A ARTE DE GRAFITAR: O GRAFITE E A JUVENTUDE PAULISTA NA TRANSIÇÃO DO SÉCULO XX PARA XXI

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UNIVERSIDADE DE SANTO AMARO

LUCAS ALMEIDA DA SILVA

A ARTE DE GRAFITAR: O GRAFITE E A JUVENTUDE PAULISTA NA TRANSIÇÃO DO SÉCULO XX PARA XXI

SÃO PAULO 2014

LUCAS ALMEIDA DA SILVA

A ARTE DE GRAFITAR: O GRAFITE E A JUVENTUDE PAULISTA NA TRANSIÇÃO DO SÉCULO XX PARA XXI

Artigo apresentado na Universidade de Santo Amaro

para

Licenciatura

conclusão Plena

em

do

curso

História,

de sob

orientação do Prof. Dr. Rafael Lopes.

SÃO PAULO 2014 2

A ARTE DE GRAFITAR: O GRAFITE E A JUVENTUDE PAULISTA NA TRANSIÇÃO DO SÉCULO XX PARA XXI

Lucas Almeida da Silva1 Dr. Rafael Sousa Lopes2

RESUMO Os jovens dos grandes centros urbanos do país, especialmente aqueles situados na capital paulista estão cada vez mais em contato as novas formas de se expressar e se reconhecer enquanto indivíduos protagonistas que buscam viver uma nova relação com o meio circundante. Essa análise repercute a intensa presença do grafite no cotidiano da juventude que vive segregada nos grandes centros urbanos do país.

Foi necessário procurar

localizar e distinguir as semelhanças que o senso comum costuma fazer e entender que relação tal linguagem possuí com os grupos sociais populares. A discussão segue evocando as características culturais trazidas pelo grafite enquanto linguagem, o seu poder transformador e sua importância histórica. O Projeto Quixote foi tomado como estudo de caso nessa análise que reconhece o grafite como ferramenta importante no processo autonomia e emancipação dos jovens e em sua formação cultural. Palavras Chave: Grafite; Arte Urbana; Movimentos Sociais; Juventude; Educação.

INTRODUÇÃO Este estudo oferece contribuições para uma análise histórica através do corrente cultural, que além de trazer e problematizar novos objetos na História, procura entender as dinâmicas sociais através desses objetos. Diferente das produções tradicionais de história, não analisamos um determinado fato ou só um determinado recorte cronológico, porém, utilizamos um movimento social 1

Graduando do Curso de História da Universidade de Santo Amaro (UNISA) Professor permanente do Mestrado Interdisciplinar em Ciências Humanas da Universidade de Santo Amaro (UNISA) 2

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como objeto da história. A história cultural pode ser melhor compreendida com o auxílio de outras ciências, isso nos leva a entender que a história é um campo interdisciplinar, a Sociologia foi um importante campo para essa pesquisa. Peter Burke em sua obra: “O que é história cultural?” discute a contribuição que a Antropologia, a Sociologia, a Arte e outras tantas ciências trouxeram para a História (2005). Nesse caso para entender melhor sobre a história da cidade de São Paulo, foi tomado como objeto o grafite, que é uma prática urbana e artística, é um documento iconográfico, que por sua vez traz informações implícitas de um determinado contexto histórico ou da sociedade na qual pertence. Peter Burke, ainda propõe que “os significados das imagens dependem do seu contexto social” (2004 p. 111). O objeto de estudo aqui é fonte de impacto social, por isso, também propõe para o que Peter Burke chama de história social: Uma segunda e recente abordagem da história social da arte tem o seu foco na história das respostas às imagens, ou na recepção dos trabalhos artísticos; este enfoque coloca-se de forma paralela aos movimentos sobre estudos literários conhecidos como “teoria da recepção” e “resposta do leitor”. (2004 p. 111)

Dentro do contexto social urbano da história de São Paulo, o grafite e a pichação passam, pois, pelo processo de “teoria da recepção” e da “resposta do leitor”, gerando um impacto na sociedade paulista contemporânea, tal qual a analise procura entender (BURKE, 2004 p. 112). O grafite é um dos elementos efervescência da cultura popular jovem emergente das regiões periféricas que fez emergir um novo referencial de jovens, agora não mais voltados exclusivamente para o mudo da delinquência e dos supostos benefícios que esse status quo poderia ofertar para suas vidas. Na obra Por trás dos muros: Horizontes sociais do grafite (MENEZES; BEDOIAN, 2008) elaborado pelo projeto Quixote o grafite é apresentado como ação que resgata a diversidade do espaço público, os jovens envolvidos com o grafite encontram no mesmo as possibilidades para reinterpretação social. Para esse estudo foram levantados tais problemas: Quais são as principais distinções entre a pichação e grafite? Qual o percurso histórico do grafite? Qual é a situação social dos jovens da periferia e como o grafite pode

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se envolve com tais sujeitos? E como o grafite alcança esse universo de transformação social do seu agente? A preocupação em estudar novos objetos não é novidade no campo historiográfico, afinal uma das características dessa história cultural que vem ganhando cada vez mais força desde a década de 1920 com a revista dos Annales é o trabalho com novas fontes e novos objetos. Trabalhar com novos objetos ajuda o historiador a analisar em outras perspectivas questões e a problematizar a história tradicional e o senso comum. A história de São Paulo pelo viés econômico e político, já possuí suas produções, cabe agora aos historiadores analisam outras esferas na dinâmica social paulista. O cotidiano das periferias, do pobre, do negro, do homossexual, da mulher e de tantas outras particularidades sociais ainda possuem pouca produção e valorização na ciência. Essa proposta nasce na revisão do modelo método marxista de análise histórica, a New Left e também com as demais gerações dos Annales. Estudar o movimento do Hip Hop como faz o Doutor Rafael Lopes de Sousa é exemplo dessa ação. Tomar como fonte o grafite ajuda a entender também os grupos marginalizados na sociedade, que em muitas vezes a história econômica ou política pode acabar excluindo. Estudar novos objetos é importante também para o processo de democratização da produção científica, e aqui podemos encarar o grafite como prática urbana que durante muito tempo não foi objeto de pesquisa da academia e hoje está ganhando amplas produções. Esse trabalho tem sua importância também na desmistificação da pichação e do grafite como ações igualitárias, uma vez que são diferentes e cada uma possuí as suas peculiaridades. A pesquisa objetiva estabelecer algumas diferenças entre o grafite e a pichação, propor um breve percurso histórico do grafite até os dias atuais. Analisar a ligação entre o grafite e os jovens das periferias. Não reproduzir uma visão criminalista referente ao grafite e evocar para ele um carácter social. Para execução desse trabalho foi utilizado o método bibliográfico documental. Parte do material bibliográfico dessa pesquisa é composto por artigos destinados à revistas e eventos, isso por que ainda não é prática comum tomar grafite ou pichação como objeto de pesquisa, portanto, são 5

poucos os livros a cerca do tema. As obras que tomam o tema como discussão possuem forte ligação com temas da sociologia e urbanização. Foi feito o levantamento de livros, artigos, periódicos e imagens que auxiliem na discussão do objeto e as problemáticas dessa pesquisa, após o levantamento bibliográfico e documental. Os resultados da analise dos documentos até então estão expostas nessa pesquisa. Para trabalhar com as informações recolhidas nos materiais bibliográficos foi utilizado o método histórico.

[...] O método histórico consiste em investigar acontecimentos, processos e instituições do passado para verificar a sua influência na sociedade de hoje, pois as instituições alcançaram sua forma atual através de alterações de suas partes componentes, ao longo do tempo, influenciadas pelo contexto cultural particular de cada época. Seu estudo, para uma melhor compreensão do papel que atualmente desempenham na sociedade, deve remontar aos períodos de sua formação e de suas modificações. (LAKATOS e MARCONI, 1992, p 82)

As informações foram então tratadas observando a importância do objeto nas relações sociais entre o objeto e a sociedade paulista no final do século XX e início do século XXI. Para auxiliar no debate historiográfico também foram capturadas imagens de intervenções urbanas de grafite nos bairros periféricos da região sul de São Paulo.

