A \"Arte de perambular com inteligência\" de João do Rio

August 1, 2017 | Autor: Maria Viana | Categoria: História Do Livro E Da Edição
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A “arte de perambular” de João do Rio •••

Maria Viana

J

A rua é a transformadora das línguas. João do Rio

oão Paulo Emílio Cristóvão dos Santos Coelho Barreto ou simplesmente João do Rio, um dos vários pseudônimos usados pelo escritor que tão bem retratou a sociedade do Rio de Janeiro no início do século xx, felizmente tem sido bastante visitado pela crítica na atualidade. ¶  Para alguns de sua época era apenas um jornalista com ares de dândi, que usava a literatura e os jornais para angariar o prestígio nas rodas dos requintados e endinheirados de seu tempo. Mas como bem aponta Antonio Candido: “[...] no escritor superficial e brilhante corriam diversos filões, alguns curiosos, alguns desagradáveis e outros que revelam um inesperado observador da miséria, podendo a seus momentos denunciar a sociedade com um senso de justiça e uma coragem lúcida que não encontramos nos que se diziam adeptos ou simpatizantes do socialismo e do anarquismo; que não encontramos também em nenhum dos seus detratores”1. ¶  Aos dezesseis anos iniciou sua carreira como jornalista, nesse ramo de atividade foi repórter, editor, diretor de redação e, não por acaso, é considerado o criador da crônica social moderna. ¶  Segundo seus biógrafos, o pseudônimo João do Rio foi adotado por volta de 1903, quando trabalhava na redação da Gazeta de Notícias, à Rua do Ouvidor, localizada no coração da então Capital Federal. Dali ele palmilhava as ruas, atento aos pormenores que a cidade em transformação oferecia, em busca de histórias e personagens que revelassem a cidade de seu tempo. 1. Antonio Candido, “Radicais de Ocasião”, Teresina etc, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1980, pp. 89-90. Livro  ◆ 335

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João do Rio foi retratado por vários caricaturistas cariocas no início do século xix. As reproduzidas mostradas neste artigo foram incluídas na reedição de A profissão de Jacques Pedreira, edição organizada por Flora Süssekind e Rachel Teixeira de Mendonça. São Paulo/Rio de Janeiro, Scipione/ Casa Rui Barbosa, 1992.

A partir de 1907, João do Rio cria e assina regularmente a coluna “Cinematógrafo”, na já mencionada Gazeta de Notícias, onde já revelara o olhar aguçado que tinha sobre a cidade. Em sua obra, a crônica ganha a força da imagem. É como se o escritor fizesse instantâneos da realidade. A cidade é o cenário, onde cada espectador tem um papel a protagonizar, inclusive o próprio cronista. Por isso, ninguém melhor que ele retratou o Rio de Janeiro do primeiro quartel do século xx. O cronista viveu intensamente a Belle Époque carioca e por meio de suas atividades como escritor e jornalista ajudou a configurá-la. Sua obra é um valioso registro das transformações socioculturais que pontuaram a transição do Império para a República na então Capital Federal.

O livro a Alma Encantadora das Ruas, de onde extraímos o texto copilado a seguir, é composto de 25 narrativas, organizadas em três blocos: “O que se Vê nas Ruas”, “Três Aspectos da Miséria” e “Onde às Vezes Termina a Rua”. Como desfecho da obra vem uma recolha de versos populares, inspirados na rua e em suas personagens, ou entoados por aqueles que por ela transitam. Trata-se de matéria publicada originalmente sob o título “A Musa Urbana”, na revista Kosmos, em 1905, e que na versão em livro recebeu o título de “Musa das Ruas”. Uma espécie de prólogo, intitulado “Rua”, abre a antologia. Ali o escritor não apenas declara seu amor explícito à rua, apresentando-a como o grande cenário onde seus protagonistas atuarão nas 25 crônicas seguintes, como também apresenta-se como flâneur, termo assim por ele explicado: Para compreender a psicologia da rua não basta gozar-lhe as delícias como se goza o calor do sol e o lirismo do luar. É preciso ter espírito vagabundo, cheio de curiosidades malsãs e nervos com um perpétuo desejo incompreensível, é preciso ser aquele que chamamos flâneur. E praticar o mais interessante dos esportes – a arte de flanar2.

