A ARTE DE ZOMBAR COMO POSSIBILIDADE DE RESISTÊNCIA: Notas sobre as relações jocosas em uma comunidade quilombola no alto sertão baiano

July 24, 2017 | Autor: Suzane Vieira | Categoria: Ecologia Política, Comunidades Quilombolas
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36º Encontro Anual da Anpocs

GT23 - Novos modelos comparativos: investigações sobre coletivos afro-indígenas Coordenadores: Beatriz Perrone Moisés (USP) e Marcio Goldman (UFRJ)

A ARTE DE ZOMBAR COMO POSSIBILIDADE DE RESISTÊNCIA: Notas sobre as relações jocosas em uma comunidade quilombola no alto sertão baiano

Suzane de Alencar Vieira

Outubro/2012

A ARTE DE ZOMBAR COMO POSSIBILIDADE DE RESISTÊNCIA: Notas sobre as relações jocosas em uma comunidade quilombola no alto sertão baiano

(...)mais le possible, ce qui renvoie à une création, ce qui oblige donc à se créer capable de résister au probable. Isabelle Stengers

Nesta comunicação, pretendo esboçar os traçados preliminares de um estilo de criatividade (WAGNER, 2010 [1975]) marcado pelo humor de uma comunidade rural, o quilombo de Malhada1, incrustado na Serra do Espinhaço, a 44 km da sede do município de Caetité, no Alto Sertão baiano. As artes do fazer rir são organizadas em termos nativos sob a denominação “pirraça”. O humor aparece aqui como criatividade em dois sentidos: enquanto uma habilidade da pessoa em criar relações e, assim, constitui um traço da socialidade (STRATHERN, 2006, [1988]) dessa comunidade; e enquanto uma paixão que cria uma modalidade de resistência que aqui não é só um movimento no conflito da comunidade com uma empresa de exploração de energia eólica. Trata-se de uma disposição a resistir a um mundo fechado premido pelas “necessidades” absolutas e englobantes que o empreendimento capitalista recémchegado na região quer representar e provocar o engajamento e a confirmação dos quilombolas. É também resistir a um mundo inteiramente disponível e sujeitável que possa ser reivindicado como posse. Para que o leitor entenda esse segundo movimento de resistência eu faço repercutir aqui os conceitos nativos de sabedoria, entendimento, e responsabilidade (e seus derivados responsar e responsável) que carregam o tom do humor e manifestam formulações inusitadas sobre as práticas de conhecimento mobilizadas no conflito. Tomo como referência norteadora a acepção de humor de Deleuze (2007) que condiz mais diretamente com o sentido das práticas de pilhérias e zombarias entre as pessoas das comunidades quilombolas de Caetité e mais especificamente da Malhada. A 1

Nome atualizado e acrescido da designação “quilombo” depois que foi aberto o processo administrativo para obtenção da certidão quilombola na Fundação Cultural Palmares, em 2005. Com o recrudescimento do conflito com as empresas de energia eólica que tornou urgente a defesa de seu território, a designação quilombo foi incorporada mais enfaticamente e a “comunidade” se fortaleceu como agente político.

despeito da seriedade da qual se investem as atividades tecnocientíficas e jurídicas das empresas, as pessoas dessas comunidades exercitam o humor. Riem um riso de quem não se convence diante da autoridade da objetividade e racionalidade da produção capitalista. Aprender a rir é aprender a resistir ao majoritário, praticar, nos termos do filósofo, a arte da imanência. Pirraçar2, entre quilombolas da Malhada, é um exercício cotidiano que se aprende desde muito cedo. As crianças praticam à exaustão. Os pequenos encontram na “pirraça” uma maneira de contrariar uma norma, uma ordem dada, uma recomendação ou uma opinião. Esse é um jogo muito divertido que os adultos gostam de estimular. Às vezes, as pirraças redundam em desavenças e empurrões e precisam da intervenção enérgica de um adulto, outras vezes a pirraça cria amigos e apelidos. As crianças ainda bem novas ganham seus apelidos e desconhecem seu nome de batismo. Os adultos também praticam esse “jogo” com as crianças e assim parecem ensiná-las a redargüir a uma provocação sem se irritar. Chamam-nos de gambá, rato, cadela, bostica de porco em provocações acompanhadas por afago. No início de minha pesquisa de campo as crianças não perdiam uma oportunidade de me pirraçar pelo simples gosto em contrariar expectativas e ordens alheias. Contra a minha tolerância inicial, elas testavam meus limites e ansiavam o momento em que eu saísse do sério e corresse atrás deles vociferando divertidas imprecações. Era o primeiro convite à participação de suas pirraças que eu demorei a aceitar. Elas me tornavam uma pessoa estranhamente engraçada por não devolver as provocações. Agradeço a elas por esse trabalho insistente de me tirar do sério, o que me fez tematizar com mais consideração e interesse o humor agenciado nas pirraças. Ensinaram-me logo no começo a exigência de reciprocidade das provocações3. Do mesmo modo que, na experiência de campo de Favret-Saada (1977), para tratar de feitiçaria era preciso ser pego, para tematizar e experimentar a socialidade daquelas comunidades negras rurais, era necessário que eu caísse também na graça da pirraça, e me tornasse uma pessoa risível e pirracenta.

