A arte e o divino - Leitura de M. Heidegger

July 7, 2017 | Autor: João Manuel Duque | Categoria: Theology, Art Theory, Heidegger
Share Embed


Descrição do Produto

A  ARTE  E  O  DIVINO  –  LEITURA  DE  M.  HEIDEGGER   JOÃO MANUEL DUQUE – UCP – BRAGA - PORTUGAL Nenhuma teologia pode passar ao lado da questão de Deus, sem deixar de ser teo-logia. E a eterna questão implicada no logos teológico continua a ser a da dizibilidade desse Deus: em que medida e de que modos pode Deus vir à linguagem – necessariamente humana – sem deixar de ser Deus? Teologia e filosofia da religião encontram-se, nos meandros destas questões básicas, intimamente ligadas: estamos, de facto, perante questões que habitam o âmago de toda e qualquer experiência religiosa. E a arte? Que liga esse tão especial fenómeno ao (possível) discurso sobre Deus? Em que medida consegue ela dizer/articular Deus, enquanto tal, sem o atraiçoar, isto é, sem o silenciar? Dizendo-o ou silenciando-o? Nas linhas que se seguem, a abordagem destas perguntas fulcrais efectuar-se-á no permanente jogo dos pensamentos e dos discursos estético e teo-lógico. A referência ao pensamento heideggeriano – aqui escolhido como inspirador de uma possível pista de resposta às questões levantadas – não pretende ser primariamente teológica, sobretudo porque não seria fácil contornar o perigo de uma leitura forçada de tão fértil pensador 1 . Também a não pretende ser de ordem meramente estética, já que de um conceito ambíguo se trata. Nem sequer se pretende apresentar uma filosofia da arte, enquanto tal, fechada sobre si mesma e sobre questões de horizonte limitado. Algumas reflexões heideggerianas sobre a arte serão expostas e analisadas, de forma (extremamente) resumida, porque anunciam um caminho a percorrer, caminho que poderá conduzir-nos à questão teo-lógica básica. Isso não significa que a pergunta (mais do que a resposta) de Heidegger sobre a essência da arte não seja de suma importância, mesmo na perspectiva da estética tradicional (que nele se vê, de algum modo, superada). A actual discussão, em torno da filosofia da arte, prova a 1  O  que  não  significa  que  o  pensamento  de  Heidegger  não  possa  ser  relido  em  registo  

teológico  –  a  provar  o  contrário  estão  as  numerosas  tentativas,  nesse  mesmo  sentido  (apenas   como  exemplos:  E.  BRITO,  Les  théologies  de  Heidegger,  in:  «Révue  Théologique  de  Louvain»  27   (1996)  432-­‐461  [com  extensa  bibliografia  na  nota  2];  ID.,  La  réception  de  la  pensée  de  Heidegger   dans  la  théologie  catholique,  in:  «Nouvelle  Révue  Theologique»  119  (1997)  352-­‐374;  F.  DASTUR,   Heidegger  et  la  théologie,  in  «Révue  Philosophique  de  Louvain«  92  (1994)  226-­‐245;  P.  BRKIC,   Martin  Heidegger  und  die  Theologie,  Mainz  1994;  E.  CORETH,  Fuga  o  avvento  degli  dei?  Sulla   questione  di  Dio  in  Matin  Heidegger,  in:  «Rassegna  di  Teologia»  37(1996)  581-­‐595.  

inesgotável riqueza das suas repercussões. Só que, aqui, o acento será colocado noutro lugar – lugar que o próprio pensamento heideggeriano não deixou de apontar: a arte como instauração/fundação (Stiftung) originária e original da verdade, na obra; como espaço aberto para a vinda de Deus (das Kommenlassen Gottes). Seguindo os caminhos abertos ou indicados por Heidegger, talvez consigamos aproximar-nos daquela origem, onde o pensamento do ser poderá anunciar a vinda de Deus à linguagem.

1. A arte como poesia “A arte possibilita o brotar da verdade. A arte – enquanto salvaguarda instaurante – faz surgir, na obra, a verdade daquilo que é (des Seienden). Fazer surgir algo – trazer algo ao ser, em salto instaurante, a partir da proveniência essencial – eis o que significa a palavra origem (Ursprung)”2. Nesta compacta e elaborada afirmação (ao estilo de muitas outras do mesmo pensador) se resume a teoria heideggeriana sobre a arte – de modo mais claro e sistematicamente exposta, pela primeira vez, no trabalho Der Ursprung des Kunstwerkes (A origem da obra de arte). Este texto – só publicado integralmente em 1950, na colectânea Holzwege – recolhe um ciclo de três conferências proferidas em 1935-1936, quase simultâneas aos trabalhos sobre Hölderlin e Nietzsche3. Muitos são os investigadores que têm salientado o significado deste texto, no seu contexto, para o percurso pensante do filósofo da floresta negra4. A sua interpretação do fenómeno artístico não é considerada uma estética, no sentido habitual do termo, mas precisamente a superação da visão meramente estética da arte, para a enquadrar no contexto mais vasto da questão do ser e da verdade.

2  M.  HEIDEGGER,  Der  Ursprung  des  Kunstwerkes,  in:  Holzwege,  Gesamtausgabe  (=GA)  5,   Frankfurt  a.  M.  1977,  65-­‐66.  A  palavra  alemã  Ursprung  –  habitual  e  correctamente  traduzida  por   «origem»  –  é  formada  pela  partícula  Ur  (com  campo  semântico  ligado  a  primitivo,  arcaico,   originário,  germinal)  e  pelo  termo  Sprung,  que  significa  salto.  Heidegger  utiliza  a  palavra  em  toda   a  sua  carga  semântica  e  não  apenas  no  sentido  usual.   3  Cf.:  M.  HEIDEGGER,  Hölderlins  Hymnen  «Germanien»  und  «Der  Rhein»,  GA  39;  ID.,  Hölderlin   und  das  Wesen  der  Dichtung,  in:  Erläuterung  zu  Hölderlins  Dichtung,  GA  4,  Frankfurt  a.  M.  1981,   33-­‐48;  ID.,  Nietzsche:  Der  Wille  zur  Macht  als  Kunst,  GA  43.  Todos  estes  trabalhos  se  podem  inserir   na  árdua  procura  de  uma  linguagem  que  permitisse  dizer  o  ser,  para  além  da  metafísica  e  que   atraem  sobre  a  filosofia  do  segundo  Heidegger  a  tão  frequente  crítica  de  não  passar  de  um   conjunto  de  considerações  poetizantes.   4  Cf.:  O.  PÖGGELER,  Der  Denkweg  Martin  Heideggers,  3ª  Ed.,  Pfullingen  1990,  207;  ID.,   Heideggers  Begegnung  mit  Hölderlin,  in:  «Man  and  World»  10  (1977)  32ss;  A.  GETHMANN-­‐SIEFERT,   Heideggers  Bestimmung  des  Kunstwerks  –  im  Rückblick  auf  «Sein  und  Zeit»,  in:  ID.(Dir.),  Philosophie   und  Poesie,  Stuttgart-­‐Bad  Cannstatt  1988,  vol.  2,  144-­‐145.    