João do Rio cita os que antes dele praticaram a arte de “perambular com inteligência”, como Horácio, Sterne, Hoffmann, Balzac... É nessa crônica-prólogo que também tangencia o sentido do poético título, A Alma Encantadora das Ruas, ao proclamar: Oh! Sim, as ruas têm alma! Há ruas honestas, ruas ambíguas, ruas sinistras, ruas nobres, delicadas, trágicas, depravadas, puras infames, ruas sem história, ruas tão velhas que bastam para contar a 2. João do Rio, A Alma Encantadora das Ruas, Rio de Janeiro/Paris, H. Garnier, livreiro-editor, 1910, p. 8.

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Passa, então, a percorrer algumas ruas cariocas das quais descreve a “alma”, como se já preparasse o leitor para os encantos e desencantos que serão descobertos a cada esquina cruzada, a cada calçada trilhada nas páginas seguintes. A rua, essa espécie de entidade, não é perecível como os seres humanos, posto que esses são mortais, as ruas são transformadas, têm sua arquitetura modificada pelas novas construções, com frequência seus nomes são alterados, mas sobrevivem aos que por elas peregrinaram. Por isso, o cronista arrisca uma profecia: “Talvez que extinto o mundo, apagados todos os astros, feito o universo treva, talvez, ela ainda exista, e os seus soluços sinistramente

ecoem na total ruína, rua das lágrimas, rua do desespero – interminável rua da Amargura”4. A crônica transcrita a seguir figura no primeiro bloco do livro e intitula-se “O que se Vê nas Ruas”. Nessa narrativa temos não apenas a descrição do trabalho dos vendedores ambulantes de livros, mas uma arguta apresentação do que lia parte da população naquele período. Os que querem compreender o negócio do livro feito por esses camelôs no período, terão a oportunidade de saber que esses livreiros ambulantes compravam essas obras a um valor baratíssimo e ganhavam no mínimo, seiscentos por cento na venda de cada exemplar aos transeuntes. Os que vendiam orações e modinhas podiam faturar até dez mil réis por dia. Já os pesquisadores que se debruçaram sobre os resultados recentes da terceira edição da pesquisa que diagnosticou os hábitos de leitura no Brasil, e constataram a importância

3. Idem, p. 10.

4. Idem, p. 34.

evolução de uma cidade inteira, ruas guerreiras, revoltosas, medrosas, spleenéticas, snobs, ruas aristocráticas, ruas amorosas, ruas covardes, que ficam sem pinga de sangue3.

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a l m a naq u e  ¶ da Bíblia e de livros religiosos entre o contingente de entrevistados, poderão verificar que à época os livros religiosos aparecem entre os mais vendidos por esses livreiros ambulantes. Mas o cronista vai além, os vendedores por ele descritos têm nacionalidade, nomes, apelidos. Há os solenes, os escandalosos, os que enlouqueceram, os negociantes fracassados, os apregoadores. Então, não estamos diante de uma massa uniforme, mas de pessoas que encontraram no ofício da venda de livros pelas calçadas uma maneira de ganhar a vida, mas também de embalar sonhos e curar dores da alma. Os descritos podem ser analfabetos ou declamadores do I canto do Lusíadas, mas

não há dúvida de que são seres humanos que tiveram a memória do seu ofício perpetuada nas linhas traçadas pelo cronista. Observem que há nessa crônica uma certa preocupação do escritor quanto a essa produção literária feita pelos poetas populares para os seus iguais. Chega a creditar à leitura dessas obras a indisciplina e a marginalização. Apesar desse exagero do atento observador, e de certo grau de preconceito quanto à essa produção popular, sobre o que não nos deteremos aqui, a crônica é um bom retrato, não apenas do que se lia nos primeiros anos da República, mas como se dava essa importante circulação de impressos.

