A ascensão do social e o Estado de Exceção - sobre Hannah Arendt e Giorgio Agamben

June 15, 2017 | Autor: Bruno Marcondes | Categoria: Biopolítica, Totalitarismo, Estado De Exceção
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Introdução

Giorgio Agamben inicia sua obra Homo Sacer: O poder soberano e a vida
nua com a distinção dos gregos para o conceito de vida. Os gregos, segundo
o autor, tinham dois termos para distinguir esse conceito. Zoé era a vida
comum, partilhada com os outros animais, e bíos era um modo de vida
qualificado, particular, que se situava para além da mera vida animal[1].
Também, ainda segundo o autor, havia a opinião comum dos gregos, que
afirmava que a vida em prol da mera subsistência (oîkos) era uma vida
partilhada com a vida animal (ou pré-política, no entender de Hannah
Arendt) e a vida política (bíos políticos) um modo de vida particular, para
além da mera esfera da sobrevivência[2].
Hannah Arendt, em um dos capítulos de sua obra A Condição Humana,
discute justamente essa diferença entre uma mera vida e uma vida
qualificada, identificando com a primeira a esfera privada, da família e
dos negócios, e a segunda com a esfera pública, livre da necessidade, da
sobrevivência[3]. Hannah Arendt, segundo a leitura de Agamben, vê, na
modernidade, a vida biológica (zoé) ocupar cada vez mais o espaço da
política, e nisso ela vê a transformação e a decadência do espaço público
na sociedade[4].
O presente trabalho propõe-se a ler um dos capítulos de A Condição
Humana, em que Arendt trata justamente da evolução dos assuntos privados
para a esfera pública, na chegada da modernidade. Pode-se até falar de uma
hegemonia da esfera da mera sobrevivência na esfera política, ou pública. A
aposta política do homem moderno passa a ser sua vida biológica, nos
dizeres de Foucault, em citação também de Agamben[5].
Giorgio Agamben identifica o estado de exceção como o grande
paradigma biopolítico moderno, cujo principal modus operandi é a captura da
vida nua, a mera vida. O estado de exceção inclui a vida nua no ordenamento
pela sua exclusão, ou seja, pela sua matabilidade[6]. O espaço em que isso
ocorre é o campo. O estado de exceção, no campo, abre um limiar em que vida
e política, situação de fato e de direito, zoé e bíos tornam-se
indiscerníveis entre si, e tudo pode acontecer. Tal situação, em que
direito e fato, exclusão e inclusão, vida e política, se confundem, esse
limiar, enfim, caracteriza propriamente o Totalitarismo, o grande problema
político do tempo atual. Não apenas há a suspensão da lei, mas abre-se um
horizonte em que apenas uma decisão, com base, não em uma norma, mas em
critérios porventura pessoais de um juiz, autoridade ou funcionário, torna-
se a própria lei[7].
Todavia, ainda que o Homo Sacer, a vida matável e insacrificável,
seja a forma originária de implicação da vida nua no direito, em Agamben,
este trabalho não desenvolverá a questão da sacratio. A questão central,
aqui, será a da implicação cada vez maior da vida nua nos cálculos e
procedimentos políticos. Essa é a perspectiva do trabalho de Agamben que
será interessante para a leitura do capítulo de A Condição Humana de Hannah
Arendt.