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São praticadas várias brincadeiras, jogos e adivinhações, mas aqui me detenho àquelas brincadeiras que mobilizam provocações e enfrentamentos verbais, compondo uma cena agonística de interlocução, e são reunidos sob designação nativa “pirraça”. Um agenciamento jocoso que rivaliza sem hierarquizar ou reputar vencedores ou vencidos desses jogos verbais.

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Mas há uma passagem rápida do argumento de Mauss sobre as relações jocosas (MAUSS, (1999 [1926])) que gostaria de ressaltar, a participação das chamadas relações jocosas no sistema de prestações e contra-prestações e a exigência da reciprocidade dessas relações.

Um traço tão sutil que eu demorei bastante a levá-lo seriamente, ou melhor, levá-lo com humor. As brincadeiras passaram a fazer parte de minhas anotações de campo de maneira inevitável e irresistível. As pessoas com que eu convivia passavam várias horas formulando uma “resposta certeira” para dar àquelas provocações infligidas. Minhas anotações das adivinhações, chamadas de perguntas, passaram a ser por mim também usadas para disparar ou participar do jogo de perguntas e provocações que eram o prelúdio de uma boa conversa. Um jogo de desafios muito praticado cujas perguntas não são só trocadas e gravadas na memória, mas, às vezes, criadas no momento da brincadeira. E as minhas perguntas “mais sérias” com seus inócuos “porquês”, um impulso quase involuntários da atividade de pesquisa, tiveram de ficar cada vez mais de lado. Eu precisei partilhar minimamente das habilidades da pirraça para participar das agitadas conversas que encenavam a interlocução como um jogo de enfrentamentos verbais. Toda provocação exige a retaliação com provocações4 ainda mais incisivas. Apelar e partir para a agressão física, ficar indiferente ou mostrar-se ofendido são sinais de uma derrota discursiva e persuasiva, e demonstra fracas habilidades de redargüir. É um jogo que consiste em uma troca de provocações cuja graça é justamente inspirar a retaliação. A reciprocidade das provocações é pré-requisito do jogo lúdico. Ela constitui uma garantia de que a brincadeira funcionou. Pirraçar é uma habilidade pessoal muito valorizada. As brincadeiras são criatividades da ordem do discurso que têm como propósito fazer rir e rir junto. Zoar é sempre “zoar com” e não “zoar de” alguém. Mesmo com provocações cortantes que beiram o limite da ofensa, as pirraças não desqualificam ou aviltam a pessoa. Muito pelo contrário, as provocações ensejam a oportunidade criativa de responder e de contra-argumentar e tornar as ofensas risíveis e compartilhadas. A capacidade de devolver uma provocação identifica uma pessoa que garante suas palavras, em termos nativos, alguém que sabe “responsar”. A pessoa que sabe “fazer rir” amplia suas possibilidades de relações e de circulação entre as comunidades negras vizinhas. Entre elas, a brincadeira é mais solta e dispensa qualquer esforço de retratação quando ao final

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parece guardar certa afinidade com a etimologia que Latour (2004) atualiza como a proliferação de vozes. Mas essa proliferação de vozes permaneceria inerte sem a consideração da paixão que move esses provocações, o humor.

