A associação do modo musical com as emoções auxilia a aquisição de percepção harmônica em cegos congênitos e normovisuais. Artigo. 2015

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A associação do modo musical com as emoções auxilia a aquisição de percepção harmônica em cegos congênitos e normovisuais Danilo Ramos [email protected]

Amanda Nicolau [email protected]

Camila Figueiredo [email protected]

Eduardo Mello [email protected]

Jorge Pires [email protected]

Juslei Silva [email protected]

Mariana Abad [email protected] Universidade Federal do Paraná Resumo: O objetivo do presente estudo foi comparar as representações mentais da percepção harmônica entre grupos de cegos e normovisuais. Entende-se por cegos os indivíduos com cegueira congênita ou aqueles que tenham perdido a visão antes dos cinco anos de idade e normovisuais os indivíduos que não apresentam significativa alteração da capacidade funcional da visão. Participaram do estudo 14 cegos e 15 normovisuais não músicos de ambos os sexos com idades entre 14 e 52 anos. Os participantes foram submetidos a um experimento de escuta em que responderam se cada trecho musical apreciado estava no modo maior ou menor. Ao grupo controle não foi dada nenhuma instrução para a realização do teste, enquanto que o grupo experimental recebeu uma estratégia cognitiva que relacionava o modo à emoção (modo maior, alegria e modo menor, tristeza). Todos os participantes escutaram 16 trechos musicais com aproximadamente 20 segundos de duração, apresentados aleatoriamente em três versões: somente melodia (M), melodia e harmonia (MH) e somente harmonia (H), configurando-se 48 trechos musicais. O design experimental utilizado foi 3 condições dos trechos musicais (M, MH e H) x 2 estratégias cognitivas (controle versus experimental) x 2 grupos (cegos e normovisuais). O teste estatístico ANOVA indicou um aumento no índice de respostas corretas na tarefa requisitada no grupo dos normovisuais a partir da estratégia cognitiva fornecida. Neste sentido, os resultados sugerem que a relação entre emoção e modo ocorre de forma diferente entre indivíduos cegos e normovisuais. Palavras-chave: percepção harmônica; cegos; emoções musicais. Musical mode association with emotions helps the acquisition of harmonic perception in congenitally blind and sighted The aim of this study was to compare the mental representations of harmonic perception between blind and sighted individuals. We defined blind as individuals with congenital blindness or those who have lost sight before the age of five and sighted individuals who have no significant change in functional capacity of vision. 14 blind and 15 sighted individuals from both sexes and aged between 14 and 52 years old (all nonmusicians) participated of this experiment. Participants were submitted to a listening experiment in which they should respond if each piece of music appreciated was in major or minor mode. The control group did not receive any instructions to the test, while the experimental group received a cognitive strategy that related the mode to emotion (major mode to happiness and minor mode to sadness). All participants listened to 16 musical excerpts with approximately 20 seconds of duration, presented randomly among participants in

three versions: only melody (M), melody and harmony (MH) and only harmony (H). Each excerpt was transported to a minor mode, totalizing 48 excerpts. The experimental design used was 3 x musical excerpt conditions (M, MH and H) x 2 cognitive strategies (control versus experimental) x 2 groups (blind and sighted). The ANOVA indicated an increase of correct answers in the task required the group of sighted from the provided cognitive strategies. In this sense, results suggest that the relation between emotion and mode occurs differently between sighted and blind individuals. Keywords: harmonic perception; blind; musical emotions.

Introdução Os termos representação mental ou representação interna têm sido empregados pelos pesquisadores em psicologia cognitiva da música para descrever os processos psicológicos utilizados pelos músicos em suas performances e em seu aprendizado musical. As representações mentais podem ser definidas como reconstruções internas do mundo exterior, que podem estar relacionadas ao processamento dos parâmetros de estrutura musical, das emoções, das propriedades sinestésicas, entre outros (Lehmann, Sloboda & Woody, 2007). Segundo Parncutt e McPherson (2002), estas imagens mentais do som deveriam ser aprendidas pelo músico antes do treino motor, da leitura ou da escrita musical, configurandose como uma antecipação mental sonora daquilo que deverá ser executado. A representação mental de estruturas harmônicas também têm sido objeto de estudos em cognição musical. Hevner (1935) investigou a relação da qualidade afetiva dos modos maior e menor em música. Os resultados da pesquisa desta autora indicam o modo maior relacionado à alegria e o modo menor à tristeza. Por meio de suas investigações, Dalla Bella, Peretz, Rousseau e Gosselin (2001) comprovaram que adultos e crianças a partir dos seis anos de idade são capazes de utilizar o modo (associado ao andamento musical) para distinguir o que é alegre e triste em música. Com relação a pessoas cegas, estudos sugerem que elas formam imagens mentais em música, sendo o interesse dos pesquisadores dessa população comumente direcionado à duas áreas: neurociência (Gaab, Schulze, Ozdemir & Schlaug, 2006) e educação (Bonilha, 2010). Já a pesquisa sobre emoção em cegos, por sua vez, parece estar mais relacionada à capacidade de produção de expressões faciais por pessoas cegas (Roch-Levecq, 2006) e de reconhecimento de emoções expressadas pela voz (Dyck, Farrugia, Schochet & Holmes-Brown, 2004). No sentido de contribuir para o desenvolvimento de pesquisas envolvendo as representações mentais relacionadas à percepção de emoções em música, o objetivo do presente estudo foi compreender se existem diferenças nas representações mentais da percepção harmônica entre indivíduos que perderam a visão com menos de cinco anos de idade (cegos congênitos) e indivíduos sem alterações significativas na visão (normovisuais).

