A arte e o divino - Leitura de M. Heidegger
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A ARTE E O DIVINO – LEITURA DE M. HEIDEGGER JOÃO MANUEL DUQUE – UCP – BRAGA - PORTUGAL Nenhuma teologia pode passar ao lado da questão de Deus, sem deixar de ser teo-logia. E a eterna questão implicada no logos teológico continua a ser a da dizibilidade desse Deus: em que medida e de que modos pode Deus vir à linguagem – necessariamente humana – sem deixar de ser Deus? Teologia e filosofia da religião encontram-se, nos meandros destas questões básicas, intimamente ligadas: estamos, de facto, perante questões que habitam o âmago de toda e qualquer experiência religiosa. E a arte? Que liga esse tão especial fenómeno ao (possível) discurso sobre Deus? Em que medida consegue ela dizer/articular Deus, enquanto tal, sem o atraiçoar, isto é, sem o silenciar? Dizendo-o ou silenciando-o? Nas linhas que se seguem, a abordagem destas perguntas fulcrais efectuar-se-á no permanente jogo dos pensamentos e dos discursos estético e teo-lógico. A referência ao pensamento heideggeriano – aqui escolhido como inspirador de uma possível pista de resposta às questões levantadas – não pretende ser primariamente teológica, sobretudo porque não seria fácil contornar o perigo de uma leitura forçada de tão fértil pensador 1 . Também a não pretende ser de ordem meramente estética, já que de um conceito ambíguo se trata. Nem sequer se pretende apresentar uma filosofia da arte, enquanto tal, fechada sobre si mesma e sobre questões de horizonte limitado. Algumas reflexões heideggerianas sobre a arte serão expostas e analisadas, de forma (extremamente) resumida, porque anunciam um caminho a percorrer, caminho que poderá conduzir-nos à questão teo-lógica básica. Isso não significa que a pergunta (mais do que a resposta) de Heidegger sobre a essência da arte não seja de suma importância, mesmo na perspectiva da estética tradicional (que nele se vê, de algum modo, superada). A actual discussão, em torno da filosofia da arte, prova a 1 O que não significa que o pensamento de Heidegger não possa ser relido em registo
teológico – a provar o contrário estão as numerosas tentativas, nesse mesmo sentido (apenas como exemplos: E. BRITO, Les théologies de Heidegger, in: «Révue Théologique de Louvain» 27 (1996) 432-‐461 [com extensa bibliografia na nota 2]; ID., La réception de la pensée de Heidegger dans la théologie catholique, in: «Nouvelle Révue Theologique» 119 (1997) 352-‐374; F. DASTUR, Heidegger et la théologie, in «Révue Philosophique de Louvain« 92 (1994) 226-‐245; P. BRKIC, Martin Heidegger und die Theologie, Mainz 1994; E. CORETH, Fuga o avvento degli dei? Sulla questione di Dio in Matin Heidegger, in: «Rassegna di Teologia» 37(1996) 581-‐595.
inesgotável riqueza das suas repercussões. Só que, aqui, o acento será colocado noutro lugar – lugar que o próprio pensamento heideggeriano não deixou de apontar: a arte como instauração/fundação (Stiftung) originária e original da verdade, na obra; como espaço aberto para a vinda de Deus (das Kommenlassen Gottes). Seguindo os caminhos abertos ou indicados por Heidegger, talvez consigamos aproximar-nos daquela origem, onde o pensamento do ser poderá anunciar a vinda de Deus à linguagem.
1. A arte como poesia “A arte possibilita o brotar da verdade. A arte – enquanto salvaguarda instaurante – faz surgir, na obra, a verdade daquilo que é (des Seienden). Fazer surgir algo – trazer algo ao ser, em salto instaurante, a partir da proveniência essencial – eis o que significa a palavra origem (Ursprung)”2. Nesta compacta e elaborada afirmação (ao estilo de muitas outras do mesmo pensador) se resume a teoria heideggeriana sobre a arte – de modo mais claro e sistematicamente exposta, pela primeira vez, no trabalho Der Ursprung des Kunstwerkes (A origem da obra de arte). Este texto – só publicado integralmente em 1950, na colectânea Holzwege – recolhe um ciclo de três conferências proferidas em 1935-1936, quase simultâneas aos trabalhos sobre Hölderlin e Nietzsche3. Muitos são os investigadores que têm salientado o significado deste texto, no seu contexto, para o percurso pensante do filósofo da floresta negra4. A sua interpretação do fenómeno artístico não é considerada uma estética, no sentido habitual do termo, mas precisamente a superação da visão meramente estética da arte, para a enquadrar no contexto mais vasto da questão do ser e da verdade.
2 M. HEIDEGGER, Der Ursprung des Kunstwerkes, in: Holzwege, Gesamtausgabe (=GA) 5, Frankfurt a. M. 1977, 65-‐66. A palavra alemã Ursprung – habitual e correctamente traduzida por «origem» – é formada pela partícula Ur (com campo semântico ligado a primitivo, arcaico, originário, germinal) e pelo termo Sprung, que significa salto. Heidegger utiliza a palavra em toda a sua carga semântica e não apenas no sentido usual. 3 Cf.: M. HEIDEGGER, Hölderlins Hymnen «Germanien» und «Der Rhein», GA 39; ID., Hölderlin und das Wesen der Dichtung, in: Erläuterung zu Hölderlins Dichtung, GA 4, Frankfurt a. M. 1981, 33-‐48; ID., Nietzsche: Der Wille zur Macht als Kunst, GA 43. Todos estes trabalhos se podem inserir na árdua procura de uma linguagem que permitisse dizer o ser, para além da metafísica e que atraem sobre a filosofia do segundo Heidegger a tão frequente crítica de não passar de um conjunto de considerações poetizantes. 4 Cf.: O. PÖGGELER, Der Denkweg Martin Heideggers, 3ª Ed., Pfullingen 1990, 207; ID., Heideggers Begegnung mit Hölderlin, in: «Man and World» 10 (1977) 32ss; A. GETHMANN-‐SIEFERT, Heideggers Bestimmung des Kunstwerks – im Rückblick auf «Sein und Zeit», in: ID.(Dir.), Philosophie und Poesie, Stuttgart-‐Bad Cannstatt 1988, vol. 2, 144-‐145.
