A ascensão do judiciário a poder (Centumviri Colossus)

June 5, 2017 | Autor: Pedro Da Conceição | Categoria: Political Science, Philosophy Of Law
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30/03/2016

A ascensão do Judiciário ao poder

Segunda­feira, 21 de março de 2016

A ascensão do Judiciário ao poder

Pedro da Conceição  Advogado O intenso controle judicial sobre políticas públicas, as decisões de supremas cortes sobre temas morais como aborto e casamento, os atos de instrumentalização do processo penal como artifício político pelas mãos de Moro e o ridículo jogo de tira e põe acerca da nomeação de Lula como Ministro são todos fenômenos profundamente relacionados. Uma relação profunda porque sedimentada e fomentada por anos de decantação e prática forense, a qual sempre permaneceu às sombras da política mainstream – uma relação que pode e precisa ser compreendida, mas não sem um esforço que exija de nós uma torção de pensamento. Para entendermos o que está em jogo, agora, no meio desta crise política que assola o país, precisamos reestruturar a nossa narrativa sobre o Poder. Há algumas semanas, Vladmir Safatle, filósofo e professor da USP, publicou, em sua coluna na Folha de São Paulo, o texto “Produzir Corpos”. Neste texto, aparentemente seguindo ecos de Castoriadis, Safatle propunha que colocássemos a nossa imaginação social em funcionamento para pensar uma saída da “Nova República”, o projeto de Poder (ou, como diz o próprio, o “esquema de compreensão do Brasil”) que se iniciou nas décadas de 50 e 60 e perdura (agoniza). Pouco tempo depois, o texto parece ter ganho tons proféticos, não apenas porque a Nova República está ruindo, mas também porque não temos um projeto para sua substituição. É preciso entender, porém, que não se trata de mais uma reviravolta de nossa história republicana – mas na história da República. Após as últimas polêmicas envolvendo interceptações telefônicas autorizadas e divulgadas por Moro, o movimento de apoio ao governo se reforçou e ganhou também fôlego o discurso anti­ golpe. Nessa miríade, a famosa correção que Marx fez à tese hegeliana da repetição histórica passou a ser usada novamente: “uma vez como tragédia, a outra como farsa”. A alusão clara é a de que os eventos das últimas semanas estariam caricaturando o drama de 1964. Os que citam o 18 Brumário pela metade, porém, parecem se esquecer que Marx colocava todas as oposições partidárias como oposições internas (contradições) inerentes à burguesia. A tese de Marx que importa aqui, porém, é outra, é que Napoleão e sua ascensão faziam a réplica de Roma – e Napoleão, em certo modo, do próprio Cesar. Estariam presentes os mesmos elementos (roupas e frases): o Senado, as Tribunas – em certa medida, o próprio direito romano que muito http://justificando.com/2016/03/21/a­ascensao­do­judiciario­ao­poder/