Metodologia Participantes: 14 cegos congênitos e 15 normovisuais de ambos os sexos, com idades entre 14 e 52 anos (média = 25 anos), sem conhecimento de harmonia musical prévio e sem problemas de audição relatados. O experimento com os participantes cegos congênitos foi realizado no Instituto de Cegos do Paraná e com os normovisuais em locais diversos. Em ambas as situações, o experimento foi feito em salas silenciosas, que não continham nenhum estímulo sonoro que atrapalhasse a sua realização. Equipamentos: um teclado M-Audio ProKeys 88sx, conectado a uma interface digital da marca TC Eletronics Impact Twin, em um CPU Intel Core i5 com o software Nuendo 6 foi utilizado para gravação e edição dos trechos musicais. Para a realização das sessões experimentais foram utilizados um Notebook Dell Inspiron 14, um Notebook Positivo Mobile Z63, um Notebook Asus VivoBook S400CA e fones de ouvido. As respostas dos participantes foram coletadas por meio do programa e-Prime. Na tabulação e análise de dados foram utilizados os softwares Excel e o Statistica, versão 8.0. Questionários complementares foram aplicados por meio da plataforma Google Docs, sendo utilizado o leitor de tela Non Visual Desktop Acess (NVDA) para auxiliar a utilização do equipamento pelos cegos. Caracterização dos trechos musicais: o material musical consistiu em trechos musicais arranjados para piano solo. No pré-teste, 6 fragmentos musicais do repertório popular brasileiro e internacional (três em modo maior e três no modo menor) foram apresentados em três condições diferentes aos participantes: somente melodia (M), somente harmonia (H) e melodia e harmonia (MH), configurando-se um total de 18 trechos musicais (6 trechos x 3 condições). O material musical empregado no teste consistia de 10 trechos musicais (cinco em modo maior e cinco em modo menor) compostos especificamente para este estudo, também apresentados nessas três condições, totalizando 48 trechos musicais (10 trechos x 3 condições). Procedimentos: a tarefa dos participantes consistiu em ouvir um trecho musical e avaliar em qual modo este trecho se encontrava: maior ou menor, procedendo da mesma maneira para todos os outros trechos musicais. Os participantes foram divididos em dois grupos. O grupo controle não recebeu estratégia de representação mental, enquanto que o grupo experimental recebeu a estratégia de associar o modo maior à emoção alegria e o modo menor à emoção tristeza. Na etapa do pré-teste, após julgar a música, o participante recebeu um reforço

positivo (som de aplausos, se acertasse a resposta) ou um reforço negativo (som de vaias, se a errasse). Durante o teste, não havia reforço após o registro da resposta. O material musical foi executado em ordem aleatória entre os participantes. Além disso, os participantes responderam a dois questionários complementares: um antes do experimento, a respeito de seu conhecimento musical prévio e outro após a sua realização, com referência às estratégias mentais empregadas durante a realização do experimento. As sessões experimentais duraram aproximadamente 30 minutos. Análise de dados: o teste ANOVA foi empregado para comparar a porcentagem de acertos das respostas dos participantes, a partir do design experimental 3 condições dos trechos musicais (M, H e MH) x 2 estratégias mentais (controle versus experimental) x 2 grupos (cegos versus normovisuais). O post-hoc Newman Keuls fez uma análise pareada entre os grupos. Foram consideradas diferenças estatísticas significativas quando os valores de p encontrados fossem menores do que 0,05. Resultados A Figura 1 apresenta a média das respostas dos participantes (cegos e normovisuais) em função das estratégias de representação mental recebidas.

Figura 1: valores em porcentagem dos acertos dos participantes em função dos grupos ao qual pertenciam (cegos ou normovisuais) e da estratégia de representação mental empregadas (controle ou experimental).

