres à primeira cena de prisão de Bdelicléon. A piada está no contexto narrativo onde os participantes se encontram. O poeta perguntou: como posso criticar os tribunais num episódio divertido? Foi esta a sua resposta. Há que referir uma das “invenções linguísticas” de Aristófanes. Seria também muito engraçado ver um escravo a comportar-se como superior a um cidadão ateniense, chegando mesmo a bater-lhe, como o diálogo final sugere.

BDELICLÉON Depressa, venha cá, um de vocês. O meu pai entrou no forno e esgaravata como um rato, oculto num buraco. Tu, tem cuidado não fuja ele pelos canos dos banhos; e tu fica encostado à porta. […] FILOCLÉON Que pretendem vocês, patifes? Não me deixam ir julgar? Dracôntides vai ser absolvido. BDELICLÉON Isso aflige-te muito? FILOCLÉON

185

Idem, Ibidem; vv. 125-400.

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O deus de Delfos respondeu-me uma vez que eu morreria quando um acusado escapasse das minhas mãos. BDELICLÉON Oh! Apolo salvador! Que oráculo! FILOCLÉON Vamos, vê se me deixas sair; não me faças rebentar aqui. BDELICLÉON Não, Filócleon, nunca mais, por Posídon! FILOCLÉON Pois bem, roerei a rede com os dentes. BDELICLÉON Dentes? Tu não os tens. *** CORO Quem te prende assim e te fecha as portas? Fala, somos teus amigos. FILOCLÉON É o meu filho: não falem alto, que ele está a dormir na parte da frente da casa; falem mais baixo. CORO Mas, pobre homem! Que quer ele proibir-te? Que pretexto invoca? FILOCLÉON Ó meus amigos, ele não quer deixar-me julgar nem pronunciar condenações. Quer fazer-me viver bem e eu não quero. CORO Esse patife, esse Demolococléon186 tem semelhante audácia por tu dizeres a verdade a respeito da frota? […] Mas é tempo de pensarmos no meio de te darmos fuga, fazendo-te descer daí. FILOCLÉON Como? Vejam lá; concordo com tudo, tal o meu desejo de percorrer as bancadas com a a minha concha187.

186 187

Exemplo de nome inventado por Aristófanes, que é em si uma ofensa a Cléon. Onde se inscreviam os votos

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CORO Não haverá aí dentro buraco por onde possas evadir-te, disfarçado com andrajos como o astuto Ulisses? FILOCLÉON Está tudo tapado; nem um mosquito encontraria por onde passar. […] CORO Vê então se descobres depressa qualquer outro artifício, porque está a amanhecer, doce amigo. FILOCLÉON Tenho que roer o laço. Que a deusa da caça me perdoe! *** SÓSIO Que foi? BDELICLÉON Parece-me que oiço vozes. SÓSIO Será o velho que quer raspar-se? BDELICLÉON Está a descer por uma corda SÓSIO Desgraçado! Que fazes tu? Não te atrevas a descer. BDELICLÉON Vai depressa à outra janela e bate-lhe com este ramo seco, para o obrigares a arripiar caminho.

Peças Específicas - Pluto Pluto (ou A Riqueza) funde duas concepções diferentes de um mundo melhor. Uma delas assenta na redistribuição de riquezas por apenas alguns, a outra olha para uma Idade de Ouro na qual os ganhos eram predominantes e a escassez é uma inexistência, todos podem prosperar. A interpenetração nestes dois temas permite a Aristófanes transmutar o problema da iniquidade social, para uma fantasia colectiva de abundância. Esta peça foi produzida em 388 a.C., não sabemos em que festival e com que sucesso, temos conhecimento de uma representação anterior, em 408, de uma peça com 75

o mesmo nome. Este é o último trabalho completo que sobreviveu de Aristófanes. Trinta e sete anos tinham passado da sua primeira produção: Os Acarnenses. Este espaçamento temporal trouxe profundas transformações à sociedade ateniense, algo que se reflecte no trabalho do comediógrafo. As alusões políticas, o comentário à vida pública citadina, o apontar o dedo a uma individualidade célebre são uma inexistência no conteúdo temático da peça. Interessa sim o cidadão desconhecido, a sua felicidade e ambições pessoais. Não se fazem referências à política da cidade-estado, apenas ao dano que o degradante estado económico teve neste homem comum. Esta terá sido, segundo Costa Ramalho, a principal razão para a perduração do interesse em Pluto. Por estas e outras características este trabalho poderá ser encaixado na prateleira da Comédia Média. O coro já não tem um papel central no enredo, recitando apenas um texto, em ritmo próximo do lírico, sendo os outros apenas divisões, intervalos, uma actuação coreográfica que não tinha texto escrito, não influenciando a acção. O carácter individual das personagens também muda. Gilbert Murray refere que a Mulher de Crémilo “[…] é a primeira personagem feminina, cómica, da Literatura Grega, isto é, a primeira mulher que tem graça, não por ser mulher, mas pelo seu carácter” 188 . O escravo Carião, que será personagem recorrente em Menandro, é também uma presença na peça, iniciando-a, expõe um trecho narrativo - “a única cena de Pluto, que ainda é inteiramente digna de Aristófanes”189, e dialogando com Hermes na parte final da peça. O sentido agudo de produção cómica aristofânica está aqui muito apaziguado. Existe uma diminuição, por exemplo, de palavreado inventado de modo a provocar o riso. Esta percepção arguta para a criação de comédia é substituída por uma observação calma e reflectida da vida, apanágio da Comédia Nova. Serão estes traços um sinal de envelhecimento e decadência artística do poeta ou a construção de um caminho em direcção a uma nova forma de comédia? Tendemos, ao contrário do que acontece com estudiosos de Aristófanes 190 , a concordar com a segunda perspectiva. Pluto teve uma enorme popularidade na Antiguidade, no período medieval e continuava a ser lida e traduzida no período

188

MURRAY, Gilbert; Aristophanes. A Study.; [s.n.]; Oxford; 1933; pp. 203-204. FRAENKEL, Eduard; Beobachtungen zu Aristophanes; Edizioni di Storia e Letteratura; 1962; p. 154. Discurso feito por Carião em ARISTÓFANES; Pluto; vv. 653-759. 190 Como excepção à regra podemos dar o exemplo de EHRENBERG, Victor; The People of Aristophanes; [s.n.]; Oxford; 1951; p. 69. 189

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moderno 191 . Este será um dos perigos da categorização histórica, extremamente necessária a nível organizativo, mas que pode oferecer uma perspectiva divergente, actual, do significado da peça no contexto em que foi produzida. Uma rua de Atenas, ao fundo com a casa do agricultor Crémilo, é o cenário que se mantém ao longo da peça. É este o seu protagonista, ao qual se juntam outras personagens, o já referido Carião e um velho esfarrapado, que se vem a descobrir, ser Pluto, o deus da Riqueza, encontrado cego por ter tentado beneficiar apenas os homens justos, algo que Zeus não admitia. Toda a peça tem como núcleo central a riqueza, algo intemporal no pilar económico do funcionamento de uma sociedade, o que talvez explique a permanência da peça ao longo dos tempos. Crémilo leva Pluto ao templo de Asclépio para curar a sua cegueira. O pobre camponês e o seu escravo (homem livre que ganhou esta condição ao contrair uma pequena dívida) vêem uma oportunidade de se tornarem homens financeiramente abastados. A pobreza personificada vem dissuadi-los da loucura que é tornarem-se ricos, argumentando que foi a pobreza a grande motivadora dos progressos da civilização. Eles não se deixam convencer e prosseguem com a sua missão de devolver a visão a Pluto. Quando o deus recupera este sentido lamenta o facto de ter favorecido os maus, por ser cego, pelo que de futuro, só ajudará os que merecerem. A casa de Crémilo passa a viver em fartura. Seguem-se uma série de cenas onde se mostram as consequências deste acto. Uma delas apresenta uma velha impecavelmente vestida mas muito triste, pois o seu jovem apaixonado abandonou-a, sem precisar do seu dinheiro, já não havia razão para permanecer com ela. Outra cena mostra Hermes a pedir esmola, pois até os deuses foram afectados, visto que os homens já não pediam seu auxílio, já não lhes faziam oferendas em troca da protecção divina. O deus detentor de muitos títulos, e portanto de muitas capacidades, vai trabalhar para a cozinha onde pode desde logo saciar a sua fome. Barkhuizen 192 diz-nos que está presente na peça um motivo central de ilusão contra a realidade, i.e., a ideia utópica de que o enriquecimento dos homens os torna felizes ou melhores será apenas uma ilusão que a realidade desmente, visto que não existe “relação entre a virtude e a riqueza e a pobreza”. Uma ideia que pode ser

191

Cf. ARISTÓFANES; Pluto (A Riqueza); Trad. e Intro. Américo da Costa Ramalho; textos clássicos – 11; INIC – CECHUC; Coimbra; 1982; pp. 11-13. 192 BARKHUIZEN, J. H.; “The Plutus of Aristophanes”; Acta Classica XXIV; Cape Town; 1982; pp. 17-22.

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interessante, mas que não deve ser separada do intuito máximo de qualquer peça cómica: o simples facto de se querer provocar o riso. No excerto que se segue193 temos um diálogo entre um deus e um mortal, a piada está na desempenhar de um papel inverso ao que é normal. É o deus o pedinte e o escravo o senhor. Pode-se observar tanto aqui como em toda a peça o tema da riqueza vs. pobreza, neste caso em específico, critica-se o anterior poder dos deuses, possível devido à fidelidade humana. Faz-se a pergunta: quem eram os deuses sem os homens? Mais uma vez se nota alguma semelhança com Eurípides com a exploração de temáticas que podem ser consideradas irreligiosas. Há também que apontar o elemento permanente do grosseiro, sobrevivente da Comédia Antiga.

HERMES […] Na verdade, desde que Pluto começou a ver, ninguém sacrifica nem incenso, nem louro, nem bolos sagrados, nem vítimas nem mais coisa nenhuma a nós, os deuses. CARIÃO Não, por Zeus, nem virá a sacrificar, porque vocês no passado mal se preocupavam connosco.

HERMES Mas com os outros deuses pouco me ralo, eu é que estou perdido e destruído. CARIÃO Pensas Bem. HERMES Dantes, eu recebia das estalajadeiras tudo quanto é bom. Logo desde a manhã, bolo de vinho, mel, figos secos, quanto é natural que Hermes coma. Mas agora, com fome, deito-me de pernas para o ar. CARIÃO E não é justo, a ti que nos impunhas multas por vezes, apesar de receberes tais bens? HERMES Infeliz de mim, ai do bolo que me coziam no quarto dia do mês! CARIÃO «Desejas o que não existe e em vão o chamas».

193

ARISTÓFANES; Op. Cit.; vv. 1114-1135.

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HERMES Ai de mim, ai da coxa que eu devorava! […] HERMES Ai de mim, ai do cálice temperado em partes iguais! CARIÃO Engole este (Larga um peido) e vai-te depressa. […]

Existe assim um ímpeto igualitário e utópico, que consegue imaginar um ideal de cidadania universal (a igualdade das mulheres, a emancipação dos escravos, ou a abolição de propriedade e divisão de classes). O período em que espartanos e atenienses se uniram contra um inimigo comum existente no que era a ameaça persa. Estes tempos são aludidos em Vespas, com o seu coro idoso, e em Rãs com a poesia de Ésquilo. Em Pássaros, a aspiração a uma identificação comunal é percebida através da população de pássaros, cuja forma de vida se demarca pela abstenção de dinheiro ou propriedade. Esta fantasia utópica é liberalizante e, ao mesmo tempo, conservadora, no sentido em que se inspira na ideia de igualdade humana através de um desejo nostálgico por tempos mais simples que, contudo, não impõe uma alternativa viável às hierarquias presentes na vida da cidade-estado. As comédias de Aristófanes combinam, assim, um universalismo idealístico que se liga às hierarquias e divisões tradicionais. Isto é percebido através da contrariedade e exagero manifestados no enredo e personagens.

Menandro Influência do contexto político-social na sua Vida e Obra Menandro era um poeta ateniense que viveu por volta de 314-291 a.C., em Suda é-nos dito que ele provinha de uma família local, distinta e abastada. Contudo, “todas as informações relativas à sua vida pessoal e teatral são discutíveis”194. A sua primeira peça intitulou-se Ira, e estreou em c. 320 a.C., até ao final da sua carreira terá composto

194

MENADRO; Intro., Trad., e notas de Mª de Fátima Sousa e Silva; Obra Completa; FLUC; Imprensa nacional-Casa da moeda; Lisboa; 2007; p. 7.