De facto, essa questão constitui, sem dúvida, uma – senão a – questão constante, em todo o percurso do pensamento heideggeriano5, assumindo contudo abordagens diferenciadas6. Entre estas, destacam-se o convívio com os pré-socráticos; a problemática da linguagem e, talvez em lugar de destaque, precisamente a questão da essência da arte. Esta questão, por seu turno e sendo analisada no contexto do seu aparecimento, generaliza a todas as artes (ao fenómeno artístico, na sua globalidade), conclusões tiradas a partir essencialmente da reflexão sobre as artes da linguagem. Na continuidade dos seus vários caminhos, Heidegger percorre, agora, os caminhos específicos da poesia: “No lugar da sua ocupação com a teologia, Heidegger coloca, agora, a sua interpretação da poesia”7. Mas regressemos às palavras do filósofo. Elas falam de uma origem (Ursprung). Essa origem é apresentada como instauração/fundação (Stiftung): a instauração da verdade. Essa instauração dá-se, na obra, de forma simultaneamente produtiva e acolhedora. Qual o significado de tais afirmações e expressões? O que é a verdade, pensada na sua ligação com a obra de arte? São estas, basicamente, as questões constantemente presentes no texto heideggeriano sobre a obra de arte. Aprofundando estas questões, tocaremos no ponto fulcral do primeiro confronto pensante de Heidegger com a arte. Comecemos pelo significado do termo «instauração». Instauração implica, sempre, que, num determinado processo, algo seja instaurado por alguém. O quê, por quem e como é, neste caso, instaurado? Trata-se, segundo Heidegger, da instauração de um conflito (Streit): um conflito originário, entre mundo e terra. Assistimos à abertura de um mundo. E, “abrindo-se um mundo, 5 O que coloca em causa uma interpretação radical da famosa Kehre (reviravolta) do seu
pensamento, senão mesmo a sua existência, pura e simplesmente (Cf.: H.-‐G. GADAMER, Neuere Philosophie I, GW 3, Tübingen 1987, 248-‐261; W. BIEMEL, Heidegger, Reinbeck b. Hamburg, 1973, esp. 35ss; J. GREISCH, La parole heureuse. Martin Heidegger entre les choses et les mots, Paris 1987). No contexto específico da filosofia da arte, A. GETHMANN-‐SIEFERT, op. cit., analisou em pormenor a continuidade entre Sein und Zeit e Der Ursprung des Kunstwerkes. Para além disso, a ligação da arte à questão da verdade constitui um forte ponto de contacto com Hegel (Cf.: W. BIEMEL, Die Bedeutung von Kants Begründung der Ästhetik für die Philosophie der Kunst, Köln 1959, esp. 182ss). 6 Aspectos a que O. PÖGGELER, Der Denkweg, 189ss, chama “inícios” (Anfänge) do pensamento heideggeriano. 7 A. GETHMANN-‐SIEFERT, op. cit., 145-‐146. A característica principal do pensamento heideggeriano sobre arte seria, então, o facto de estar construído em estreita ressonância com as questões do ser e da verdade e de se desenvolver a partir da convivência com a poesia. Por outro lado, é interessante verificar, no nosso contexto, que a poesia veio (de certo modo e, como veremos, não totalmente) substituir o lugar da teologia.
todas as coisas recebem a sua permanência e a sua urgência (Weile und Eile), a sua distância e a sua proximidade (Ferne und Nähe), a sua amplitude e a sua limitação (Weite und Enge)”8. Ou seja, só na abertura desse mundo é que a realidade das coisas se nos revela, naquilo que é; só assim, a realidade se torna, ela própria, um mundo com sentido. O mundo, assim aberto, constitui uma clareira (Lichtung) que possibilita o ser de tudo o que é, assim como a sua verdade, que agora se revela (vem à luz). “O que é, só pode, enquanto tal, ser, quando se introduz e permanece na luminosidade dessa clareira”9. Contudo, como acima referido, no conflito originário, que acontece ou é instaurado pela obra de arte, também se falava de terra (Erde). Que significa terra? A origem mítica e gnóstica (poderíamos dizer, essencialmente órfica) desse conceito, tem causado enormes dificuldades a muitos intérpretes, ao contactarem com o pensamento heideggeriano sobre o assunto. Contudo, com alguma facilidade e clareza se pode constatar a ligação de dito conceito à interpretação heideggeriana de Hölderlin, que acompanha sempre o texto em análise e em cuja poesia desempenha um importante papel a referência à terra e à pátria (no sentido de lar, de Heimat). Quanto à génese, portanto, parece não haver dúvidas. Mas o que continua contestável é a transposição de um conceito míticopoético (mesmo romântico, num certo sentido) para o âmbito propriamente filosófico. Tal acto torna, contudo, ainda mais pertinente o significado da sua utilização, precisamente em relação à obra de arte. “A importante perspectiva, aberta pelo texto de Heidegger sobre a origem da obra de arte, é que «terra» constitua uma determinação ontológica (Seinsbestimmung) da obra de arte”10. Mas qual o significado do conceito terra, neste seu novo contexto? “A terra é aquilo que se re-esconde (zurückbirgt), enquanto tal, o acto de abertura (das Aufgehen) de tudo o que se abre. Naquilo que se abre, surge a terra, como o ocultante 8 M. HEIDEGGER, Der Ursprung, 31. O conceito de mundo pode ser deduzido de Sein und Zeit. No contexto actual, contudo, é relacionado com tudo o que é (das Seiende) e não apenas com o Dasein (Cf.: H.-‐G. GADAMER, op. cit., 252: “O mundo, como totalidade de relação do projecto do Dasein, constitui [em Sein und Zeit] o horizonte que precedeu todos os projectos de cuidado humano do Dasein” – Cf.:. Ibidem, 327). 9 M. HEIDEGGER, Der Ursprung, 40. 10 H.-‐G. GADAMER, op. cit., 100; Cf.: Ibidem, 327-‐328: “O facto de que «terra» se tenha tornado tema da filosofia, essa transposição de uma palavra carregada poeticamente para uma metáfora conceptual central significa uma verdadeira ruptura... Hölderlin tinha soltado a língua ao pensamento de Heidegger”.