No caso de imagens, como no caso de textos, como no caso de textos, o historiador precisa ler nas entrelinhas, observando os detalhes pequenos mas significativos – incluindo ausências significativas usando-os como pista para informações que os produtores de imagens não sabiam que eles sabiam, ou para suposições que eles não estavam conscientes de possuir. A identificação por Morelli dos autores de pinturas específicas pelo estudo das formas das orelhas ou mãos pintadas tem importantes implicações para os historiadores. (BURKE, 2004 p. 118)

O papel da história é ressaltar essa autonomia da cultura popular conquistada no tempo. Olhar o grafite como documento histórico que nos mostra o processo de autonomia da cultura popular não é característico dos nossos dias, o próprio Chartier publicou pesquisas desse movimento social em outros recortes cronológicos. Peter Burke analisa os tempos medievais e modernos o Clero e a elite tentam mudar os hábitos das camadas populares, propondo a ideia de uma cultura modelo. Os historiadores da escola metódica 6

ao escreverem uma história seletiva, também optaram por selecionar a cultura registrada na história. Até então o destino historiográfico da cultura popular é portanto sempre ser abafada, recalcada, arrasada e ao mesmo tempo ela sempre renasce das cinzas, e as sociedades passaram por um processo de aculturação. O importante não é só datar a repressão como também estudar as relações em torno dessa ação. Isso não significa que os povos reprimidos aceitaram por vez a aculturação. No séc. XIX a cultura veio se fragmentando e tornando-se mais específica (CHARTIER, 1995) O grafite torna-se então uma ramificação da arte, que é elemento cultural e praticada pelas classes mais baixas, exprimem o contexto e as vontades do grupo social que se apodera dessa ação.

1.0 – GRAFITTI E PICHAÇÃO: ACEITAÇÃO E RECUSA

Grafitti segundo Celso Gitahy é uma palavra italiana que vem de grafito, que significa: desenhar em pedra toscamente com carvão. Grafitti é o plural de grafitos, portanto: desenhos toscos de carvão. O autor aponta que esse tipo de registro era comum na fase em que o homem se expressava através das pinturas rupestres assim como na antiga Pompéia, nas tumbas dos faraós egípcios e até no império romano, quando os cristãos faziam símbolos nas catacumbas simbolizando os locais secretos de suas reuniões (GITAHY, 1999). No mundo antigo existem várias intervenções humanas, para Garry Hunter3 o grafite mais antigo foi esculpido por soldados semitas em uma parede de um penhasco egípcio, há mais de 4 mil anos a obra apresenta um nome escrito em hieróglifos. Muitos símbolos podem ser encontrados principalmente na Europa antiga e na Mesopotâmia, símbolos simples como um peixe foi repetido várias vezes pelos cristãos, em muitas intervenções grafite era usado apenas como estratégia de reconhecimento (HUNTER, 2013), assim como as gangues atuais propõem hoje através das tags4. O grafite está envolvido com a ideia de expressão social, seja essa para evocar reuniões em locais secretos ou revelar um modelo de comunicação 3 4

Fotografo profissional e Curador Independente. Assinatura do autor do grafite.

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proposto por uma determinada sociedade. Assim, ele se caracteriza como movimento social está sempre dentro de uma trama da sociedade exprimindo desejos dos seus agentes, nas pesquisas de Hunter ele aponta uma característica do grafite que não só exprime essas ideias como também aproxima o grafite da antiguidade com o grafite hoje:

Enquanto a civilização se desenvolvia, os símbolos figurativos permanentes tornaram-se um método simples para comunicação de uma grande população analfabeta. Isso pode envolver a demarcação de territórios ou ter um significado político ou religioso dentro de uma narrativa pictórica, ou simplesmente descrever o nome de um lugar público ou uma loja especializada em itens particulares. Em Madri, por exemplo, há uma imagem de um carrinho com cartas parado na estrada assinado por “Calle de Postas”, mostrando a dupla informação pública usada desde os tempos medievais. O poder dessas simples imagens continua informando e inspirando a criação de várias artes de rua, por seu conteúdo em grande parte figurativo do que pode ser lido facilmente em qualquer língua, sem a necessidade de palavras. (HUNTER, 2013, p. 11)

A partir das afirmações de Hunter podemos ver que historicamente o grafite tem uma finalidade particular e dinâmica inclusive o poder de democratizar a arte e comunicar as grandes massas, como aconteceu no México no século XX.

Já no século XX, pintores mexicanos, utilizando-se de técnicas de pintura mural, decoravam edifícios públicos. Como vimos nos enormes murais executados por Diego Rivera, José Clemente Orozco e David Alfaro Siqueiros, quando convidados pelo então intelectual revolucionário José Vasconcelos, na ocasião em que, após uma série de golpes de Estado, sobe ao poder. Em 1905, o Dr. AIL(pseudônimo do pintor Bernardo Carnada) publicou um manifesto defendendo a necessidade de uma arte pública. Em Barcelona, 15 anos depois, Siqueiros fez apelo aos artistas da América, proclamando a necessidade de se lançarem todos à tarefa de promover uma arte capaz de falar as multidões. (GITAHY, 1999 p.15).

O grafite sempre esteve presente na História, por vezes de forma explícita e outras de forma implícita. Já no século XIX o grafite começa a tomar conta dos grandes centros urbanos.

Em centros de comércio – de Londres para São Paulo e de Berlim para Nova York – considerações socioeconômicas se fazem presentes nas ruas movimentadas, em projetos abandonados, portas

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de metal, paredes de parques de estacionamento e no próprio pavimento. Armados com latas de spray, latas, stencils, tintas e pincéis, artistas à paisana decoram distopias, com humor irônico e habilidades frequentemente aprendidas com prática. (HUNTER, 2013, p.11)

No contexto da história norte americana os estados da Filadélfia e de Nova York passavam por um por um momento de intensa propagação do grafite onde não só as paredes como a parte de interna dos vagões e estações eram decorados por tags e desenhos de vários sentidos, alguns de reafirmação e disputa entre gangues outros de cunho crítico social e político. A maior parte dessas intervenções vindas do indivíduo pobre que vive nas margens dos grandes centros urbanos. A desigualdade social norte americana que é econômica e muitas vezes até racial despertou esse sentido crítico nesses jovens da baixa camada que vão se apossar das artes urbanas como um canal para sua expressão, é o momento da quebra do silêncio daqueles que estavam mudos pela exploração do mundo capitalista e da segregação racial. Uma recente publicação da coleção Trama Virtual sobre a história do hip hop traça uma análise sobre esse importante momento da história do grafite. Esse movimento de aparecimento de várias intervenções nos bairros das cidades norte americanas é chamado de bombing:

Todo o sistema de metrô se torna um poderoso divulgador da nova arte de rua. É através dele que os grafiteiros dos cinco municípios nova-iorquinos tomam conhecimento uns dos outros, passando a gerar uma concorrência acirrada, das ruas ao metrô. (LEAL, 2014, p 40)

Nessa fase o grafite começa a ganhar novas características no seu traço o grande propulsor de um novo estilo artístico é o artista Phase 2 e outros artistas dessa época no cenário norte-americano. Em 1975 Nova York atravessa uma forte crise que afeta até o transporte público, esse fator aumenta as intervenções dentro dos vagões. O metrô passa a ganhar uma característica de outdoor ambulante. As políticas higienistas contra as intervenções de grafite só começam a tomar força mesmo por volta da década de 1980. (LEAL, 2007) Na mesma década, o grafite norte americano encontra-se ameaçado pela repressão do aparelho de estado norte americano, as políticas higienistas 9

vão se tornar cada vez mais extensas promovendo a limpeza das intervenções, detenção dos agentes, instalação de cercas e uma vigilância maior das jardas5. (LEAL, 2007) Em vários momentos haverá um recuo do movimento já que muitos artistas que faziam suas intervenções nas linhas de metrô haviam desistido por causa das ações repressivas. Para se defender os crews6 vão defender cada vez mais seus territórios, as vezes de forma até violenta, é nessa fase que o grafite está no auge da sua característica regional como propõe o sociólogo Luciano Spinelli. No final da década de 1980 é criado um setor do FBI apenas para conter a atividades dos crews, o MTA (Metropolitan Transportation Authority) (LEAL, 2007) esse é o momento mais difícil para a juventude que encontrava através do spray suas possibilidades artísticas. São Paulo já viveu a regionalização dos crews, mas, hoje já existem intervenções de um mesmo artista em vários cantos da cidade. O exemplo da imagem abaixo é de um artista que deslocou da zona leste para sul para expor sua intervenção.

Figura 1: Pássaro do grafiteiro Kito exposto no Parque Maria Helena, SP/SP. (Foto: Lucas Almeida; 2014)

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Unidade de medida usada nos Estados Unidos cada jarda corresponde a 0,91m. Nome dado ao coletivo de artistas que praticam arte urbana, como sinônimo de gangue.