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mais de cem obras teatrais. O poeta teve muito mais sucesso depois de falecer, visto que em vida terá ganho apenas oito vezes195. O valor cultural e a sensibilidade dramática que tinha deviam-se muito à sua formação educacional. O autor estudou ou teve ligação com o Liceu de Aristóteles e os seus membros. Alexis é apontado como o seu mestre196, possivelmente, por partilharem os mesmos traços e interesses literários. O futuro deixou espaço para a inclusão desta figura na História, não só como inspiração principal para os poetas cómicos latinos como Plauto e Terêncio, mas também como um homem preocupado, interessado e participante activo na cultura da sua época. Tal como referimos na primeira parte do presente trabalho, as peças de Menandro apenas recentemente foram descobertas. Rapariga de Samos, Mulher do Cabelo Rapado e Arbitragem são nomes de peças que foram parcialmente reveladas em 1905. Só quarenta e quatro anos depois, em 1959, é que nos chegou a primeira peça completa: o Misantropo. Os papiros descobertos no Egipto, onde estavam presentes estes trabalhos, são fontes inalteradas pelos tradutores e editores medievais. Isto não significa que Menandro seria um nome desconhecido antes destas descobertas, apenas não era tão bem percebido como o pode hoje ser. Os papiros encaixam cronologicamente entre o século III a.C. e o século V a.C. A Comédia Nova apesar de ter sido um género popular no seu tempo, não tem o mesmo respeito, pela comunidade científica, ou apreciação, pelo público actual. Muito disto se explica pela enorme influência de Aristófanes neste género, mas também por não se ajustar ao pensamento destas futuras sociedades. Mas algo é indelineável, o facto de ser instrumento para perceber as especificidades de um período na história da Grécia. Mais se acrescenta que é uma marca do desenvolvimento da Comédia como género e que, como se perceberá na terceira parte do trabalho, ainda influencia muita comédia na Idade Contemporânea. A Guerra do Peloponeso tinha terminado, os princípios democráticos, prestigiantes de Atenas cessaram de existir. A crise política instalou-se. Este que tinha sido um tema permanente na Comédia, de modo a instruir os espectadores, não se conseguiu perpetuar, o género teatral não resistiu ao desmoronar das bases em que assentava. Já em Aristófanes se via o espectáculo, a criatividade, a serem afectados pelos contextos sociais e políticos em que o teatro se inscreve. 195 196

Cf. AULO GÉLIO; 17.4. Cf. SUDA.

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A Macedónia não deixou de aproveitar para dominar o que era uma Grécia dividida. Esta ambição de Filipe II e, posteriormente, de Alexandre não se deixou ficar por aí, levando a cultura helénica a estabelecer contacto com muitas das então sociedades conhecidas. O cidadão grego, deixou de ver na sua polis os limites territoriais, a existência individual foi visualmente redimensionada. Foi a literatura que comentou este traço individualista, muito mais inseguro que o homem grego vivia. Neste âmbito social, será logicamente perceptível a perspectiva de criação de personagens em família: a estabilidade restante. O mesmo se pode dizer da variação do mundo do fantástico para o mundo do real, do quotidiano, isto é, criações com que o espectador se pudesse identificar mais directamente. É interessante como uma percepção global da Humanidade providencia a criação, na comédia, de contextos domésticos que não deixam de ter profundidade dramática.

Temas essenciais A luta pelo amor é o tema que prevalece nas obras de Menandro. Uma relação que termina sempre bem e que traz à família uma nova união que podia não existir antes. Todas as dificuldades que o autor cria ao casal são debastadas por uma conclusão de valentia. O enamorado permanece respeitoso da mulher com quem irá casar. A desconfiança de uma personagem em relação a estes princípios pode levar a uma aliança, depois de esclarecido o assunto. Exemplos deste tema, podem ser encontrados em Misantropo, Escudo, Mulher do Cabelo Rapado e Rapariga de Samos Outro tema recorrente relaciona-se com a identificação dos apaixonados, algo que lhes será desconhecido e só depois revelado. Esta tradição do reconhecimento radica na tragédia, com destaque especial para Eurípides. Em Menandro o tema é aproveitado na representação de um momento de paixão, festivo, que tem uma curta duração, mas que deixa uma prova do amor: uma criança que é abandonada ou entregue aos cuidados de alguém. Este momento é apresentado de forma climática, quando algo indesejável está prestes a acontecer e é impedido pela verdade. Esta pode ser trazida através de um diálogo entre os apaixonados, que se apercebem, ou por semelhanças física ou por memórias que relembram. Outra forma de revelação relaciona-se com os objectos de reconhecimento, usados em particular na comédia. Exemplos deste tema podem ser encontrados em Lavrador, Herói, Arbitragem, Escudo e Mulher do Cabelo Rapado.

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Os apaixonados não serão as únicas personagens que desempenham um papel fulcral no enredo 197 . Está presente também uma terceira pessoa que funciona como obstáculo/conflito. Uma mesma personagem pode ser o pretendente numa peça e o obstáculo noutra198. O conflito geracional é algo frequente na Comédia Nova, com o pai idoso a ocupar este papel, Menandro aproveita para atribuir a esta personagem uma mentalidade rural, de sobrevivência a uma vida difícil, algo que contrasta com a vida na cidade – tema que a Comédia irá, em muitos das suas ramificações, recuperar. Cnémon, que dá o nome à peça Misantropo, é o exemplo perfeito de uma destas personagens. Em Lavrador logramos ver uma das maiores críticas à cidade, afirmando-se que nela se pode encontrar maior pobreza que no campo, visto que se te tornares pobre em espaço urbano, tens de o ocultar, para não afectar a tua reputação 199. A personagem do pai rico também pode funcionar como obstáculo, pois não quer ver o seu filho casar com uma noiva de estrato social ou económico inferior, como se percebe em Calípides de Misantropo, ou o velho pai de Lavrador. Também conseguimos encontrar esta personagem em Rapariga de Samos, Odiento, Mulher do Cabelo Rapado, Arbitragem, Duplo Engano e Herói. Outros exemplos de personagens-obstáculo são os que querem a mão de uma rapariga por esta ter um dote avantajado. Esmícrines, Mosco, Quéreas, em Escudo, Duplo Engano e Arbitragem, respectivamente, são alguns dos exemplos que podem ser dados. Mas as barreiras não se esgotam aqui, problemas judiciais muito específicos à época, como se pode observar em Cartaginês, Arbitragem ou Escudo também podem ser um factor de dissuasão ao amor. A guerra, que era um tema muito comentado na Comédia Antiga, perde alguma da sua participação nestes trabalhos menandrinos. O tipo de guerra já não é o mesmo, antes existia-se num mundo onde se lutava pelos interesses e fortalecimento de uma pátria, agora o mundo está mais aberto, pelo que o que interessa e merece fortalecimento é a ambição pessoal. A personagem do escravo em Escudo é exemplo disso. A articulação de indivíduo com colectivo muda, fazendo emergir uma necessidade preocupação já não com a política, mas sim com o poder financeiro como forma de influência e merecimento. O contraste entre pobre e rico é tema central nesta sociedade. Algo recorrente eram os actos de solidariedade social, os mais abastados 197

Sobre todos os personagens-tipo presentes na Comédia ver primeira parte do presente trabalho e MENANDRO; Op. Cit.; pp. 24-30. 198 GOLDBERG, S. M.; The Making of Menander’s Comedy; [s.n.]; Londres; 1980; p. 20. 199 MENANDRO; Lavrador; vv. 77-82.

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mobilizavam-se para ajudar os necessitados com o oferecer uma panela, por exemplo. Mais do que solidariedade era um dever, uma responsabilidade cívica. Algumas formas de generosidade surgem ou na forma de dinheiro ou em philia, amizade. Este segundo elemento dá origem à personagem do jovem que ajuda o romance a acontecer, presente em Duplo Engano com Mosco e Misantropo com Górgias. Todos estes elementos: o ultrapassar de obstáculos, a paixão nuclear ao enredo, este personagem que serve de propiciador da relação são tudo componentes narrativas que contribuem para o happy ending, que culmina num casamento ou outra forma de consumação amorosa. Com estas características expostas podemos perceber que o autor é um pouco convencional, o que não impede a existência de variedade e espírito criativo. Goldberg, por exemplo, dá valor à construção e organização da história, como algo novo e admirável. Podemos ter uma influência das decisões dos protagonistas usuais – o casal, como essenciais para o decorrer da acção, tal como se vê em Mulher do Cabelo Rapado e Odiento. O mesmo poder de decisão pode ser transferido para os intermediários, como acontece em Arbitragem. Aconteça o que acontecer o espectador podia sempre contar com o final feliz, que se podia fazer representar por múltiplos casamentos. Tal sucede em Escudo, Lavrador, Duplo Engano, Misantropo, Arbitragem, Mulher dos Cabelos Cortados e Siciónio. Menandro e muitos dos restantes poetas da Comédia Nova eram, mais que tudo, criadores de personagens. Autores como Webster e Friedrich têm sugerido uma teoria do “burlesco decrescente” ou do “refinamento de carácter”200, onde apesar de se admitir que existe uma purificação das personagens, também se afirma que o autor propositadamente fazia decrescer elementos cómicos em favor de traços profundos da realidade em que se inscrevia. O autor convencional, aqui não o era, providenciando personagens que seriam, deste modo, novas e interessantes para o espectador.

Elementos Estruturantes do seu Teatro O coro é um elemento teatral que tem sido muito referido ao longo do trabalho. Foi na transição da Comédia Antiga para a Comédia Nova que ele terá desaparecido, contudo, gostaríamos de propor que esta não será a melhor forma de descrever o que

200

MACCARY, W. T.; “Menander’s slaves: their names, roles and masks”; in TAPhA; 100; 1969; pp. 277294.

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não foi tanto um desaparecimento, mas mais uma transformação201. O coro e o lugar que o coro ocupava, permanece, o que acontece é uma alteração no seu intuito, passando a ser uma espécie de interlúdio de diversão entre dois actos, preenchendo uma quebra de tempo na acção. O coro perde o seu papel de influência directa na acção. Isto leva a uma mais ordenada organização de sequência em cinco actos, onde a intriga se vai intensificando até ao ponto climático e o sucesso final subsequente. O coro torna-se num elemento essencial para a formação do esqueleto narrativo que se pretende constante202. Estas mudanças não ficaram por aí, a própria linguagem também não é a mesma, existindo uma maior moderação e uma inexistência de obscenidade. Os raros toques de exuberância podem ser encontrados nas personagens do cozinheiro ou do escravo, mas mesmos estas são representadas de forma comedida. O prólogo, similar ao de Eurípides, é muito usado por Menandro. Tem nele informação expositiva, necessária à inserção do espectador na história e é geralmente proferida em diálogo ou monólogo com, ou de, um deus (a Fortuna no Escudo; Pã no Misantropo e Ignorância na Mulher do Cabelo Rapado), isto talvez se explique por ser pedido, neste tipo de exposição, uma certa clarividência e assertividade que revele o verdadeiro desenrolar do enlace. Isto pode ser visto com a intervenção da Fortuna em Arbitragem, mas também noutras peças como Mulher do Cabelo Rapado, Siciónio ou Aparição. “A antecipação dessa realidade depende, para o público, da omnisciência divina 203 ” algo que é usado em prol da atenção da audiência se focar no caminho até ao desfecho. Devido a algumas das referências que indicámos neste subcapítulo o leitor pode perceber que existe na comédia menandrina um interesse por alguns traços definidores da tragédia: o carácter paradigmático de situações trágicas, o seu artificialismo presente na linguagem. Pretende-se ao recuperar estes exemplos trágicos, não fazer troça deles, mas sim dar lições morais ou simplesmente apresentar um arquétipo de modelos teatrais. Relembrar o discurso do escravo Siro em Arbitragem204, que faz referência aos filhos abandonados do teatro sofocliano 205 ou prestar, simplesmente, atenção às inúmeras recuperações de Eurípides. A introdução destes elementos trágicos não desvirtua as 201

Especificidades sobre a utilização em Menandro Cf. ZAGAGI, N.; The Comedy of Menander; [s.n.]; Londres; 1994; pp. 72-82. 202 Sobre desis e lysis ver: ARISTÓTELES; Poética; 1455b; 24-31. 203 MENADRO; intro., trad., e notas de Mª de Fátima Sousa e Silva; Obra Completa; FLUC; Imprensa nacional-Casa da moeda; Lisboa; 2007; p. 33. 204 Cf. MENANDRO; Arbitragem; vv. 325-337. 205 Cf. SÓFOCLES; Tiro.