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influenciou o Code Napoléon. Mas faltou uma figura no período revolucionário Francês e que agora ressurge das sombras da história, ainda não materializada, mas como espectro: o centumviri. Estudiosos da Roma antiga e do Direito Romano divergem sobre sua origem, sobre suas funções e sobre sua duração. O que se sabe (não sem alguma controvérsia) é que o centumviri era uma corte colegiada que aparentemente refletia as tribos originais da região de Roma e contava com uma centena de juízes (há relatos de julgamentos mais relevantes em que a corte se dividiu em quatro painéis somando 180 juízes). A competência da corte não era clara, mas sabe­se que ela concentrava sua atuação em causas civis de grande relevância, sobretudo que diziam respeito à herança e a questões de propriedade, mas é certo que também avaliava algumas questões criminais. Em relatos acerca do centumviri, o jurista Plinio – especializado em litígios nesta corte – parece aludir a causas mais “interessantes”, de grande valor (moral e econômico) que seriam julgadas em um local cheio de vida e com muitos advogados e jurisconsultos ao redor e o mesmo se lê da parte de Cícero. A corte ocupava um lugar de alto status no aparato romano, o que se refletia na sua localização efetiva na Basilica Julia [1]. O centumviri, porém, parece não ter sobrevivido à mudança para o Império e talvez por isso seja um ponto quase esquecido no mainstream da história romana. Justamente por isso, contudo, a desaparição do centumviri não deveria ser um fato qualquer, mas um fato absoluto, com toda a dignidade das coisas, das instituições e das civilizações que desaparecem (e que tendem a reaparecer farseadas). A tese mais simples parece explicar melhor o desaparecimento do centumviri: a forma de concentração de poder no Império é diametralmente oposta ao princípio do colegiado na decisão de temas de grande relevância. Talvez esse movimento de sufocar o centumviri e fazer com que o Direito permanecesse diluído em figuras pretorianas seja a razão de nos preocuparmos “apenas” com o direito civil romano e sua sofisticação, mas não com os aspectos do direito público de Roma. Talvez o fim do centumviri tenha impedido o surgimento antecipado de uma lógica publicista (mais compatível com a República e com os jogos de poderes de um Senado sem Césares). Não podemos duvidar, contudo, que esse movimento ecoa na representação de Montesquieu sobre os juízes: eles não entram, de verdade, no jogo da divisão dos Poderes [2]. A real divisão de forças está entre o Executivo e o Legislativo. Aos juízes cabe aplicar a Lei. Os julgadores, nas raízes da moderna teoria do Estado, são a mão invisível do Legislativo – ou a sua boca, como costumava se dizer aos idos de Montesquieu. Não é um acaso que os livros e manuais de Teoria do Estado releguem poucas páginas ao Judiciário, mais estudado em “teoria geral do processo” (?). O que vemos agora, amigos, é isso: a ascensão do Judiciário ao Poder. Tentei refletir esse pensamento, ainda em maturação, nestes textos no Justificando [3], mas esta talvez seja uma boa hora para explicar melhor como chegamos ao ponto de o Judiciário entrar no jogo da Governamentalidade.

A Constituição e a Honra A Constituição é comumente chamada de “carta política”. Isso não é por acaso. A interpretação da Constituição é prerrogativa do Judiciário (por ter o poder de dar sua interpretação autêntica). Essa http://justificando.com/2016/03/21/a­ascensao­do­judiciario­ao­poder/

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é uma das grandes fontes do poder atual do Judiciário, mas ela somente faz sentido como fonte de poder graças ao grande projeto de advocacy pela horizontalização da Constituição, ou seja, de aproximar a Constituição de todas as normas, e não apenas das normas, mas também das práticas, para que tudo possa ser questionado diretamente sob a óptica constitucional, ou seja, por critérios que, no final, serão dados pelo... Judiciário. O fenômeno de constitucionalização do Direito é inerente à sua judicialização (e isso é especialmente significativo no Brasil). Mas o judiciário foi ganhando esse poder lentamente a partir de seu lugar de subserviência. Ocorre que, ao servir de Minerva, trazendo tanto a decisão “sábia” quanto o confronto, o Judiciário serviu de verdade receptáculo de confiança. Para fazer isso era preciso que a atuação do Judiciário fosse sempre honrosa, discreta, auxiliar. Essa exigência de honra da atuação do judiciário se traduziu no conceito jurídico da legitimidade, por meio de figuras como o juiz natural, a dupla jurisdição e o dever de fundamentar as decisões, mas, sobretudo, na proibição “ne procedet judex ex officio”, ou, em português, no princípio da inércia. Juízes, verdadeiros mestres hermeneutas, logo aprendem a utilizar os próprios meios legais disponíveis para sair da inércia. Moro é um excelente exemplo: com uma interpretação inovadora acerca das regras de competência, ele deu o passo megalômano necessário para fazer com que a Operação Lava Jato permanecesse suficientemente centralizada em seu foro, a fim de manter a “unidade” da Operação. Concentrou tantos poderes que a população olha para Moro como verdadeiro agente “por trás” da Lava Jato, e não o Ministério Público.