da conversa para dissipar possíveis constrangimentos o brincalhão diz: “é brincadeira, viu? Não repare, não”. Ao longo de minhas perambulações de campo, as brincadeiras dominaram situações das mais simples provocações cotidianas até situações mais formalizadas como numa celebração católica dominical. Elas envolvem uma arte de jogar com a linguagem. As provocações são recebidas e relançadas com entusiasmo e animação. As zombarias são maiores nos encontros entre mulheres e o jogo consiste em trocar insinuações de relações sexuais com os maridos umas das outras que são quase sempre compadres. Algumas delas parecem prefaciar um briga, mas o desfecho é uma explosão de risadas. Essas conversas são repletas de imagens de gênero, adicionam objetos tirados da cozinha e os constituem como imagens de genitais5. Mudar as palavras e objetos de seu “lugar” habitual parecia-lhes muito divertido. O bom humor está presente nos encontros amistosos nas feiras e festas religiosas, mais especialmente nas pirraças entre pais e filhos, entre irmãs, entre compadres e comadres, padrinhos e afilhados. É mais comum brincadeiras entre pessoas do mesmo grupo etário. E os gracejos mais obscenos são trocados entre cunhada e cunhado que, geralmente, também são compadres. O que nos levaria a supor uma simetria inicial das relações entre pessoas da mesma geração. Mas as zombarias nem sempre supõem simetria prévia que subvenciona relações inteiramente formalizadas, elas constituem um plano simétrico onde também se desenvolvem novas relações.

Da pirraça ao conflito

Com a proximidade das eleições municipais, as pirraças ficaram mais contidas e menos insinuantes na comunidade. Brincar tornou-se mais arriscado no período em que disputam “Cocás” e “Jacus”, como são designados os dois grupos que se revezam no mandato da prefeitura, respectivamente a família Oliveira do PSB (no poder atualmente) e a família Ladeia do PSDB (na oposição). As brincadeiras são reabsorvidas nesse antagonismo. As provocações inevitavelmente ressaltam as desavenças entre jacus e cocás e podem inflamar agressões violentas. No tempo da política, as provocações são 5

Os formatos de verduras, bofe do gado, embornais e facas conforme são manipulados durante as conversas, na cozinha podem ser travestidos de imagens de gênero.

menos toleradas, elas aviltam a pessoa e escapam do registro da brincadeira para ensejar o confronto aberto. A troca de provocações visa ressaltar a preeminência de um dos lados que o desfecho eleitoral distinguirá entre vencedores e vencidos. O povo da Malhada prefere conduzir seus conflitos com humor e se esforça para impedir um desfecho violento principalmente se o mote do conflito for a disputa por água. Nesse lugar cravado no semiárido baiano, a água é um agente muito sensível e pode ser facilmente afetado por afecções diversas. Para protegê-la dessas influências, os moradores lançam mão de várias técnicas mágico-religiosas às quais não poderei me deter nesta ocasião, por questão de tempo. O que é importante reter nesta discussão é que a qualidade das relações entre parentes e vizinhos pode afetar a disponibilidade desse recurso na comunidade. A água precisa ser sempre redistribuída com boa vontade. Quando é objeto de disputa, a água desaparece. “Água não gosta de briga”, essa é uma advertência muito recorrente. Relataram-me muitos casos de fontes que secaram depois de testemunhar brigas “em sua beira” ou por terem sido objetos de disputas encarniçadas. A água precisa ser mantida como um fluxo em movimento livre e constantemente redistribuído. A pretensão de contê-lo em uma propriedade ou em reservas particulares interrompe esse fluxo. Evitar o conflito por água é crucial para garantir o suprimento desse recurso a todos.

A Sabedoria

“Sabedoria” não é uma palavra muito apreciada entre o povo da Malhada. Costumam chamar de “sabedoria” alguém que “quer ser gente”, “que quer ser bom” (no sentido de querer ser superior ao outro). O uso irônico e depreciativo nos faz notar a arrogância que subsiste na noção de “sabedoria”. Essa palavra também aparecia em alguns murmúrios sobre casos de cisão e dissidência na comunidade. Disse-me Lia, uma de minhas interlocutoras mais constantes, que “de primeiro, o povo era unido, não sabia de nada, agora alguém quer saber mais do que os outros” e conclui “o problema é a sabedoria”. Esta noção não denota uma qualidade ou uma reserva de conhecimento em estado abstrato, mas sim remete a práticas de pretensões hierárquicas e identifica pessoas que agem dessa maneira. E os vizinhos se defendem dessas pessoas e de suas pretensões com a prática de tirar do certo, a arte da pirraça.