(das Bergende)”11. Enquanto fundamento, no qual irrompe (weltet) um mundo (Welt), a terra é também a salvaguarda do mistério do ser. E isso num jogo tensional contínuo, que se distingue de todo o tipo de dialéctica. “A clareira, na qual assoma o que é, é, em si, simultaneamente, ocultação”12. Ora, como a questão sobre a essência da arte é abordada no preciso contexto da pergunta pela verdade do ser, Heidegger coloca no mesmo plano a determinação da arte e a da verdade. “A verdade irrompe, apenas, como conflito entre clareira e ocultação, na reciprocidade adversa entre mundo e terra” 13 . Assim se torna compreensível como pode considerar-se a arte um lugar (excelente) do acontecer da verdade. Esse acontecer (Geschehen) é, precisamente, aquilo a que Heidegger chama instauração/fundação originária. Mas como acontece essa instauração, na arte? Precisamente quando o conflito entre mundo e terra deixa de ser, apenas, uma oposição abstracta entre conceitos e se torna obra. O acontecer da verdade, na arte, está, pois, indissoluvelmente ligado à obra de arte, ou melhor, ao ser-obra da arte. A forma (no sentido da estética clássica) não constitui, portanto, uma qualidade secundária da arte – centrada no conteúdo ou no sentido – mas pertence, irrecusavelmente à sua essência14. Daí se pode já deduzir que a resposta à questão de «quem instaura?» não pode reduzir-se ao artista ou ao receptor da arte. De facto, se o artista é autor da obra de arte e se o receptor é quem a salvaguarda como arte, a instauração da verdade que nela se dá não é produto de um nem de outro – porque não é produto de nenhum sujeito. A verdade, na obra, instaura-se, porque é o ser que nela se realiza. Mas, o facto de a obra possuir um lugar central na filosofia heideggeriana da arte, não significa que a «produção» e a «recepção» sejam propriamente esquecidas15.
11 M. HEIDEGGER, Der Ursprung, 28.
12 Ibidem, 40; Cf.: H.-‐G. GADAMER, op. cit., 328. 13 M. HEIDEGGER, Der Ursprung, 50. Sobre a concepção heideggeriana de verdade, Cf.: M. HEIDEGGER, Vom Wesen der Wahrheit, in: Wegmarken, Frankfurt a. M. 1967; ID., Beiträge zur Philosophie (Vom Ereignis), GA 65, Frankfurt a. M. 1989, esp, 326ss; J. DUQUE, Die Kunst als Ort immanenter Transzendenz, Frankfurt a. M. 1997, esp.19-‐35. 14 Torna-‐se, assim, compreensível o facto de Heidegger empreender uma abordagem da arte a partir da obra, em oposição à estética moderna (que parte do sujeito) e mesmo a Nietzsche (que parte, ainda, do artista ou génio criador); Cf.: M. HEIDEGGER, Nietzsche: Der Wille zur Macht als Kunst, GA 43, esp. 82ss (ver, acima, o estudo sobre Gadamer e a arte). 15 Note-‐se que Heidegger renunciará a tais expressões, apenas para evitar falsas interpretações, no sentido metafísico, e para contrariar qualquer redução subjectivista, no estilo da estética moderna. Neste ponto, considero, pelo menos, inadequada a crítica de W. PERPEET, Heideggers Kunstlehre, in: O. PÖGGELER (Dir.), Heidegger: Perspektiven zur Deutung seines Werkes, Königstein 1984, 229: “Poderá e deverá a fundamentação estética partir tão exclusivamente da
“Assim como uma obra não pode ser obra sem ser criada, assim como precisa essencialmente de criadores, assim também o próprio criado não pode tornar-se ser sem os que salvaguardam” 16 . Com Heidegger, podemos condensar assim a determinação da arte: “A arte é, então, a salvaguarda criadora da verdade, na obra”17. Ora, a esta instauração da verdade como obra de arte chama Heidegger poesia (Dichtung), em ressonância com o significado grego da poiesis. A equiparação da poesia à instauração permite conferir à primeira um sentido mais lato do que o de poesia, em sentido habitual e estrito (Poesie, em alemão)18. Portanto, sempre que, de seguida, se falar em poesia, será no sentido de arte em geral. Poesia definirá, assim – com Heidegger e para além dele – a essência de todas as artes. A conclusão aberta do texto sobre a origem da obra de arte é, portanto, a determinação da arte como poesia, isto é, como instauração/fundação criadora-salvaguardante da verdade – enquanto conflito entre mundo e terra – na obra. Em escritos posteriores, Heidegger desenvolve várias outras considerações sobre a mesma temática. Embora quase todas essas reflexões se refiram directamente à poesia, em sentido estrito, é perfeitamente viável a sua aplicação a todas as artes, uma vez que todas são, na sua essência, poesia. Mas a questão apresenta-se, agora, noutra linha, que não já a da essência da arte, em ligação ao ser e à verdade (embora essa perspectiva se mantenha): qual a missão da poesia – isto é, da arte – na actualidade?