De facto, essa questão constitui, sem dúvida, uma – senão a – questão constante, em todo o percurso do pensamento heideggeriano5, assumindo contudo abordagens diferenciadas6. Entre estas, destacam-se o convívio com os pré-socráticos; a problemática da linguagem e, talvez em lugar de destaque, precisamente a questão da essência da arte. Esta questão, por seu turno e sendo analisada no contexto do seu aparecimento, generaliza a todas as artes (ao fenómeno artístico, na sua globalidade), conclusões tiradas a partir essencialmente da reflexão sobre as artes da linguagem. Na continuidade dos seus vários caminhos, Heidegger percorre, agora, os caminhos específicos da poesia: “No lugar da sua ocupação com a teologia, Heidegger coloca, agora, a sua interpretação da poesia”7. Mas regressemos às palavras do filósofo. Elas falam de uma origem (Ursprung). Essa origem é apresentada como instauração/fundação (Stiftung): a instauração da verdade. Essa instauração dá-se, na obra, de forma simultaneamente produtiva e acolhedora. Qual o significado de tais afirmações e expressões? O que é a verdade, pensada na sua ligação com a obra de arte? São estas, basicamente, as questões constantemente presentes no texto heideggeriano sobre a obra de arte. Aprofundando estas questões, tocaremos no ponto fulcral do primeiro confronto pensante de Heidegger com a arte. Comecemos pelo significado do termo «instauração». Instauração implica, sempre, que, num determinado processo, algo seja instaurado por alguém. O quê, por quem e como é, neste caso, instaurado? Trata-se, segundo Heidegger, da instauração de um conflito (Streit): um conflito originário, entre mundo e terra. Assistimos à abertura de um mundo. E, “abrindo-se um mundo, 5  O  que  coloca  em  causa  uma  interpretação  radical  da  famosa  Kehre  (reviravolta)  do  seu  

pensamento,  senão  mesmo  a  sua  existência,  pura  e  simplesmente  (Cf.:  H.-­‐G.  GADAMER,  Neuere   Philosophie  I,  GW  3,  Tübingen  1987,  248-­‐261;  W.  BIEMEL,  Heidegger,  Reinbeck  b.  Hamburg,  1973,   esp.  35ss;  J.  GREISCH,  La  parole  heureuse.  Martin  Heidegger  entre  les  choses  et  les  mots,  Paris  1987).   No  contexto  específico  da  filosofia  da  arte,  A.  GETHMANN-­‐SIEFERT,  op.  cit.,  analisou  em  pormenor  a   continuidade  entre  Sein  und  Zeit  e  Der  Ursprung  des  Kunstwerkes.  Para  além  disso,  a  ligação  da   arte  à  questão  da  verdade  constitui  um  forte  ponto  de  contacto  com  Hegel  (Cf.:  W.  BIEMEL,  Die   Bedeutung  von  Kants  Begründung  der  Ästhetik  für  die  Philosophie  der  Kunst,  Köln  1959,  esp.   182ss).   6  Aspectos  a  que  O.  PÖGGELER,  Der  Denkweg,  189ss,  chama  “inícios”  (Anfänge)  do   pensamento  heideggeriano.   7  A.  GETHMANN-­‐SIEFERT,  op.  cit.,  145-­‐146.  A  característica  principal  do  pensamento   heideggeriano  sobre  arte  seria,  então,  o  facto  de  estar  construído  em  estreita  ressonância  com  as   questões  do  ser  e  da  verdade  e  de  se  desenvolver  a  partir  da  convivência  com  a  poesia.  Por  outro   lado,  é  interessante  verificar,  no  nosso  contexto,  que  a  poesia  veio  (de  certo  modo  e,  como   veremos,  não  totalmente)  substituir  o  lugar  da  teologia.  

todas as coisas recebem a sua permanência e a sua urgência (Weile und Eile), a sua distância e a sua proximidade (Ferne und Nähe), a sua amplitude e a sua limitação (Weite und Enge)”8. Ou seja, só na abertura desse mundo é que a realidade das coisas se nos revela, naquilo que é; só assim, a realidade se torna, ela própria, um mundo com sentido. O mundo, assim aberto, constitui uma clareira (Lichtung) que possibilita o ser de tudo o que é, assim como a sua verdade, que agora se revela (vem à luz). “O que é, só pode, enquanto tal, ser, quando se introduz e permanece na luminosidade dessa clareira”9. Contudo, como acima referido, no conflito originário, que acontece ou é instaurado pela obra de arte, também se falava de terra (Erde). Que significa terra? A origem mítica e gnóstica (poderíamos dizer, essencialmente órfica) desse conceito, tem causado enormes dificuldades a muitos intérpretes, ao contactarem com o pensamento heideggeriano sobre o assunto. Contudo, com alguma facilidade e clareza se pode constatar a ligação de dito conceito à interpretação heideggeriana de Hölderlin, que acompanha sempre o texto em análise e em cuja poesia desempenha um importante papel a referência à terra e à pátria (no sentido de lar, de Heimat). Quanto à génese, portanto, parece não haver dúvidas. Mas o que continua contestável é a transposição de um conceito míticopoético (mesmo romântico, num certo sentido) para o âmbito propriamente filosófico. Tal acto torna, contudo, ainda mais pertinente o significado da sua utilização, precisamente em relação à obra de arte. “A importante perspectiva, aberta pelo texto de Heidegger sobre a origem da obra de arte, é que «terra» constitua uma determinação ontológica (Seinsbestimmung) da obra de arte”10. Mas qual o significado do conceito terra, neste seu novo contexto? “A terra é aquilo que se re-esconde (zurückbirgt), enquanto tal, o acto de abertura (das Aufgehen) de tudo o que se abre. Naquilo que se abre, surge a terra, como o ocultante 8  M.  HEIDEGGER,  Der  Ursprung,  31.  O  conceito  de  mundo  pode  ser  deduzido  de  Sein  und   Zeit.  No  contexto  actual,  contudo,  é  relacionado  com  tudo  o  que  é  (das  Seiende)  e  não  apenas  com   o  Dasein  (Cf.:  H.-­‐G.  GADAMER,  op.  cit.,  252:  “O  mundo,  como  totalidade  de  relação  do  projecto  do   Dasein,  constitui  [em  Sein  und  Zeit]  o  horizonte  que  precedeu  todos  os  projectos  de  cuidado   humano  do  Dasein”  –  Cf.:.  Ibidem,  327).   9  M.  HEIDEGGER,  Der  Ursprung,  40.   10  H.-­‐G.  GADAMER,  op.  cit.,  100;  Cf.:  Ibidem,  327-­‐328:  “O  facto  de  que  «terra»  se  tenha   tornado  tema  da  filosofia,  essa  transposição  de  uma  palavra  carregada  poeticamente  para  uma   metáfora  conceptual  central  significa  uma  verdadeira  ruptura...  Hölderlin  tinha  soltado  a  língua   ao  pensamento  de  Heidegger”.  