• Os mercadores de livros • e a leitura das ruas5 João do Rio Exatamente na esquina do teatro S. Pedro, há dez anos, Arcanjo, italiano, analfabeto, vende jornais e livros. É gordo, desconfiado e pançudo. Ao parar outro dia ali, tive curiosidade de ver os volumes dessa biblioteca popular. Havia algumas patriotadas, a Questão da Bandeira, o Holocausto6, a Dona Carmen, de B. Lopes7, a Vida do Mercador 5. Usamos como base para estabelecimento do texto a edição A Alma Encantadora das Ruas, Rio de Janeiro/ Paris, H. Garnier, livreiro-editor, 1910. 6. Refere-se ao romance Holocausto, de Francisco Xavier Ferreira Marques, publicado pela H. Garnier, livreiro-editor, em 1900. 7. “Bernardo da Costa Lopes (1859-1916) nasceu em Rio Bonito, província do Rio de Janeiro. Foi funcionário público e jornalista. À época da recepção de sua obra Sílvio Romero escreveu: “Tem atravessado duas fases e possui duas maneiras de poetar. A Primeira, mais espontânea e brilhante, pode-se filiar no parnasianismo e acha-se em Cromos, Pizzicatos, e em grande parte dos Brasões, e também em parte

e de Antônio de Pádua8, o Evangelho de um Triste e os Desafogos Líricos. Estavam em exposição, cheios de pó, com as capas entortadas pelo sol. – Vende-se tudo isso? – Oh! não. Há quase um ano os tenho. Os outros sim – modinhas, orações, livros de em Dona Carmen e Sinhá Flor. A segunda, que se distingue por certa feição de afetada religiosidade e pretendido misticismo, é que se costuma prender ao chamado simbolismo. Achamos preferível a primeira. Seus versos foram reunidos nos livros: Cromos (1881), Pizzicatos (1886), Dona Carmen (1890), Brasões (1895), Sinhá Flor (1899), Val dos Lírios (1900) e Plumário (1905).” (Sílvio Romero, História da Literatura Brasileira, Rio de Janeiro, José Olympio, 1960, t. v., p. 1683.) 8. O cronista refere-se a Antônio de Lisboa (1191-1195?), também conhecido como Antônio de Pádua, cidade italiana onde faleceu. Foi canonizado como santo pela igreja católica pouco depois da sua morte. Ainda é venerado por muito brasileiros, pois é um dos santos do ciclo junino, certamente foi tema de livros sobre a vida dos santos ainda comuns nos dias atuais.

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sonhos, a História da Princesa Magalona9, O Carlos Magno10, Os testamentos dos bichos... Levantei as mãos para o céu como pedindo testemunho do alto. As obras vendáveis ao povo deste começo de século eram as mesmas devoradas pelo povo meados do século passado! – Mas não é possível... – Pode perguntar aos outros vendedores. Atirei-me a esse inquérito psicológico. Os vendedores de livros são uma chusma incontável que todas as manhãs se espalha pela cidade, entra nas casas comerciais, sobe os morros percorre aos subúrbios, estacionados nos lugares de movimento. Há alguns anos, esses vendedores não passavam de meia dúzia de africanos, espaçados preguiçosamente como o João Brandão na praça do mercado. Hoje, há de todas as cores, de todos os feitios, desde os velhos maníacos aos rapazolas indolentes e os propagandistas da fé. A venda não é franca senão em alguns pontos onde se exibem os tabuleiros com as edições falsificadas do Melro, de Jungueiro, e da Noite da Taverna. Os outros batem a cidade, oferecendo as obras. E há então toda uma gama de maneiras para passar a fazenda. Os mais 9. Segundo Câmara Cascudo, trata-se de uma novela espanhola editada pela primeira vez em Sevilha, em 1519, sob o título: La História de la Linda Magalona, Fija del Rey de Nápoles, y del muy Esforçado Cavallero Pierres de Provença. Quando transferiu-se para Portugal, dois anos depois, foi também o responsável pela primeira edição em língua lusa (Luís da Câmara Cascudo, Os Cinco Livros do Povo, Rio de Janeiro, José Olympio, 1953, p. 225). 10. Sobre essa novela de origem francesa, Câmara Cascudo nos informa sobre a existência de uma tradução feita para o castelhano, em 152, por Nicolás de Piamonte e editada pelo alemão Jacob Cromberger, então radicado em Sevilha. Cascudo menciona ainda uma edição lisboeta de 1615, feita por Domingos Fonseca, mas em castelhano. A primeira tradução para o português teria sido realizada apenas em 1728, por Jerônimo Moreira de Carvalho. É ainda esse estudioso que nos informa sobre a primeira edição brasileira, que veio a lume pela casa Laemmert, na década de 1840 (Luís da Câmara Cascudo, op. cit., pp. 443-444).