2. Poesia e quadratura A poesia instaurante da verdade não é mero espelho reflector de uma determinada época nem puro resultado da história ou da cultura. Ela é, antes, um elemento originante da própria história, na medida em que a possibilita. Ora, se o conceito de história – ligado ao de mundo, de Dasein, de temporalidade, de linguagem e de ser – ocupa um indiscutível lugar central na filosofia de Heidegger, ele assume, na última fase da sua filosofia, uma dimensão que obra?”. Não nego que possa ser discutível um certo exagero na acentuação da obra; não consigo, no entanto, ver onde Perpeet encontra, em Heidegger, tal exclusivismo. 16 M. HEIDEGGER, Der Ursprung, 54. 17 Ibidem, 59. 18 A afirmação de que a obra literária, “a poesia em sentido estrito” – como lhe chama o próprio Heidegger – possui “uma posição privilegiada, na globalidade das artes” (Cf.: M. HEIDEGGER, Holzwege, 61) constitui uma opção discutível, muito comum entre filósofos, por profissão mais próximos da literatura que das outras artes. No entanto, deixo essa discussão em aberto, no âmbito destas considerações, limitando-‐me à poesia em sentido lato.
poderíamos considerar cósmica, pelo menos em comparação com a orientação em certa medida «antropológica» de Sein und Zeit19. Por volta do fim dos anos quarenta e já anunciando esse contexto «cósmico«, Heidegger fala da poesia como “revelação da proximidade”20. No mesmo contexto, só que dez anos mais tarde, ele explicita o conceito de proximidade, ligando-o ao papel instaurador da arte: “O ser humano que habita poeticamente traz tudo o que se manifesta – a terra, o céu e o sagrado – à luz (Vorschein) que em si própria repousa e que tudo guarda; fixa tudo isso na figura (Gestalt) da obra. «Fixar tudo e manter tudo em si mesmo» significa instaurar”21. Mas o que se pretende evocar com o conceito de proximidade (Nähe)? Em primeiro lugar, convém esclarecer que essa proximidade nada tem a ver com o sentido usual de ausência de distância. Se é verdade que hoje tudo parece “nivelado na ausência de distância”22, sobretudo através dos mais sofisticados meios técnicos, que nos permitem superar essa distância – espacial e temporal, pelo menos – e tornar o nosso mundo pequeno, o certo é que continua ausente a proximidade daquilo que, em realidade, é. Ou seja, anulamos a distância sem instaurar a proximidade – talvez, precisamente, por pretendermos fazê-lo anulando a distância. Só que a proximidade não se produz nem se atinge, directamente, pela simples anulação das distâncias. Ora, se a essência da proximidade não é atingível directamente, terá que se revelar a partir daquilo que nela se encontra e, desse modo, se nos manifesta, manifestando-a – e encobrindo-a, simultaneamente, no permanente jogo tensional entre mundo e terra. “Na proximidade encontra-se, para nós, aquilo a que costumamos chamar coisas (Dinge)”23. E é a partir das coisas que se encontram na proximidade que Heidegger desenvolve o seu pensamento, a fim de se aproximar da proximidade. Ora, uma coisa possui, essencial e originariamente, um carácter reuninte, confluente, conjugante (versammelnd). Mas trata-se de uma forma de confluência 19 De facto, se é verdade que uma interpretação meramente antropológica desta primeira obra mestra de Heidegger é incorrecta, o certo é que ela contém elementos suficientes para a ler acentuando esse aspecto. 20 Cf.: E. KETTERING, Nähe. Das Denken Martin Heideggers, Pfullingen 1987, esp. 193ss; M. HEIDEGGER, Vorträge und Aufsätze, Pfullingen 1954, esp. 163ss; ID., Erläuterungen zu Hölderlins Dichtung, GA 4, 25: “O poeta entra em casa, na medida em que penetra na proximidade da origem. Ele penetra na proximidade, na medida em que diz o mistério da proximidade do próximo”. 21 M. HEIDEGGER, Erläuterungen, 162. 22 ID., Vorträge, 164. 23 Ibidem.