(das Bergende)”11. Enquanto fundamento, no qual irrompe (weltet) um mundo (Welt), a terra é também a salvaguarda do mistério do ser. E isso num jogo tensional contínuo, que se distingue de todo o tipo de dialéctica. “A clareira, na qual assoma o que é, é, em si, simultaneamente, ocultação”12. Ora, como a questão sobre a essência da arte é abordada no preciso contexto da pergunta pela verdade do ser, Heidegger coloca no mesmo plano a determinação da arte e a da verdade. “A verdade irrompe, apenas, como conflito entre clareira e ocultação, na reciprocidade adversa entre mundo e terra” 13 . Assim se torna compreensível como pode considerar-se a arte um lugar (excelente) do acontecer da verdade. Esse acontecer (Geschehen) é, precisamente, aquilo a que Heidegger chama instauração/fundação originária. Mas como acontece essa instauração, na arte? Precisamente quando o conflito entre mundo e terra deixa de ser, apenas, uma oposição abstracta entre conceitos e se torna obra. O acontecer da verdade, na arte, está, pois, indissoluvelmente ligado à obra de arte, ou melhor, ao ser-obra da arte. A forma (no sentido da estética clássica) não constitui, portanto, uma qualidade secundária da arte – centrada no conteúdo ou no sentido – mas pertence, irrecusavelmente à sua essência14. Daí se pode já deduzir que a resposta à questão de «quem instaura?» não pode reduzir-se ao artista ou ao receptor da arte. De facto, se o artista é autor da obra de arte e se o receptor é quem a salvaguarda como arte, a instauração da verdade que nela se dá não é produto de um nem de outro – porque não é produto de nenhum sujeito. A verdade, na obra, instaura-se, porque é o ser que nela se realiza. Mas, o facto de a obra possuir um lugar central na filosofia heideggeriana da arte, não significa que a «produção» e a «recepção» sejam propriamente esquecidas15.

11  M.  HEIDEGGER,  Der  Ursprung,  28.  

12  Ibidem,  40;  Cf.:  H.-­‐G.  GADAMER,  op.  cit.,  328.   13  M.  HEIDEGGER,  Der  Ursprung,  50.  Sobre  a  concepção  heideggeriana  de  verdade,  Cf.:  M.   HEIDEGGER,  Vom  Wesen  der  Wahrheit,  in:  Wegmarken,  Frankfurt  a.  M.  1967;  ID.,  Beiträge  zur   Philosophie  (Vom  Ereignis),  GA  65,  Frankfurt  a.  M.  1989,  esp,  326ss;  J.  DUQUE,  Die  Kunst  als  Ort   immanenter  Transzendenz,  Frankfurt  a.  M.  1997,  esp.19-­‐35.   14  Torna-­‐se,  assim,  compreensível  o  facto  de  Heidegger  empreender  uma  abordagem  da   arte  a  partir  da  obra,  em  oposição  à  estética  moderna  (que  parte  do  sujeito)  e  mesmo  a  Nietzsche   (que  parte,  ainda,  do  artista  ou  génio  criador);  Cf.:  M.  HEIDEGGER,  Nietzsche:  Der  Wille  zur  Macht   als  Kunst,  GA  43,  esp.  82ss  (ver,  acima,  o  estudo  sobre  Gadamer  e  a  arte).   15  Note-­‐se  que  Heidegger  renunciará  a  tais  expressões,  apenas  para  evitar  falsas   interpretações,  no  sentido  metafísico,  e  para  contrariar  qualquer  redução  subjectivista,  no  estilo   da  estética  moderna.  Neste  ponto,  considero,  pelo  menos,  inadequada  a  crítica  de  W.  PERPEET,   Heideggers  Kunstlehre,  in:  O.  PÖGGELER  (Dir.),  Heidegger:  Perspektiven  zur  Deutung  seines  Werkes,   Königstein  1984,  229:  “Poderá  e  deverá  a  fundamentação  estética  partir  tão  exclusivamente  da  

“Assim como uma obra não pode ser obra sem ser criada, assim como precisa essencialmente de criadores, assim também o próprio criado não pode tornar-se ser sem os que salvaguardam” 16 . Com Heidegger, podemos condensar assim a determinação da arte: “A arte é, então, a salvaguarda criadora da verdade, na obra”17. Ora, a esta instauração da verdade como obra de arte chama Heidegger poesia (Dichtung), em ressonância com o significado grego da poiesis. A equiparação da poesia à instauração permite conferir à primeira um sentido mais lato do que o de poesia, em sentido habitual e estrito (Poesie, em alemão)18. Portanto, sempre que, de seguida, se falar em poesia, será no sentido de arte em geral. Poesia definirá, assim – com Heidegger e para além dele – a essência de todas as artes. A conclusão aberta do texto sobre a origem da obra de arte é, portanto, a determinação da arte como poesia, isto é, como instauração/fundação criadora-salvaguardante da verdade – enquanto conflito entre mundo e terra – na obra. Em escritos posteriores, Heidegger desenvolve várias outras considerações sobre a mesma temática. Embora quase todas essas reflexões se refiram directamente à poesia, em sentido estrito, é perfeitamente viável a sua aplicação a todas as artes, uma vez que todas são, na sua essência, poesia. Mas a questão apresenta-se, agora, noutra linha, que não já a da essência da arte, em ligação ao ser e à verdade (embora essa perspectiva se mantenha): qual a missão da poesia – isto é, da arte – na actualidade?