O teste ANOVA indicou diferenças entre os percentuais de acertos quando comparados os dois grupos de participantes (cegos e normovisuais) em função da estratégia de ensino adotada (F = 4,29; p = 0,04195), indicando que a associação da emoção com o modo musical

aumentou a porcentagem de acertos das respostas dos participantes normovisuais de maneira mais significativa do que a porcentagem de acertos das respostas dos participantes cegos. A Figura 2 apresenta os índices de acertos dos participantes em relação às três condições dos trechos musicais apresentadas (M, H e MH) e as estratégias de aprendizagem empregada pelos participantes.

Figura 2 – Valores em porcentagem dos acertos dos participantes em função da condição dos trechos apresentados e das estratégias de representação mental empregadas.

O teste ANOVA não revelou diferenças estatísticas significantes ao comparar as condições, os grupos, os participantes (cegos e normovisuais) e as estratégias empregadas. Entretanto, os participantes que não receberam as estratégias de associação emocional ao modo musical acertaram menos respostas do que os participantes que receberam estas estratégias nas três condições dos trechos musicais apresentados, independente do grupo ao qual o participante pertencia (cegos ou normovisuais). Além disso, quando as condições dos trechos musicais foram comparadas entre os grupos, a versão H (somente harmonia) recebeu uma porcentagem de acertos significativamente maior do que a versão M (somente melodia) para o grupo de participantes que recebeu a estratégia de associação emocional ao modo musical (p=0,01814), indicando que esta associação foi favorecida de maneira mais decisiva no contexto harmônico do que no contexto melódico do material musical apreciado, independente do grupo ao qual o participante pertencia. Após a análise dos questionários complementares, foi constatado que todos os participantes compreenderam a tarefa requisitada e realizaram o experimento com tranquilidade. Além disso, nenhum deles relatou o reconhecimento prévio dos trechos musicais empregados no estudo. Discussão

O presente estudo teve como objetivo compreender as estratégias de representações mentais da percepção harmônica empregadas por pessoas cegas e normovisuais, a partir da aplicação de um experimento que relacionava trechos musicais apresentados nos modos maior e menor às emoções alegria e tristeza, respectivamente. Os resultados mostraram que a estratégia de ensino da associação do modo musical com as emoções musicais aumentou a taxa de acerto dos participantes normovisuais. Com relação aos dados obtidos nos questionários complementares, os participantes normovisuais do grupo experimental apresentaram relatos da utilização da estratégia sugerida para a identificação do modo não somente com as emoções, mas também a partir da associação com alturas (sendo o som agudo associado ao modo maior e o som grave associado ao modo menor). Esta associação também ocorreu nos participantes normovisuais do grupo controle (que não recebiam estas estratégias). Este dado sugere que a associação das emoções musicais com o modo, a altura e outros parâmetros de estrutura musical parece ser um processo psicológico comum durante a escuta musical, conforme apontam Dalla Bella et al (2001), Ramos, Bueno e Bigand (2011), Juslin (2013) entre outros. No que concerne às condições de trechos musicais apresentadas aos participantes (somente melodia, somente harmonia e melodias harmonizadas), os dados deste estudo corroboram, em parte, os dados obtidos por Websteir e Weir (2005). Estes autores relatam em seu estudo que a percepção das emoções musicais é facilitada quando as melodias apresentadas aos ouvintes são harmonizadas em relação a melodias não harmonizadas. No presente estudo, apesar de a versão H (somente harmonia) ter obtido índices de acerto similar à versão melodia e harmonia (MH) para ambos os grupos, estes foram maiores do que os da versão somente melodia (M), principalmente para o grupo de participantes normovisuais na condição experimental, indicando que a presença de um contexto musical harmônico influenciou significativamente a melhora no desempenho da tarefa. Estes resultados levantam a hipótese de que a presença de trechos musicais com componentes harmônicos parece ser mais adequada de que os meramente melódicos em estudos sobre respostas emocionais à música. A respeito da comparação que originou o objetivo do presente estudo (percepção harmônica entre cegos e normovisuais por meio de associações emocionais), os dados obtidos ilustram que há, de fato, uma diferença significativa na representação mental do modo musical entre pessoas cegas e normovisuais. Desta forma, acredita-se que a hipótese central da presente pesquisa foi confirmada.