específica, que mantém a diferença do diferente. “O reunir e o permanecer da coisa é um aproximar que não nivela na ausência da distância, mas que salvaguarda a distância (Ferne)”24. E é nesse seu carácter de reunião confluente, instauradora da proximidade na distância e da distância na proximidade que a coisa, na clareira da proximidade, a revela e esconde. Ora, aquilo que a coisa, no seu «coisar», reúne é o mundo25. E é o próprio Heidegger que “indica como deverá pensar-se esse mundo: é a quadratura (Geviert) de terra e céu, do divino e do mortal”26. Esse «coisar» o mundo como quadratura é um aproximar dos quatro, na proximidade da sua distância. Portanto, “aproximar é a essência da proximidade. A proximidade aproxima a distância, enquanto distância”27. Aprofundando o «conceito» de quadratura, Heidegger dedica-se a descrever a forma de relacionamento entre os quatro elementos básicos do mundo. Relacionamento que se dá à semelhança de um jogo de espelhos: sempre que dizemos um dos quatro, “pensamos os outros três, a partir da simplicidade dos quatro”28. Simplicidade não significa, portanto, unicidade, mas jogo tensional da pluralidade do diferente e distante, mas próximo – como no espelho. Vale a pena transcrever a longa, compacta e enigmática frase do próprio Heidegger, que melhor do que qualquer outra resume esse jogo, na sua dimensão nitidamente cósmica: “A terra é o suporte para a construção, a fertilidade que alimenta, alberga as águas e as rochas, plantas e animais... O céu é o percurso do sol, o trajecto da lua, o brilho das estrelas, o tempo dos anos, luz e crepúsculo do dia, escuridão e claridade da noite... Os divinos são os mensageiros que anunciam a divindade. A partir do surgir oculto destes, revela-se o deus na sua essência, que o afasta de qualquer comparação com o que é presente (Anwesend)... Os mortais são os seres humanos. Chamam-se mortais, porque podem morrer. Morrer significa: ser capaz de morte, enquanto tal. Só o ser humano morre”29.
24 O. PÖGGELER, Der Denkweg, 241. É nesse jogo entre proximidade e distância que se pressente o ressoar do jogo entre mundo e terra, entre revelação e ocultação. Este jogo tensional marca o cerne da concepção heideggeriana de verdade. 25 Aqui, não como parceiro de jogo da terra, mas como o todo da própria estrutura da verdade (Cf.: O. PÖGGELER, op. cit., 234). 26 Id., 247. A origem mítica deste tipo de pensamento é irrecusável. Em Platão, pode encontrar-‐se algo de semelhante. Contudo, o impulso decisivo, que levou Heidegger a pensar o mundo como quadratura, foi mais uma vez Hölderlin (Cf.: O. PÖGGELER, op. cit., 248). 27 M. HEIDEGGER, Vorträge, 176; Cf.: O. PÖGGELER, op. cit., 249: “A clareira é a proximidade que aproxima, na medida em que conserva em si a distância”; Cf., ainda: M. HEIDEGGER, Unterwegs zur Sprache, GA 12, Frankfurt a. M. 1985, 211. 28 M. HEIDEGGER, Vorträge, 177. 29 Ibidem, 176-‐177;
O conflito originário entre mundo e terra, que habita toda a obra de arte, é agora especificado, na medida em que é ligado à physis ou ao kosmos e é considerado como a relação intrínseca entre terra e céu. De modo ainda mais acentuado que em Der Ursprung des Kunstwerkes, é agora focada a pertença mútua de clareira e ocultação. E só na medida em que esta pertença mútua se mantiver é que conseguiremos penetrar na proximidade salvaguardante, isto é, na distância aproximante. Ora, instaurar a proximidade na distância e a distância na proximidade é a missão do poeta. Na clareira aberta por essa instauração, todas as coisas recebem a sua proximidade específica, em relação a nós, na medida em que permanecem o que são, isto é, distantes e diferentes de nós. Só a proximidade instaurada pelos poetas possibilita a revelação da profunda alteridade da realidade, assim como o nosso habitar no seu seio. Pois habitar significa estar-na-proximidade; como tal, acontece poeticamente. “O poetizar (das Dichten) coloca o homem na terra, leva-o a habitar”30. A essência da proximidade é, pois, o «coisar» do mundo enquanto quadratura. Uma vez que esse «coisar» do mundo enquanto quadratura significa deixar-habitar o ser humano nesta terra, trata-se, no sentido mais profundo, de poesia31, no sentido já enunciado. Portanto, poesia – enquanto instauração da verdade do ser, na arte – significa uma coisificação do mundo como quadratura, na medida em que coloca a quadratura na obra e, desse modo, instaura a proximidade da distância32. Mas essa proximidade está, ainda, por vir: será o novo, grande começo33. Mas o que é esse começo? Como será possível mesmo vislumbrá-lo? Uma das vias possíveis de aproximação a uma proposta de resposta (possivelmente a de Heidegger) é apontada pela própria estrutura da quadratura. Esta não é apenas o jogo-espelho de terra e céu – estrutura já conhecida de Der Ursprung des Kunstwerkes, como jogo entre terra e mundo – mas também o jogo dos mortais e do(s) divino(s). Tocamos, 30 M. HEIDEGGER, Vorträge, 192. 31 Cf.: Id., 202: “A poesia é o deixar-‐habitar originário”. 32 Poder-‐se-‐ia perguntar, com W. PERPEET, op. cit., 234ss, se a “definição de arte como um colocar-‐na-‐obra da quadratura, é válida para todas as artes de todos os tempos”. Deixo a questão em aberto. 33 Cf.: M. HEIDEGGER, Erläuterungen..., 175. O facto de Heidegger tentar identificar o grande começo com os gregos (pré-‐socráticos, sobretudo) e de considerar Hölderlin o Poeta é, pelo menos, discutível. Esta possível crítica à sua opção parece-‐me ser, do ponto de vista filosófico, muito mais importante do que todas as críticas – mais ou menos diletantes – que põem em causa, do ponto de vista meramente filológico, a interpretação heideggeriana dos gregos e do próprio Hölderlin. A intenção de Heidegger nunca foi o rigor filológico, mas sim o caminho de um frutífero diálogo filosófico (Cf.: O. PÖGGELER, op. cit., 205).
assim, no que poderíamos chamar – com certas reservas – a dimensão «religiosa» do pensamento «estético» heideggeriano.