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intrigas domésticas de Menandro, como que um adicionar e não uma substituição. A utilização da tragédia per se acontecia quando o poeta pretendia acrescentar tons dramáticos, que apesar de poderem ser rapidamente dissolvidos, não deixavam de oferecer uma maior riqueza literária à peça 206 , pois usava uma maior variedade de “sabores” dramáticos. Isto também prova que o teatro trágico permanecia nas mentes destes homens. Menandro é assim um estudante de teatro, mas ao mesmo tempo um transformador ao explorar processos e efeitos com mais de um século de existência. Ele estudou o teatro cómico e trágico seu antecessor, de modo a retirar modelos constantes e a utilizar técnicas amplamente testadas. Mas Menandro não é unicamente um “copiador”. Ele tem de conhecer o seu público se quiser nele imiscuir qualquer tipo de relação com a peça a que este assiste. O poeta tem de conhecer os problemas que perturbam a Atenas no seu tempo. É aqui que se encontram os ajustes necessários. O teatro menandrino é, concomitantemente, uma representação artística que une a tradição com a inovação. O que Menandro desconhecia era o impacto que estas suas criações viriam a ter. A sua comédia ao existir e ser reconhecida deu origem à comédia latina que por sua vez desencadeou toda uma produção dramática que constitui a história da comédia ocidental207.

Peças Específicas - Discóbolo Em Discóbolo ou Misantropo Menandro explora a complexa representação do velho Cnemo apresentado como um antropófobo, um cínico, e um agricultor em dificuldades. Isto é feito, de modo a dar um exemplo de conflito de classes, sobrepondo tensões entre ricos e pobres, com o misantropismo antagonista em relação a todos, cuja perspectiva tomamos. Cnemo é um bode expiatório, a sua derrota e humilhação reforçam a solidariedade da comunidade, exemplificada num duplo casamento que une uma família rica e uma pobre. Em todas as peças de Menandro o casamento é símbolo de estatuto social e da solidariedade do corpo de cidadãos. Contudo, há membros da comunidade que não podem partilhar estes princípios de reciprocidade conjugal, membros como o misantropo que rejeita qualquer laço social, ou os órfãos e residentes estrangeiros que por falta de estatuto, habitam a periferia do espaço social. 206

Sobre estes acrescentos trágicos ver o discurso de Davo em Escudo, ou a peça Siciónio. Conclusão e ideias inspiradas na introdução da profª Mª de Fátima Sousa e Silva presente em MENADRO; Obra Completa; FLUC e Imprensa nacional-Casa da moeda; Lisboa; 2007; p. 36. 207

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Esta é a única peça cuja datação será a correcta, tendo sido produzida em 316 a.C., é também a única que nos chegou completa não só de Menandro mas de toda a produção pertencente à Comédia Nova. Segundo o gramático de Aristófanes de Bizâncio, que escreveu um argumento a preceder o texto da peça, esta terá sido apresentada nas Leneias, no arcontado de Demógenes, tendo saído vencedora 208 . O enredo desenvolve-se com uma tensão dramática progressiva que se estende ao longo do prólogo, dos episódios e do êxodo. O monólogo expositivo inicial de Pã é uma forma de deixar espaço para a percepção irónica e cómica que se pretende transmitir. Entram em conflito dois elementos, a misantropia de Cnémon e suas consequências contra a história de amor da sua filha. A jovem serve de elo de ligação entre os dois espaçostempos narrativos. O servo Pírrias é uma das personagens que providencia comédia à obra. A sua introdução é feita ao entrar em cena de forma agitada209, pois fugia de um perseguidor que afinal nunca esteve lá, rompendo por uma multidão imaginária, tudo para conseguir contar a Sóstrato e Quéreas, o mau espírito do velho Cnémon. Antes desta cena já tinha existido uma outra, ambas preparam a chegada do protagonista misantropo. Mais se acrescenta que todas as acções dos personagens, como as reacções receosas da filha em relação à simples queda de um balde (cena repetida que tem uma resposta mais feroz cada vez que aparece). As personagens, como já referimos são atributo central em Menandro. Aqui temos as personagens-tipo de dois velhos: Cnémon e Calípides, um pobre e agricultor e o outro rico e citadino; temos a presença de dois jovens também com estatutos sociais igualmente divergentes: Górgias e Sóstrato; a personagem recorrente do cozinheiro, chamado Sícon; os escravos Geta – produto da cidade, Davo – o pobre que odeia a pobreza e Pírrias – o escravo cobarde. Quéreas é identificado como parasita, na lista de personagens, contudo tem poucas ou nenhumas dessas características definidoras sendo mais usado como instrumento cómico, visto ser gabarola mas conseguir alcançar resultados práticos210. Por fim, as duas personagens femininas presentes são a mãe de Sóstrato e a filha de Cnémon. A primeira mais que uma mulher é uma senhora que tem como passatempo preferido fazer sacríficos aos deuses em passeio pela polis, algo que contrasta com a simplicidade da segunda nas suas preces a Pã e às ninfas. É a 208

A profª Mª Fátima Sousa e Silva refere que este texto “acumula imprecisões e deficiências” in MENANDRO, Obra Completa, nota 1 da p. 148. 209 MENANDRO, Díscolo; vv. 81 e segs. 210 Id., Ibid, vv. 58-68 e 126-129.

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camponesa cândida que tem de colocar a vontade dos outros à frente da sua, sendo muito dedicada é também um pouco ingénua, mas a esta personagem também não lhe falta alguma rudeza211 Até ao acto IV Cnémon não cede. Só quase no fim da obra é que tal é possível, devido à personagem de Górgias, que tem junto do padrasto misantropo, um papel conciliador, similar ao de Sóstrato junto ao seu pai, Calípides. São os dois jovens que convencem os dois velhos. Claro que um é mais difícil de convencer que o outro. Só um acidente pôde quebrar a barreira intransponível que era Cnémon, pelo que, não foi sem resultados que Sóstrato teve de labutar no campo um dia inteiro, uma das penas a que voluntariamente se submeteu. Calípides, apesar de discordar inicialmente de recompensar Górgias com um casamento, é persuadido pelo seu filho através do apelo à sua humanidade e sensatez. Podemos, deste modo, encontrar na crescente amizade de Górgias e Sóstrato a chave para abrir a porta da trama. Depois de deixar de haver problemas e todos estarem felizes e a celebrar, o que seria uma boa descrição do V acto, com o banquete nupcial e as duas famílias unidas, só Cnémon se mantém distante das festividades. Geta, mais um dos servos e Sícon, o cozinheiro forçam-no a integrar o grupo, momento em que aproveitam para troçar dele, pois antes, ao pedirem-lhe apenas uma triste panela, foram expulsos e perseguidos. Concluindo, percebe-se que o misantropo acaba vencido, mas não convencido. No excerto entrecortado que se segue212 vemos a tal correria de Pírrias, e o medo antecipado de Sóstrato em relação a Cnémon, o camponês que todos parecem respeitar. Esta é a cena por nós muito conhecida do namorado que quer pedir a mão da namorada, mas tem algumas hesitações. Sóstrato tem tanto receio da reacção que manda um escravo, que como se vai perceber, só vai incutir ainda mais medo no momento do encontro. É muito interessante observar como as falas de cada um dos personagens define não só a sua própria figura, mas também as outras (o que deve ser uma das funções de qualquer diálogo narrativo) ao mesmo tempo que o enredo se move. Na segunda fala de Quéreas temos mais que isso, a apresentação ao público não só de uma personagem, mas de uma personagem-tipo que eles reconheçam: a do camponês. Tudo isto é acompanhado por um ritmo requintadamente equilibrado, que apesar de esfumado, é palpável nas frases seguintes.

211 212

Id., Ibid, v. 202. Id. Ibid., vv. 81-179.

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PÍRRIAS (a correr, esbaforido) Deixa passar, cuidado, sai do meio da rua! Está doido este tipo que vem atrás de mim, está doido!213 SÓSTRATO (surpreendido) O que vem a ser isto, rapaz? PÍRRIAS (sempre em fuga) Fujam! SÓSTRATO O que é? PÍRRIAS Estão a atirar-me com terra e com pedras. Estou perdido! SÓSTRATO A atirar? Para onde vais tu, miserável? PÍRRIAS Será que ele já não vem atrás de mim? SÓSTRATO Ora, ora!

PÍRRIAS Julgava que sim. SÓSTRATO De que é que estás a falar? […] PÍRRIAS Avancei pelo campo dentro e dirigi-me a ele de muito longe. […] e digo: «Venho procurar-te, compadre, tenho pressa de tratar contigo um assunto, no teu próprio interesse.» Mas ele logo: «Safado, avanças pelo meu campo? Que ideia é essa?» Agarra num punhado de terra e chapa-me com ele nas ventas. […] Nem imaginam que desgraça é esta: ele come-nos. 213

Estas cenas típicas da comédia clássica são conhecidas como seruus currens, o escravo que corre, ou escravo corredor. É uma forma cómica e eficaz de transmitir informação útil. Exemplos podem ser encontrados em ARISTÓFANES; Acarnenses, vv.1176 e segs.; Aves, vv. 1122 e segs. PLAUTO; Aulularia, vv. 406 e segs.; ou, entre outros, TERÊNCIO; Andria, vv. 338 e segs.

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QUÉREAS (conciliador) Decerto lá calhou por acaso ele hoje estar aborrecido com qualquer coisa. Por isso, parece-me melhor adiar, ir procurá-lo mais tarde, Sóstrato. Podes ter a certeza de que a oportunidade é a chave do negócio214. PÍRRIAS Tenham juízo QUÉREAS É uma dor de alma, esse pobre lavrador, e não é o único, são quase todos assim. […] SÓSTRATO Mas quem é que te ia bater, sem teres feito nada de mal? PÍRRIAS (em pânico) Aí vem o fulano em pessoa…(a Cnémon) Vou-me já embora, meu rico senhor. (para o patrão.) Fala tu com ele! SÓSTRATO (assustado) Não sou capaz. É que não tenho poder nenhum de persuasão a conversar. [...] SÓSTRATO (à parte) Será que ele me vai bater? CNÉMON Já não se consegue um momento de solidão em parte nenhuma, até mesmo que por acaso uma pessoa deseje enforcar-se. SÓSTRATO É comigo que estás aborrecido? Ó amigo, estou aqui à espera de um sujeito. Marquei um encontro. CNÉMON Eu não dizia? Julgam que isto aqui é um pórtico ou o templo de Leo? É só tratarem de vir à minha porta, se quiserem encontrar-se com alguém. Muito Bem! E construam um banco se tiverem juízo, ou até melhor, uma sala de convívio. Que infelicidade a minha! […] 214

O vício de dar conselhos era uma característica natural do parasita (cf. MENANDRO; Op. Cit.; v. 56), aqui aconselha a não agir.

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Peças Específicas - Perikeiromene Mulher do Cabelo Rapado ou Perikeiromene retracta uma relação de concubinagem entre um soldado profissional e uma “órfã” que acaba em casamento, pois descobre-se que a órfã era descendente de cidadãos. A tensão narrativa está na integridade da jovem, apesar da sua posição social desfavorável. A sua dignidade e autonomia são um modo de censurar a exclusividade arbitrária da comunidade cívica, e de criticar a condição passiva e dependente da cidadã. Através do seu enredo intricado, esta peça trai a contradição existente entre uma intuição de inclusividade utópica baseada nas qualidades de carácter, e as rígidas barreiras de estatuto características da ideologia da cidade-estado. Pode ser cronologicamente datada entre os anos de 314-313 a.C.215. O soldado chama-se Polémon e é ele o protagonista que se apaixona por Glícera, a mulher a quem o cabelo é cortado num episódio de ciúmes. O Combatente achava que ela o traía com o vizinho do lado, Mósquion, um belo e endinheirado homem. Mais uma vez Menandro brinca com os pressupostos. É que o protagonista devia ser mais um dos soldados fanfarrões, brutamontes, ridículo ao expressar os seus sentimentos e um bocado estúpido, mas sempre valente de forma pretensa. Polémon não partilha muito estes traços, pois as suas acções são controladas pela deusa. O objectivo é o desvendar do facto de Glícera e Mósquion serem afinal gémeos que foram expostos e a quem o destino decidiu reunir em harmonia e felicidade, como família que são. Reconhecimento ou identidade levam à reconciliação e ao amor. Pólemon, depois de perceber o seu erro, aceita-o como tal e sente-se profundamente arrependido. Ele não tem sentimentos de ira ou desprezo, mas sim de fragilidade e tenebrosidade. A raiva está presente na sua amada que, apesar de tudo, mantém uma paixão intensa acesa. Tanto o apaixonado como Mósquion têm ao seu lado uma personagem que os apoia. Para o primeiro temos o escudeiro aliado dos seus amores, Sósia, e para o segundo, o servo de nome Davo. A fanfarronice que deveria existir no soldado poderá ter passado para o seu rival, características do parasita serviçal estão presentes no seu escravo. O belo amante começa por parecer ter uma presença irresistível para qualquer mulher e que Glícera é apenas mais uma de muitas. É o papel do jovem previamente criança mimada, que ainda não perdeu essas características, pois quando se defronta

215

WEBSTER, T.B.L.; An Introduction to Menander; [s.n.]; Manchester; 1974; pp. 1-12.