2. Poesia e quadratura A poesia instaurante da verdade não é mero espelho reflector de uma determinada época nem puro resultado da história ou da cultura. Ela é, antes, um elemento originante da própria história, na medida em que a possibilita. Ora, se o conceito de história – ligado ao de mundo, de Dasein, de temporalidade, de linguagem e de ser – ocupa um indiscutível lugar central na filosofia de Heidegger, ele assume, na última fase da sua filosofia, uma dimensão que obra?”.  Não  nego  que  possa  ser  discutível  um  certo  exagero  na  acentuação  da  obra;  não  consigo,   no  entanto,  ver  onde  Perpeet  encontra,  em  Heidegger,  tal  exclusivismo.   16  M.  HEIDEGGER,  Der  Ursprung,  54.   17  Ibidem,  59.   18     A  afirmação  de  que  a  obra  literária,  “a  poesia  em  sentido  estrito”  –  como  lhe   chama  o  próprio  Heidegger  –  possui  “uma  posição  privilegiada,  na  globalidade  das  artes”  (Cf.:  M.   HEIDEGGER,  Holzwege,  61)  constitui  uma  opção  discutível,  muito  comum  entre  filósofos,  por   profissão  mais  próximos  da  literatura  que  das  outras  artes.  No  entanto,  deixo  essa  discussão  em   aberto,  no  âmbito  destas  considerações,  limitando-­‐me  à  poesia  em  sentido  lato.  

poderíamos considerar cósmica, pelo menos em comparação com a orientação em certa medida «antropológica» de Sein und Zeit19. Por volta do fim dos anos quarenta e já anunciando esse contexto «cósmico«, Heidegger fala da poesia como “revelação da proximidade”20. No mesmo contexto, só que dez anos mais tarde, ele explicita o conceito de proximidade, ligando-o ao papel instaurador da arte: “O ser humano que habita poeticamente traz tudo o que se manifesta – a terra, o céu e o sagrado – à luz (Vorschein) que em si própria repousa e que tudo guarda; fixa tudo isso na figura (Gestalt) da obra. «Fixar tudo e manter tudo em si mesmo» significa instaurar”21. Mas o que se pretende evocar com o conceito de proximidade (Nähe)? Em primeiro lugar, convém esclarecer que essa proximidade nada tem a ver com o sentido usual de ausência de distância. Se é verdade que hoje tudo parece “nivelado na ausência de distância”22, sobretudo através dos mais sofisticados meios técnicos, que nos permitem superar essa distância – espacial e temporal, pelo menos – e tornar o nosso mundo pequeno, o certo é que continua ausente a proximidade daquilo que, em realidade, é. Ou seja, anulamos a distância sem instaurar a proximidade – talvez, precisamente, por pretendermos fazê-lo anulando a distância. Só que a proximidade não se produz nem se atinge, directamente, pela simples anulação das distâncias. Ora, se a essência da proximidade não é atingível directamente, terá que se revelar a partir daquilo que nela se encontra e, desse modo, se nos manifesta, manifestando-a – e encobrindo-a, simultaneamente, no permanente jogo tensional entre mundo e terra. “Na proximidade encontra-se, para nós, aquilo a que costumamos chamar coisas (Dinge)”23. E é a partir das coisas que se encontram na proximidade que Heidegger desenvolve o seu pensamento, a fim de se aproximar da proximidade. Ora, uma coisa possui, essencial e originariamente, um carácter reuninte, confluente, conjugante (versammelnd). Mas trata-se de uma forma de confluência 19  De  facto,  se  é  verdade  que  uma  interpretação  meramente  antropológica  desta  primeira   obra  mestra  de  Heidegger  é  incorrecta,  o  certo  é  que  ela  contém  elementos  suficientes  para  a  ler   acentuando  esse  aspecto.   20  Cf.:  E.  KETTERING,  Nähe.  Das  Denken  Martin  Heideggers,  Pfullingen  1987,  esp.  193ss;  M.   HEIDEGGER,  Vorträge  und  Aufsätze,  Pfullingen  1954,  esp.  163ss;  ID.,  Erläuterungen  zu  Hölderlins   Dichtung,  GA  4,  25:  “O  poeta  entra  em  casa,  na  medida  em  que  penetra  na  proximidade  da  origem.   Ele  penetra  na  proximidade,  na  medida  em  que  diz  o  mistério  da  proximidade  do  próximo”.   21  M.  HEIDEGGER,  Erläuterungen,  162.   22  ID.,  Vorträge,  164.   23  Ibidem.    

específica, que mantém a diferença do diferente. “O reunir e o permanecer da coisa é um aproximar que não nivela na ausência da distância, mas que salvaguarda a distância (Ferne)”24. E é nesse seu carácter de reunião confluente, instauradora da proximidade na distância e da distância na proximidade que a coisa, na clareira da proximidade, a revela e esconde. Ora, aquilo que a coisa, no seu «coisar», reúne é o mundo25. E é o próprio Heidegger que “indica como deverá pensar-se esse mundo: é a quadratura (Geviert) de terra e céu, do divino e do mortal”26. Esse «coisar» o mundo como quadratura é um aproximar dos quatro, na proximidade da sua distância. Portanto, “aproximar é a essência da proximidade. A proximidade aproxima a distância, enquanto distância”27. Aprofundando o «conceito» de quadratura, Heidegger dedica-se a descrever a forma de relacionamento entre os quatro elementos básicos do mundo. Relacionamento que se dá à semelhança de um jogo de espelhos: sempre que dizemos um dos quatro, “pensamos os outros três, a partir da simplicidade dos quatro”28. Simplicidade não significa, portanto, unicidade, mas jogo tensional da pluralidade do diferente e distante, mas próximo – como no espelho. Vale a pena transcrever a longa, compacta e enigmática frase do próprio Heidegger, que melhor do que qualquer outra resume esse jogo, na sua dimensão nitidamente cósmica: “A terra é o suporte para a construção, a fertilidade que alimenta, alberga as águas e as rochas, plantas e animais... O céu é o percurso do sol, o trajecto da lua, o brilho das estrelas, o tempo dos anos, luz e crepúsculo do dia, escuridão e claridade da noite... Os divinos são os mensageiros que anunciam a divindade. A partir do surgir oculto destes, revela-se o deus na sua essência, que o afasta de qualquer comparação com o que é presente (Anwesend)... Os mortais são os seres humanos. Chamam-se mortais, porque podem morrer. Morrer significa: ser capaz de morte, enquanto tal. Só o ser humano morre”29.