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Diversos autores relacionam o grafite com a cultura Hip Hop na própria obra: Acorda Hip Hop! (LEAL, 2007) e nos estudos do Doutor Rafael Lopes de Sousa essa característica é presente (SOUSA, 2013). De fato existe uma ligação muito forte principalmente por que no início da década de 1980 o hip hop e o rap estavam ganhando força, e os jovens que já pertenciam a esse universo cultural também passaram a ter contato com o grafite, assim o movimento do hip hop se torna um apoio para o grafite que sofria com a força repressiva do FBI, essa ligação se mostrava forte não só nos Estados Unidos como também na Estação São Bento em São Paulo (ROTA-ROSSI, 2013) Em uma obra que reúne o material da famosa dupla “Osgemeos” Renato Silva analisa que o grafite vem se mostrando cada vez mais independente do Hip Hop (SILVA, 2009). Graziela Bedoian e Kátia Menezes organizadoras do livro Por trás dos Muros, reúnem depoimentos de grafiteiros e educadores para apresentar através de sua própria experiência o grafite que colore as ruas paulistas hoje. Essa obra é de extrema importância para entendermos a presença do grafite do cenário paulista, seus principais agentes, as características novas, uma forma e estética nova. A partir da década de 1980 o grafite paulista sofre cada vez mais influência direta do movimento urbano nos Estados Unidos e em Paris e é um processo que caminha junto à arte do HIP HOP e do RAP, esse conjunto de novas artes emergentes será denominado pelos artistas como street art. (Antonacci, 2007). Na metade da década de 1970 o grafite em São Paulo, passa por sua fase marginal (GITAHY, 1999) é normal pensarmos isso se entendermos que o Brasil estava saindo de um duro regime militar. As ações políticas e repressivas possivelmente tenha gerado nos jovens essa busca por expressão e contestação assim como vimos no modelo norte americano. O resultado foi então uma aproximação maior com o grafite, que se fortaleceu ganhando características políticas. O Jornal do Brasil publicou um pequeno informe relatando algumas intervenções em Brasília em 1980 dizendo:

Há algumas semanas os muros e as guaritas de pontos de ônibus de Brasília servem como espaço livre para os autores de grafitti pretensamente ecológico. As frases mais comuns são: Tão acabando

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com a Amazônia, Deixe o sol entrar na sua vida enquanto é tempo e Estão devastando o verde da nossa bandeira.Trata-se de estúpido ataque a propriedade privada e aos próprios do Estado que agora atinge a justiça. A estátua que a simboliza, na Praça dos Três Poderes, diante do supremo tribunal federal, amanheceu na quinta feira com dois olhos verdes pintados sobre a sua venda, E na boca foi desenhado um sorriso maroto. Não é, seguramente obra de partidários de defesa ecológica, mas sim de vândalos que estão na 7 cidade. (JORNAL DO BRASIL,1980)

Em Abril de 1984 o jornal Estadão em homenagem ao trabalho do artista plástico Alex Vallauri publicou uma série de depoimentos de amigos do artista elogiando seu trabalho e já apontando o grafite como a arte que dá cores e vida a cidade, em um trecho de um dos depoimentos o autor diz: “Embelezou a cidade e à sua maneira tornou a vida da plebe menos rude” (MANGOZZI, 1984)

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No mesmo comentário chama muito atenção a atribuição que é feita a

Vallauri: “desempenhou com sua ação um combate sistemático à grafitagem desenfreada-oca-gratuita”, certamente, o grafite viria a se tornar uma arte respeitada nos próximos anos, e seus próprios agentes já se articulavam para isso. O processo de legalização do grafite talvez esteja ligado ao fato de que nesse momento as distinções entre grafite e pichação não estavam claramente delineadas. A própria mídia no início da década de 1980 não estabelece bem essa distinção, em 1980 o Jornal do Brasil noticiou sobre algumas inscrições nos muros de Juazeiro, jovens estavam contestando a falta de políticas públicas para com o Rio São Francisco e escreveram a seguinte frase num prédio da cidade: “A enchente é meio de vida para muita gente” (JORNAL DO BRASIL, 1980) 9, a prática foi exposta como grafite quando na verdade era uma pichação. Com o trabalho de Vallauri, a aceitação das intervenções e os esforços dos grafiteiros, o grafite vem ganhando uma maior visibilidade e aceitabilidade, em 1985 o grafite ocupava a 18ªBienal de São Paulo, porém, em 1986 Jânio Quadros assume a prefeitura e as políticas higienistas entrarão em conflito com a prática da arte urbana. O Jornal Folha de São Paulo noticiou um conflito entre a Subprefeitura de Pinheiros, atores e o grupo “Tupinãodá” 7

Rio de Janeiro, 12 de Janeiro. 1980, Caderno 1 p.6 MANGOZZI, F. Grafitar é preciso, Viver não. Estado de São Paulo, São Paulo, 29 de Abril. 1984. Caderno 2 p.1 9 Em Juazeiro as inscrições na parede denunciam as lideranças locais. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 26 de Junho. 1980, Caderno B p.1 8

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em uma manifestação, as autoridades estavam detendo as intervenções feitas no túnel que liga a Avenida Doutor Arnaldo à Avenida Paulista, ponto em que segundo o Subprefeito era permitido as intervenções de grafite. Na notícia podemos ver claramente que as autoridades não estavam proibindo pichações e sim desenhos e intervenções artísticas urbanas, mesmo na segunda metade da década de 1980 o grafite ainda está ligado à uma ação ilegal(FOLHA DE SÃO PAULO, 1987)10. No início da década de 1990 grafite e pichação vem se distanciando, uma vez que o grafite é, doravante, visto por suas novas particularidades, novos traços e com uma forte presença nas grandes galerias referendada por nomes de artistas renomados que divulgam as particularidades dessa nova arte. O Jornal Folha de São Paulo descreve em uma reportagem da época, novas táticas para combater as ações dos pichadores, dentre elas se fala da invenção de um produto alemão que impermeabiliza as paredes e o cultivo de trepadeiras, protegendo contra as pichações, o discurso como sempre é propagado pela elite comercial ou donos de áreas residenciais de luxo. O que mais chama atenção na reportagem é o relato do uso do grafite como ação contra a pichação, a repórter alerta que os pichadores respeitam grafiteiros, portanto, para se proteger das pichações contratar um grafiteiro pode ser uma boa solução.

A preocupação é sempre maior quando se trata de pontos comerciais. Nesses locais, além das plantas, uma opção que vem sendo adotada é o grafite. Ou seja, proprietários preferem combater os pichadores contratando um grafiteiro para fazer uma pintura esses trabalhos normalmente são respeitados por pichadores” 11 (TOLEDO,1990)

Na mesma reportagem o grupo “Tupinãodá” que teve início na segunda metade da década de 1980 mostra seu apoio às práticas de valorização do trabalho do grafiteiro. A década de 1990 é uma década de efervescência do movimento grafite. Há o surgimento de novos coletivos12, que muitas vezes estão envolvidos com questões sociais. É o caso de um coletivo em Santo 10

Prefeitura volta a reprimir grafiteiros. Folha de São Paulo, São Paulo, 11 de Dezembro. 1987, Caderno Cidades p. A18 11 TOLEDO, Marina. Grafite e Plantas são armas contra pichadores. Folha de São Paulo, São Paulo, 2 de Dezembro. 1990, Caderno Imóveis p. I12 12 Equipe de grafiteiros

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André em 1992 que se envolveu com práticas ambientais em parceria com a EEPSG. Américo Brasiliense, criando uma coleta seletiva e expondo trabalhos com o mesmo tema (FOLHA DE SÃO PAULO, 1990) 13. A Ferrovia Paulista Sociedade Anônima (FEPASA) investiu em políticas para o grafite como o “concurso fepasa de grafitagem” e exposições culturais, vemos aqui um momento na história do grafite onde o setor privado o apoia, contexto diferente daquele apresentado nos EUA na década anterior. Em 1993 a empresa realizou um grande evento reunindo 26 grafiteiros mostrando seu trabalho ao público, o objetivo era selecionar trabalhos para a 2ª Mostra Paulista de Grafite que seria exibida no Museu da Imagem e do Som (MIS). Na primeira metade dos anos 90 a comemoração do dia do Grafite se torna algo cada vez mais festivo e presente anualmente o jornal Folha de São Paulo publicou informações sobre isso, focando sempre as ações maiores, então falava já do trabalho de Gitahy nome importante do grafite na época e das homenagens a Alex Vallauri que à essa altura já havia ganhado o status de precursor da arte em São Paulo.