Sobre normovisuais, a pesquisa de Juslin (2013) sugere a existência de três camadas distintas de percepção musical para a expressão das emoções musicais. Segundo o autor, cada camada corresponderia a um tipo específico de codificação do significado emocional. A camada núcleo seria constituída por emoções básicas (alegria, tristeza, raiva, medo e serenidade) que são do tipo icônicas. Estas emoções dependem menos do contexto social, ou de interpretações individuais, para sua comunicação. Enquanto em camadas adicionais de expressão, emoções mais complexas dependem de códigos intrínsecos e/ou associativos para seu processamento. Visto que o presente estudo lida com duas das emoções básicas e os indivíduos investigados pertencerem a uma cultura ocidental, a camada de percepção musical empregada pareceu ser meramente do tipo icônica. Neste sentido, as camadas adicionais que permitem aos ouvintes perceber emoções musicais mais complexas parecem não terem sido ativadas pelos ouvintes do presente estudo, associando as emoções musicas da mesma maneira. Acredita-se que este processamento icônico das emoções musicais possa ter facilitado o aprendizado da tarefa dos ouvintes e, assim, melhorado o seu desempenho. Com relação às pessoas cegas, pesquisas como a de Roch-Leveqc (2006) recorrem à teoria da mente, que investiga a capacidade do ser humano de compreender e prever os estados mentais (emoções, sentimentos e intenções) dos outros e de si mesmo para justificar os déficits na capacidade de leitura da mente observados em pessoas com deficiência. No caso da deficiência visual, estes déficits são mais atribuídos à falta de acesso a pistas não-verbais (fundamentais na comunicação interpessoal) do que à linguagem ou ao acesso superficial à conversação, aos quais estão associados os déficits de surdos e pessoas com deficiência auditiva. Logo, ainda que não existam atrasos na aquisição da linguagem ou falta de experiências interativas, as impossibilidades visuais da pessoa cega fazem com que ela perca informações sobre as direções da atenção e emoções da pessoa com quem dialoga. No presente estudo, esse fato foi verificado na análise dos relatos obtidos dos questionários aplicados no experimento, em que mesmo os participantes cegos que receberam a estratégia de ensino por associação às emoções optaram por outras estratégias para a identificação do modo nos trechos musicais. Pode-se inferir, portanto, que no presente estudo, as representações mentais da percepção harmônica em pessoas cegas foram prejudicadas pelas consequências da ausência da visão. Resultados similares foram encontrados pela pesquisa de Minter et al. (1991), em que crianças com cegueira congênita foram menos capazes de reconhecer e entender vocalizações de emoções do que crianças normovisuais. Referências

Bonilha, F. F. G. (2010). Do toque ao som: o ensino da musicografia braille como um caminho para a educação musical inclusiva. Tese de Doutorado, Instituto de Artes, Universidade Estadual de Campinas. Dalla Bella, S. D., Peretz, I., Rousseau, L. & Gosselin, N. (2001). A development study of the affective value of tempo and mode in music. Cognition, 80, B1-B10. Dyck, M.J., Farrugia, C., Schochet, M. & Holmes-Brown, M. (2004). Emotion recognition/understanding ability in hearing or vision-impaired children: do sounds, sights, or words make the difference? Journal of Child Psychology and Psychiatry, 45(4), 789-800. Gaab, N., Schulze, K., Ozdemir, E. & Schlaug, G. (2006). Neural correlates of absolute pitch differ between blind and sighted musicians. NeuroReport, 17 (18), 1853-1857. Hevner, K. (1935). The affective character of the major and minor modes in music. The American Journal of Psychology, 47 (1), 103-118. Juslin, P. N. (2013). What does music express? Basic emotions and beyond. Frontiers in Psychology, 4 (596), 1-14. Juslin, P. N., & Laukka, P. (2004).Expression, perception, and induction of musical emotions: a review and a questionnaire study of everyday listening. Journal of New Music Research, 33, 217-238. Lehmann, A. C., Sloboda, J. A. & Woody, R. H. (Ed). (2007). Psychology for musicians. Understanding and acquiring the skills. New York: Oxford University Press. Minter, M. E., Hobson, R. P. & Pring, L. (1991). Recognition of vocally expressed emotion by congenitally blind children. Journal of Visual Impairment & Blindness, 85 (10), 411415. Parncutt, R., & McPherson, G. E. (Ed.). (2002). The science & psychology of music performance: creative strategies for teaching and learning. New York: Oxford University Press. Ramos, D., Bueno, J. L. O., & Bigand, E. (2011). Manipulating Greek musical modes and tempo affects perceived musical emotion in musicians and nonmusicians. Brazilian Journal of Medical and Biological Research,44(2), 165-172. Roch-Leveqc, A. C. (2006). Production of basic emotions by children with congenital blindness: evidence for the embodiment of theory of mind. British Journal of Developmental Psychology, 24 (3), 507-528. Webster, G. D., & Weir, C. G. (2005). Emotional responses to music: interactive effects of mode, texture, and tempo. Motivation and Emotion, 29 (1), 19-39.

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