Os “sabidos” que emergem de dentro da comunidade são logo depostos por meio da pirraça. Quando uma liderança religiosa local que conduzia o culto dominical católico sentiu-se em condições de impor um padrão de “bom comportamento” silencioso e contido durante o culto, ela foi achincalhada com imprecações escritas na parede da igreja que a comparavam a um animal. A humilhação pública fez com que ela moderasse suas pretensões de julgar moralmente as atitudes de seus vizinhos. Mas ainda hoje os motoqueiros e as crianças fazem questão de produzir bastante barulho durante o culto para pirraçá-la e lembrá-la de que não pode reivindicar uma posição acima dos outros. A pirraça reclama a simetria entre as partes envolvidas no jogo de provocações. Contra pretensões hierárquicas, a pirraça intervém para tirar do certo quem quer que arrogue a si uma prerrogativa calcada em um saber ou em uma ordem que ultrapassa a experiência comum. Há também gente muito sabida que chega à comunidade com objetivo de ensiná-los. Esses sabidos são quase sempre da cidade, como, por exemplo, os ambientalistas que moram em Caetité. Ao se opor à prática das queimadas para formação de novas roças, os ambientalistas anunciam que as queimadas intensificam a seca e fazem a água desaparecer dos poços. E tomam isso como uma proposição absoluta e válida para todos os tempo e lugares e uma causalidade simplificada e exclusiva. Os sabidos defensores do meio ambiente pretendem que suas proposições sejam tomadas como pura objetividade e convençam os agricultores da Malhada a parar de atear fogo nas capoeiras. Mas a experiência dos agricultores é bem diferente disto e faz proliferar outros elementos. Os malhadeiros, acurados observadores das condições climáticas, ao comentarem sobre essas visitas, recusam-se a admitir a plausibilidade dessa assertiva dos ambientalistas. Para eles, a causalidade das secas envolve outros processos de mudança na “natureza do mundo” e na “natureza do povo”. Quando querem mobilizar a proposição dos ambientalistas em suas especulações sobre a intensa e persistente estiagem ao longo dos últimos anos eles introduzem o “dizem” no início da frase. A instância de enunciação “dizem” não reivindica a pretensão de ensinar e de emitir verdades absolutas. O “dizem” também guarda o cuidado de não encerrar aquela proposição como um enunciação exata e acabada sobre o mundo e sobre as pessoas.

Além dos sabidos, atravessam a comunidade os estudados, em especial, os funcionários das empresas de energia nuclear e energia eólica. Há doze anos, os moradores de Malhada e de outras quatro comunidades quilombolas (Contendas, PauFerro, Lagoa do Mato e Vereda do Cais), convivem com a preocupante vizinhança da mina e usina de urânio radioativo explorada pelas Indústrias Nucleares do Brasil. E mais recentemente, foram compelidos a lidar com a invasão de empresas de construção de aerogeradores em seu território e com o assédio de engenheiros, geólogos, cartógrafos e advogados. Os funcionários da INB atravessam as roças, quebram lajedos para fazer a prospecção sem buscar autorização dos donos das terras e “sem dar assunto para ninguém”. Já os advogados e pesquisadores da empresa de energia eólica assediam as pessoas da Malhada para negociarem suas terras. Embora parte dos moradores das comunidades vizinhas tenha assinado contratos de arrendamento, na comunidade de Malhada, cujo território consta nos traçados dos parques eólicos previstos, nenhum acordo ou contrato fora efetuado. As reuniões da associação de moradores são tomadas por uma balburdia que confunde os profissionais enviados para “esclarecê-los”. Os estudados, como são designados os representantes das empresas, têm dificuldade de encerrar a controvérsia com relação às terras e neutralizar o enfrentamento discursivo que mobiliza repertórios distintos e, por vezes, irreconciliáveis. A cartografia do território ainda não titulado da comunidade, por exemplo, não encontra correspondência nas apreciações e registros da empresa sobre a área. Onde a equipe técnico-jurídica identifica uma grande extensão de mata virgem, atribuída a um proprietário externo à comunidade, os moradores dessa comunidade reconhecem vários rancadores (antigas roças abandonadas) dos avós e riem-se daqueles que não sabem distinguir um rancador de um mato maciço (mata intocada). Riem também das placas de “proibido caçar e pescar” espalhadas ao longo dos limites da terra indevidamente apropriada pela empresa, um lugar tão mal conhecido por seus funcionários estudados que ainda não repararam a falta de água ao redor. E esse plano simétrico que o humor enseja nos ajuda a compreender os enfrentamentos verbais que modalizam o conflito tipificado entre essas comunidades rurais negras e agentes capitalistas. Os relatos que eles me contavam desses encontros tensos carregavam sempre uma pitada de humor. O conflito com a invasão da empresa de energia eólica é mais recente e, por isso, pude observar mais intensamente a oposição da comunidade a ela. Para construir