24  O.  PÖGGELER,  Der  Denkweg,  241.  É  nesse  jogo  entre  proximidade  e  distância  que  se   pressente  o  ressoar  do  jogo  entre  mundo  e  terra,  entre  revelação  e  ocultação.  Este  jogo  tensional   marca  o  cerne  da  concepção  heideggeriana  de  verdade.   25  Aqui,  não  como  parceiro  de  jogo  da  terra,  mas  como  o  todo  da  própria  estrutura  da   verdade  (Cf.:  O.  PÖGGELER,  op.  cit.,  234).     26     Id.,  247.  A  origem  mítica  deste  tipo  de  pensamento  é  irrecusável.  Em  Platão,   pode  encontrar-­‐se  algo  de  semelhante.  Contudo,  o  impulso  decisivo,  que  levou  Heidegger  a   pensar  o  mundo  como  quadratura,  foi  mais  uma  vez  Hölderlin  (Cf.:  O.  PÖGGELER,  op.  cit.,  248).   27  M.  HEIDEGGER,  Vorträge,  176;  Cf.:  O.  PÖGGELER,  op.  cit.,  249:  “A  clareira  é  a  proximidade   que  aproxima,  na  medida  em  que  conserva  em  si  a  distância”;  Cf.,  ainda:  M.  HEIDEGGER,  Unterwegs   zur  Sprache,  GA  12,  Frankfurt  a.  M.  1985,  211.   28  M.  HEIDEGGER,  Vorträge,  177.   29  Ibidem,  176-­‐177;    

O conflito originário entre mundo e terra, que habita toda a obra de arte, é agora especificado, na medida em que é ligado à physis ou ao kosmos e é considerado como a relação intrínseca entre terra e céu. De modo ainda mais acentuado que em Der Ursprung des Kunstwerkes, é agora focada a pertença mútua de clareira e ocultação. E só na medida em que esta pertença mútua se mantiver é que conseguiremos penetrar na proximidade salvaguardante, isto é, na distância aproximante. Ora, instaurar a proximidade na distância e a distância na proximidade é a missão do poeta. Na clareira aberta por essa instauração, todas as coisas recebem a sua proximidade específica, em relação a nós, na medida em que permanecem o que são, isto é, distantes e diferentes de nós. Só a proximidade instaurada pelos poetas possibilita a revelação da profunda alteridade da realidade, assim como o nosso habitar no seu seio. Pois habitar significa estar-na-proximidade; como tal, acontece poeticamente. “O poetizar (das Dichten) coloca o homem na terra, leva-o a habitar”30. A essência da proximidade é, pois, o «coisar» do mundo enquanto quadratura. Uma vez que esse «coisar» do mundo enquanto quadratura significa deixar-habitar o ser humano nesta terra, trata-se, no sentido mais profundo, de poesia31, no sentido já enunciado. Portanto, poesia – enquanto instauração da verdade do ser, na arte – significa uma coisificação do mundo como quadratura, na medida em que coloca a quadratura na obra e, desse modo, instaura a proximidade da distância32. Mas essa proximidade está, ainda, por vir: será o novo, grande começo33. Mas o que é esse começo? Como será possível mesmo vislumbrá-lo? Uma das vias possíveis de aproximação a uma proposta de resposta (possivelmente a de Heidegger) é apontada pela própria estrutura da quadratura. Esta não é apenas o jogo-espelho de terra e céu – estrutura já conhecida de Der Ursprung des Kunstwerkes, como jogo entre terra e mundo – mas também o jogo dos mortais e do(s) divino(s). Tocamos, 30  M.  HEIDEGGER,  Vorträge,  192.   31  Cf.:  Id.,  202:  “A  poesia  é  o  deixar-­‐habitar  originário”.   32  Poder-­‐se-­‐ia  perguntar,  com  W.  PERPEET,  op.  cit.,  234ss,  se  a  “definição  de  arte  como  um   colocar-­‐na-­‐obra  da  quadratura,  é  válida  para  todas  as  artes  de  todos  os  tempos”.  Deixo  a  questão   em  aberto.   33     Cf.:  M.  HEIDEGGER,  Erläuterungen...,  175.  O  facto  de  Heidegger  tentar  identificar  o   grande  começo  com  os  gregos  (pré-­‐socráticos,  sobretudo)  e  de  considerar  Hölderlin  o  Poeta  é,   pelo  menos,  discutível.  Esta  possível  crítica  à  sua  opção  parece-­‐me  ser,  do  ponto  de  vista   filosófico,  muito  mais  importante  do  que  todas  as  críticas  –  mais  ou  menos  diletantes  –  que  põem   em  causa,  do  ponto  de  vista  meramente  filológico,  a  interpretação  heideggeriana  dos  gregos  e  do   próprio  Hölderlin.  A  intenção  de  Heidegger  nunca  foi  o  rigor  filológico,  mas  sim  o  caminho  de  um   frutífero  diálogo  filosófico  (Cf.:  O.  PÖGGELER,  op.  cit.,  205).  

assim, no que poderíamos chamar – com certas reservas – a dimensão «religiosa» do pensamento «estético» heideggeriano.