atilados, os mais argutos, os mais incansáveis são os vendedores de Bíblias protestantes, com os bolsos das velhas sobrecasacas ajoujados de brochuras edificantes. – Ó rapaz, por que não fica com essa Bíblia? Dou-lha por dez tostões. É o livro de Deus, onde estão as eternas verdades. E se ficar com ela vai mais este volume de quebra sobre as feras que devoram o homem, as feras morais... Os outros não pairam em regiões tão espirituais. Há os solenes – o velho Maia, que aprecia as encadernações vermelhas; foi guarda-livros e virou para a infelicidade quando, um dia, se lembrou de decorar todo o dicionário latino Saraiva. Há os que têm apelido –espelho de Psique, pobre homem, negociante, que a má sorte faz andar agora de cesta ao braço, com uma fita verde no chapelinho. Há os escandalosos relapsos, – O Conegundes, negralhão de cavanhaque, gritador. Há os que durante o trabalho percorrem as tabernas, e para impingir aos caixeiros um dos volumes ingerem em cada uma duas da branca – o Artur. Há os que têm admirações literárias – o Camões, zanaga, que nos recita o I canto dos Lusíadas de cor. Há os alegres, um turbilhão deles, que apregoam dois dias na semana para descansar outros cinco. Há os que têm a arte do pregão e, longe de ir com um embrulhinho perguntar à casa do comprador se quer ficar com a História de Carlos Magno, soltam a voz em gorjeios estentóricos, como o Noite Sonorosa. Meu Deus, que note sonorosa! O céu está todo estrelado. Eu com o cavaquinho na mão. E a morena ao lado. Isto em pleno dia.

Cada sujeito desses pode passar a vida bem. As livrarias vendem baratíssimo os livre-

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a l m a naq u e  ¶ cos procurados. Em cada um, os vendedores ganham, no mínimo, seiscentos por cento. Há alguns que, trabalhando com vontade e sabendo lançar as orações, as modinhas ou a infalível História da Donzela Teodora11, arranjam uma diária de dez mil réis, sem grande esforço. Daí, todo dia aumentar o número de camelôs de livros, vir começando a formar-se essa próspera profissão da miséria que todas as cidades têm, ávida e lamentável, num arregimentar de pobres propagandistas do Evangelho e do Espiritismo, de homens que a sorte deixou de proteger, de malandros cínicos, de rapazes vadios. 11. O título original da obra em português é História da Donzela Teodora, em que trata da sua grande formosura e sabedoria. Segundo Luís da Câmara Cascudo a edição mais antiga de que se tem notícia dessa novela originalmente espanhola é de 1498, editada em Toledo por Pedro Hagembach. A primeira edição portuguesa possivelmente é de 1712, traduzida do castelhano para o português por Carlos Ferreira e impressa na Casa de Miguel de Almeida e Vasconcellos, mercador de livros na Rua Nova. Ainda segundo Câmara Cascudo: “Impossível calcular-se o número das edições em Portugal e Brasil. Neste, a partir de 1840 as reimpressões cresceram sem que diminuíssem os folhetos impressos em Lisboa e Porto, com mercado fiel e sem possibilidades de fraquejar. No Brasil as adulterações foram das mais numerosas e desumanas. Incluíram no debate da Donzela todo o Dicionário de Flores e Frutos, significação amorosa, interpretação de cores para o comércio da linguagem muda dos namorados, assuntos franceses que tiveram sua voga há mais de meio século. Há edições horrorosas pelo acúmulo de indicações cabalísticas, horóscopo, curiosidade da velha astrologia judiciária retiradas aos almanaques e simples opúsculos de propaganda medicamentosa”. Luís da Câmara Cascudo, op. cit., pp. 41-42. Rubens Borba de Moraes nos informa que “Em 1815 a Impressão Régia imprimira duas novelas tradicionais que hoje são publicadas constantemente: “História da Donzela Teodora e a História verdadeira da Princesa Magalona” (Rubem Borba de Moraes, Livros e Bibliotecas no Brasil Colonial, Rio de Janeiro/ São Paulo, Livros Técnicos e Científicos/Secretaria de Cultura, Ciência e Tecnologia do Estado de São Paulo e Universidade de São Paulo, 1979, p. 119). No Brasil a versão poética ainda bastante conhecida na atualidade é a de Leandro Gomes de Barros (1865-1918), editada pela primeira vez em 1905, sob o título a História da Donzela Teodora, Tirada do Grande Livro da Donzela.