A ascensão do social e a crise da política clássica

Hannah Arendt inicia o capítulo A Polis e a Família com a afirmação
de que o equívoco na interpretação e no equacionamento das esferas social e
política, datado desde pelo menos a Antiguidade latina, agravou-se na
moderna concepção de sociedade[8]. A esfera política, desde o surgimento da
polis grega, está no âmbito da esfera pública, da esfera da liberdade. Já a
esfera privada pertence à esfera privada, a esfera da necessidade. Uma
sociedade, na Roma antiga, significava a reunião de alguns indivíduos com
um propósito comum, e os gregos, ao se depararem com um caso desses, viam
uma limitação imposta pelas necessidades naturais dos homens, uma vez que
os homens, para a sua sobrevivência, não podem viver sozinhos. Assim, a
esfera social seria uma característica da vida humana que se encontraria
com a vida dos outros animais, sem se distinguir deles, como acontece na
esfera política[9].
Essa ascensão da sociedade na esfera política é, para Arendt, um
fenômeno novo, que se origina na modernidade e ganha a sua forma política
na formação dos Estados nacionais[10]. Arendt fala, ainda, da dificuldade
de nós, homens modernos, de separar essas duas esferas, a política e a
privada, e também das atividades concernentes a cada uma[11]. No
entendimento moderno, segundo a autora, a linha que separa o político do
privado é difusa pelo fato de vermos um corpo ou comunidade política como
uma imensa família, cujos negócios devem ser administrados por uma
administração doméstica gigantesca. Uma família sobre-humana, composta por
um conjunto de famílias organizadas economicamente, e cuja forma política
de organização é a nação.
Para os gregos, as duas esferas eram bem distintas. Os homens, na
esfera privada e familiar, viviam juntos compelidos pelas suas necessidades
e pela sobrevivência. Toda a hierarquia que organizava a vida no lar era em
função das necessidades impostas pela vida. Assim, nada era mais natural,
para os gregos, que o homem ficasse encarregado do sustento do lar e a
mulher ficasse encarregada da sobrevivência da família e mesmo da espécie
humana, ao cuidar da prole.
Já a esfera pública e política, no entender dos gregos, era a esfera
da deliberação, da liberdade. Vinha depois da esfera da sociedade, sendo
essa última entendida como pré-política, e era lícito, inclusive, que os
homens usassem da violência para sair da esfera da necessidade e adentrar a
esfera da liberdade. Assim, era pertinente a organização autoritária do lar
e a subjugação de escravos, por exemplo. Essa violência era o ato de se
libertar das necessidades da vida e alcançar a liberdade da polis.
No entanto, na modernidade, a política torna-se um meio para proteger
a sociedade. A liberdade passa a se situar na esfera da sociedade, e a
força e a violência, antes na esfera privada, passam a ser monopólio do
governo. Todos esses conceitos de submissão e de domínio, próprios da
esfera privada, passam para a esfera pública, o que causou uma confusão no
entendimento moderno a respeito dessas relações. Com a política sendo uma
função da sociedade, os interesses sociais e privados passam a ser o
interesse coletivo. A economia, que dizia respeito às atividades
domésticas, eleva-se ao nível público. E, no desdobrar da modernidade, as
duas esferas, pública e privada, constantemente se encontram e se
confundem[12].
A ascensão do social, desse modo, para Hannah Arendt, marca o ponto
em que questões relativas à vida comum a todos os seres vivos se tornam o
interesse da política, o interesse comum. Quando questões ligadas à esfera
da mera sobrevivência assumem importância pública. E é essa implicação da
vida na política que analisaremos por Agamben.