Ontem, dia nacional dos grafites, os grafiteiros Celso Gitahy, Eduardo Castro (foto) e João Indio prestaram uma homenagem a Alex Vallauri, precursor da arte no país, pintando os muros da Praça Roosevelt. O local foi escolhido segundo Gitahy, por que está “muito deteriorado” e 14 fica na região central da cidade”.(FREITAS, 1995)

Além dos coletivos e projetos sociais do governo para criar intervenções e espaços para o grafite nos monumentos públicos e privados como é o caso do Pacaembu. As primeiras produções sobre o grafite começam a surgir em 1999 Celso Gitahy publica pela editora brasiliense o livro: “O que é grafitti”. Nesse contexto o grafite conquista cada vez mais espaço e o Estado de forma lenta vem aceitando a prática como arte. Para tanto, na maioria das vezes é a visão de criminalidade que se projeta sobre o grafite. Essa visão é clara quando passamos a entender que parte das intervenções de grafite são 13

Grupo de grafiteiros pinta coleta seletiva. Folha ABCDsp, Santo André, 13 de Junho. 1990, Caderno Cidades/Culturas/Mortes p. 8 14 FREITAS, Evelson. Grafiteiros pintam a praça Roosevelt. Folha de São Paulo, São Paulo, 28 de Março. 1995, Caderno 3 p. 1

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expostas em locais de propriedade privada. O discurso da classe média, propulsora de uma imagem preconceituosa contra o grafite, é de que isso é dano material, vandalismo, vadiagem. Cabe aqui não generalizar a classe média uma vez que o próprio Alex Vallauri um dos precursores do grafite em São Paulo, era de uma família com boas condições sociais. Se na prática o grafite já fazia parte do cotidiano e eram bem aceito, na lei a visão era outra. Ao tempo em que no Brasil os anos 1990 fora anos de ouro para o grafite, nos EUA o movimento sofria fortes repressões dos setores de segurança, e políticos como Maluf chegaram a querer adotar as mesmas medidas para o grafite no território paulista. Quando Gitahy escreveu sua obra, foi aprovada a seguinte lei 9.605 dizendo que:

Art. 65. Pichar, grafitar ou por outro meio conspurcar edificação ou monumento urbano: Pena - detenção, de três meses a um ano, e multa. Parágrafo único. Se o ato for realizado em monumento ou coisa tombada em virtude do seu valor artístico, arqueológico ou histórico, a pena é de seis meses a um ano de detenção, e multa. (BRASIL, 1999)

A Presidenta Dilma Rouseff sancionou uma alteração nessa lei, redigida na Lei 12.408 em 2011 considerando:

o

§ 2 Não constitui crime a prática de grafite realizada com o objetivo de valorizar o patrimônio público ou privado mediante manifestação artística, desde que consentida pelo proprietário e, quando couber, pelo locatário ou arrendatário do bem privado e, no caso de bem público, com a autorização do órgão competente e a observância das posturas municipais e das normas editadas pelos órgãos governamentais responsáveis pela preservação e conservação do patrimônio histórico e artístico nacional.” (BRASIL, 2011).

É interessante notar que a legislação brasileira, aos poucos, vem aceitando o grafite como uma manifestação cultural. Nessa mesma alteração chama atenção que a venda de tinta spray para menores fica totalmente proibida e que caso esses produtos sejam vendidos deverá ser gerada nota fiscal em nome do comprador. É uma tática do Estado para saber quem pratica esse tipo de ação e poder controla-la. Na pré-história o grafite estava presente na forma de traços, e num processo transformador de arte esses traços rupestres foram assumindo as 15

representações sociais e cotidianas, as vezes apresentando uma estética realista, as vezes representando as coisas sem um padrão estético realista. Em muitos momentos da história o grafite esteve fortemente ligado à pichação o que acabou gerando confusão na distinção. Hoje essa distinção se faz mais clara se fizermos um estudo comparativo das imagens urbanas. A distinção também fica clara se analisarmos o fato de que hoje o grafite saiu da esfera ilegal e legitimou como arte, a década de 1980 é um marco então para distinguirmos grafite de pichação Segundo Gitahy “(...) se consagra como linguagem artística nos anos 1980, conquistando seu espaço na mídia, chegando a bienal, às manchetes de jornais e até nas novelas de TV” (1999, p. 16). A palavra pichação tem ligação com a palavra escrita, possuí vários significados como escrever com piche, manchar ou sujar. Historicamente a ação era vista na cidade de Pompéia, na Idade Média quando “os padres pichavam as paredes dos conventos de outras ordens que não lhes eram simpáticas” (GITAHY, 1999, p.20). Na edição de 1997 da Barsa a definição para pichação é criticar asperamente. Célia Maria Antonacci acredita que a prática começou a perder seu carácter político, quando nos muros começaram a surgir frases românticas, ou simplesmente a divulgação dos nomes e gangues de pichação (ANTONACCI, 2007). O sociólogo Luciano Spinelli faz um comparativo entre pichação e as propagandas expostas no espaço urbano e propõe:

O objetivo de observar o poder invasivo, contido na pichação como um signo urbano, é de a relacionar a outras manifestações visuais em torno do diálogo criado com o habitante citadino. Em um comparativo com a publicidade, por exemplo, percebe-se que, enquanto uma goza de legitimidade autorizada, mediante pagamento, a outra é institucionalmente ilegítima, e sua realização está sujeita à pena e/ou ao pagamento de multa. As razões para essa diferenciação podem ser encontradas nos artigos da legislação brasileira ou então nos meandros do sistema capitalista internacional. O certo é que ambas levam a público, à rua, manifestações simbólicas de significado difuso, compreensíveis segundo certas instâncias analíticas. Para tanto, a publicidade pode passar de uma imagem alusiva a uma marca até a uma informação subliminar ou um merchandising mais explícito. A pichação, por sua vez, pode passar de um rabisco ilegível e monocromático, a uma assinatura, até culminar em um código secreto articulado por jovens e adultos que nele se reconhecem. (SPINELLI, 2007 p. 112)

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Aqui podemos novamente verificar o poder que a classe média propulsora das propagandas expostas no espaço urbano possui de criminalizar a pichação enquanto livre expressão do indivíduo. Na ordem capitalista em que a sociedade vive as ferramentas que induzem ao consumismo possuem livre direito de se expressarem nos muros, enquanto o indivíduo é criminalizado ao se expressar nos muros. Chamo atenção também por que o aparelho de Estado criminaliza não só as expressões individuais como também as políticas. O Estado que no seu discurso dá direito ao indivíduo de se expressar entra em contradição com sua legislação e ações. São Paulo é um grande centro urbano, carente de muitas ações políticas. Ações essas que não acompanham seu crescimento demográfico, e a população se revolta ao se deparar com uma falsa imagem de capital moderna enquanto a estrutura é de terceiro mundo:

Não é por acaso que a pichação surge e se intensifica nos grandes centros urbanos, mesmo nos países menos desenvolvidos. A pichação aparece como uma das formas mais suaves de dar vazão ao descontentamento e à falta de expectativas. São quinhentos pichadores em Santo Amaro, trezentos no Aeroporto, quatrocentos em Santana e assim por diante. (GITAHY, 1999, p. 24).

Gitahy divide a história da pichação em São Paulo em quatro fases, na primeira fase ele aponta a existência de carimbos repetitivos e frases iguais expostas em vários locais da cidade. Na segunda fase é comum a existência de um pseudônimo a enorme disputa criativa entre gangues e pichadores. Na terceira fase os grandes arranha-céus são o alvo dos pichadores, quando mais alta for sua pichação mais valiosa. Na quarta fase os patrimônios públicos e as questões públicas vinculadas pela mídia passam a ser objeto da ação, quando havia terminado a reforma do teatro municipal, a mídia noticiava morte de jovens pegos pichando em flagrante. (1999) Seria a pichação algo distante do grafite? Duas extremidades? Um é desenho e o outro é escrita? A hipótese proposta para isso é que não. Se repararmos bem a partir da década de 1990 surgirá uma aproximação muito forte entre essas duas linguagens. Alexandre Barbosa Pereira, aponta essa proximidade emergente em sua tese de doutorado e o próprio percurso de

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Celso Gitahy envolvido em projetos públicos que transformem o pichador evocam essa proximidade

“Durante a gestão Luiza Erundina, no entanto, tentou-se um diálogo com os pichadores buscando aproximá-los da oficina de grafite promovidas pelo governo municipal. Porém foi o prefeito Celso Pitta que tentou adotar a medida mais controversa: cobrar multa daquele que tivesse os muros da sua propriedade pixados e não pintassem dentro de um prazo máximo estipulado. Logo em seguida, na gestão da prefeita Marta Suplicy, as oficinas de grafite ganharam força novamente, junto com elas o “Projeto Belezura”, que visava deixar a cidade mais bonita através da pintura constante de determinados espaços para que estes não voltassem a ser pixados. Nenhum desses objetos, no entanto, conseguiu obter êxito e conter as ações dos pixadores da cidade.” (PEREIRA, 2005, p.9)

