A ATUAÇÃO POLÍTICA E O SILÊNCIO FILOSÓFICO NAS SOCIEDADES OCIDENTAIS

July 7, 2017 | Autor: Phablo Freire | Categoria: Ciência Política, Democracia, Interdisciplinaridade, Estado, Filosofia Política
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A ATUAÇÃO POLÍTICA E O SILÊNCIO FILOSÓFICO NAS SOCIEDADES OCIDENTAIS

Zélia Ramos1 Phablo Freire2

Resumo: O pensamento politico ocidental tem sua origem no exercício filosófico grego na antiguidade clássica, quando se pensou o homem como centro do interesse reflexivo, afastando o aspecto religioso do cerne investigativo, dispensando-se a ênfase na averiguação das relações humanas em sentido coletivo. Já nos três grandes pilares da filosofia grega Sócrates, Platão e Aristóteles -, é possível vislumbrar o interesse filosófico no estabelecimento da ordem nos agrupamentos sociais, perpassando o controle das instituições, tendo como fim a harmonização do homem em sociedade. Embora tenha a ciência política surgido essencialmente no berço filosófico, maturou-se em suas estruturas, alcançando a autonomia inerente às ciências sociais, estabelecendo certo distanciamento entre a prática e a essência filosófica que lhe deu origem. Posta esta autonomia, adquire a ciência política método próprio e independente. Percebe-se atualmente, todavia, uma pungente necessidade da mensuração de outras facetas do conhecimento político, o que instiga a investigação cientifica interdisciplinar, sugerindo, por exemplo, a incidência do método filosófico sobre questões originariamente políticas, tendo em vista uma análise crítica mais eficaz acerca de seus efeitos na sociedade para qual se destina. Vislumbra-se assim, atualmente, grande distanciamento entre a prática filosófica e a ciência política, dado o exercício mecanizado de modelos predeterminados, voltados à manutenção dos sistemas políticos. Perceptível também é a ignorância em que se é mantida parte da população em relação aos mecanismos que constituem a própria atuação política. Isto posto, esboça-se neste artigo a necessária relação de proximidade e evidente distanciamento que ora apresenta tal dicotomia, passando pela origem da filosofia política, sua evolução como ciência, concluindo com a premente interdisciplinaridade que pode prover esta releitura da prática politica de modo a promover a participação de todo o corpo social para o qual se destina o produto desta ciência. Expõem-se os conceitos elementares pertinentes ao tema, de modo a elucidar o propósito precípuo da atuação governamental com vistas ao bem comum, tendo esta interação popular como elemento indissociável da própria pratica política, participação esta que somente se manifesta por meio da contínua maturação intelectual. Para a produção deste artigo, utilizou-se o método de pesquisa bibliográfico para apresentação de conceitos dos vários elementos que compõem o arcabouço sobre o qual se funda o tema abordado, através de livros e artigos que tangenciam o assunto, buscando em seu conteúdo elucidar as razões pelas quais permaneceu silente a voz da filosofia frente à atual prática política que mantém distante e em preocupante estado de ignorância grande parcela da sociedade. Palavras-chave: Filosofia, Ciência Política, Filosofia Política, Interdisciplinaridade, Democracia, Estado. 1

Graduada em Administração pela Faculdade de Ciências Aplicadas e Sociais de Petrolina - FACAPE, Mestrado em Ciências da Educação pelo Instituto Internacional Universitário do Brasil e com Doutorado em andamento pelo Programa de Doutoramento em Filosofia da Universidade de Évora- Portugal. Contato: [email protected] 2 Acadêmico do Curso de Direito, pela Faculdade de Ciências Aplicadas e Sociais de Petrolina – FACAPE. Contato: [email protected]