O estado de exceção

É justamente a ascensão do social e as implicações que isso acarreta
que possibilitarão o surgimento de algo novo na política: o estado de
exceção. É justamente a ascensão e vitória do social, e o "turvamento" das
fronteiras entre as esferas privada e pública, que possibilita uma situação
de indiscernibilidade entre vida e direito, situação de fato e de direito,
exclusão e inclusão[13]. Que é o que acontece no estado de exceção. No
ordenamento jurídico, segundo Agamben, a vida nua é excluída, ficando na
esfera do oikos, do cuidado doméstico. No entanto, pela exceção, pela
matabilidade, a vida nua é capturada pelo ordenamento jurídico, na figura
do homo sacer, na figura daquele que poderia ser morto por qualquer um, sem
que isso significasse crime[14]. E a decisão sobre a vida biológica passa a
ser o grande interesse da política, principalmente na chegada da
modernidade. O que passa a ficar em jogo, na política moderna, passa a ser
a questão da vida, do direito sobre a vida, do direito sobre o corpo. A
vida nua passa a ser o grande sujeito político moderno.
Foi justamente essa transformação da política em biopolítica que
possibilitou, para Agamben, a sua constituição em política totalitária, com
transições sem grandes alterações, para regimes democráticos. E o que
estaria em jogo, entre esses regimes, seria a forma de organização mais
adequada, em determinado contexto, para assegurar o controle e a exploração
da vida nua. A inauguração dessa biopolítica moderna vem com o Habeas
corpus, em que a democracia européia colocava no centro da sua luta contra
o absolutismo a zoé, e não bíos[15]. E também viria pela declaração dos
direitos do homem, de 1789[16]. É o nascido em uma comunidade política que
será o cidadão, detentor dos direitos[17]. E, em uma situação de exceção,
de totalitarismo, uma das coisas que se é retirada da vida a ser morta é a
nacionalidade.
O espaço em que será realizada a exceção, em que a vida nua ficará
completamente exposta ao poder, será o campo[18]. Os campos de concentração
nazistas trarão a peculiaridade de ser a concretização de um estado de
exceção, não em uma situação de emergência, mas de um estado de exceção
deliberado. No III Reich nazista, através da emanação do decreto Verordnung
zum Schutz Von Volk und Staat, o estado de exceção deixa de ser referido a
uma situação de perigo para a segurança do Estado e tende a se tornar a
própria norma[19]. Cria-se um estado de exceção com vistas à instauração do
Estado nacional-socialista. No caso, o campo, segundo Agamben, é o espaço
que se abre quando o estado de exceção tende a se tornar a própria regra. E
uma das características mais marcantes do campo, que é uma materialização
da exceção, é a mais completa indeterminação possível, seja por meio de
cláusulas gerais, seja por relatórios imprecisos, seja por instruções
contraditórias, por indefinições por parte de autoridades, entre outros,
que garante justamente que, no campo, seja possível essa indeterminação e
que esta, por sua vez, faculte a decisão sobre a vida, que caracteriza o
soberano, aos que trabalham nos campos, em relação aos prisioneiros,
completamente expostos, sem mediações, como vida nua.
Assim, o que é importante entender, na parte analisada do livro de
Hannah Arendt, é precisamente essa imbricação da esfera privada, relativa à
vida nua, na esfera pública, relativa à política. O desenvolvimento do
social, em que se confundem essas duas esferas, trará a possibilidade do
Totalitarismo, situação em que todas as coisas relativas à vida natural do
homem se tornarão de interesse político. Pode-se afirmar, sem exagero, que,
qualquer espaço em que a vida possa mostrar outras possibilidades, será
objeto de uma tentativa de inscrição nos cálculos do poder[20], e que,
mesmo determinadas formas de vida, dentro da polis, vividas de maneira
insuspeita, podem revelar-se como a mais insólita ficção.



























Conclusão

O Totalitarismo, sem sombras de dúvida, é o problema político mais
importante do nosso tempo, e não saímos dele. Em praticamente todas as
respostas, para os problemas políticos que tivemos, na modernidade, ele
estava presente, talvez como (ou não) um paradigma oculto, como já disse
Agamben. Liberalismo, fascismo, marxismo, em várias respostas, ele
aparecia, de forma mais ou menos branda.
Hannah Arendt, em suas investigações, deixou-nos um legado
importante, que é ver justamente o ponto em que vida e política se
confundem. Ter um cuidado quanto a isso. Em que medida uma solução de
esquerda se diferencia de uma solução de direita, se não se toma cuidado
quanto à implicação da vida natural nos cálculos políticos? Em que ponto
uma medida política significará aumento de liberdade? Será a necessidade
algo digno de ser observado pela política? As políticas de fomento à
cultura devem viabilizar obras independentes ou sustentar artistas, como
acontece com a nossa Lei Rouanet?
Muito mais questões ainda podem ser levantadas pelas suas teses. E
devemos desconfiar, nos dias de hoje, de pensadores políticos que defendem
teses liberais ou socialistas, e que não encararam uma forte revisão de
seus princípios, com base nas ideias de Arendt. Teses aparentemente boas e
viáveis, que podem ter um bom resultado, mas que trazem esse problema da
inscrição da vida na política, e que podem fazer com que continuemos ainda
sob o risco ameaçador do Totalitarismo[21].










Bibliografia

AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua I. Belo
Horizonte: Editora UFMG, 2002.

ARENDT, Hannah. A Condição Humana. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2007.


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[1] Cf. AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua I. Belo
Horizonte: Editora UFMG, 2002, pp. 09.

[2] Idem, pp. 10.

[3] Ver ARENDT, Hannah. A Condição Humana. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2007, cap. II – parte 5: A Polis e a Família. Utilizamos uma
tradução mais antiga, à luz das opções da nova tradução.

[4] Ver em AGAMBEN, G. Ibidem, pp. 11: "(...) Hannah Arendt havia
analisado, em The Human Condition, o processo que leva o homo laborans e,
com este, a vida biológica como tal, a ocupar progressivamente o centro da
cena política do moderno. Era justamente a este primado da vida natural
sobre a ação política que Arendt fazia, aliás, remontar a transformação e a
decadência do espaço público na sociedade moderna."