Parques Eólicos, funcionários da empresa correm para comprar ou arrendar as terras de várias comunidades rurais. No final do mês de maio deste ano, presenciei um desses encontros. Torres e crianças6

Ao meio-dia aponta na casa de Lia uma visita indesejável: um novo advogado contratado pela empresa de instalação de aerogeradores que tentava mais uma vez negociar as terras da comunidade de Malhada. Lia não se esquece do sorriso que aquele homem de sotaque sulista exibia e tentava manter durante toda a conversa.

Ele

procurava pelo coordenador da associação de agricultores da comunidade de quilombo de Malhada que, como de costume, sempre ao meio dia levava o gado para beber água. Aquele homem se apresentou como advogado e explicou que não era da empresa de construção de aerogeradores, mas dono de uma ONG especializada em regularizações de terras. Esperava assim compor uma apresentação mais simpática desmanchando seus vínculos com a empresa de energia eólica que havia se apropriado em negociações tortuosas com fazendeiros vizinhos uma grande parte do território da Malhada. Em reunião anterior, no mês de março, os moradores já tinham determinado que nenhum funcionário da empresa “pisaria” na comunidade se não fosse convidado. O advogado passava por cima dessa decisão e insistia com aquela visita. Ele queria demover a resistência da comunidade que parecia ser para ele um sinal de incompreensão. Algumas comunidades quilombolas tinham manifestado adesão aos contratos de arrendamento e a Malhada era uma das comunidades que os funcionários da empresa tinham maior dificuldade de formular e levar a êxito as negociações. Já tinham tentado marcar várias reuniões, algumas no escritório da empresa, outras no prédio escolar da comunidade. Todas sem sucesso. Ou ninguém aparecia. Ou ainda quando tentavam conversar com uma única pessoa separadamente apareciam dezenas que aturdiam e refratavam quaisquer possibilidades de acordo ou negociação. Por várias vezes, tentaram obter o reconhecimento e a colaboração da comunidade. Lia me chamou para que eu conversasse com o advogado, distraindo-o enquanto ela pedia ajuda ao seu filho Dão que morava a pouco mais de um quilometro de sua 6

Diálogos abaixo foram criados baseados nos relatos sobre o caso que correram pela comunidade. Também ressalto somente alguns pontos do longo diálogo que nos relatos foram mais destacados.

casa. O advogado aproveitou a ocasião para tentar conquistar meu apoio e tentava a contrapelo me incluir em um “nós” que poderia ser acompanhado do subtexto “os estudados, os arrazoados da cidade”, que se distinguiriam com relação aos quilombolas, os outros. Eu recusei aquela identificação. Para atender ao preocupante chamado de sua mãe, Dão largou o prato de almoço e correu para a casa onde estava o homem da eólica. No início o advogado ainda insistiu, com sorrisos, que não estava a favor da empresa e simulou algumas pretensas críticas à abordagem da empresa relatada por Dão. Esforçava-se em manter um tom de voz calmo e pacífico quando se apresentou como alguém que tinha a intenção de promover a conciliação de um modo que ficasse “bom para os dois lados”. Antecipando-se à hostilidade das reuniões anteriores, disse que queria que eles o vissem “como pessoa, um ser humano” que merecia ser ouvido. Pretendia que enxergassem nele um pai de família, ao invés de um advogado contratado, ou no dizer nativo, “um homem mandado”, e encetou uma conversa tentando “humanizar” também as torres de energia eólica:

- Vocês já viram uma torre? perguntou o advogado. - Não, graças a Deus!, respondeu Lia, que estava ao lado do filho. - É muito bonita, é igual... igual a um filho da gente. Disse o sulista aproveitando também a ocasião para falar que era pai de dois filhos.