3. Na pista... a) A ausência de Deus “Mas, amigo! Chegamos demasiado tarde. É certo que vivem os deuses. Mas, sobre a cabeça, ressoam noutro mundo.” (F. Hölderlin, Brot und Wein, 7)

O próprio Heidegger retoma, com ênfase, a palavra poética: “Chegamos demasiado tarde para os deuses e demasiado cedo para o ser”34. Assim é descrito o “tempo da provação” (die dürftige Zeit): é, pura e simplesmente, o tempo da retirada dos deuses e da demora do ser. “A ausência de Deus significa que já nenhum deus congrega em si os seres humanos e as coisas, de modo visível e claro, nem dispõe, a partir dessa congregação, a história do mundo e a humana presença nela”35. Dito com outras palavras: o mundo já não acontece como quadratura e a proximidade na distância já não é instaurada – apenas a ausência de proximidade e de distância, a ausência de Deus e do mundo, a ausência do próprio ser humano. Com a expressão “tempo de provação” – também ela tomada directamente de Hölderlin – Heidegger pretende referir-se, claramente, à “era, à qual nós próprios ainda pertencemos”36. Ora essa era é determinada pela manifestação da essência da técnica. E é precisamente esta forma de pensar a nossa época que marca os caminhos do último Heidegger. Desse modo é aprofundada e clarificada a palavra poética da ausência de Deus – na medida em que é, simultaneamente, questionada37. A técnica também “irrompe no espaço onde acontece revelação e desocultação, alethêia, verdade”38. O revelar é, na técnica, um desafiar ou provocar. Por isso, a essência da técnica repousa no Ge-stell (em tradução livre: colocar perante, 34  M.  HEIDEGGER,  Aus  der  Erfahrung  des  Denkens,  GA  13,  Frankfurt  a.  M.  1977,  76.   35  M.  HEIDEGGER,  Holzwege,  271.  É  nítida  a  ressonância  da  problemática  da  «morte  de   Deus»,  de  inspiração  nietzschiana.   36  Ibidem.     37  É  universalmente  admitido  que  os  últimos  caminhos  de  Heidegger  foram  fortemente   influenciados  por  Hölderlin.  No  entanto,  a  reflexão  sobre  a  essência  da  técnica  parece  ter   recebido  impulso  da  poesia  de  R.  Maria  Rilke.  Heidegger  terá  seguido  a  crítica  do  poeta  à  nossa   época,  sobretudo  na  conferência  “Wozu  Dichter?”,  pronunciada  em  1946  (in:  Holzwege,  269-­‐320).   Quando,  sete  anos  mais  tarde,  na  conferência  apresentada  em  Munique  “Die  Frage  nach  der   Technik”  (in:  Vorträge,  13-­‐44),  Heidegger  se  dedica  de  maneira  mais  vasta  a  essa  problemática,   dificilmente  se  pode  iludir  o  paralelismo  com  a  poesia  de  Rilke.   38  M.  HEIDEGGER,  Vorträge,  21.  

de modo objectivante e forçadamente exigente). A verdade do Ge-stell desafia o ser humano a “revelar o real em forma de exigência”39. Esse desafio marca, ao mesmo tempo, o destino do ser humano, constituindo para ele o mais elevado perigo, pois impede o ser humano de se encontrar a si próprio ou a outra qualquer forma de revelação da realidade, isto é, de verdade do ser (como, por exemplo, da arte). Dito por outras palavras: “O Ge-stell impede o aparecimento e o brotar da verdade”40. Ora, esse brotar da verdade – como acontecimento – na proximidade do ser – da clareira que revela e oculta – é o sagrado (das Heilige) 41 . O sagrado, não propriamente Deus. Heidegger mantém-se fiel a Hölderlin: “Quem é Deus? Desconhecido. Contudo, a face do céu está cheia de atributos seus...” (Hölderlin, Was ist Gott?). Deus permanece, pois, escondido na sua distância. Só o sagrado se revela. Por isso, esse sagrado constitui o único “vestígio dos deuses desaparecidos”42. Ora, o ponto mais elevado do perigo para a nossa época consiste, precisamente, no facto de, não apenas Deus se ter retirado, mas de o próprio brilho do divino – o acontecimento da verdade, como sagrado – se ter extinto, na história do mundo43. Ainda maior perigo é, no entanto, o seio da noite do mundo, pois “não apenas se perde o sagrado, como vestígio da divindade, mas até os próprios vestígios para esse vestígio desaparecido se encontram quase apagados”44. A maior necessidade é a falta de necessidade, pois nem se reconhece a presença da ausência de salvação. Como tal, o nosso tempo encontra-se numa tão avançada provação que já não é capaz de perceber a ausência de Deus, como ausência. Apesar do estilo altamente pessimista deste diagnóstico, o certo é que não é tanto como parece. De facto, só quando se reconhecer o mais elevado perigo – que se nos manifesta – se conseguirão encontrar vestígios para os vestígios do divino. Aí acontece uma transfiguração: a reviravolta (die Kehre)45.

39  Ibidem,  28.   40  Ibidem,  35.  

41  Cf.:  J.  SPLETT,  Die  Rede  vom  Heiligen,  München  /  Freiburg  1971,  173;  O.  PÖGGELER,  op.  cit.,  

216ss  (O  termo  alemão  das  Heilige  significa,  simultaneamente,  o  sagrado  e  o  santo).     42  M.  HEIDEGGER,  Holzwege,  272.   43  Cf.:  Ibidem,  269.   44  Ibidem,  272.   45  Cf.:  Ibidem,  270:  “Na  era  da  noite  do  mundo,  tem  que  experimentar-­‐se  e  sofrer-­‐se  o   abismo  do  mundo”.  

b) A «reviravolta» “Onde, contudo, está o perigo, cresce também a salvação” (F. Hölderlin, Patmos)