3. Na pista... a) A ausência de Deus “Mas, amigo! Chegamos demasiado tarde. É certo que vivem os deuses. Mas, sobre a cabeça, ressoam noutro mundo.” (F. Hölderlin, Brot und Wein, 7)
O próprio Heidegger retoma, com ênfase, a palavra poética: “Chegamos demasiado tarde para os deuses e demasiado cedo para o ser”34. Assim é descrito o “tempo da provação” (die dürftige Zeit): é, pura e simplesmente, o tempo da retirada dos deuses e da demora do ser. “A ausência de Deus significa que já nenhum deus congrega em si os seres humanos e as coisas, de modo visível e claro, nem dispõe, a partir dessa congregação, a história do mundo e a humana presença nela”35. Dito com outras palavras: o mundo já não acontece como quadratura e a proximidade na distância já não é instaurada – apenas a ausência de proximidade e de distância, a ausência de Deus e do mundo, a ausência do próprio ser humano. Com a expressão “tempo de provação” – também ela tomada directamente de Hölderlin – Heidegger pretende referir-se, claramente, à “era, à qual nós próprios ainda pertencemos”36. Ora essa era é determinada pela manifestação da essência da técnica. E é precisamente esta forma de pensar a nossa época que marca os caminhos do último Heidegger. Desse modo é aprofundada e clarificada a palavra poética da ausência de Deus – na medida em que é, simultaneamente, questionada37. A técnica também “irrompe no espaço onde acontece revelação e desocultação, alethêia, verdade”38. O revelar é, na técnica, um desafiar ou provocar. Por isso, a essência da técnica repousa no Ge-stell (em tradução livre: colocar perante, 34 M. HEIDEGGER, Aus der Erfahrung des Denkens, GA 13, Frankfurt a. M. 1977, 76. 35 M. HEIDEGGER, Holzwege, 271. É nítida a ressonância da problemática da «morte de Deus», de inspiração nietzschiana. 36 Ibidem. 37 É universalmente admitido que os últimos caminhos de Heidegger foram fortemente influenciados por Hölderlin. No entanto, a reflexão sobre a essência da técnica parece ter recebido impulso da poesia de R. Maria Rilke. Heidegger terá seguido a crítica do poeta à nossa época, sobretudo na conferência “Wozu Dichter?”, pronunciada em 1946 (in: Holzwege, 269-‐320). Quando, sete anos mais tarde, na conferência apresentada em Munique “Die Frage nach der Technik” (in: Vorträge, 13-‐44), Heidegger se dedica de maneira mais vasta a essa problemática, dificilmente se pode iludir o paralelismo com a poesia de Rilke. 38 M. HEIDEGGER, Vorträge, 21.
de modo objectivante e forçadamente exigente). A verdade do Ge-stell desafia o ser humano a “revelar o real em forma de exigência”39. Esse desafio marca, ao mesmo tempo, o destino do ser humano, constituindo para ele o mais elevado perigo, pois impede o ser humano de se encontrar a si próprio ou a outra qualquer forma de revelação da realidade, isto é, de verdade do ser (como, por exemplo, da arte). Dito por outras palavras: “O Ge-stell impede o aparecimento e o brotar da verdade”40. Ora, esse brotar da verdade – como acontecimento – na proximidade do ser – da clareira que revela e oculta – é o sagrado (das Heilige) 41 . O sagrado, não propriamente Deus. Heidegger mantém-se fiel a Hölderlin: “Quem é Deus? Desconhecido. Contudo, a face do céu está cheia de atributos seus...” (Hölderlin, Was ist Gott?). Deus permanece, pois, escondido na sua distância. Só o sagrado se revela. Por isso, esse sagrado constitui o único “vestígio dos deuses desaparecidos”42. Ora, o ponto mais elevado do perigo para a nossa época consiste, precisamente, no facto de, não apenas Deus se ter retirado, mas de o próprio brilho do divino – o acontecimento da verdade, como sagrado – se ter extinto, na história do mundo43. Ainda maior perigo é, no entanto, o seio da noite do mundo, pois “não apenas se perde o sagrado, como vestígio da divindade, mas até os próprios vestígios para esse vestígio desaparecido se encontram quase apagados”44. A maior necessidade é a falta de necessidade, pois nem se reconhece a presença da ausência de salvação. Como tal, o nosso tempo encontra-se numa tão avançada provação que já não é capaz de perceber a ausência de Deus, como ausência. Apesar do estilo altamente pessimista deste diagnóstico, o certo é que não é tanto como parece. De facto, só quando se reconhecer o mais elevado perigo – que se nos manifesta – se conseguirão encontrar vestígios para os vestígios do divino. Aí acontece uma transfiguração: a reviravolta (die Kehre)45.
39 Ibidem, 28. 40 Ibidem, 35.
41 Cf.: J. SPLETT, Die Rede vom Heiligen, München / Freiburg 1971, 173; O. PÖGGELER, op. cit.,
216ss (O termo alemão das Heilige significa, simultaneamente, o sagrado e o santo). 42 M. HEIDEGGER, Holzwege, 272. 43 Cf.: Ibidem, 269. 44 Ibidem, 272. 45 Cf.: Ibidem, 270: “Na era da noite do mundo, tem que experimentar-‐se e sofrer-‐se o abismo do mundo”.