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com verdadeiros problemas pensa que tudo se vai resolver por força do destino, como tal não acontece passa de “don juan bem-sucedido ao amante mais infeliz à face da terra216”. Sempre fortes, consistentes, são as duas mulheres principais da história. Mírrrinia, cheia de firmeza na sua autoridade doméstica e Glícera, que nunca deixa a sua dignidade para trás. A ironia cómica surge quando os dois adversários se decidem enfrentar, não entre si, mas através dos seus servos, os quais escolhem não se debaterem fisicamente, mas sim com palavras. Quando Polémon decide mudar de guerra para diplomacia, também altera o seu representante de Sósia para Pateco, o vizinho mais velho a personagem que vem trazer sensatez à situação. Esta peça é exemplar em relação ao uso do acaso por Menandro. É que Pateco é, não só o reconciliador, o quebrar da barreira, mas também o pai desconhecido de Glícera. O homem mais lógico da peça foi afinal o que cometeu o maior erro. No fim todos os fios se juntam: o pai reunido com os filhos e o namorado com a sua carametade. Mais uma vez o romance termina não com uma, mas com duas bodas, visto que o pai prepara já o casamento de Mósquion, de modo a modelar-lhe os ímpetos juvenis. Pateco é sempre o incentivador da peça. Mas a principal construção poder-se-á encontrar, como começámos por dizer, em Glícera. O respeito e carinho que nunca deixou de ter pelo irmão, a dedicação a Polémon apesar dos ataques e ofensas, a preservação cuidadosa do baú onde guardava as suas memórias de infância, mas mais que tudo, a resiliência que teve em conseguir perdoar todos os que, por falha humana, a prejudicaram. Imprevisibilidade divina e fraqueza humana não chegam para derrotar Glícera. No início do excerto217 temos um bom exemplo da personagem do parasita que, neste caso específico, tenta convencer o seu dono a ir ter com a rapariga que não deu nenhuma prova de desejo ou interesse. Em seguida vemos a previamente referida “luta” entre os dois representantes: Davo e Sósia, servos de Mósquion e Polémon, respectivamente. Denote-se, de novo, o ritmo equilibrado das ofensas recíprocas. Outro elemento interessante é o grosseiro presente em Menandro, não é algo habitual, mas quando o usa, só o faz em personagens socialmente menos elevadas.

216 217

Cf. MENANDRO; Op. Cit.; p. 104. Ver também MENANDRO; Mulher do Cabelo Rapado; vv. 535-536. Id. Ibid.; vv. 338-395.

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MÓSQUION Estás a gozar comigo. DAVO Não estou nada, valha-me Deus! Nem pouco mais ou menos. Ouve só. Pode ser que ela não queria que a coisa se faça dessa maneira, estás a perceber, assim de improviso. Talvez prefira que tu fiques primeiro a para das intenções que ela tem […] Porque não foi na qualidade de uma flautista ou de uma putazinha qualquer que ela cá veio. MÓSQUION Agora sim, caramba, acho que tens razão no que dizes. DAVO (a forjar uma mentira) Podes pô-la à prova. Tu sabes como estas coisas são, penso eu. Ela abandonou a casa – não estou a inventar – e o amante. Se tu quiseres por três ou quatro dias, a fulana está á tua disposição. […] MÓSQUION E se eu te metesse na cadeia, Davo? Fizeste-me andar às e reviravoltas. Ainda há pouco só me dizias aldrabices. E agora já me vens outra vez com histórias. DAVO És tu que não me deixas raciocinar com calma. Muda de atitude. Desanda lá para dentro e porta-te bem. […] (sozinho) Bolas! Pouco faltou para eu ficar sem pinga de sangue. Porque casos destes não são tão fáceis como parecem. […] SÓSIA (que se aproxima com a capa e a espada de Polémon, a falar com os seus botões) Cá venho eu outra vez, de capa e espada em punho, para espiar o que ela está a fazer e lho ir lá contar. DAVO (consigo próprio) Ali o mercenário está de volta. Agora é a coisa vai aquecer, bolas! Vai mesmo! […] SÓSIA (que regressa ainda a reclamar com os criados) Com que então vocês deixaram-na pôr-se ao fresco, maldita cambada de parvos […] ela pisgou-se para casa do vizinho, do amante, já se vê, e a nós mandou-nos bugiar. 92

DAVO O Soldado tem um adivinho de serviço, este sujeito aqui. Acertou na mouche. SÓSIA Vou bater à porta. DAVO (que lhe barra o caminho) Tu, safado, o que queres? Onde vais? […] SÓSIA Meu Deus, que ideia se vos meteu na cabeça? Uma mulher livre, e vocês atrevem-se a mantê-la sequestrada contra vontade do seu dono e senhor? DAVO Que estupor me saíste! Que língua-de-trapos! SÓSIA Que pensam vocês? Que nós não temos tomates? Que não somos homens? […] DAVO Claro que sim, de meio pataco! […] Ó pá, desanda daqui! SÓSIA Esta rapaziada dos comandos, num abrir e fechar de olhos vai arrasar com tudo, mesmo se te parecem gente de meio pataco DAVO Desculpa estava a brincar. Um merdas, isso sim, é o que tu és! SÓSIA Gente polida esta! DAVO Pois olha, não a temos connosco! SÓSIA Ai não! Pois então cá vou eu de espada em punho. DAVO Vai para o raio que te parta! Que eu vou lá para dentro, até tu pareceres… […]

Peças Específicas - Árbitros Em Árbitros, Menandro dramatiza a violação de uma cidadã. O seu marido é assim induzido a deixá-la, ou pelo menos, caminha gradualmente nesse sentido (ele 93

nunca deixa de gostar dela). A dissonância entre a inocência moral da esposa e a resposta do marido ao seu azar são explicitamente realçados na peça. Contudo, a força do argumento tem sido colocada em segundo plano devido a um não apercebimento da real ofensa que leva o homem a reagir de determinada maneira. Uma avaliação correcta 218 da origem da ansiedade masculina aponta para a questão de estatuto do cidadão e a forma como afecta a ideologia da cidade-estado clássica. Esta peça pode ser cronologicamente datada antes de 292 a.C.219. Mais uma vez o enredo da peça desenvolve-se nas dificuldades de um jovem casal em encontrarem equilíbrio e felicidade. Chamam-se Carísio e Pânfila, eles não se identificam um ao outro como violador e vítima, papel que encarnaram nas Tauropólias sem saberem. Esta união indesejada levou à necessária exposição da criança pela parte da mãe. Carísio sentiu desquita pela sua mulher que, na sua mente, tinha cometido um acto adúltero. Um par prestes a separar-se e uma criança abandonada são os ingredientes perfeitos para a poesia menandrina formulaica. Apesar de afastados, vivendo cada um em casas separadas, o casal não consegue deixar de sentir um vazio dentro de si. Carísio deixa-se levar pelo álcool e luxúria que estão presentes na casa do seu amigo Queréstrato. Enquanto Pânfila permanece sozinha, na sua casa, de novo criando-se o papel da mulher injustiçada, desta feita, por ter sido obrigada a abandonar o filho e por ser erroneamente acusada pelo marido que ama. Contudo, temos de ter um diplous gamos (“duplo casamento”) que traga felicidade aos personagens e espectadores. Assim, Queréstrato encontra na meretriz Habrótonon uma paixão intensa, não sem começar por pensar que era ela a mãe da criança (que lhe aparece em casa) pelo que não quer trair a amizade, philia, que tem com o seu melhor amigo Carísio. Será a meretriz que funcionará como desbloqueio de todos os problemas. A cena que dá nome à peça ocorre entre dois servos (similar à da peça anterior), Davo e Siro, que disputam a posse de uma criança encontrada no monte e dos seus objectos de reconhecimento, encontrados por Esmícrines, que se virá a descobrir ser o avô da criança. É também o idoso, quem vai contribuir para a revelação final. A Tyche, o destino, tem um papel primordial nesta peça, é ela quem define a vida de cada um dos mortais. 218

Esta é a opinião que partilhamos com David Konstan e que está presente em KONSTAN; Op. Cit.; p. 10 e pp. 141-152. 219 WEBSTER; Op. Cit.; pp. 1-12.

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Esta peça, em específico, está repleta de antagonismos presentes nas figuras dos escravos; nos amigos, Carísio e Queréstrato – ambos sofrem por amor, um por o ter perdido, o outro por o querer alcançar, mas não poder devido à lealdade. A última dicotomia pode ser encontrada em Pânfila e Habrótonon. A primeira, como já referimos, é a injustiçada, por ter sido violada, por ter engravidado, repudiada, tudo seguido pela ira do seu pai que só se preocupava com o dote e não com o bem-estar da jovem. Mas apesar de todos estes obstáculos, e de novo se repetem ideias, a jovem não se deixa ficar, lutando sempre pela justiça e revelação da verdade, pelo amor que tem pelo seu marido e por um futuro risonho. Resoluta. Em relação à “prostituta”, como Esmícrines lhe chama220, gostaríamos de dar um especial destaque. Habrótonon não é uma simples contradição da mulher de bem, sendo muito mais suave e bem definida que a generalização do idoso sugere. Esta mulher, que tem vindo a ver a sua situação financeira agravar-se, começou por trabalhar como citarista, mantendo a sua dignidade. Contudo, acabou por se ver forçada a vender o corpo. Agora, gosta de roupagem e acessórios caros e gosta de viver sem estar presa por laços familiares. Mas apesar de ter vindo a levar uma complicada vida, sente compaixão pela história da criança abandonada: é ela quem planeia uma estratégia para reunir uma família destruída, não para proveito próprio mas, única e exclusivamente, por bondade. O interesse pelos proveitos é colocado na figura de Onésimo. Ela não é a promotora desta ideia, pensamos ser de enorme relevância esta caracterização, Menandro cria uma personagem que a sociedade repudia e dá-lhe humanidade, através da sua backstory e posterior contubérnio. Digna. Apesar desta criação original, não podem faltar o cozinheiro, Carião; o velho forreta e irritado, Esmícrines, que vai receber uma lição; o escravo coscuvilheiro e intriguista, Onésimo, que irá gozar e dominar o idoso (algo que já vimos anteriormente, numa mensagem que também parece significar que o que está para trás pouco interessa, o relevante é o futuro). A personagem do velho ajuda a definir a personagem da meretriz, visto que, apesar dos seus rótulos sociais, um ser mais decente que o outro. A personagem do escravo é a que inicia todos os problemas, desempenhado o papel de bufo, em relação à gravidez, mas acaba por ajudar também à reconciliação 221. Temos de afirmar que o maior reconciliador, sem qualquer acaso mas totalmente propositado, é Habrótonon. 220 221

MENANDRO; Arbitragem; Fr. 7. Id. Ibid.; vv.384 e segs.

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No excerto que se segue222 vemos parte do início da revelação – descoberta pela meretriz que a divulga ao casal, um de cada vez, e primeiro a Pânfila. Sandbach223 chama a atenção para o tom como se tratam as duas mulheres, primeiro com alguma distanciação e depois como amigas. Habrótonon sempre respeitosa encara com uma Pânfila fria, desconfiada. Isto até ver na criança um objecto reconhecido. Quando a revelação é completada a amizade, das até então inimigas, também o é. De notar a subtileza, sempre presente em Menandro.

HABRÓTONON (que sai de casa de Queréstrato com a criança ao colo, sem reparar em Pânfila ali presente) Vou dar uma volta com ele ao colo, coitadinho, que há já um pedaço que está a chorar. Está-me com algum problema não sei qual. PÂNFILA (à parte) Que deus se apiedará de mim, desgraçada que eu sou? HABRÓTONON (à criança) Meu rico menino! Será que algum dia vais conhecer a tua mãe? PÂNFILA (à parte, enquanto se dirige para casa de Carísio) Vou-me andando para casa. HABRÓTONON (que se aproxima de Pânfila e a detém) Ei, senhora, espere aí um momento. PÂNFILA Estás a chamar por mim? HABRÓTONON Estou. Ora olhe bem para mim. PÂNFILA Conheces-me de algum lado, mulher? HABRÓTONON 222 223

Id. Ibid.; vv.846-878; fr. 8 (184 K). SANDBACH; Menander. A Commentary; [s.n.]; [s.l.]; p. 359.