A salvação esconde-se, precisamente, na essência da técnica moderna, enquanto abismo do mundo (Ab-grund = fundamento sem fundo). A ambiguidade, na essência da técnica, aponta para a verdade, na medida em que manifesta a constelação, “na qual a revelação e a ocultação, o brotar da verdade acontece”46. Desse modo, na essência da técnica moderna surge uma possibilidade de transpor o mais elevado perigo. “Olhamos para o perigo e apercebemos o despontar da salvação”47. O perigo torna-se o próprio ser e, “por isso, só compreensível a partir dele, a partir do seu dar-se, que torna o perigo, enquanto perigo, visível e, desse modo, salva e cura”48. Mas não basta, para o surgir da salvação, a mera constatação ou contemplação da essência da técnica. É preciso a instauração da verdade do ser, na obra. Por isso, a arte, enquanto poesia (poiesis) – ou seja, precisamente enquanto instauração da verdade – poderá tornar-se na salvação, frente ao mais elevado perigo. Como tal, a articulação poética passa pela confrontação com a técnica. Por um lado, a arte está próxima da técnica, pois é também technê; por outro, é fundamentalmente diferente da técnica, na medida em que é uma technê instaurante e não objectivante ou forçante, exigente. Atingimos, assim, o cerne da relação entre a arte e o divino. Se a arte pode ser proposta como salvação, então terá que instaurar a verdade do ser enquanto proximidade – o sagrado. Assim, instaura um vestígio do divino, do Deus que vem. Essa instauração constitui, segundo o próprio Heidegger, a missão dos poetas, na medida em que dizem o sagrado. Tal dizer é, pois, um dizer instaurante49. No dizer 46  M.  HEIDEGGER,  Vorträge,  41.   47    

Ibidem.    

48  J.  SPLETT,  op.  cit.,  168.  Aí  se  mostra,  de  modo  convincente,  como  o  tema  da  salvação  no  

perigo  foi  desenvolvido  nas  Nietzsche-­‐Vorlesungen  de  Heidegger,  enquanto  jogo  entre  ser  e  nada   (162ss).   49  Cf.:  M.  HEIDEGGER,  Erläuterungen,  86;  Id.,  42:  “Agora  compreendemos  a  poesia  como   nomeação  instaurante  dos  deuses  e  da  essência  das  coisas”.  Na  arte,  procura  Heidegger  o  outro,  o   novo  e  grande  começo  –  seja  a  partir  dos  gregos,  seja  a  partir  de  Hölderlin.  Poder-­‐se-­‐ia  perguntar   porquê  os  gregos  e  porquê  Hölderlin.  E  ainda,  se  será  a  arte  o  único  caminho  para  a  salvação  (Cf.:   O.  PÖGGELER,  Wächst  das  Rettende  auch?  Heideggers  letzte  Wege,  in:  W.  BIEMEL  /  F.-­‐W.  HERRMANN   [DIR.],  Kunst  und  Technik,  Frankfurt  a.  M.  1989,  22-­‐23;  ID.,  Die  Frage  nach  der  Kunst:  von  Hegel  bis   Heidegger,  Freiburg/München  1984,  243ss).  Sem  pretender  aprofundar  aqui  esta  discussão,  

do poeta, pois, “mostra-se a verdade como sagrado, como elemento do divino – e isso num tempo em que, como disse Nietzsche, Deus morreu”50. Se tomarmos a poesia em sentido lato – e não apenas como obra literária – então toda a arte é um dizer o sagrado e, desse modo, instauração de um vestígio para o divino, na aproximação da proximidade, que funda a permanência na presença dos deuses51. E isso porque toda a arte é instauração da verdade do ser. Ora, “só a partir da verdade do ser se pode pensar o sagrado. Só a partir da essência do sagrado se pode pensar a essência da divindade. Só à luz da essência da divindade se pode conceber e dizer o que se entende com o termo «Deus»... Como poderia, de facto, o ser humano, na presente história do mundo, até mesmo questionar-se seria e severamente se Deus se avizinha ou se retrai, se o ser humano, primeiro, não arrisca a atingir com o pensamento aquela dimensão na qual, apenas, pode ser colocada essa questão?”52 Só quando o ser humano tiver preparado, no pensamento e na linguagem, um espaço para Deus, este virá. Esse espaço será a nomeação do sagrado, como vestígio para o divino, como espera por Deus – pelo último Deus... c) O «último» Deus “Só um Deus nos poderá salvar. Resta-nos a possibilidade de, no pensamento e na poesia, preparar uma abertura para o aparecimento de Deus ou para a ausência de Deus, no ocaso; naufragamos face ao Deus ausente” (M. Heidegger, Entrevista ao “Der Spiegel”)

Mas, que Deus nos poderá salvar? Como encontrar, no vasto e difícil manancial do pensamento heideggeriano, alguma indicação que possibilite uma «definição» não de-fininte de Deus, se não podemos caracterizar esse mesmo pensamento, nem de teísta nem de a-teísta – precisamente porque, segundo ele,

convém  apenas  notar  que  é  viável,  a  partir  de  Heidegger  e  para  além  dele,  construir  uma   concepção  de  arte  independentemente  da  sua  relação  com  os  gregos  e  com  Hölderlin  e  que  não   exclua  outros  caminhos  para  a  «salvação».   50  O.  PÖGGELER,  Der  Denkweg,  216-­‐217.   51  Cf.:  M.  HEIDEGGER,  Erläuterungen,  42;  ID.,  Technik  und  Kunst  –  Ge-­‐stell,  in:  W.  BIEMEL  /  F.   W.  VON  HERRMANN  (DIR.),  op.  cit.,  XIII-­‐XIV:  “Será  que,  no  actual  mundo  determinado  pela  técnica,   através  desta  e  para  esta  –  que  apenas  se  encontra  nos  seus  inícios  –  a  arte  é  essencial  e   necessária  e,  por  isso,  possível?...  Arte  e  Ge-­‐stell.  O  que  e  como  pode  ser  a  arte,  na  era  do  Ge-­‐stell?   Impossível  de  deduzir;  impossível  de  ler  em  qualquer  parte  –  só  artisticamente  a  decidir:  de   modo  que,  nessa  arte  –  e  só  nela  –  se  encontra  a  resposta  a  si  própria,  no  seio  do  acontecimento”.   52  M.  HEIDEGGER,  Über  den  Humanismus,  in:  Wegmarken,  145-­‐199,  182.  