b) A «reviravolta» “Onde, contudo, está o perigo, cresce também a salvação” (F. Hölderlin, Patmos)
A salvação esconde-se, precisamente, na essência da técnica moderna, enquanto abismo do mundo (Ab-grund = fundamento sem fundo). A ambiguidade, na essência da técnica, aponta para a verdade, na medida em que manifesta a constelação, “na qual a revelação e a ocultação, o brotar da verdade acontece”46. Desse modo, na essência da técnica moderna surge uma possibilidade de transpor o mais elevado perigo. “Olhamos para o perigo e apercebemos o despontar da salvação”47. O perigo torna-se o próprio ser e, “por isso, só compreensível a partir dele, a partir do seu dar-se, que torna o perigo, enquanto perigo, visível e, desse modo, salva e cura”48. Mas não basta, para o surgir da salvação, a mera constatação ou contemplação da essência da técnica. É preciso a instauração da verdade do ser, na obra. Por isso, a arte, enquanto poesia (poiesis) – ou seja, precisamente enquanto instauração da verdade – poderá tornar-se na salvação, frente ao mais elevado perigo. Como tal, a articulação poética passa pela confrontação com a técnica. Por um lado, a arte está próxima da técnica, pois é também technê; por outro, é fundamentalmente diferente da técnica, na medida em que é uma technê instaurante e não objectivante ou forçante, exigente. Atingimos, assim, o cerne da relação entre a arte e o divino. Se a arte pode ser proposta como salvação, então terá que instaurar a verdade do ser enquanto proximidade – o sagrado. Assim, instaura um vestígio do divino, do Deus que vem. Essa instauração constitui, segundo o próprio Heidegger, a missão dos poetas, na medida em que dizem o sagrado. Tal dizer é, pois, um dizer instaurante49. No dizer 46 M. HEIDEGGER, Vorträge, 41. 47
Ibidem.
48 J. SPLETT, op. cit., 168. Aí se mostra, de modo convincente, como o tema da salvação no
perigo foi desenvolvido nas Nietzsche-‐Vorlesungen de Heidegger, enquanto jogo entre ser e nada (162ss). 49 Cf.: M. HEIDEGGER, Erläuterungen, 86; Id., 42: “Agora compreendemos a poesia como nomeação instaurante dos deuses e da essência das coisas”. Na arte, procura Heidegger o outro, o novo e grande começo – seja a partir dos gregos, seja a partir de Hölderlin. Poder-‐se-‐ia perguntar porquê os gregos e porquê Hölderlin. E ainda, se será a arte o único caminho para a salvação (Cf.: O. PÖGGELER, Wächst das Rettende auch? Heideggers letzte Wege, in: W. BIEMEL / F.-‐W. HERRMANN [DIR.], Kunst und Technik, Frankfurt a. M. 1989, 22-‐23; ID., Die Frage nach der Kunst: von Hegel bis Heidegger, Freiburg/München 1984, 243ss). Sem pretender aprofundar aqui esta discussão,
do poeta, pois, “mostra-se a verdade como sagrado, como elemento do divino – e isso num tempo em que, como disse Nietzsche, Deus morreu”50. Se tomarmos a poesia em sentido lato – e não apenas como obra literária – então toda a arte é um dizer o sagrado e, desse modo, instauração de um vestígio para o divino, na aproximação da proximidade, que funda a permanência na presença dos deuses51. E isso porque toda a arte é instauração da verdade do ser. Ora, “só a partir da verdade do ser se pode pensar o sagrado. Só a partir da essência do sagrado se pode pensar a essência da divindade. Só à luz da essência da divindade se pode conceber e dizer o que se entende com o termo «Deus»... Como poderia, de facto, o ser humano, na presente história do mundo, até mesmo questionar-se seria e severamente se Deus se avizinha ou se retrai, se o ser humano, primeiro, não arrisca a atingir com o pensamento aquela dimensão na qual, apenas, pode ser colocada essa questão?”52 Só quando o ser humano tiver preparado, no pensamento e na linguagem, um espaço para Deus, este virá. Esse espaço será a nomeação do sagrado, como vestígio para o divino, como espera por Deus – pelo último Deus... c) O «último» Deus “Só um Deus nos poderá salvar. Resta-nos a possibilidade de, no pensamento e na poesia, preparar uma abertura para o aparecimento de Deus ou para a ausência de Deus, no ocaso; naufragamos face ao Deus ausente” (M. Heidegger, Entrevista ao “Der Spiegel”)
Mas, que Deus nos poderá salvar? Como encontrar, no vasto e difícil manancial do pensamento heideggeriano, alguma indicação que possibilite uma «definição» não de-fininte de Deus, se não podemos caracterizar esse mesmo pensamento, nem de teísta nem de a-teísta – precisamente porque, segundo ele,
convém apenas notar que é viável, a partir de Heidegger e para além dele, construir uma concepção de arte independentemente da sua relação com os gregos e com Hölderlin e que não exclua outros caminhos para a «salvação». 50 O. PÖGGELER, Der Denkweg, 216-‐217. 51 Cf.: M. HEIDEGGER, Erläuterungen, 42; ID., Technik und Kunst – Ge-‐stell, in: W. BIEMEL / F. W. VON HERRMANN (DIR.), op. cit., XIII-‐XIV: “Será que, no actual mundo determinado pela técnica, através desta e para esta – que apenas se encontra nos seus inícios – a arte é essencial e necessária e, por isso, possível?... Arte e Ge-‐stell. O que e como pode ser a arte, na era do Ge-‐stell? Impossível de deduzir; impossível de ler em qualquer parte – só artisticamente a decidir: de modo que, nessa arte – e só nela – se encontra a resposta a si própria, no seio do acontecimento”. 52 M. HEIDEGGER, Über den Humanismus, in: Wegmarken, 145-‐199, 182.