A pichação é, portanto, a expressão do indivíduo nas suas próprias possibilidades de linguagem. Na ausência do saber das normatizações de uma linguagem denominada como linguagem letrada por aqueles que dela fazem uso, esses indivíduos criam seus próprios códigos de comunicação, criticam o sistema no qual não fazem parte negando normas que os padroniza dentro de um conjunto ético e social no qual não se sentem inseridos, interveem no estado material de muros, monumentos, do transporte, do asfalto, das carteiras e paredes escolares dos portões e placas urbanas em busca de atenção para sua crítica. Essa perseguição para com a pichação vem sendo desconstruída, alguns autores acreditam que a pichação ainda não é aceita por que não é compreendida como modo de comunicação e expressão e o grafite também não era, e sofria a mesma repressão que a pichação é o que mostram as matérias de jornais que foram analisadas para essa pesquisa, porém, quando a pichação toma maiores proporções na capital paulista o grafite começa a ser visto com outros olhos e começa ser visto como solução para uma linguagem ainda não aceita. Se voltarmos para as palavras de Alexandre Barbosa, fica claro que as políticas em prol a pichação não surtiram resultado algum. Isso propõe que proibir uma ação humana natural que é a expressão, ou tentar transformá-la em outra ação substituído pichação pelo grafite não vai anular sua existência dessa ação humana. Manipular a forma como os indivíduos se comunicam, censurar práticas artísticas e agora em uma fase de pós-reabertura

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democrática censurar as práticas urbanas oprime, mas, continua fortalecendo o movimento. Classificamos, então, a pichação como variante independente do grafite, mas com fortes ligações com o mesmo. Tal linguagem busca conquistar seu reconhecimento e espaço enquanto linguagem de expressão.

2.0 – QUANDO A ARTE SE APROXIMA DA PERIFERIA: O GRAFITE E SEU PODER DE TRANSFORMAÇÃO Artista do spray seu muro é nossa tela, Seu muro se destaca como quadro de aquarela. Artigo 163, tô sempre assinando Normal né Já tô até me acostumando Pixo, gaffite, bomb, grapixo A lata do spray e remédio do meu vício (Trecho extraído da música “Pixar é arte” do grupo: Total Função Rap)

Para Luciano Spinelli qualquer ação urbana noturna que envolva grafite ou pichação é ação marginal ele identifica o jovem que pratica a intervenção como um jovem que está sempre em conflito com a segurança pública e por isso é sempre enquadrado no art. 163 sobre dano ao patrimônio público. O indivíduo fica a margem social, é mal visto por sua comunidade e sofre violência dos proprietários de imóveis pichados ou da polícia, se vive na periferia é duplamente estigmatizado pela sociedade elitista que dificulta seus acessos de participação social, como no mercado de trabalho (2007). Na maior parte dos casos são jovens das periferias como aponta o antropólogo Alexandre Barbosa (2005) Em 2008 o colunista Ruy Castro expos sua opinião sobre os grafiteiros da cidade de São Paulo da seguinte forma:

Tanta imundice revela abandono e é porta aberta para criminalidade – bandidos sentem-se bem em meio a ela. Algumas prefeituras fazem sua parte, mas os cidadãos precisam ajudar exercendo sua cidadania. Embora pertença a todos, o espaço público não é a casa15 da-mãe-joana. (CASTRO, 2008).

Aqui vemos que os indivíduos que fazem intervenção na cidade são vistos como criminosos Spinelli analisa sua ação como um crime menor, esse 15

CASTRO, Ruy. Cidadãos com cidadania. Folha de São Paulo. 19 de Maio. 2008, Caderno 1, p2

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argumento de crime menor ou crime de desordem é usado por aqueles que defendem políticas como as de Jânio Quadros ou até mesmo do governo norte americano contra a arte urbana. Mas algo que nos chama atenção é que alguns colunistas ou até mesmo a elite, que rotula o jovem grafiteiro como criminoso ou responsável pelos crimes menores, passa o tempo a refletir a ação e não reflete no contexto e não entende o processo que está intrínseco na ação de um jovem que grafita, em outras palavras não conhece ou procura entender o jovem que grafita. As periferias dos grandes centros urbanos vivem uma fase delicada nesses últimos anos, aumento da violência, falta de benefícios e condições sociais necessárias e a violência física e psicológica promovida pela mídia, por policiais e sujeitos que não compreendem o cotidiano e o processo histórico desses extremos bairros e comunidades. Os noticiários, as postagens de sites na internet os canais de vídeos postam ação de policiais contra indivíduos na internet, essas ações quase sempre resultam em morte. Em março de 2014 a auxiliar de serviços gerais Claudia Silva Ferreira foi baleada e jogada em um porta-malas de uma viatura, os policiais não chamaram uma ambulância, a mulher ficou presa no carro apenas por sua roupa e acabou sendo arrastada por 350 metros, o caso gerou uma repercussão grande nos grande veículos midiáticos. Os comentários feitos nessas postagens e periódicos são de violência ainda maior, usuários e leitores quase sempre defendem a violência policial e não interpretam o caso, seu contexto histórico, a intenção policial, o que importa é que bandido bom é bandido morto para uma grande parcela social. Maria Cristina Leal, Maurílio Castro de Matos e Mione Apolinário Sales levantaram alguns estudos sobre política social, família, juventude e seus direitos. As analises relatam que diariamente se produz uma fala que gera insegurança a respeito da violência praticada pelos jovens, resultando medo em todos os setores sociais. Esse medo de poder ser afetado causa insociabilidade entre as classes. Dentro do ambiente escolar é comum uma criança ou adolescente ser julgado por seu modo de falar, de se vestir ou agir, esse julgamento de valor é carregado dessa visão que nasce dessa insegurança social. “A figura da mídia, tem um importante papel na criação de um discurso que amedronta a sociedade, além da classe média que vai se 20

distanciando e se fechando cada vez mais em seu espaço privado” (CALDEIRA. 2000 apud LEAL; MATOS; SALES. 2010). Verifica-se um intenso crescimento da violência contra crianças e adolescentes, um estudo comprova que de 1980 à 1994 média de 6.589 adolescentes de 10 à 19 anos foram assassinados, na maioria dos casos com arma de fogo, a maioria deles com primeiro grau incompleto. A Secretaria Municipal de Saúde relatou só no ano de 1998 – 903 mortes de jovens do sexo masculino entre 15 e 24 anos a maioria por arma de fogo e mais 225 por violência mal definida. Isso desconsiderando outros tipos de violência (LEAL; MATOS; SALES. 2010). Os jovens pobres são as principais vítimas da violência social devido as consequências de conflitos travados com a polícia. A polícia interveem na periferia quando acionada pelas camadas mais altas da sociedade, mesmo assim é uma intervenção violenta, afim apenas de cessar conflito e não de procurar uma solução direta para os problemas que causam a violência nessas regiões. Cada vez mais o adolescente e o jovem sendo apresentado como responsável pela violência diariamente esse discurso vem sendo reforçado. O resultado disso são situações onde não se analisa mais o contexto da violência como no caso da diminuição da menor idade penal, e enquanto isso, alguns agentes ligados aos aparelhos repressivos se isentam como corresponsáveis por sua produção (LEAL; MATOS; SALES. 2010). Com passar dos anos, a partir da década de 1980 nota-se um envolvimento maior de crianças e adolescentes com a criminalidade, isso já é natural, só que na maior parte das vezes a indignação só vem com a mídia. (LEAL; MATOS; SALES. 2010). Os autores apresentam um quadro de aumento da taxa de mortalidade e a presença cada vez mais crescente de armas. É cada vez maior a quantidade de agentes envolvidos em um processo refinado e complexo do tráfico, envolvendo setores públicos e privados. Os jovens envolvidos nesse processo não se entendem num processo ilegal de produção,

mas

sim

de

uma

complexa

atividade

que

os

incorpora

subalternamente. Não é correto atribuir esse tipo de atividade somente ao jovem das camadas pobres, na verdade há uma hierarquia onde o cargo é 21

definido por vantagens e alternativas, portanto a divisão e a escolha é feita pela qualidade e não pelos status econômico (LEAL; MATOS; SALES. 2010). Grande parte dos jovens envolvidos com essas questões, estão afastados da escola. Nas comunidades “periféricas” a precocidade da atividade sexual, a criminalidade e a evasão escolar parecem se interrelacionar com a emancipação dos jovens, com o momento que passam a ser adultos (PAIXÃO, 2011, P. 178).