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(à parte) É esta a mulher que eu vi. (A Pânfila) Viva, minha querida! PÂNFILA Mas quem és tu? HABROTÓNON Dá-me cá a tua mão. Diz-me lá, meu amor, estiveste na festa das Tauropólias no ano passado a assistir ao espectáculo? PÂNFILA (atenta à criança) Mulher, diz-me uma coisa: onde arranjaste essa criança que tens ao colo? HABRÓTONON De entre as coisas que o menino tem com ele reconheces alguma? (Mudando de tom.) Não tenha medo de mim, senhora. PÂNFILA Não és tu a mãe dele? HABRÓTONON Fiz de conta que sim e sem intenção de prejudicar a mãe; foi só para me dar tempo de a encontrar. E neste momento encontrei-a, porque te estou a ver a ti, a mesma que vi também naquela ocasião. PÂNFILA E quem é o pai? HABRÓTONON É o Carísio. PÂNFILA Tens a certeza, amiga? HABRÓTONON Absoluta. E tu não és a mulher dele, que mora aí nessa casa? (Aponta para a casa de Carísio.) PÂNFILA Sou. HABRÓTONON Mulher de sorte! Algum deus se apiedou de vocês os dois. (Ouve-se um barulho do lado de dentro da porta de Queréstrato.) Um dos vizinhos vem a sair. Já se ouve o barulho da

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porta. Deixa-me entrar em casa contigo para te contar, com todos os pormenores, o resto da história. (Entram em casa de Carísio.)

Conclusão: Menandro e Aristófanes

A comédia de Menandro, tal como a de Aristófanes, revela uma tensão entre um impulso universalizante ou utópico e as limitações de práticas sociais. Isto emerge sintomaticamente como falhas na lógica da acção ou como a sobredeterminação de motivos pessoais. Contudo, abandona muito do que é a comédia aristofânica, nomeadamente, no foco que deixa de existir sobre a solidariedade comunal perante guerras e conflitos sociais, consequências de uma deficiência de condição. A função do amor desenfreado na Comédia Nova pode ser vista como uma forma de estabelecer laços relacionais entre fronteiras estatutárias, problematizando assim, a exclusividade das relações sociais presentes na cidade-estado. Em todos estes resumos e excertos existe a ideia de que a comédia grega se reproduz em tensões que se alternam entrando na ideologia da cidade-estado antiga. Aqui ideais de harmonia social que assentam em imagens de uma Idade do Ouro e noutros emblemas de colectividade entram em conflito com um sistema de valores em competição e práticas exclusivas baseadas em classe, estatuto e género. John Brenkman diz-nos que “o dialecto social da arte, não surge do conflito entre uma realidade dividida e um trabalho unificado, tomando antes a forma de conflitos existentes no próprio trabalho, incluindo o conflito entre a sua unidade e divisão”224. A possibilidade de uma significância verdadeira (desvendável apenas no trabalho do espectador tornado crítico) existe, deste modo, na linguagem que é carregada e estilhaçada por um repertório de significados históricos sedimentados na ideologia social. Brenkman diznos que a poesia funciona “pelas suas conexões concretas, como prática linguística que é, com os seus contextos sociais relevantes”225. O contexto social da comédia aristofânica era a cidade-estado em guerra e no pós-guerra. A Guerra do Peloponeso foi travada ideologicamente tanto como uma luta de entre classes, cidades e etnias. Problemas de solidariedade e identidade cívica em 224 225

BRENKMAN, John; Culture and Domination; Cornell University Press; Nova Iorque; 1987; p. 108. Idem, Ibidem.; p. 109.

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Atenas eram cruzados com temas de unidade pan-helénica. As visões cómicas de paz e prosperidade podiam criar alguma pressão nos códigos restringentes da cidadania ateniense. Nas peças de Aristófanes, ideais integradores tendem a ser associados com uma liderança política moderada que representa as famílias estabelecidas de Atenas. Este autor pode construir uma fantasia cómica de sociedades sem classes, sem fronteiras, mas deixa intacto o padrão de diferenciação cravado na “prática linguística” ateniense. Como já se referiu neste trabalho, durante grande parte da vida de Menandro, a política ateniense estava aos cuidados de líderes impostos ou suportados por poderes estrangeiros, assim, um dos temas mais prevalecentes na comédia deixou de existir. O esforço foi redireccionado para contextos domésticos, centrando-se nas relações entre homens e mulheres de estatutos ou classes diferentes, podendo ainda concentrar-se nos códigos de propriedade que tinham a sua base nas regras de cidadania da cidade-estado. Davies 226 sugere que a preocupação com o estatuto cívico presente em Menandro nasceu da perda ateniense sob o controlo dos critérios da sua cidadania no fim do século IV a.C., e que os seus enredos haviam sido construídos para aliviar ansiedades criadas pela perda de estatuto. No fim, identidades verdadeiras são descobertas. A atmosfera apaziguadora da Comédia Nova também tem sido apontada como causa da mudança de audiência, que passa a ser muito mais conservadora. Estas famílias de uma classe média ou alta queriam ser entretidas, mas mais que isso queriam sair do teatro bem-dispostos, com a ideia de que as relações apesar de falíveis, podem sempre correr bem, ideia que assenta no princípio do final feliz, onde se celebra e cimenta a unidade familiar227. Ao identificar estrangeiros, órfãos, e escravos como cidadãos atenienses, Menandro está não só a reafirmar uma identidade local, mas também a induzir à ideia de que pessoas divididas por barreiras estatutárias partilham uma natureza comum. Apesar de se poder chamar “conservadoras” às peças de Menandro, há que notar uma igual necessidade de afirmar esta sublime mensagem de debilitação da exclusividade e privilégios presentes na cidade-estado. O autor aponta para uma concepção de identidade grega mais vasta. Tanto a comédia de Aristófanes como a de Menandro são produtos de um mundo de comunidades agrárias nas quais a participação na política é constituída pelo acesso a propriedade e a laços familiares. As ideias utópicas de inclusão 226 227

DAVIES, John K.; “Athenian Citizenship” in Classical Journal 73; 1977-78; pp. 113 e 114. ARNOTT, W. Geoffrey; “Moral Values in Menander”, in Philologus 125; 1981; p. 215.

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independentemente de estatuto ou classe têm de ser contextualizados nesta estrutura ideológica antiga. Apesar de todas as diferenças que estes dois tipos de comédia têm, as contradições que manifestam em “lapsos” de coerência narrativa e as motivações multiplamente determinadas das personagens são sintomáticas de uma problemática partilhada. A comédia antiga encena as tensões inerentes à identidade colectiva da cidade-estado clássica. Este género da Antiguidade vai ser, na sua posterioridade, inúmeras vezes readaptado, sendo a sua função, contudo, também transformada. “ […] Algumas formas artísticas, como o retrato do drama grego, são criadas e determinadas por circunstâncias históricas específicas, mas tornam-se a propriedade geral de tradições subsequentes”228.

228

HAYNES, Jonathan; The Social Relations of Jonson’s Theater; Cambridge University Press; Cambridge; 1992; p. 12; Cf. WILLIAMS, Raymond; The Sociology of Culture; Schocken; Nova Iorque; 1982; p. 137 e 150.

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III PARTE – A PONTE CINEMATOGRÁFICA “Tragédia é quando eu corto o meu dedo. Comédia é quando tu cais num buraco e morres.”

Mel Brooks

O intuito do trabalho - explanado na introdução, será complementado com este capítulo. O objectivo será descrever alguns exemplos em relação a diferentes formas de fazer comédia. Não se pretende escrever uma História da Comédia Contemporânea, apenas fazer incidir o foco em elementos, obras e autores cómicos, que percorreram os séculos XX e XXI, e que partilham, conscientemente ou não, traços cómicos da Antiguidade.

Slapstick – Uma Influência da Comédia Antiga

Uma Comédia Física Slapstick é um tipo de humor que envolve actividade física exagerada, é um tipo de comédia física focada na manipulação do corpo para efeito humorístico 229 . O princípio que gere o slapstick assenta na tensão básica entre ter o controlo e perdê-lo. É precisamente esta resistência que torna a capitulação mais engraçada. Uma tarte na cara ou o escorregar numa banana, só tem efeito cómico, se o sujeito receptor estiver esforçadamente aprumado e se se deslocar a uma marcha dignificante, respectivamente. O objectivo está no contrastar do antes com o depois. Este truque não precisa de ter uma curta duração, ao prolongar mais um pouco, também se acresce a necessidade do espectador em rir. Paradoxalmente, quando o vemos a actuar (e é quase sempre um “ele”) parte do nosso divertimento está na sua capacidade de controlar este descontrolo. Mesmo quando a sociedade está um caos e tudo à sua volta se desmorona, sendo pobre, esfomeado, ou proscrito pela sociedade, a sua dignidade e os seus escrúpulos mantêmse. Um dos paradigmas poder ser encontrado na personagem-tipo, the tramp, de Charles 229

“slapstick” in The Free Dictionary; disponível em http://www.thefreedictionary.com/slapstick [retirado a 04/01/17].

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Chaplin. Em The Gold Rush, de 1925, ele tem de comer o seu próprio sapato, nunca deixando de segurar os talheres de forma delicada.

Ilustração 23 - Harold Lloyd em Safety Last!, na que é considerada uma das cenas mais perigosas de executar em toda a utilização de slapstick no cinema.

Este tipo de comédia terá originado na Commedia Dell‟arte ou “Comédia da Arte” italiana (meados do séc. XV a meados do séc. XVII), e define-se pelo seu estilo improvisador, uso de personagens-tipo, e interlúdios cómicos. Não existiam narrativas inovadoras, ou personagens bem desenvolvidas, mas sim uma manipulação dos componentes típicos da farsa – servos tresloucados, patrões pomposos, e jovens paixões – ao que era acrescentada uma execução física rápida e eficiente. Cada artista desenvolvia apenas uma personagem estereotipada, trazendo os seus próprios maneirismos, o que os italianos chamaram de lazzi e a língua inglesa de shtick. A tradição deixada pela Commedia também inspirou acrobatas e pantomimos que podem, ainda hoje, ser vistos. O nome “slapstick” tem origem na palavra italiana batacchio, que é uma espécie de taco plano composto por duas tábuas de madeira. Isto era usado na Commedia pois quando uma tábua batia na outra produzia um ruidoso som, pelo que os actores o utilizavam uns nos outros sem sofrerem danos físicos. Para além da “bexiga insuflável” este terá sido um dos primeiros efeitos especiais.

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A história da comédia slapstick estende-se ao longo de séculos, visto ser influenciada pelo teatro físico, um conhecido género de actuação teatral que procura contar uma história através de meios físicos. Através dos dois primeiros capítulos percebemos que o princípio poderia ser encontrado na Antiguidade, mas só séculos depois se veio a desenvolver. Alguns elementos componentes do slapstick são curiosamente similares ao teatro grego antigo. William Shakespeare incorporou cenas de perseguição e luta em obras suas como A Comédia dos Erros. No início do século XIX a pantomímica estabeleceu-se. A meados do mesmo século, os números cómicos eram fortemente utilizados no teatro conhecido como Music Hall230. Alguns dos artistas que aqui se destacaram foram Dan Leno, George Formby, Stal Laurel e Charlie Chaplin 231 . Temos também de fazer referência a Fred Karno, o comediante e empresário do Music Hall que desenvolveu uma forma de comédia sketch sem diálogo na última década deste mesmo século. Laurel e Chaplin eram alguns dos jovens membros da sua trupe conhecida como “Fred Karno‟s Army” 232 . Hal Roach, um produtor e realizador norte-americano descreveu Karno como “não só um génio, ele foi o homem que deu origem à comédia slapstick. Nós em Hollywood devemos-lhe muito.”233 Influenciada pela popularidade nos séculos XIX e XX do vaudeville americano, o estilo foi experimentado ao longo da “Idade do Ouro” do cinema a preto e branco. Realizadores como Mack Sennett e Hal Roach, dirigiam figuras notáveis que iam de Charlie Chaplin, Laurel e Hardy, os Marx Brothers, Keystone Cops, The Three Stooges e Chespirito. A produtora Disney também usava este tipo de comédia nas suas curtas Goofy, a MGM em Tom and Jerry e a Warner Bros. com Looney Tunes/Merrie Melodies. A comédia slapstick ainda era aproveitada em filmes franceses protagonizados por Max Linder e Charles Prince.