Os livros, porém, de grande venda ficam sempre os mesmos. Nós não gostamos de mudar em coisa nenhuma, nem no teatro, nem na paisagem, nem na literatura. É provável que o divórcio tenha caído por esse inveterado e extraordinário amor de não mudar, que nos obseda. Desde 1840, o fundo das livrarias ambulantes, as obras de venda dos camelôs têm sido a Princesa Magalona, a Donzela Teodora, a História de Carlos Magno12, A Despedida de João Brandão13 e a Conversação de Pai Manuel com o Pai José14. Ao todo uns vinte folhetos sarrabulhentos de crimes e de sandices. Como o esforço de invenção e permanente êxito, apareceram, exportados de Portugal, os testamentos dos bichos, o Conselheiro dos Amantes e uma sonolenta 12. Câmara Cascudo afirma que a história do imperador Carlos Magno e dos doze pares de França foi a obra mais conhecida pelos brasileiros até início do século xx. Não com pouca frequência era o único exemplar impresso encontrado nas casas dos rincões do país. “Nenhum sertanejo ignorava as façanhas dos pares e da imponência do imperador de braba florida” (Luís da Câmara Cascudo, op. cit., pp. 441). 13. Há indicação de um folheto intitulado “Despedida do degradado João da Silva Brandão que parte no dia 9 do corrente ou A despedida de João Brandão”, no acervo da coleção particular do Dr. Paulino Mota Tavares: Disponível em: http://www.esec.pt/pagina/cdi/ ficheiros/docs/catalogo_cordel.pdf . Possivelmente esse cordel de origem portuguesa inspirou a criação dos poetas populares brasileiros. 14. Constatamos, por meio da pesquisa de Alai Garcia Diniz, a existência de três cordéis com esse título: Conversação de Pai Manoel com Pai José na Estação de Cascadura por Ocasião da Rendição de Uruguaiana, Conversação de Pai Manoel com Pai José e um Inglez, na Estação de Cascadura sobre a questão Anglo-Brazileira, Conversação de Pai Manoel com Pai José, na Estação de Cascadura, por Occasião da Victoria de Ihaty, no Passo dos Livres, polo Exercito Alliado. Esses cordéis foram escritos em uma espécie de língua crioula e têm como tema central os embates que envolveram a Guerra do Paraguai. Os textos são de autoria anônima (Alai Garcia Diniz, Imaginarios de la Guerra de la Triple Alianza- Apuntes sobre um “Cordel” afro-brasileño y la poesía en Paraguay. Disponível em: http://www.corredordelasideas.org/docs/ reflexiones/alai_garcia_diniz.pdf).

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Disputa Divertida das Grandes Bulhas que Teve um Homem com Sua Mulher por Não lhe Querer Deitar uns Fundilhos nos Calções Velhos. Essa literatura vorazmente lida na Detenção, nos centros de vadiagem, por homens primitivos balbucia à luz dos candeeiros de querosene nos casebres humildes, piegas, hipócrita e mal feita, é a sugestionadora de crimes, o impulso à explosão de degenerações sopitadas, o abismo para a gentalha. Contam na Penitenciária que Carlito da saúde, preso pela primeira vez por desordens, ao chegar ao cubículo, mergulhou na leitura de Carlos Magno. Sobreveio-lhe uma agitação violenta. Ao terminar a leitura anunciou que mataria um homem ao deixar a detenção. E no dia da saída, alguns passos adiante, esfaqueou um tipo inteiramente desconhecido. Só esse Carlos Magno tem causado mais mortes que um batalhão de guerra. A leitura de todos os folhetos deixa, entretanto, a mesma impressão de sangue, de crime, de julgamento, de tribunal. Há, por exemplo, uma obra cuja tiragem deixa numa retaguarda lamentável as consecutivas edições de Cyrano de Bergerac. Intitula-se Maria José, ou a Filha que Assassinou, Degolou e Esquartejou sua Própria Mães, Matilde do Rosário da Luz15, e começa como nas feiras: – “Atentai, e vereis um crime espantoso, um crime novo, o maior de todos os crimes! Essa Maria ainda era só a matar uma só pessoa. No Carlos Magno um tal Reinaldos, ensanwichado em frases de louvor a Nosso senhor, mete-se num rolo doido com 15. Localizamos no acervo digital da Biblioteca Nacional de Lisboa a obra intitulada História Verdadeira de um Acontecimento o mais Horroroso e o mais Abominável que tem Aparecido no mundo, sim, foi uma Filha Chamada Maria José que Matou, Degolou e Esquartejou sua Própria Mãe Matilde do Rosário da Luz, publicada no Porto, pelo livreiro S. J. Ferreira e Filho, em 1852. Este cordel português pode ter dado origem ao folheto brasileiro.