Sandro José Cajé da Paixão propõe que a pobreza e esse contexto conflituoso não é característica tão somente das periferias e que o centro de São Paulo é onde podemos encontrar as provas cotidianas da pobreza e desigualdade paulista. Nas calçadas da Liberdade, Praça João Mendes, Praça da Sé, São Bento, nos cantos do centro de São Paulo vemos aqueles que autor caracteriza como os “desocupados, os homens de rua, os drogados e os alcóolicos” (2011, p.178) A região também abriga um contingente operário, pessoas de vida simples, que residem nas em locais como Brás ou Sé. Para o autor a região central de São Paulo apresenta tanta vulnerabilidade quanto as regiões periféricas. Segundo o autor são nesses bairros centrais ou periféricos onde há maior possibilidade entre socialização de “estranhos” de indivíduos de distintos grupos sociais. Mesmo assim a tendência urbanística é facilitar cada vez mais os espaços para quem está de passagem e diminuir ou até mesmo cercar privatizar o espaço público destinado ao passeio (PAIXÃO, 2011). Essa estratégia é uma tática higienista para remover o pobre das regiões centrais de São Paulo, ou das regiões onde circulam aqueles que precisam se distanciar desses indivíduos distintos ou “estranhos”. O aumento do policiamento, a vigilância constante opera junto ao pensamento urbanístico segregacionista. Mesmo com uma violenta política de privatização e vigilância dos espaços para encurralar aquele que está fora do padrão de circulação de algumas áreas, quem contraria os urbanistas e se apropria desses espaços são os “skatistas, os trecheiros, os desocupados, os pixadores, e os grafiteiros” (PAIXÃO, 2011, P. 178) Para (PAIXÃO, 2011) o grafite promove a socialização nos lugares em que ela estava debilitada. Ele considera que há transformação de “não-lugar” 22

em “algum lugar” (2011, p.178), permite ao jovem, sobretudo aos jovens periféricos, criar uma relação de admiração com a cidade que habitam. Assim, grande parte deles, deixam de ser expectadores e experimentam a cidadania por meio da arte do grafite. Esse fenômeno é a conversão do sujeito até então condenado ao fracasso por sua situação e contexto social, diminui a violência e surge a possibilidade de autoconhecimento através da arte. O movimento do hip-hop vem estimulando práticas artísticas e esportivas junto as organizações sociais com objetivo de transformar uma realidade violenta e fatal em bairros pobres, as vezes com apoio político que objetiva enaltecer a benevolência de um político, as vezes sem nenhum apoio político. Tais práticas são constantes e contribuem para transformação social do indivíduo e para uma nova fase da sua história (PAIXÃO, 2011). Poucas vezes os meios de comunicação refletem sobre característica cultural que aflora hoje nas periferias, continua sendo veiculado cotidianamente a criminalidade exacerbada, as mortes, os roubos, as chacinas. Não se promovem as práticas culturais, não se valoriza a transformação dos indivíduos sociais. Os jovens das comunidades periféricas encontram por meio desses projetos e do contato com a arte uma oportunidade de se afastar do mundo do crime e também de afirmar seu direito de dignidade. O grafite traz para o jovem, o acesso ao direito e a produção cultural que lhe vem sendo negado historicamente (PAIXÃO, 2011). Milton Santos em suas analises acerca da globalização mostra que além da violência as periferias de grandes centros urbanos são obrigadas a viver com uma taxa de desemprego alta, baixíssimos salários e carência de direitos básicos segundo o autor “Os de baixo trabalham cada vez mais com menos direito” e a “pobreza é tratada como naturalidade” (2001). O que o Milton Santos apresenta como a revanche da periferia é nada mais que uma revolta do povo contra a situação precária de vida a qual estão condicionados, o poeta Sérgio Vaz assim exprime essa realidade:

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A Periferia nos une pelo amor, pela dor e pela cor. Dos becos e vielas há de vir a voz que grita contra o silêncio que nos pune. Eis que surge das ladeiras um povo lindo e inteligente galopando contra o passado. A favor de um futuro limpo, para todos os brasileiros. A favor de um subúrbio que clama por arte e cultura, e universidade para a diversidade”. (VAZ, 2010)

A periferia tão fragilizada pelos vários problemas apontados até aqui hoje se vê em estado de indignação e utiliza dos meios de cultura eletrônica, escrita e artística para mostrar essa indignação e trabalham para um processo não só de conscientização do momento histórico como também de produção opinião e apropriação cultural, reconhecimento e aceitação da identidade ações que se tornam escudo diante do negativismo pregado pela mídia elitista. O Rap, a cultura hip-hop, o grafite, a dança, o teatro e várias outras linguagens se encontram nesse espaço que vem sendo apresentado como espaço de sangue e de “bichos”. A história, o cotidiano que antes era noticiado e ilustrado na perspectiva elitista, dos grandes veículos de comunicação, das grandes vozes da sociedade aos poucos começa a ser contada pela perspectiva dos grandes culpados, criminosos, dos vilões da história. É a cultura popular que agora age não falando com discurso pautado na violência como a cultura de massa, mas sim pautado nas questões sociais, nas visões de mundo, no cotidiano e na ação daqueles que vem de baixo. A globalização que ora prega ser o fenômeno da união mundial e nacional ou de conexão entre todas as áreas mundiais se. É também segundo Milton Santos responsável por mascarar o imperialismo vivido nos dias de hoje pelas camadas pobres de vários lugares do mundo, e as massas, o indivíduo que sofre com essa pressão e exploração reage através das suas práticas contra o sistema de exploração (2001). O grafite reage contra essa pressão, assim como o bombing do grafite norte-americano, a dança, a poesia, a vontade política, a arte, a educação e a produção das periferias. Fenômenos como esses são vistos por Roger Chartier como um movimento de cultura popular apresentado em dois modelos. Esse tipo de expressão cultural existente discute a ideia de dominação, e é caracterizada pela ação popular em crítica à carência e a dominação em relação ao outro. Esse mesmo modelo ação cultural pode ser fechado em si mesmo ou pode reivindicar seu espaço cultural. Mas nem por isso o autor apenas reduz a 24

cultura popular apenas à uma ação que busca falar das diferenças e carências, é preciso tratar “termo a termo, como uma descrição em negativo, o que o autor chama de reconhecimento de uma dignidade igual para todos, as lembranças das hierarquias sociais” (CHARTIER, 1995) Para entender como a juventude se envolve nesse universo levanto aqui as ideias de Antônio Carlos Brandão e Milton Fernandes Duarte sobre cultura jovem. A partir da década de 1960 a juventude passou a apresentar críticas mais contundentes à sociedade moderna, não só negando valores, mas tentando criar e vivenciar um estilo de vida alternativo e coletivo. Nisso surge o movimento de contra cultura, focado na crítica ao modelo cultura de mercado, que questiona e promove discussões diante dos problemas sociais eles evidenciam à transformação da cultura jovem (BRANDÃO; DUARTE, 1990) Através dessa explosão cultural das baixas camadas ou daqueles que não estão nas glórias da história aos poucos opiniões carregadas de preconceitos, que segregam, desvalorizam e violentam vão se diluindo. Em 1996 o vereador José Eduardo Cardoso na gestão da prefeita Luiza Erundina tomou uma importante iniciativa nesse processo: (...) “contratou a turma do poder – grupo formado por meninos de rua, que desenvolve atividades culturais – para atuar como seus grafiteiros oficiais” (FOLHA DE SÃO PAULO, 1996)

16

.