230

RICHARDS, Jeffrey; The Golden Age of Pantomime: Slapstick, Spectacle and Subversion in Victorian England; I.B.Tauris; [s.l.]; 2014. Ver também: CHRISTOPHER, David; British Culture: An Introduction; Routledge; [s.l.]; p. 74. 231 MCCABE, John; Comedy World of Stan Laurel; Robson Books; Londres; 2005; p. 143. 232 Idem, Ibidem. 233 GALLAGHER, J. P.; Fred Karno: master of mirth and tears; Hale; 1971; p. 165.

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Buster Keaton: Um Comediante Visual Alguns destes artistas são tão influentes que vemos traços das suas criações por todo o lado. Buster Keaton234 explorou ideias imagético-cómicas que ainda hoje podem ser observadas em autores como Wes Anderson, em relação ao seu enquadramento; Jackie Chan, nas suas acrobacias; e a sua postura despreocupada em Bill Murray. “Ele foi, como nos começamos agora a aperceber, o maior de todos os palhaços”, conforme nos disse Orson Welles. Quase cem anos depois, ele ainda tem muito para nos ensinar sobre comédia visual. Keaton era um contador de histórias e não gostava quando outros realizadores contavam a sua história através de entretítulos. Um filme mudo usava cerca de duzentos e quarenta entretítulos, o máximo que Keaton usou foram cinquenta e seis. Ele evitava esta exposição narrativa ao se focar em gestos e mímica, sumariamente, através de linguagem corporal – comunicação através de acção. Cada queda é uma oportunidade para criar. Mas onde colocar a câmara de modo a esmiuçar a piada visual? Normalmente é usada uma perspectiva singular, se a mudares, estás a alterar o intuito e pode não resultar do melhor modo há que saber escolher o ângulo que consegue alcançar melhor o objectivo final. As regras do seu mundo plano são governadas por uma lei: se a câmara não o consegue ver, então as personagens também não. No seu mundo as personagens estão limitadas pelo enquadramento do plano - o que é visível pela audiência. Isto permite-lhe fazer piadas que fazem sentido visualmente, mas não logicamente. Tal como Wes Anderson, Keaton encontrou humor geometricamente em: círculos, triângulos, linhas paralelas e rectângulos. Como dissemos, as raízes são vaudevillianas e são concebidas quase como truques de magia dando uso total às técnicas cinematográficas, nomeadamente a edição. O actor e realizador chamava-lhes “piadas impossíveis” muito usadas em curtasmetragens. Quando passou para filmes de maior duração, decidiu deixar de usá-las, iam contra as regras do seu mundo, contra uma história narrativa que tinha de ser credível. Se estivesse construída de forma “enganosa” os alicerces desabavam. Assim, ele passou a concentrar-se na construção da piada natural, algo que surge de forma orgânica, ou seja, uma improvisação. “Cerca de cinquenta por cento é escrito 234

Ideias e informações retiradas de: BLESH, Rudi; Keaton; Macmillan; [s.l.]; 1966. DESSEM, Matthew; The Gag Man: Clyde Bruckman and the Birth of Film Comedy; The Critical Press; [s.l.]; 2015. ZHOU, Tony; “The Art of The Gag” in Every Frame a Painting, disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=UWEjxkkB8Xs [retirado a 06-01-17].

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antes, o resto desenvolves enquanto o filmas”235, ele poderia gostar de uma piada e voltava a ela recorrentemente. Mas quando uma ideia não corria bem, Keaton livrava-se dela e construía sobre o erro, criava o engraçado através do acidental. Isto traz também uma naturalidade ao ecrã, não parece feito e refeito. Para este artista só existia uma forma de convencer a audiência de que o que estavam a observar era real, ele tinha de o fazer de facto, sem cortar. Chegou mesmo a afirmar que ou se conseguia captar o plano numa só vez, ou se esquecia essa piada. Ainda hoje, ficamos espantados quando vemos algo feito de facto, por exemplo, ao vermos filmes de Christopher Nolan. Como exemplo, podemos dar o filme Inception, onde, nos diferentes mundos construídos através de diferentes níveis de um sonho, existe uma ideia que já se vê em Sherlock Jr. (1924). Mas mais curioso que isso, será comparar a cena giroscópica que se vê em The Boat, de 1922, com a cena similar da luta no corredor deste mesmo filme, lançado em 2010236. Com isto não queremos dizer que concordamos com as afirmações de Welles, ou que tudo o que criava era original, apenas quisemos fazer incidir o foco num dos mais importantes criadores deste tipo de comédia. O slapstick, apesar de poder ter sofrido mutações, sobrevive como provámos, até aos dias de hoje. Mas talvez mais curioso serão as suas componentes cómicas e o facto de partilharem traços com a Comédia Antiga.

Ilustração 24 - A cena giratória na curta The Boat (1921) realizada por edward F. Cline e Buster Keaton. Filme disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=rW0q82S-Wz8 [retirado a 06-01-17] 235

Palavras retiradas da Entrevista a Buster Keaton de Studs Terkel e disponível em: http://studsterkel.wfmt.com/blog/interview-with-buster-keaton/ [retirado a 06-01-17]. 236 Cf. The Boat (1922) disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=rW0q82S-Wz8 [retirado a 0601-17]; e Inception (2010, rotating hallway fight scene) disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=94goG-pLtaQ [retirado a 06-01-17].

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Screwball – uma influência da Comédia Nova Particularidades A comédia screwball é um subgénero cómico que se tornou popular durante a Grande Depressão, tendo a sua origem nos anos trinta e mantendo-se até aos anos quarenta. É assim, uma particularidade no tempo e no espaço social em que se inscreve. Tem algumas características parecidas com as do film noir, mas distingue-se por ter uma personagem feminina que domina e um personagem cuja masculinidade é desafiada. “A comédia screwball é um film noir para rir. A premissa do filme relaciona-se com as dificuldades da relação. Enquanto este obstáculo dura, sempre cheio de intuito sexual, a masculinidade do protagonista é desafiada. Esta inversão de papéis é central na screwball comedy” 237 . A protagonista é confiante e teimosa. O homem e a mulher mantêm, ao longo do filme, uma espécie de pugna de sexos humorística, que seria um tema novo em Hollywood e para as suas audiências238. Outros temas incluem o uso de personagens “espertalhonas”, farsantes, que procuram fugir do dia-a-dia e de enredos que circulam em torno do namoro, do casamento ou da reunião, retratando inúmeras vezes o conflito de classes sociais. Este subgénero, tal como acontece com o slapstick, também pode ser encontrado no teatro. Tal como a eleição de Donald Trump deu aso ao enorme sucesso do filme La La Land (2016) de Damien Chazelle, um musical romântico-fantástico mainstream (algo que, há muito tempo, não se produzia) também a comédia screwball foi influenciada por um factor social impactante – a já referida Grande Depressão. Passou a existir uma necessidade, da parte do público, em filmes com fortes críticas à classe social mais elevada e muita esperança para o futuro: temas de escapismo. O Código Hays influenciou de igual modo o explorar destes temas pelos estúdios cinematográficos mais relevantes, de modo a evitar a censura que caracterizava estas directrizes. O debate verbal entre os sexos servia como substituto das tensões físicas e sexuais (apesar destas permanecerem), de forma sublime, as diferentes equipas de produção, realização, guarda-roupa, etc., escondiam sugestões que podiam ir contra este código.

237

DANCYGER, Ken; RUSH, Jeff; Alternative Scriptwriting; Focal Press; [s.l.]; [s.n.]; 2006; p. 85. CELE OTNES, Elizabeth Hafkin Pleck; Cinderella dreams: the allure of the lavish wedding; University of California Press; [s.l.]; 2006; p. 168. 238

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Ilustração 25 - Claudette Colbert em It Happened One Night (1934) oferece um vislumbre da sua perna aos condutores que passem, numa espécie de competição do casal para ver quem consegue boleia primeiro.

O crítico de Cinema, Andrew Sarris, definiu a comédia screwball como “uma comédia sexual sem o sexo”239. Existe sempre um segredo que se quer protegido, por vezes, relacionado com questões de identidade, algo que acresce quando se adiciona o travestismo (Bringing Up Baby, 1938; I Was a Male War Bride, 1949; ou ainda, Some Like It Hot, 1959). Um romance é também algo central, existindo sempre alguma hostilidade inicial, parece que o casal não combina, mas depressa se dissipam os problemas de modo divertido e que desencadeie o amor. A discrepância entre os dois surge, pois o homem costuma ser menos endinheirado que a mulher (Bringing Up Baby; Holiday, ambos de 1938). A união final é planeada previamente pela mulher, na maioria das vezes. A personagem de Katharine Hepburn em Bringing Up Baby chega mesmo a dizer “Não, não sabe, mas é com ele que me vou casar”. Estes filmes são também uma forma de escape, um espaço seguro onde se pode explorar temas sérios de forma cómica. A questão dos grupos sociais, onde a classe mais elevada era representada como ociosa e cheia de fartura, tendo dificuldades em lidar com o mundo real – pensa-se que isto se relaciona com a necessidade de um público maioritariamente empobrecido em ver ser dada uma lição humana (It Happened One Night, 1934; My Man Godfrey, 1936). Em contraste, quando alguém de uma classe inferior se pretende fazer passar por um membro socialmente mais elevado, consegue fazê-lo sem grandes problemas (The Lady Eve, 1941). Outro elemento comum é o falar acelerado, chistoso que não seria original ao subgénero, visto já fazer parte de muitos 239

SARRIS, Andrew; You Ain’t Heard Nothin’ Yet: The American Talking Film; History & Memory; Oxford University Press; Nova Iorque; 1998.

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doutros “ciclos de Hollywood” como os filmes de gangsters ou as comédias românticas (pode ser visto em You Can‟t Take It With You, 1937; ou His Girl Friday, 1940). A comédia screwball também contém situações de farsa, por exemplo em Bringing Up Baby, no qual o casal tem de tomar conta de um leopardo, chamado Baby, durante a maioria do filme, o que lhe dá o seu nome. O slapstick influenciou este género, algo que se verifica, por exemplo, com as inúmeras quedas dadas por Henry Fonda em The Lady Eve. Tal como referido, este casal podia não apaixonar-se ou casar-se mas sim reunir-se de novo (The Awful Truth, 1937; The Philadelphia Story, 1940). Algo que se aponta como sendo uma forma de mostrar a mudança do pensamento, quando o código de Hays começou a deixar de ser respeitado 240 . Stanley Cavell denota que muitas destas comédias se passam no Connecticut241. Bastantes elementos da comédia screwball podem ser encontrados em Shakespeare (Much Ado About Nothing e A Midsummer Nigth‟s Dream), em Oscar Wilde (The Importance of Being Earnest) e mesmo em Aristófanes (Lisístrata). Contudo, pensamos que a maior quantidade de semelhanças existe na Comédia Nova e, em especial, em Menandro. Este género veio a estar presente, em parte, na comédia de situação, romântica, e na “farsa de quarto” ou bedroom farse.

Uma História em Filadélfia O filme The Philadelphia Story (1940), de George Cukor é baseado numa peça teatral de Philip Barry. Existe no seu centro a personagem de uma socialite cujo casamento sofre complicações pela chegada simultânea do seu ex-marido e um jornalista de uma revista tablóide. É um dos melhores exemplos do subgénero comédia de “recasamento”, no qual um casal se divorcia, namora com outras pessoas, e depois casam de novo – um dos tais truques narrativos (o público não é inocente), visto que o referido código proibia a representação de casos extraconjugais. A protagonista é Katharine Hepburn, que tinha feito parte da lista de actores, compilada por Harry Brandt, que seriam “box office poison”242. Este filme foi o seu regresso que não deixou de contar com a presença de duas estrelas do cinema de grande peso: Cary Grant e James Stewart. Foi produzido pela Metro-Goldwyn-Mayer e venceu

240

Note-se a expressão final de Gone With the Wind (1939): “Frankly my dear, I don’t give a damn”. CAVELL, Stanley; Pursuits of Happiness: The Hollywood Comedy of Remarriage; Harvard University Press; Cambridge, Massachusetts: 1981. 242 TIMES; "The New Pictures"; publicado a 20 de Janeiro de 1941. 241

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os óscares de Melhor Actor, para “Jimmy” Stewart e Melhor Argumento Adaptado para Donald Ogden Stewart. Tracy Lord (Katharine Hepburn) é a filha mais velha de uma abastada família, dona da Philadelphia Main Line. Ele casou com C. K. Dexter Haven (Cary Grant), um designer de iates e membro da sua classe social, mas divorciou-se dele há dois anos, pois ele não preenchia o nível social que era requerido. Bebia em demasia. Quando foi criticado em relação a isso, começou a beber mais (quase relembra Pytine de Cratino). Assim, a protagonista estava agora pronta para casar com o “novo rico” e amado por todos George Kittredge. A revista Spy pretende fazer a cobertura do casamento e envia o repórter Macaulay “Mike” Connor (James Stewart) e a fotógrafa Liz Imbrie, mas só com a ajuda de Dexter, e depois de alguma discussão, é que eles acabam por ficar. Dexter é recebido de braços abertos não só pela sua sogra, mas também pela cunhada, o que irrita profundamente Tracy. Em relação a Mike a nossa protagonista começa a descobrir que ele tem qualidades admiráveis. É assim, neste ponto, que o enredo se adensa. É que com o aproximar do casamento ela fica dividida entre três homens: George, o seu noivo; Dexter, o seu ex-marido; e Mike, uma possível nova paixão.