[5] "Por milênios, o homem permaneceu o que era para Aristóteles: um animal
vivente e, além disso capaz de existência política; o homem moderno é um
animal em cuja política está em questão a sua vida de ser vivente."
(Foucault, apud. AGAMBEN, G., Ibid.)
[6] Em AGAMBEN, G. Ibid., pp. 16, "O estado de exceção, no qual a vida nua
era, ao mesmo tempo, excluída e capturada pelo ordenamento, constituía, na
verdade, em seu apartamento, o fundamento oculto sobre o qual repousava o
inteiro sistema político; (...)".

[7] Colocaremos essa questão de modo mais claro na segunda parte do
trabalho.
[8] Ver ARENDT, H. Idem, pp. 37. Ver também os três primeiros parágrafos da
parte 4, pp. 31-32.

[9] Ver ARENDT, H. Ibidem, pp. 32-33.

[10] Ver ARENDT, H. Ibid., pp. 37.

[11] Devido ao fato novo da ascensão do social, como em ARENDT, H. Ibid.,
pp. 37.
[12] Ver ARENDT, H. Ibid., pp. 42.
[13] Entre vida e política, mais precisamente.

[14] Em AGAMBEN, G. Ibid., "Uma obscura figura do direito romano arcaico,
na qual a vida humana é incluída no ordenamento unicamente sob a forma de
sua exclusão (ou seja, de sua absoluta matabilidade), ofereceu assim a
chave graças à qual não apenas os textos sacros da soberania, porém, mais
em geral, os próprios códices do poder político podem revelar os seus
arcanos."

[15] "O primeiro registro da vida nua como novo sujeito político já está
implícito no documento que é unanimemente colocado à base da democracia
moderna: o writ de Habeas corpus de 1679. Em AGAMBEN, G. Ibid.

[16] Em AGAMBEN, G. Ibid. "Um simples exame do texto da declaração de 1789
mostra, de fato, que é justamente a vida nua natural, ou seja, o puro fato
do nascimento, a apresentar-se aqui como fonte e portador do direito."

[17] Em AGAMBEN, G. Ibid. "Não é possível compreender o desenvolvimento e a
vocação 'nacional' e biopolítica do Estado moderno nos séculos XIX e XX, se
esquecemos que em seu fundamento não está o homem como sujeito político
livre e consciente, mas, antes de tudo, a sua vida nua, o simples
nascimento que, na passagem do súdito ao cidadão, é investido como tal pelo
princípio de soberania."

[18] "Quem entrava no campo movia-se em uma zona de indistinção entre
externo e interno, exceção e regra, lícito e ilícito, na qual os próprios
conceitos de direito subjetivo e de proteção jurídica não faziam mais
sentido; (...). Na medida em que os seus habitantes foram despojados de
todo estatuto político e reduzidos integralmente a vida nua, o campo é
também o mais absoluto espaço biopolítico que jamais tenha sido realizado,
no qual o poder não tem diante de si senão a pura vida sem qualquer
mediação. Por isso o campo é o próprio paradigma do espaço político no
ponto em que a política torna-se biopolítica e o homo sacer se confunde
virtualmente com o cidadão." Em AGAMBEN, G. Ibid., pp. 177-178.

[19] "O texto do decreto que, do ponto de vista jurídico, baseava-se
implicitamente no art. 48 da constituição ainda vigente e equivalia, sem
dúvida, a uma proclamação do estado de exceção (...) não continha, porém,
em nenhum ponto a expressão Ausnahmezustand (estado de exceção)", em
AGAMBEN, G. Ibid., pp. 175.

[20] Um bom exemplo atual é a Internet e a tentativa dos governos de vários
Estados de coibir os downloads.
[21] Vale também citar, aqui, Agamben, em AGAMBEN, G. Ibid., "Até que (...)
uma política integralmente nova – ou seja, não mais fundada sobre a
exceptio da vida nua – não se apresente, toda teoria e toda praxe
permanecerão aprisionadas em beco sem saídas, e o 'belo dia' da vida só
obterá cidadania política através do sangue e da morte ou na perfeita
insensatez a que a condena a sociedade do espetáculo.
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