Antes que ele dissesse mais alguma coisa sobre seu fascínio pelos aerogeradores que podem alcançar até 100 metros de altura, Lia reagiu escandalizada:

- Deus me livre de comparar uma torre a um filho!, E repetiu Ave-Maria três vezes, como costumava fazer para afugentar um pensamento ruim.

Dão aprofundou o absurdo da comparação:

- Numa comparação, a torre você faz e vende. E o filho, você vende? Não vende, nem passa para os outros!

O homem tentou se explicar dizendo que o trabalho que ele tinha para fazer a torre era como se fosse o trabalho de cuidar de um filho.

- Você pensou errado. Uma torre não é igual a um filho!, redargüiu Dão.

Começou então uma ruidosa zombaria que tornava ainda mais absurda e alarmante aquela comparação. Os risos eram estralados e nervosos e pareciam tentar reconduzir a conversa para longe do plano formal da negociação de terras.

O advogado assim admitiu que torres e crianças eram incomparáveis para não alongar aquela situação estranhamente embaraçosa. Desde então ele retirou o sorriso da boca. Na porta da casa, apareciam cada vez mais vizinhos que acorriam para saber quem era aquela figura e o que ele queria. Depois disso, o advogado partiu para a negociação direta, sem mais rodeios. Ele fez ofertas e disse que caso a comunidade aceitasse suas condições, empresa poderia devolver a terra, que foi vendida por um grileiro. Nesse momento Lia questionou:

- Como é que você vai devolver uma terra que não é sua. Tem como eu dar o que não é meu? Não devolve porque a terra nunca foi da empresa. Essa é boa, querer devolver! - Numa comparação, se essa cadeira é sua, eu te dou um papel, você assina sem saber, de quem é a cadeira?, reforçou Dão.

Depois de quatro horas gastas para explicar a proposta da empresa, o advogado estava transtornado. Se no início quem mostrava os dentes era ele, no final, ele franzia o cenho enquanto a zoada aumentava progressivamente. Já perdendo a paciência, ele disse: - Eu estou falando sério? - Nós também!, retrucou Dão.

“E nós desgraçamos a rir”, assim finalizou Lia ao relatar aquela conversa para seu vizinho e compadre. Os risos eram tensos e pareciam criar uma balbúrdia que tentava interromper a negociação e afugentar aquela presença indesejada. A comparação entre filhos e torres que foi recebida com horror e protesto, ficou engraçada quando o caso foi recontado para os vizinhos. Essa era a parte de maior destaque nos relatos.

No meio da negociação em que o advogado buscava equivalentes para as terras (oferecia ônibus, tanques de água e uma quantia de 6 mil reais anuais por torre, garantida pelo contrato de arrendamento de terra), a equivalência entre filhos e torres escandalizou aquela inquieta audiência. A familiaridade pretendida pelo advogado não seria ativada naquele diálogo pela evocação da paternidade. A zombaria parecia manifestar a recusa em transferir a relação afetuosa da paternidade para a relação de negócios que envolve terras e torres. Assim, o pai das torres foi achincalhado como uma aberração. Mas o prazer em recontar o episódio parecia consistir em frisar as “respostas” que foram dadas ao advogado, o modo pelo qual eles o deixaram sem jeito. Pontuam suas habilidades de responsar e descartar a palavra alheira. Responsar não é responder a perguntas, é responder a provocações. Assim como acertar não é dar a resposta certa, mas sim atingir o adversário e embargar suas possibilidades de resposta. Os risos aparecem como enfrentamento e atende à intenção de tirar alguém do sério. Mas não conduzem a um “rir junto”. Nesse caso, as provocações serviram para que o advogado, o estudado, que esboçava preliminares amistosas, revelasse seu real lado: um “mandado” da empresa contra a qual a comunidade havia se posicionado muito claramente. A zombaria parece ser uma maneira de conhecer as pessoas, “saber quem é quem” e demonstrar preferências e aversões. A condução do diálogo àquele desfecho barulhento não enuncia uma recusa à proposta, mas uma recusa à possibilidade de negociação. O humor e toda a confusão e o desentendimento que ele provoca aparecem, assim, como uma modalidade de resistência. A resistência urdida na trama da linguagem.