Ilustração 26 - Imagem promocional do filme The Philadelphia Story (1940) que explica em si o núcleo do enredo. A protagonista que se coloca acima dos três possíveis interesses amorosos. Do lado esquerdo, o rico convencido; ao centro, o ex-marido, preocupado em renovar o casamento; e do lado direito, o já desiludido novo possível amor.

Na noite antes do casamento Tracy embebeda-se pela segunda vez na sua vida e acompanha Mike num inocente mergulho. Quando George vê Mike a levar aos braços uma Traçy inebriada, pensa o pior. No dia seguinte, Kittredge diz-lhe que ficou chocado com o que viu e que precisa de uma explicação antes de prosseguir com o casamento. 109

Ela revolta-se contra a descrença dele e anula o noivado. Contudo, apercebe-se pouco depois, que os convidados já chegaram todos e estão à espera que a cerimónia comece. Mike voluntaria-se para casar consigo (para desgosto de Liz), mas Tracy recusa graciosamente. E apercebe-se, pela primeira vez, que não é perfeita e que não devia condenar os outros pelas suas fraquezas. É agora que Dexter se oferece para substituir o noivo. O pedido é aceite e Mike, claro, ficou com Liz. De todos os exemplos que estão neste capítulo, pensamos que este, será o que mais traços partilha com a Comédia Nova. O enredo vem a juntar dois casais que inicialmente não estavam unidos, sofreram uma série de provações e que só no fim o voltaram a estar. Dois casamentos como final feliz e o passar de dificuldades (neste caso, conflitos amorosos) mostram a enorme semelhança que o filme tem com, por exemplo, A Mulher de Cabelo Rapado e também de Arbitragem pertencentes ambas a Menandro.

A Perpetuação da Influência e o Tabu Cómico “You know the day destroys the night Night divides the day Tried to run Tried to hide Break on through to the other side (x3)”243

A Comédia slapstick e screwball não são exemplos isolados. Tal como qualquer história humana, também na comédia as influências não são estanques, existem redes que se tocam e transformam. Deste modo, serão apresentados uma série de géneros ou apenas traços de Comédia da Antiguidade facilmente encontráveis ao longo das diferentes criações cinematográficas, televisivas e mesmo imagéticas sempre com algum intuito jocoso.

Sitcom e o Diálogo Crítico-Social Uma comédia de situação, ou sitcom é um género cómico que se centra num conjunto fixo de personagens que movem a acção de episódio para episódio, seja 243

“Break on Trough (To The Other Side)” do album de 1967 de The Doors.

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radiofónico ou televisivo. Esta ideia de criação humorística é exactamente contrária à da comédia sketch, onde um mesmo grupo de artistas pode usar novas personagens em cada pequena sequência e tem um objectivo divergente da comédia stand-up, pois esta inclui apenas uma pessoa a falar para uma audiência e não um enredo. Este subgénero teve origem na rádio, mas é hoje, maioritariamente usado na televisão, como um dos seus formatos narrativos preferenciais. Aqui também se podem incluir os mockumentaries, uma longa-metragem, que usa o mesmo aspecto de um documentário, mas de forma satírica. É também um pouco similar ao teatro, no sentido em que pode ser actuado perante uma audiência num estúdio de gravação, conforme o formato escolhido pela produção. Uma das sitcoms mais bem-sucedidas e aclamadas recebeu o nome de Seinfeld. Produzida pelo canal norte-americano NBC e criada por Larry David e Jerry Seinfeld. Este último comediante protagoniza a série televisiva desempenhando uma versão ficcional de si mesmo. A sua duração foi de nove anos, sendo exibida de 1989 a 1998. Outro elemento constituinte deste subgénero é o espaço onde se insere, permanecendo, normalmente, uma divisão ampla, ou várias, da casa do protagonista (e por vezes dos seus amigos) como espaço comum a todos e onde a acção se desenrola, o que também demonstra uma certa ilusão do espaço que o espectador aceita como verdade, e uma constante recuperação do mesmo espaço, tal como acontecia no teatro antigo. Neste caso específico, o espaço escolhido, talvez por ser facilmente identificável pelo espectador é um apartamento na cidade de Nova Iorque. Outras características similares podem ser definidas pela descrição das personagens restantes. Não existe uma regra geralmente aceite, contudo, algumas das personagens representadas são recorrentes. Ou se explora um grupo de amigos ou um grupo de familiares, nesta circunstância o primeiro. Também se dá uso a personagenstipo, que podiam ser apresentadas em galeria (e muitas vezes o são nos créditos iniciais). Isto será muito interessante como promoção aos próprios actores. Neste caso específico existem as personagens do melhor amigo – George Constanza; da ex-namorada – Elaine Benes; e do vizinho da porta ao lado – Kramer. Contudo, a razão pela qual decidimos incluir esta série em concreto no trabalho relaciona-se com os temas que trata. Jerry Seinfeld começou no mundo da comédia, através do stand-up onde explorava rotinas muito diferentes dos seus colegas. Ele não fala tanto sobre si, mas mais sobre pequenas questões que incomodam o homem comum na actualidade, elemento que se transpôs para a série. Por tal, este é um programa 111

descrito como sendo “sobre nada”, pois a motivação de muitos dos episódios são situações ridículas onde se coloca o homem comum e se explora a minúcia da vida diária (e nunca a rotina). Mais se acrescenta que se usa esta sua comédia muito própria para criticar partes desta especificidade social e individual, muitas vezes comicamente transmitidas com o uso de exemplos e metáforas. Algo que se pode perceber melhor ao aceder ao link da imagem que se segue.

Ilustração 27 - Todos os episódios começam com um número de stand-up, que tem directamente que ver com o tema do episódio em questão. A ideia original da série terá sido algo como transpor este tipo de comédia para o subgénero da sitcom. Deixamos o link acima referido: https://www.youtube.com/watch?v=2ZGu5GJlfls [retirado a 12-01-17].

Meme, uma Máscara Cómica da Web De todos os exemplos apontados na terceira parte do trabalho, este e o último sugeridos são os mais actuais. Um meme da Internet pode ser considerado uma actividade, um conceito, uma frase, ou simplesmente, um dos elementos componentes dos media que se propagandeia através das redes sociais, no acto de “partilhar” ou em diversos outros sites, que exploram este mesmo princípio de transmissão de pessoa para pessoa via Internet 244 . Outra definição diz-nos que é uma ideia, comportamento, ou estilo que se espalha de pessoa para pessoa dentro de uma cultura 245. Pode tomar a forma de uma imagem, que contenha apenas uma palavra ou frase com siglas e incorrecções linguísticas propositadas.

244

SCHUBERT, Karen; "Bazaar goes bizarre" in USA Today (de 31-07-03 e disponível em http://usatoday30.usatoday.com/tech/news/2003-07-28-ebay-weirdness_x.htm [retirado a 12-06-17]). 245 Definição de Merriam-Webster; disponível em https://www.merriam-webster.com/dictionary/meme [retirado a 12-01-17].

112

A palavra meme foi usada por Richard Dawkins no seu livro de 1976 intitulado The Selfish Gene, como tentativa de explicar o modo como a informação cultural se divulga 246 . Os memes da Internet são uma derivação desta ideia proposta, para este contexto, por Mike Godwin na edição de Junho de 1993 da Wired, pelo que ganhou um significado diferente do original. Este tipo de criação imagética não tem qualquer enredo, ou sequer movimento, geralmente é uma imagem parada apenas com um texto, uma imagem e um intuito específico. Assim sendo, qual é então o interesse de colocar esta referência num trabalho sobre teatro grego na Antiguidade? A resposta encontra-se em dois parâmetros: não o artístico, mas o cómico e o social. O primeiro relaciona-se com o intuito de um meme, onde se incluem os típicos memes - as representações mais famosas deste tipo de expressão individual, tornada global. Estes têm princípios a si associados que podem querer transmitir um mesmo ritmo de uma frase ou ideia. A língua expressada é o inglês e a mensagem pode ser usada apenas como complemento a uma ideia ou como mensagem com um princípio, meio e fim. Tudo isto explica que esta pequena imagem contém inúmeros exemplos representativos da sociedade e cultura actual, explorados de forma cómica. Mas mais que isso, e aqui se incluí o segundo parâmetro e a principal razão de termos incluído esta forma de expressão social que nada tem que ver com arte, é o facto de, muitas vezes, os memes se escreverem com crueza, grosseirismo e honestidade. É neste sentido que se usa a ferramenta descrita como máscara, expressiva dos pensamentos individuais, tornados plurais. É por tal que existem cada vez mais opiniões e honestidades grosseiras e mesmo desnecessárias. A protecção que é a distanciação e despersonalização da Internet mostram que existe uma sociedade electrónica sem muitos dos tabus normais. Com os exemplos que se seguem podemos observar comédia feita como complemento, como meme famoso, e através do grosseiro, ou do sem escrúpulos, tal como acontecia na Comédia Antiga e expressões ditas cómicas suas antecessoras.

246

DAWKINS, Richard; The Selfish Gene; Oxford University Press; [s.l.]; 1989; p. 192.

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Ilustração 28 – No primeiro exemplo está um exemplo do que se pode chamar de “comédia negra” ou mesmo ironia trágico-cómica, outros exemplos com um conteúdo mais sexual, mas igualmente sem escrúpulos, podiam ser dados. Os outros dois memes são muito conhecidos e partilhados. Ao centro no primeiro, está uma pequena piada que só o é por usar um trocadilho, tal como acontecia no teatro aristofânico, por exemplo. Do lado direito está um meme que é usado como complemento de uma ideia ou frase. Todos eles usam figuras da história e cultura popular contemporâneas e, curiosamente, da Antiguidade.

A Ironia Trágico-Cómica da “Estranha247” Vaga Grega Será coincidência que um dos países europeus em maior crise financeira esteja a florescer no Cinema, através de uma nova geração de realizadores? Pensamos que não. Este é também um dos cinemas mais originais e socialmente atentos248. Os realizadores enquadram-se todos no território da Grécia, mas a sua obra transcende fronteiras. É possível produzir estes filmes pois eles requerem um orçamento pouco elevado, este é aliás, segundo Lanthimos, “o elemento comum 249 ” que une este movimento, assim denominado pela crítica cinematográfica. O mais importante nome a referir é o de Giorgos Lanthimos. Através dos seus filmes ele faz a sua audiência repensar temas como: sexualidade, liberdade, família, isolação social e relações normativas, ao usar imagens e diálogos estranhos, chocantes, e bizarros projectados por uma perspectiva estética fresca e retro. O seu primeiro filme internacionalmente aclamado foi Dogtooth, um dos nomeados para Melhor Filme Estrangeiro para os Óscares de 2012, que desenvolve o seu enredo em torno de uma família grega controlada por um pai autoritário que isola os seus três filhos da sociedade e implementa regras primitivas para os controlar. A família vive numa vivenda e a acção passa-se nos anos sessenta. Às crianças não lhes é permitido qualquer tipo de interacção física ou social até lhes cair o dente canino. Devido à falta de interacção

247

Cf. ROSE, Steve; “Attenberg, Dogtooth and the weird wave of Greek cinema” in theguardian.com, disponível em https://www.theguardian.com/film/2011/aug/27/attenberg-dogtooth-greece-cinema [retirado a 18-01-17]. 248 Ver VELLIS, Erasmia; “Greek New Wave Cinema: Giorgos Lanthimos & Panos Koutras” in thecuturetrip. com, disponível em https://theculturetrip.com/europe/greece/articles/greek-new-wave-cinemagiorgos-lanthimos-panos-koutras/ [retirado a 18-01-17]. 249 ROSE; Op. Cit.