turcos, e o livro louva-o por ir degolando a cada passo um homem. Tudo quanto é inferior – a calúnia, o falso testemunho, o ódio – serve de entrecho a esses romances mal escritos. Quando a coisa é em verso, toma proporções de puff carnavalesco. A Despedida de João Brandão à sua Mulher, Filhos e Colegas, com um apêndice em que se convence o leitor de que João podia ser um herói cristão, é lida nos cortiços com temor e pena. A primeira quadra de despedida é assim: Andando eu a passear, Com amiga do coração. Dois passos à retaguarda: Estais preso, João Brandão.

Que se há de fazer diante destes versos nefelibatas? A Despedida tem quarenta e nove quadras, fora a resposta da esposa. Uma mistura paranoica de remorso, de tolices de religião, saudade e covardia, faz destas quadras o suprassumo da estética emotiva e turba – cujos sentimentos oscilam entre o temor e ambição. João Brandão soluça: Adeus, João Brandão, Espelho de eu me vestir, Tu mataste o menino Que para ti se ficou a rir. Agora vou degredado, A paixão é que me mata; Adeus Carolina Augusta, Já não vale a tua prata.

Para alegrar os leitores, esses criminosos anônimos cultivaram o testamento dos bichos. Já testamento é uma ideia inteiramente lúgubre. O testamento da pluga, do mosquito ou da saracura não seria para fazer rebentar de riso os mortais, mesmo agora, neste mortal período de desinfecção e higie-

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a l m a naq u e  ¶ ne à outrance, mas que pensam os senhores dessas quadrinhas, das quais já se vendem mais volumes que de Canaã de Graça Aranha? Os testamentos são uma lamentável relação de legados, sem uma graça, sem uma piada, sem um riso. O galo leva quarenta quadras a deixar coisas; a saracura diz que levava, prazenteira, a cantar todo o dia dentro do brejo; o macaco fala de hora extrema sem uma careta. Só no testamento do papagaio há esta observação pessoal, sempre aplicável às câmaras: Há no mundo papagaios Que falam todos os dias E nunca sofrem desmaios Comendo grossa maquias, Estes são de Pernambuco, Falam muito, são mitrados; Eu falei, mas fui maluco, Logo paguei meus pecados.

E falam do veneno da literatura francesa, que perde o cérebro das meninas nervosas e aumenta o nosso crescido número de poetas! Que se dirá dessa literatura – posto mental dos caixeiros de botequim, dos rapazes do

povo, dos vadios, do grosso, enfim, da população? Que se dirá desses homens que vão inconscientemente ministrando em grandes doses aos cérebros dos simples a admiração pelo esfaqueamento e o respeito da tolice? Como eu chamasse contra essa teimosa mania de não mudar as predileções, um dos vendedores ambulantes, o cantante Meu Deus que noite sonorosa, esticou a perna e disse-me: – Talvez fosse para pior... Parei convencido, o curso das interrogações. Já outro filósofo seu rival, Montaigne, assegurava que mudar é quase sempre uma probabilidade para pior. Os vendedores de testamentos passaram a vendê-los como palpites do jogo do bicho, transformando saracura em avestruz e a mosca em borboleta. Os jogadores não lêem, mas arruínam as algibeiras. E de qualquer forma o mal continua a florescer neste baixo mundo, na literatura e fora dela, como o mais gostoso dos bens. Se nas obras populares aparecer alguma coisa de novo, com certeza teremos tolices maiores que as anteriores...

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[Gazeta de Notícias, 12.02.1906]

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