nenhum pensamento pode ser nem uma coisa nem outra? 53 Não parecerá mais aconselhável, mesmo, “renunciar não só à resposta, mas até à questão”?54 O horizonte surge-nos marcado mais por uma radical teologia negativa, do que por qualquer possibilidade de dizer Deus – mesmo apenas como questão55. De qualquer modo: o desenvolvimento da questão do ser conduz, no final dos Beiträge zur Philosophie, à questão de Deus, “à estranha expressão da «passagem do último Deus»”56. Aí podemos ler que a recusa é “a maior nobreza da doação e a característica fundamental da auto-ocultação, cuja revelação constitui a essência originária da verdade do ser. Só assim o ser se torna na própria estranheza, no silêncio da passagem do último Deus”57. Então, acontece a reviravolta: a auto-revelação do mistério do ser, como recusa, a proximidade como distância; então, o mundo torna-se quadratura; então, desponta o sagrado. “Só neste acontecimento Deus é Deus”58. E a linguagem do ser-aí adquire, aqui, “a sua origem e é, por isso, na sua essência, silêncio”59. E se o último Deus não significa o fim, “mas o outro início de possibilidades incalculáveis da nossa história”60, então torna-se compreensível porque é que só esse Deus poderá salvar a era da técnica. Mas chegamos demasiado tarde e demasiado cedo; vivemos, ainda, entre o jánão e o ainda-não. Este tempo intermédio é o tempo da instauração da proximidade: a proximidade do acontecer do ser, no qual se dá a reviravolta. Essa proximidade é, ao mesmo tempo, distância, pois a maior distância, na recusa do último Deus, constitui uma proximidade sui generis, “uma relação que não pode ser deformada nem
53 Se é verdade que, segundo O. PÖGGELER, op. cit., 266: “O pensamento de Heidegger
comporta a questão de Deus, desde o início do seu caminho”, o certo é que, como diz o próprio M. HEIDEGGER, Vom Wesen des Grundes, Frankfurt a. M. 1955, 39: “...não foi tomada qualquer decisão definitiva sobre um possível ser de Deus, nem em sentido positivo, nem em sentido negativo” – porque nenhum pensamento humano pode decidir sobre essa questão; Cf.: ID., Über den Humanismus, 145-‐199, 168.181; E. CORETH, op. cit., 587s. 54 M. HEIDEGGER, Zur Sache des Denkens, Tübingen 1969, 21. 55 A este propósito, é sintomático o título de E. Jüngel: “Silêncio correspondente a Deus?” (E. JÜNGEL, Gott entsprechendes Schweigen?, in: AAVV, Martin Heidegger. Fragen na sein Werk. Ein Symposion, Stuttgart 1977, 37ss). 56 O. PÖGGELER, Die Frage, 241; Cf.: ID., Der Denkweg, 262ss; E. BRITO, Le «dernier dieu» dans les «Contributions à la philosophie» de Martin Heidegger, in: «Église et Théologie» 28 (1997) 45-‐75. 57 M. HEIDEGGER, Beiträge, 406. 58 J. SPLETT, op. cit., 168. 59 M. HEIDEGGER, Beiträge, 408. 60 Ibidem, 411.
eliminada por qualquer tipo de «dialéctica»”61. Só assim será preparado, no nosso tempo, um espaço aberto para o Deus que vem. Este “pensamento sem-Deus está [possivelmente] mais próximo do Deus que vem”62 que o discurso metafísico de uma teologia tradicional63. Como poderá, então, no actual tempo da provação, ser instaurada a proximidade, como acontecimento da reviravolta, que abre espaço para a revelação do Deus que é, na medida em que vem? Heidegger é, pelo menos nisto, bem claro: sempre que o pensador diz o ser e o poeta nomeia o sagrado64. O poeta encontra-se, contudo, mais próximo da origem e, como tal, da proximidade instauradora, pois ele mostra a distância “que se aproxima, na vinda do sagrado”65.
61 Ibidem, 412. F. WIPLINGER, Wahrheit und Geschichtlichkeit, Freiburg / München 1961,
365ss, desenvolve, a partir desta ideia, a proposta de uma continuação de Heidegger, rumo a um pensamento transcendental-‐dialógico, de raiz anti-‐hegeliana. O inultrapassável diálogo entre revelação e ocultação, que constitui o acontecimento do ser, será o mistério-‐fundamento que sustenta todo o tipo de diálogo «categorial», mesmo o humano. K. Rahner pensa, em termos algo semelhantes, o mistério trinitário. 62 ID., Identität und Differenz, Pfullingen 1957, 70. 63 Pelo menos, no sentido em que Heidegger fala de metafísica (= pensamento coisificante/objectivante). É nesse mesmo contexto que Heidegger sempre se distancia, até ao final, do «Deus cristão», assim como da forma cristã clássica de o conceber. A questão do relacionamento do seu pensamento do ser e do divino com a teologia cristã é, contudo, sumamente complexa, até porque não existe apenas uma teologia cristã. Não diria, pois e sem mais, como E. CORETH, op. cit., 590, que Heidegger “não conduz à concepção cristã de Deus; ...no seu sistema de pensamento, se se leva a sério, não há qualquer lugar para Deus”. Que Heidegger tenha recusado explicitamente o Deus cristão e que, de facto, seja impossível identificar o Ser anónimo, a que o seu pensamento conduz (ou de que parte), com o Deus cristão, isso não significa que nenhuma ligação seja possível. 64 Permanece aberta a questão de serem estas as únicas possibilidades de tal instauração – ou então, teremos que assumir uma concepção vastíssima de «pensador» e de «poeta». 65 M. HEIDEGGER, Erläuterungen, 148; Cf.: O. PÖGGELER, Wächst, 18. Desta forma «indirecta», a arte (a poiesis artística) assume uma profundíssima pertinência teológica.
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