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social o seu conhecimento do mundo é ingénuo e limitado mas a sua curiosidade humana em explorar o que está por detrás das regras impostas leva a uma revelação chocante mas bela. Esta concepção patriarcal é uma afirmação cómica e irónica, quase trágica, da avaliação familiar da sociedade grega, ao mesmo tempo que critica as autoridades institucionais. Ao contrastar com a representação típica de uma família grega feita pelas comédias de Hollywood, o conceito de família torna-se chocante, tragicamente cómico, sendo difícil perceber desde logo o seu significado, mas oferecendo um conteúdo visual que tem um carácter universal. O estudo de Lanthimos em relação à supressão extrema e obediência de uma família pode ser aplicado a diversos contextos por todo o mundo, tornando este um filme poderoso. Outros títulos e nomes de destaque incluem Attenberg (2010) de Athina Rachel Tsangari; Wasted Youth (2011) de Argyris Papadimitropoulos; Xenia (2014) de Panos H. Koutras; Matriarhia (2014) de Nikos Kornilios; The Eternal Return of Antonis Paraskevas (2013) Elina Psykou; Man at Sea (2011) de Constantinos Giannaris; Miss Violence (2013) de Alexandros Avranas; Norway (2014) de Yiannis Veslemes; Venus in the Garden (2011) de Telemachos Alexiou 250; e o mais recente - Lobster (2015) de Yorgos Lanthimos. Deixamos, em seguida, um excerto de A Lagosta, de modo a perceber-se melhor o que acima se referiu. Aqui o protagonista faz parte de uma sociedade em que é estatutariamente obrigatório estar-se numa relação. Se morrer o nosso cônjuge, como acontece ao David, é-se deslocado para um hotel/prisão que nos dá cinquenta dias para arranjar forçosamente alguém. Caso isso não aconteça, somos transformados num animal escolhido por nós mesmos. Toda esta ironia e elementos cómicos que se podem encontrar relembram alguns dos traços definidores do drama satírico. No excerto seguinte está transcrito parte do argumento nomeado para o óscar de Melhor Argumento Original que dá a perceber esta situação e o porquê do nome escolhido para a longametragem.

250

YEUNG, Peter; “Greece may be broke, but its film scene is rich” in Dazed; artigo e trailers disponíveis em: http://www.dazeddigital.com/artsandculture/article/25454/1/the-new-names-in-greek-cinema [retirado a 18-01-17].

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[Sentado na sua cama, David observa o seu irmão que foi previamente transformado num cão. A dona, o seu marido e a staff do hotel entram no quarto.] GERENTE DO HOTEL Leu o panfleto? DAVID Li, sim. GERENTE DO HOTEL O facto de o transformarmos num animal, no caso de não encontrar ninguém, não é algo que o deve deprimir ou preocupar. Lembre-se apenas que como animal terá mais uma oportunidade de arranjar parceira. Mas deve ter cuidado, tem de escolher alguém que seja um tipo de animal similar a si. Um lobo e um pinguim jamais viveriam juntos, ou tão pouco um camelo e um hipopótamo. Isso seria absurdo. […] Já pensou que animal gostaria de ser se acabar sozinho? DAVID Sim. Uma Lagosta. GERENTE DO HOTEL Porquê uma lagosta? DAVID Porque as lagostas vivem mais de cem anos, têm sangue azul, como os aristocratas, e permanecem férteis toda a vida. Eu também gosto muito do mar […]. GERENTE DO HOTEL Devo dar-lhe os meus parabéns. A maioria das pessoas escolhe um cão. É por isso que o mundo está cheio de cães. 116

Muito poucas pessoas escolhem os animais mais estranhos, e é por isso que estão em ameaça de extinção. A lagosta é uma excelente escolha.

Se tivéssemos de indicar um nome, uma actuação, representante deste tipo de ironia, o nosso dedo apontaria de imediato para Christoph Waltz no filme Inglourious Basterds, e em especial para a cena inicial do filme251. É um filme cómico ou cena cómicos? Não. No entanto, o actor decide desempenhar esta cena sempre com um sorriso nos lábios e de bom espírito. A genialidade desta opção está no contraste perfeito entre a alegria do “caçador de judeus” e o terror das pessoas que se encontram poucos centímetros abaixo de si. É nesta diferença de comportamento que se encontra o possível arrepio que pode emergir espinha acima. Já falámos um pouco sobre estas contradições usadas com intuito cómico em Buster Keaton. Tarantino (que se pode assimilar a Difílo, visto que continua a insistir participar nos seus próprios filmes, apesar de não ser um muito bom actor) e Waltz usam a comédia de forma irónicotrágica dando a pujança necessária para criar, uma cena trágica bem conseguida.

MCU (Marvel Comedic Universe) Podíamos sugerir muitos outros exemplos de como a Comédia da Antiguidade influenciou o mundo contemporâneo. Ao mencionar comédia fantástica referenciar-seia os Monty Python (em Life of Brian, 1979; mas principalmente em Monty Python and The Holy Grail), nos seus filmes e série televisiva, o grupo de cómicos usam o absurdo e o exagero para criticar a história e sociedade, ou simplesmente, para fazer rir. Ao falarmos da comédia mais política de Cratino, mas também presente em Aristófanes, fazia-se referência aos apresentadores de talk-shows orientados para a sátira política, com especial destaque para The Daily Show previamente com John Stewart. Um programa televisivo cujo objectivo principal, quase único, é usar a comédia para fazer sátira à situação política, neste caso, dos EUA. Em relação a exemplos de personagens-tipo da Comédia Nova, vemos um Misantropo no papel que Walter Matthau desempenha em Dennis the Menace (1993), um velho rabugento e descontente com a sociedade; ou no filme Falling Down

251

Parte da cena disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=QfSjs_6MZOQ&t=7s [retirado a 22-01-17].

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protagonizado por Michael Douglas, onde um homem enfurecido com a sociedade se manifesta fisicamente contra ela. O parasita é uma personagem comum que aparece mais em comédias e romances. Não existe grande nuance no papel, sendo o seu objectivo sempre o de intervir comicamente na relação de um casal, funcionando como obstáculo a este. Podemos referir, sem nenhuma razão em especial, alguns filmes cujo enredo circunda em torno desta personagem: You, Me and Dupree (2006), com Owen Wilson; Due Date (2010), com Zach Galifianakis; e The Cable Guy (1996) com Jim Carrey. Todavia, iremos referir, nesta última parcela do trabalho, produções cinematográficas que são precisamente o oposto do que mencionámos no subcapítulo anterior. Na Comédia Nova notámos que a quantidade (e logo velocidade) de produção aumentou, quase de forma exagerada, em relação à Comédia Antiga. A razão que ajuda a melhor perceber o porquê disto ter acontecido pode encontrar-se, em parte, no modelo narrativo criado. Ao usar personagens-tipo e um princípio-meio-fim similar e estabelecido, será mais fácil, mais possível, que esta situação ocorra. Na Actualidade também existiram e existem normas usadas para um fim correspondente, decidimos dar foco a algo mais próximo de nós, a uma corporação empresarial que produz, no seu conjunto, o framchise cinematográfico com maiores receitas, tendo um lucro a nível mundial de dezoito mil milhões de dólares252. Falamos, claro, da Marvel Studios. É precisamente no uso de personagens-tipo e no enredo obediente a pontos cruciais que se encontra a semelhança. Está sempre presente a figura do herói, ou grupo de heróis (no sentido moderno do termo que se baseia muito na concepção das comics americanas); este herói é acompanhado na sua luta contra o mal pelo seu melhor amigo, geralmente usado como sidekick e comic relief, e pelo seu interesse amoroso, uma mulher que precisa de ser protegida. Os vilões são representados como terroristas. Existe um lado fantástico associado às histórias, com o princípio dos “superpoderes”, mas talvez mais relevante para o trabalho em questão, é o facto de se introduzir um elemento cómico que não deixa as audiências em massa ficarem deprimidas com todo o conflito dramático que rodeia o filme. É na estrutura formulaica dos enredos e na inserção deste elemento cómico, crucial para o seu sucesso, que se pode encontrar a razão pela qual decidimos incluir estes filmes. 252

Receitas das maiores empesas cinematográficas disponíveis em: http://www.boxofficemojo.com/franchises/?view=Brand&sort=sumgross&order=DESC&p=.htm [retirado a 22-01-17].

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Como exemplos que demonstrem esta ideia foram produzidos: Spider-Man (2002); Iron Man (2008); Thor (2011); Guardians of The Galaxy (2014). Concomitantemente existe a possibilidade de acrescentar um outro filme que encaixará melhor no género aqui trabalhado. Deadpool (2016) é também uma longa-metragem de “super-heróis”, mas aceita mais este intuito de introduzir comédia e torna-o abrangente à própria essência do filme. Tal como acontecia na BD, este não é o herói convencional. O facto de quebrar constantemente a quarta parede demonstra isso, tal como os poetas cómicos da Antiguidade faziam. Porém contém outros factores como a sátira ao próprio estúdio de produção, a crueza na linguagem e o facto de não ter qualquer problema em mostrar conteúdos sexuais ou de extrema violência que o definem com o rating de maiores de 18 (Rated R). Todos estes factores se associam para agradar a um grupo mais jovem a quem estes temas agradam.

***

Podemos admitir que existe alguma subjectividade nesta terceira parte do trabalho. No entanto, esta é uma também uma forma de alcançar o objectivo de estabelecer uma possível ponte entre Antigo e Contemporâneo. Algo que pensamos ter sido cumprido através de comparações pertinentes, porque iguais em forma e não em tempo ou espaço. Deste modo justificamos toda a subjectividade que possa assim transparecer ao leitor.

119

Conclusão Coloca-se a hipótese de ter existido alguma perseguição, nomeadamente, política em direcção a autores da Comédia Antiga. Algo similar sucede com os comentários de um qualquer comediante actual que, por ofenderem alguém, são obrigados a pedir desculpas publicamente. As pessoas ficarem ofendidas, manifestarem o seu desagrado, criticarem o trabalho do comediante não é o que se pode criticar. Vivemos numa altura, como acontecia, em parte, na Grécia Antiga de liberdade de expressão. O que talvez seja um pouco estranho é a nossa falta de capacidade em perceber o que é cómico do que é um insulto pessoal. Tomemos o caso de Ricky Gervais. Ele critica e ridiculariza o cristianismo. O que será mais relevante para um cristão: irritar-se ou tentar perceber a crítica que lhe é feita e porque o é? Curiosamente é neste ponto da crença e contexto religioso que a nossa sociedade mais difere da Antiga. Toda a produção cómica deste período mais recuado localiza-se num ambiente religioso. Uma situação dificilmente comparável nos dias de hoje, onde parece que a religião apesar de poder ser apresentada de forma mais extrovertida, relaciona-se mais com um contexto pesado, muito por se basear numa ideologia cristã que tem em si pilares inabaláveis que para tal contribuem. Saindo dos complexos parâmetros da religiosidade referimos que existe algum complexo social em relação à comédia, quase como se fosse um tabu, algo que se percebe, por exemplo, em relação aos Óscares: “A Academia não se interessa pela comédia. Não a percebe. Quando o faz é a um Woody Allen. É o tipo de organização que aprova a actuação de Ryan Gosling em La La Land mas escarnece o mesmo actor apesar de ele ser igualmente brilhante em The Nice Guys”253. O que muitas vezes não se percebe é que o drama, os assuntos mais sérios, podiam ganhar uma face catártica se associados à comédia254. Este é, aliás, um dos factores que contribui para o sucesso da Comédia Antiga e Nova, mas também para alguns dos exemplos contemporâneos sugeridos. Se há algo que este trabalho prova é a contínua necessidade de produção exclusiva ou inclusiva da Comédia como género, que desde a sua possível criação em espaço grego, nunca morreu. Através de uma rede de influências recíprocas a permanência estabeleceu-se e perpetuou-se. 253

HEWITT, Chris; “Should the Oscars Take Comedy Seriously?” in Empire; nº 333; Março; 2017. Temos de fazer referência ao filme da Pixar Inside Out (2015) que vende tão bem esta ideia de reciprocidade cómica e dramática. 254

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My Man Godfrey (1936). Sherlock Jr. (1924). Some Like It Hot (1959). The Awful Truth (1937). The Boat (1922). The Cable Guy (1996). The Gold Rush (1925). The Lady Eve (1941). The Philadelphia Story (1940). Wasted Youth (2011). Xenia (2014). You Can‟t Take It With You (1937). You, Me and Dupree (2006).

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