O objetivo da política era colorir muros. Talvez o maior desafio do grafite ainda seja a marca de vandalismo como mostra uma comparação feita no jornal folha de São Paulo: “Como grafiteiros, os hackers, não passam de adolescentes mal resolvidos, cheios de complexos e problemas sexuais” (COSTA, 1994)

17

. A

visão de que os grafiteiros são jovens desempregados também se diluí, à medida que cada vez mais o grafite vem trazendo oportunidades no mercado de trabalho aos jovens interessados no ramo da arte com baixa renda. O grafite tornou-se

então

ferramenta

importante

no

processo

de

autonomia,

reconhecimento político e cultural dos jovens. No estudo de caso analisado nessa pesquisa Graziela Bedoin e Kátia Menezes organizam uma obra com depoimentos de pessoas envolvidas com o serviço social e o grafite. Essa obra conta o processo do projeto Quixote que 16

Arco-íris. Folha de São Paulo. São Paulo. 26 de Julho. 1996. Caderno 2 p. 3 COSTA, Jurandir Freire. Que delícia de máquina, Folha de São Paulo, São Paulo, 27 de Fevereiro, 1994, Caderno Ilustrado, p. 6 17

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tem como objetivo atravessar as barreiras das diferenças sociais. O grupo milita pela imagem do grafite como arte que não segrega. As tags levam a história de cada um dos indivíduos. Jovens encontraram no grafite possibilidades para reinterpretação social e floresceram talento. O agente do grafite resgata a diversidade do espaço público, chama atenção para quem realmente é o povo brasileiro. 3.0 – NOVOS PROTAGONISTAS SOCIAIS: O JOVEM GRAFITEIRO, O EDUCADOR E A PERIFERIA MOSTRANDO SUA ARTE

A Agência Quixote Spray Arte é uma ação do Projeto Quixote que objetiva gerar renda através do grafite. Entre os entrevistados estão: Auro Danny Lescher – coordenador geral do Projeto Quixote, Graziela Bedoian – coordenadora da área de pesquisa e da Agência Quixote Spray Arte, Roberto Carlos Madalena – coordenador do programa de educação para o mundo do trabalho e Zilda Rodrigues Ferré – coordenadora do núcleo pedagógico. Os grafiteiros entrevistados estudaram na Agência Quixote de Spray arte e hoje são grafiteiros profissionais e educadores no projeto, são eles: Marcelo Masaharu Nagatha (Cuba), Otavio Fabro Boemer (Ota), Bruno Pastore (Pastore) e Fábio Luiz Pereira Nascimento (Wolpi). O núcleo de pesquisa também colheu depoimentos de clientes e sujeitos envolvidos com o movimento do grafite sendo esses: Jon Reiss, cineasta que levou o documentário Bomb it para a 31ª Mostra de Cinema de São Paulo, a urbanista Raquel Rolnik e da empresa Clube Estilo. Todos esses depoimentos estão organizados na obra “Por trás dos Muros: Horizontes Sociais do Grafite” O projeto foi fundado por pessoas que trabalhavam no ambulatório da UNIFESP, foram se aproximando cada vez mais das ideias de Paulo Freire, sentiram uma inquietação ao se depararem com a questão do jovem e da criança frequentemente banalizados e a ligação com o uso das drogas. Para os responsáveis pelo projeto além da construção do criativo, o grafite promove a desconstrução da linguagem da pichação e cria contexto para as intervenções urbanas. Cria vínculo humano que jovens e adolescentes que já não possuem confiança nas pessoas ao seu redor e em si mesmo e vai de encontro com as ideias de Paulo Freire quando associa que a educação “deve conter o ético e o 26

estético”. (1996). Auro chama as crianças de rua de “refugiados urbanos” que quando entram em contato com o grafite vão buscar visibilidade, afirmação da identidade, sair da situação de privação e da violência. O grande foco do projeto é o “rematriamento” (voltar a ser filho da mátria). O projeto trabalha o psíquico, o social, o clínico e a geração de renda. A proposta é que o jovem se exile da sociedade e depois volte para ela transformado, ele volta para a mátria acreditando em si mesmo e nas pessoas. Essa transformação está calcada em fazer o jovem se entender, entender sua existência o que Paulo Freire entende e explica da seguinte forma: Mais uma vez os homens, desafiados pela dramaticidade da hora atual, se propõem, a si mesmos, como problema. Descobrem que pouco sabem de si, de seu “posto no cosmos”, e se inquietam por saber mais. Estará, aliás, no reconhecimento do seu pouco saber de si uma das razões desta procura. Ao instalar-se na quase, senão trágica descoberta do seu pouco saber de si, se fazem problema a eles mesmos. Indagam. Respondem, e suas respostas os levam a novas perguntas. (1970, p. 16)

No primeiro capítulo alguns grafiteiros falam do início, dos primeiros contatos com o grafite. Alguns deles não tiveram primeiro contato efetivamente com o grafite e sim com a pichação, é o caso de Cuba, outros já tiveram contato com grafite através dos amigos. A Zona Norte de São Paulo é berço de muitos grafiteiros, Pastore é um dos grafiteiros que surgiu nessa região. Seu primeiro contato nasceu de um muro que viu no Carandiru, aos poucos ele começou a reproduzir as imagens que via. Nem todo grafiteiro começa sua trajetória nos muros, muitos como Wolpy passam pelo processo do papel e depois começam seu contato com os muros. Esse contato do papel está presente na realidade de grande parte dos jovens, que ilustram e riscam seus cadernos com informações de diversos gêneros e propostas. O segundo capítulo que é intitulado como: “juventude falando pro mundo” aborda as intenções dos jovens que se aproximam e praticam a arte de grafitar. É importante destacar a consciência histórica dos envolvidos na trajetória do projeto, afinal, para Auro o Grafite expressa a imagem da população, ele busca comparar essa afirmação evocando o exemplo das intervenções feitas na pré-história que falavam sobre a caça, a ameaça, o tempo e os riscos. Para ele o grafite hoje fala sobre os desejos, os medos e 27

traz à tona particularidade de quem o executa, ele afirma ainda que quem executa não tem tantos privilégios numa sociedade que não é de direitos e sim de privilégios. O grafite é um berro, grito e afirmação sem espaço e sem diálogo. Ele faz parte das diversidades que não são vistas por quem dita as regras da sociedade. Ota acredita na intenção transformadora do grafite uma vez que ele acolhe os adolescentes que sentem a necessidade de viver em grupo. Assim como Rafael Lopes propõe que o movimento do Hip Hop traz a possibilidade de formação e reconhecimento da identidade do sujeito envolvido. (SOUSA, 2013).

O terceiro capítulo também discute esse

autoconhecimento proporcionado pelo grafite, ou como o próprio capítulo intitula um “encontro consigo mesmo”. Nesse processo a autoestima tem importância uma vez que dá forças para sujeito envolvido com o grafite, por isso a assinatura do trabalho é de extrema importância para que possa ser valorizado pelo transeunte como analisa Ota. Aos poucos o sujeito do grafite vai se mostrando e perdendo a timidez através das suas intervenções. A tag do grafiteiro, muitas vezes é sua própria intervenção artística.

Figura 2: Tag no bairro Jardim Aracati, SP/SP. (Foto: Lucas Almeida; 2014).

Pastore não vê a tag como vandalismo. Ela é uma necessidade do artista em estar o tempo inteiro riscando, trazer beleza ao que estava cinza, 28

morto, destruído na cidade. A forma, o estilo da tag também mostra o artista e traz características peculiares do mesmo. Para Cuba assinar como Cuba não faz mais tanto sentido, afinal esse foi um apelido que lhe deram quando era menor, seu objetivo hoje é pesquisar e aprender sobre suas origens e criar um tag novo, que nasça desse processo. Pastore aposta no uso de frases como tag, que façam sentido para ele e sejam fonte de auto interpretação para o passante. O grafite age como intervenção no espaço urbano, essa é a proposta de Ota quando diz que o grafite se instala na cidade, se adapta a ela e interveem em buracos, diagonais e etc. Nesse sentido Cuba acredita que o grafite interage com o ambiente. O próprio ambiente também influencia na intervenção. No começo ele pedia um muro e recebia vários nãos, andou muito procurando muros. Interviu em alguns lugares como viadutos, casas abandonadas, fábricas e nesses não precisou pedir permissão, muitos desses lugares não são notados e estão sempre mal cuidados. O local, a foto, o desenho e até o mendigo inspira. Ele explica que o grafiteiro tem contato com meninos de rua, muitas vezes abandonados pelos pais, que não vão à escola, não sabem o que é educação, querem mexer no material do grafiteiro, mas quando o grafiteiro repreende eles escutam. Ota valoriza muito a ideia de viver em grupo enquanto pinta, para ele isso é um relação de completude. Acredita que mesmo sozinho pintar é importante e funciona como uma terapia. Desenhar é um processo e levar o desenho para a rua torna-se uma necessidade do artista que quer articular seu processo com o povo e sair de casa ele denomina isso como “fenômeno fechado da globalização”. Auro não vê o Grafite sozinho nesse processo onde os grupos periféricos tem a chance de expor suas preocupações e inquietações. Ele chama atenção para o mundo do hip hop e seus quatro eixos: Artes Plásticas (Grafite), O corpo e a dança (Break), MC (mestre de cerimônia) e o RAP. Da união desses elementos com a ação do “expressar, querer” nasce à consciência cidadã. Nesse processo Graziela Bedoian, organizadora dos depoimentos discutidos aqui afirma que o grafite traz consigo o tom de denúncia e o indivíduo faz da cidade uma vitrine expondo seus pensamentos. (MENEZES; BEDOIAN, 2008).