nenhum pensamento pode ser nem uma coisa nem outra? 53 Não parecerá mais aconselhável, mesmo, “renunciar não só à resposta, mas até à questão”?54 O horizonte surge-nos marcado mais por uma radical teologia negativa, do que por qualquer possibilidade de dizer Deus – mesmo apenas como questão55. De qualquer modo: o desenvolvimento da questão do ser conduz, no final dos Beiträge zur Philosophie, à questão de Deus, “à estranha expressão da «passagem do último Deus»”56. Aí podemos ler que a recusa é “a maior nobreza da doação e a característica fundamental da auto-ocultação, cuja revelação constitui a essência originária da verdade do ser. Só assim o ser se torna na própria estranheza, no silêncio da passagem do último Deus”57. Então, acontece a reviravolta: a auto-revelação do mistério do ser, como recusa, a proximidade como distância; então, o mundo torna-se quadratura; então, desponta o sagrado. “Só neste acontecimento Deus é Deus”58. E a linguagem do ser-aí adquire, aqui, “a sua origem e é, por isso, na sua essência, silêncio”59. E se o último Deus não significa o fim, “mas o outro início de possibilidades incalculáveis da nossa história”60, então torna-se compreensível porque é que só esse Deus poderá salvar a era da técnica. Mas chegamos demasiado tarde e demasiado cedo; vivemos, ainda, entre o jánão e o ainda-não. Este tempo intermédio é o tempo da instauração da proximidade: a proximidade do acontecer do ser, no qual se dá a reviravolta. Essa proximidade é, ao mesmo tempo, distância, pois a maior distância, na recusa do último Deus, constitui uma proximidade sui generis, “uma relação que não pode ser deformada nem

53  Se  é  verdade  que,  segundo  O.  PÖGGELER,  op.  cit.,  266:  “O  pensamento  de  Heidegger  

comporta  a  questão  de  Deus,  desde  o  início  do  seu  caminho”,  o  certo  é  que,  como  diz  o  próprio  M.   HEIDEGGER,  Vom  Wesen  des  Grundes,  Frankfurt  a.  M.  1955,  39:  “...não  foi  tomada  qualquer  decisão   definitiva  sobre  um  possível  ser  de  Deus,  nem  em  sentido  positivo,  nem  em  sentido  negativo”  –   porque  nenhum  pensamento  humano  pode  decidir  sobre  essa  questão;  Cf.:  ID.,  Über  den   Humanismus,  145-­‐199,  168.181;  E.  CORETH,  op.  cit.,  587s.   54  M.  HEIDEGGER,  Zur  Sache  des  Denkens,  Tübingen  1969,  21.   55  A  este  propósito,  é  sintomático  o  título  de  E.  Jüngel:  “Silêncio  correspondente  a  Deus?”   (E.  JÜNGEL,  Gott  entsprechendes  Schweigen?,  in:  AAVV,  Martin  Heidegger.  Fragen  na  sein  Werk.  Ein   Symposion,  Stuttgart  1977,  37ss).   56  O.  PÖGGELER,  Die  Frage,  241;  Cf.:  ID.,  Der  Denkweg,  262ss;  E.  BRITO,  Le  «dernier  dieu»   dans  les  «Contributions  à  la  philosophie»  de  Martin  Heidegger,  in:  «Église  et  Théologie»  28  (1997)   45-­‐75.   57  M.  HEIDEGGER,  Beiträge,  406.   58  J.  SPLETT,  op.  cit.,  168.   59  M.  HEIDEGGER,  Beiträge,  408.   60  Ibidem,  411.  

eliminada por qualquer tipo de «dialéctica»”61. Só assim será preparado, no nosso tempo, um espaço aberto para o Deus que vem. Este “pensamento sem-Deus está [possivelmente] mais próximo do Deus que vem”62 que o discurso metafísico de uma teologia tradicional63. Como poderá, então, no actual tempo da provação, ser instaurada a proximidade, como acontecimento da reviravolta, que abre espaço para a revelação do Deus que é, na medida em que vem? Heidegger é, pelo menos nisto, bem claro: sempre que o pensador diz o ser e o poeta nomeia o sagrado64. O poeta encontra-se, contudo, mais próximo da origem e, como tal, da proximidade instauradora, pois ele mostra a distância “que se aproxima, na vinda do sagrado”65.

61  Ibidem,  412.  F.  WIPLINGER,  Wahrheit  und  Geschichtlichkeit,  Freiburg  /  München  1961,  

365ss,  desenvolve,  a  partir  desta  ideia,  a  proposta  de  uma  continuação  de  Heidegger,  rumo  a  um   pensamento  transcendental-­‐dialógico,  de  raiz  anti-­‐hegeliana.  O  inultrapassável  diálogo  entre   revelação  e  ocultação,  que  constitui  o  acontecimento  do  ser,  será  o  mistério-­‐fundamento  que   sustenta  todo  o  tipo  de  diálogo  «categorial»,  mesmo  o  humano.  K.  Rahner  pensa,  em  termos  algo   semelhantes,  o  mistério  trinitário.   62  ID.,  Identität  und  Differenz,  Pfullingen  1957,  70.   63  Pelo  menos,  no  sentido  em  que  Heidegger  fala  de  metafísica  (=  pensamento   coisificante/objectivante).  É  nesse  mesmo  contexto  que  Heidegger  sempre  se  distancia,  até  ao   final,  do  «Deus  cristão»,  assim  como  da  forma  cristã  clássica  de  o  conceber.  A  questão  do   relacionamento  do  seu  pensamento  do  ser  e  do  divino  com  a  teologia  cristã  é,  contudo,   sumamente  complexa,  até  porque  não  existe  apenas  uma  teologia  cristã.  Não  diria,  pois  e  sem   mais,  como  E.  CORETH,  op.  cit.,  590,  que  Heidegger  “não  conduz  à  concepção  cristã  de  Deus;  ...no   seu  sistema  de  pensamento,  se  se  leva  a  sério,  não  há  qualquer  lugar  para  Deus”.  Que  Heidegger   tenha  recusado  explicitamente  o  Deus  cristão  e  que,  de  facto,  seja  impossível  identificar  o  Ser   anónimo,  a  que  o  seu  pensamento  conduz  (ou  de  que  parte),  com  o  Deus  cristão,  isso  não  significa   que  nenhuma  ligação  seja  possível.   64  Permanece  aberta  a  questão  de  serem  estas  as  únicas  possibilidades  de  tal  instauração   –  ou  então,  teremos  que  assumir  uma  concepção  vastíssima  de  «pensador»  e  de  «poeta».   65  M.  HEIDEGGER,  Erläuterungen,  148;  Cf.:  O.  PÖGGELER,  Wächst,  18.  Desta  forma   «indirecta»,  a  arte  (a  poiesis  artística)  assume  uma  profundíssima  pertinência  teológica.    

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.