Do entendimento aos entendidos: um desfecho intempestivo

A resistência se esconde sob um aparente problema de compreensão. Aquela atitude é vista pelos candidatos a vereador e cabos eleitorais que aceitam assumir a função de “mediadores” do conflito entre comunidade e empresa como resultado da falta de compreensão por parte da comunidade. Em reuniões no prédio escolar, políticos

tentam explicar a proposta da empresa e demonstrar os ganhos financeiros que a comunidade pode obter. Em uma conversa que tive com lideranças quilombolas, eles traduziram, com mais exatidão, o problema das negociações como uma questão de entendimento que, neste caso, distancia-se do sentido de compreensão intelectual ou de inteligibilidade. Certo dia, um morador da comunidade quilombola do Sapé, que também está sendo invadida pelas empresas de energia eólica, queixando-se das dificuldades em mobilizar politicamente as pessoas de sua comunidade, disse-me que elas não estavam considerando seus apelos porque estavam entendidas com o pessoal da empresa. Essa queixa foi seguida pelo comentário, igualmente significativo, de um morador da Malhada: “os homens da eólica querem que a gente aceite o entendimento deles. Querem que a comunidade entenda o entendimento deles”. O entendimento nesse caso denota um “estar em acordo”, uma anuência, adesão, a confirmação das razões da outra parte. É curioso perceber que as pessoas sábias ou conhecedoras, entre os quilombolas de Caetité, são designadas “entendidos”. Os entendidos são adivinhos que trabalham como curadores ou benzedores. Atualizando o sentido depreendido da noção anterior de entendimento, o entendido é aquele que tem a habilidade ou o dom de se colocar em acordo com diferentes potências e influências nas práticas de cura. Apenas propiciam a ação de guias e dos santos católicos na cura de algum mal. São pessoas responsáveis no sentido de que respondem com precisão aos desafios das circunstâncias e garantem a eficácia de sua palavra ao emitir um palpite certeiro ou dar orientações e indicações que se comprovam no futuro como exatas. Mesmo sendo figuras muito respeitadas, os entendidos não se arrogam a pretensão de curar por sua ação pessoal, pois o saber e a agência da cura pertencem a outro mundo, o mundo dos mortos tornados guias espirituais ou mundo dos santos católicos. Aos humanos não é concedido o poder de saber demais. Segundo as explicações de um agricultor da Malhada, todas as vezes que o homem se declara sabido, sabedor de tudo, Deus se ausenta. Inquirir a “natureza do mundo” e a “natureza do povo” com humor, sem pretensões hierárquicas, parece ser uma exigência de suas práticas de conhecimento que se enraízam na absoluta e obscura transcendência da agência de Deus (católico) sobre a natureza e sobre os humanos. Em seu diligente trabalho de resistência e de recusa ao entendimento com a empresa, os quilombolas tentam produzir o possível contra as “necessidades”

desenvolvimentistas reputadas como inelutáveis e os vaticínios sobre a inevitabilidade da implantação dos parques eólicos em seu território.

Bibliografia

DELEUZE, Gilles. Lógica do sentido. São Paulo: Perspectiva, 2007. [1969]

FAVRET-SAADA, Jeanne: Les mots, la mort, les sorts. La sorcellerie dans le Bocage, Bibliothèque des Sciences humaines, Gallimard, Paris, 1977.

LATOUR, Bruno. Políticas da Natureza: como fazer ciência na democracia.Bauru-SP: EDUSC, 2004.

MAUSS, Marcel. Parentescos de gracejos...Ensaios de sociologia. São Paulo: perspectiva, 2005.

STENGERS, Isabelle. A invenção das ciências modernas. São Paulo: Ed. 34, 2002. ______. Un engagement pour le possible. Cosmopolitiques, n.1 juin 2002.

STRATHERN, Marilyn. O Gênero da Dádiva: Problemas com as mulheres e problemas com a sociedade na Polinésia. Campinas: Ed. Unicamp, 2006.)

WAGNER, Roy. A Invenção da Cultura. São Paulo: Cosac Naif, 2010 [1975].

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