29

Esse movimento para ela é político e para comprovar a relação histórica de como a expressão pode ser política ela toma como exemplo a Pólis grega, onde as pessoas contribuam no processo democrático com as suas expressões. (MENEZES; BEDOIAN, 2008). Raquel, que é cliente da Agência Quixote diz que a expressão política no Brasil é algo que se dá com facilidade, isso tem a ver com a falta da noção de pertencimento e posse do lugar de onde se vive. Num país marcado por uma história onde os latifundiários privatizaram o espaço público, o uso da expressão “espaço público” não condiz com o contexto, logo, a expressão política também não. (MENEZES; BEDOIAN, 2008). Um dos primeiros projetos promovidos por Graziela pretendia fazer uma grande intervenção na muralha do Carandiru entre 1999 e 2000 o evento chamou atenção, afinal a discussão sobre grafite não era muito comum nos lugares. O sucesso do evento levou o grupo a produzir uma segunda edição em uma escola. Esse projeto foi intitulado como “Urra!”. Uma das edições recebeu o tema: “Pai, Herói ou Vilão”. Nessa edição presos pintavam do lado de fora e através dos buracos nas paredes eles iam se comunicando. No dia estavam presentes também meninos da FEBEM (Fundação Estadual do BemEstar ao Menor), e o tema usava como figura o “pai que humaniza”, que cuida, dá amor e atenção ao filho, mesmo tendo relações com o mundo do crime. (MENEZES; BEDOIAN, 2008).

A edição mais complicada relata a

coordenadora foi na Cracolândia, pois, para as crianças e pessoas daquele lugar o espaço não era público, pertencia a eles. Mesmo assim, às vezes visto como invasão o grafite interviu no cotidiano difícil daquele lugar e muitos ali se aproximaram do grafite. (MENEZES; BEDOIAN, 2008). Ota explica que o esse projeto, denominado como: “Urra!” contagiou e disseminou o poder social do grafite. Fez com que os agentes se tornassem cada vez mais sociais. Outra edição foi realizada em um hospital psiquiátrico e promoveu um workshop com os pacientes na intenção de que eles pintassem algo. Para a equipe envolvida não era tão significativo que um grafiteiro apenas exibisse seu layout no lugar. Eles pediram ajuda aos pacientes, propondo que, colassem alguns jornais para delimitar o espaço onde cada um iria grafitar. Todos ficaram surpresos quando os pacientes começaram a ler as notícias dos jornais, maravilhados. Os envolvidos com o projeto levaram o cotidiano para 30

aquele lugar fechado, e esse cotidiano inspirou os pacientes. Agora os pacientes desse local são reconhecidos na sociedade, são lembrados e, portanto importantes. Autores como Michel Foucault discutem a importância de instituições como hospitais psiquiátricos. Na maioria das vezes, esses lugares servem como ferramenta para excluir da sociedade aqueles que não possuem o padrão exigido através dos meios de comunicação e dos discursos para ela. Para o cotidiano com os educandos foram desenvolvidas algumas oficinas para servir como porta de entrada para os jovens que estão iniciando o processo. O objetivo inicial é gerar um vínculo que faça esse jovem acreditar no projeto, o processo pode não ser rápido, mas é tomado como primeiro passo para que o trabalho funcione, Paulo Freire também propõe isso como uma prática que torne significativo àquilo que a criança e o adolescente aprendem. Não existe pré-requisito algum para participar a oficina. Participam jovens com alguma ligação ao grafite, assim como aqueles com uma identidade também distinta do grafite. O projeto acolhe, transforma e propõe uma mediação na visão de mundo do educando. Os clínicos absorvem essa visão de mundo para estar cada vez mais próximo deles. Esse fenômeno é chamado por Paulo Freire de ciclo gnosiológico, onde o educador aprende com o conhecimento do educando e o resultado desse ciclo é a produção de novos conhecimentos: O professor que pensar certo deixa transparecer aos educandos que uma das bonitezas de nossa maneira de estar no mundo e com o mundo , como seres históricos, é a capacidade de, intervindo no mundo, conhecer o mundo. Mas, histórico como nós, o nosso conhecimento do mundo tem historicidade. Ao ser produzido, o conhecimento novo supera outro antes que foi novo e se fez velho e se "dispõe" a ser ultrapassado por outro amanhã. Daí que seja tão fundamental conhecer o conhecimento existente quanto saber que estamos abertos e aptos à produção do conhecimento ainda não existente. Ensinar, aprender e pesquisar lidam com esses dois momentos do ciclo gnosiológico: o em que se ensina e se aprende o conhecimento já existente e o em que se trabalha a produção do conhecimento ainda não existente. (1987, p.16)

A rotina do espaço é flexível, quando o jovem chega já porta uma série de conhecimentos e o projeto deixa com que eles se mostrem naturalmente para iniciar o processo absorção da cultura. Depois que a equipe adquire um bom conhecimento sobre o educando o passo seguinte é trabalha-lo

31

proporcionando uma terapia, fazendo um trabalho com a família e possibilitando oficinas, a oficina de grafite se apresenta como uma opção. No processo de aprendizagem o grafite serve como canal para trabalhar o educando, ajuda-lo a descobrir o que sabem, são capazes, valorizando sempre a particularidade de cada um. Instiga os jovens a pensar, a entender e construir caminhos e segui-los. Roberto propõe que nesse processo também é importante trabalhar a autonomia do jovem e prepará-lo para o mercado de trabalho,

mediando

os

seus

conhecimentos

e

o

direcionando

para

oportunidades. Nessa filosofia, além de auxiliar na formação da personalidade do indivíduo também transforma o mesmo em multiplicador do conhecimento adquirido como propõe Paulo Freire: Pelo contrário, nas condições de verdadeira aprendizagem os educandos vão se transformando em reais sujeitos da construção e da reconstrução do saber ensinando, ao lado do educador, igualmente sujeito do processo (FREIRE, 1987, p.16).

O cotidiano da Agência Quixote e suas ideias vão de encontro às ideias de Milton Santos, quando diz que a periferia vive um momento de reação cultural contra opressão dos meios de comunicação, dos discursos preconceituosos e racistas ou das políticas que segregam. Esse processo histórico onde as classes populares lutam por seu reconhecimento, seus direitos políticos e sociais e sua emancipação é uma permanência histórica. Por mais que os discursos tradicionais da história apresentem a ideia de que vivemos em tempos de plena democracia e valorização dos direitos humanos, a trajetória do grafite e de seus agentes reflete um movimento social que ainda luta por essas questões. 4.0 – CONSIDERAÇÕES FINAIS

O grafite é um movimento presente no cotidiano humano desde a préhistória. Diversas vezes foi usado para manifestação dos desejos pessoais, coletivos ou políticos. Assim como é natural do ser humano a vontade de se expressar a existência do grafite também é natural. Com o avanço do processo de urbanização, higienização e padronização dos espaços, o grafite começou a ser visto como ação ilegal começou a ser proibido e vigiado com frequência 32

como aconteceu durante o “bombing” no estado norte americano da Filadélfia e em Nova York. Outra forma de expressão que se desenvolveu dos tempos antigos até os dias atuais foi a pichação, esta mais ligada a escrita de códigos que transmitem uma mensagem. Por usar muitas vezes os mesmos espaços que o grafite usa para se expressar, por ser praticada algumas vezes pelos mesmos agentes e com os mesmos materiais em algumas ocasiões o grafite e a pichação foram consideradas práticas únicas. Essa separação entre as duas formas de se expressar vai sendo possível a partir do momento em que cada um começa a ganhar características mais distintas. O grafite vai cada vez mais se afastando da pichação e ganhando novos modelos como o stencil, as cores, a sofisticação do traço e as novas possibilidades como o trabalho com colagens e a intervenção fora do urbano. Essas mudanças trazem para o grafite o status de arte. A pichação por outro lado ainda é vista como desrespeito e crime ao patrimônio público e privado. O grafite chama atenção do público jovem. Está presente nas escolas, praças, shoppings e ruas por isso está sempre próximo à juventude. O jovem da periferia vive exposto à problemas como a falta de políticas para a ducação, saúde, lazer e cultura. Outro problema encontrado na maioria das comunidades é o envolvimento com a violência e a completa exclusão social de um sujeito que quase sempre começa a trabalhar cedo, muitas vezes não termina os estudos e trabalha duramente para sustentar um sistema e um modo de vida que muitas vezes ele não faz parte. O autoconhecimento, a emancipação, a consciência política e a visão de mundo têm sido características conquistadas graças às ferramentas culturais que se aproximam da periferia. O cinema, a música, a dança, as artes visuais, os trabalhos manuais e o serviço social aproxima cada vez mais o jovem de sua cultura, identidade e lhe traz possibilidades. É um movimento de contracultura, uma reação contra os olhares preconceituosos, racistas, que visam segregar, restringir direitos políticos e sociais.

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