A Recepção A figura jurídica da recepção é pouco estudada. Quando uma ou outra polêmica surge no Supremo, como no caso do Código Tributário Nacional, ela parece ser assunto principiológico, mas logo passa o frisson e o tema não recebe holofotes nem de juristas nem de cientistas políticos. A figura da recepção é uma das maiores armas do Judiciário para interferir na política, porque permite ao Judiciário reinterpretar não apenas normas, mas verdadeiras estruturas sociais inteiras a fim de apresentar sua correição com a recepção. Um ótimo exemplo é o Código de Processo Penal. Convivemos com um CPP arcaico (apesar de algumas reformas pontuais louváveis) – nosso sistema de processo criminal somente reflete os fartos princípios da Constituição pela lente judicial. E a lente pode se turvar, como se turvou recentemente no Supremo que deu uma nova roupagem à interpretação do trânsito em julgado, suavizando a influência da presunção de não culpabilidade no sistema recursal e de trânsito criminais.

Realidade, Pluralidade, Conflito O Judiciário possui uma vantagem sobre os outros Poderes: ele conhece a realidade em sua nudez. A realidade que chega ao Judiciário é já a realidade do conflito, ou seja, envolve o ponto onde a a lei funcionou, mas, sobretudo, onde ela foi falha. E nisso, o Judiciário conhece não apenas a lei, mas também os interesses e sua incompatibilidade, a divergência nos conflitos que movimentam muito. http://justificando.com/2016/03/21/a­ascensao­do­judiciario­ao­poder/

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Diferentemente do Legislativo, que dá a Lei, e do Executivo, que executa uma Lei dada, o Judiciário recebe a Lei pelo filtro do conflito. Os dados do Judiciário podem ser menos requintados, mas são os dados críticos, os casos dos extremos, os melhores e os piores que, juntos, dão uma visão muito mais precisa acerca da geografia do tecido social que os dados crus e não processados disponíveis para o Legislativo ou em processamento no Executivo – afinal, um mapa depende mais dos pontos que indicam os limites (entre terra e mar, entre territórios, etc.) que dos pontos de preenchimento (entre os limites). Com a evolução de nossas sociedades para um quadro de maior pluralidade, há um consequente aumento do conflito e as novas questões, não contempladas pela Lei, também não viram demandas administrativas – em grande medida porque o maior meio de acesso à Administração são... medidas judiciais. A tão conclamada “interface” entre a Administração e o administrado está muito longe de existir, e a Administração guarda muitas faces de droit du prince, já o Judiciário, esse está aberto (cada vez mais aberto) para o povo.

Conclusões para o tempo presente Há, certamente, outros fatores que têm proporcionado o levante do Judiciário, mas é preciso um pouco mais de memória dos momentos presentes para discursar. O principal ponto aqui, no contexto da atual crise política, é que está esgotado o modelo Moderno de Bipartição de poderes acompanhado por um Judiciário em forma de gadget. A decisão de Gilmar Mendes, de sexta­feira (18 de março), dando um aval cego aos atos de Sérgio Moro sobre as escutas telefônicas e, em decorrência, mantendo Lula fora da Casa Civil, são apenas indícios de que a pretensa oposição entre pró­governo e pró­impeachment é apenas uma racha superficial no túmulo do centumviri que ressurge. Mas ressurge colossal. Pedro da Conceição é Mestrando em Direito pela Universidade de São Paulo, advogado. Autor do livro “Mito e Razão no Direito Penal” (2012). Filósofo nas horas vagas. REFERÊNCIAS 1  Sobre o centumviri: Johnston, David. Roman Law in Context, Cambridge, 2004; Lewis, A.D.E. The Dutiful Legatee: Pliny, Letters V.1. In: Beyond Dogmatics Law and Society in the Roman World Edited by J W Cairns and P J du Plessis – Edhinburg University Press, 2007. Um resumo convidativo também disponível em Smith, William. A Dictionary of Greek and Roman Antiquities, John Murray, London, 1875 – acessível on line: http://penelope.uchicago.edu/Thayer/E/Roman/Texts/secondary/SMIGRA*/Centumviri.html 2  http://justificando.com/2015/10/29/politizacao­do­judiciario­sintoma­de­uma­crise­permanente/ 3  Em: http://justificando.com/buscar?texto­busca=Pedro+da+Concei%E7%E3o&categoria=&secao= e, especialmente: http://justificando.com/2015/10/29/politizacao­do­judiciario­sintoma­de­uma­crise­permanente/, mas também

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