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THE POLICY ACTION AND THE PHILOSOPHICAL SILENCE IN WESTERN SOCIETIES Abstract: The Western political thought has its origin in the Greek philosophical exercise in classical antiquity , when it was thought the man as the center of the reflective interest away the religious aspect of the investigative heartwood, dismissing emphasis on investigating human relations in a collective sense. Have the three great pillars of Greek Philosophy: Socrates, Plato and Aristotle, it is possible to discern the philosophical interest in the establishment of order in social groupings, passing control the institutions, which aim at harmonization of man in society. Although the political science emerged mainly in the philosophical crib, matured in its structures, increasing the autonomy inherent in the social sciences, establishing a certain gap between the practical and philosophical essence that gave rise to it. Post this autonomy acquires science policy itself and independent method, however, one realizes currently a poignant need for measurement of other facets of political knowledge, which instigates interdisciplinary scientific research, suggesting, for example, the incidence of philosophical method on originally policy issues with a view to more effectively about its effects on society which is intended for critical analysis. Glimpsed thus currently large gap between philosophical practice and political science, given the mechanized exercise of predetermined models, geared to the maintenance of political systems. Also noticeable is that the ignorance of the population is maintained in relation to mechanisms which are the very politically active. That said, this article will outline the necessary relationship of proximity and apparent detachment that sometimes presents this dichotomy, through the origin of political philosophy, its evolution as science, concluding with the pressing interdisciplinarity that can provide this retelling of political practice in order to promote the participation of the whole social body to which the product is intended this science . Expose the basic concepts relevant to the topic, in order to elucidate the preciput purpose of government action with a view to the common good, and this popular interaction as an integral element of political practice itself, this participation that only manifests itself through continuous intellectual maturation. In producing this article we used the method of literature research for presentation of concepts of the various elements that make up the framework on which the topic addressed is founded, through books and articles that are tangent subject, searching for their content elucidate the reasons which remained silent the voice of philosophy against current policy practice that keeps distant and disturbing state of ignorance, a large portion of society. Keywords: Philosophy, Politics, Political Philosophy, Interdisciplinary, Democracy, State.

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1 INTRODUÇÃO

As primeiras ideias acerca da política, enquanto arte da organização social, remontam à Grécia Antiga e estão arraigadas profundamente na produção filosófica deste período. Surge então o termo politiké3, utilizado por pensadores como Platão e Aristóteles quando tratavam, por exemplo, de questões pertinentes ao modo pelo qual se deveria organizar os aspectos da vida social na polis.

Nas cidades gregas, emerge a filosofia dentro do contexto democrático que possibilita o debate sobre diversos temas que circundavam o homem e sua condição enquanto ser social. Não por acaso afirma Aristóteles ser o homem um animal político, quando em sua obra “Política” trata o tema da organização da Polis e a condição do homem enquanto ser coletivo. Um dos traços marcantes do pensamento grego deste período é a indissociabilidade entre ética e política. Barker (1978), ao analisar o pensamento de Platão e Aristóteles, chega a afirmar que a causa desta íntima relação é a perspectiva do homem como ser ao mesmo tempo individual e coletivo, tornando-se diferente de todos os demais, dada a sua individualidade. Todavia, em razão de sua condição coletiva, sua zoon politikon4, passa sua existência a estar condicionada ao vínculo social para que possa se desenvolver e ser compreendido.

Jean-Pierre Vernant (2006) assevera ser a filosofia filha da cidade e, neste mesmo contexto, passa a política a ser fruto direto do pensamento filosófico grego, restando seu conceito intimamente ligado à ética 5. Política e ética estão, assim, desde seus primórdios, associadas aos desdobramentos da própria reflexão sobre o homem e sua condição, sendo igualmente necessárias para a compreensão deste fenômeno que é a vida em sociedade, pensamentos 3

Utilizado amplamente para tratar de questões voltadas à política como um todo. Expressão Grega para definir o homem como animal político, aquele que não sobrevive fora da vida em sociedade. 5 Pensadores, como Barker e o próprio Aristóteles, comentam esta indissociabilidade entre política e ética, em razão da condição também dual do homem, pois enquanto o homem deve ser visto como ser individual e coletivo, deve haver a ética e a política para nortear suas condutas, sendo a ética a doutrina moral individual, enquanto a política passa a ser a doutrina moral social. 4

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estes rapidamente perceptíveis quando da leitura tanto da “República” de Platão quanto da ”Política” de Aristóteles.

Portanto, para entender política, partindo da concepção original do termo e de sua aplicação, faz-se necessário o conhecimento tanto de seu conceito original quanto da forma atual como ela se manifesta. Para tal é preciso apreender conceitos, tanto de ética quanto de filosofia, e, imprescindivelmente, a relação entre estas. Johannes Hassen (2000), em seu livro “Teoria do Conhecimento”, dedica-se a construir um conceito mais atual e amplo do que vem a ser filosofia, concluindo o autor ser ela a “tentativa do espirito humano de atingir uma visão do mundo, mediante a auto-reflexão sobre suas funções valorativas, teóricas e práticas”. Além disso, importante se faz buscar o mínimo possível do processo histórico que conduziu aos atuais modos da organização social ocidental, de forma a articular as definições contemporâneas da teoria política, o conceito próprio da filosofia e as ideias de ética e moralidade, numa busca das razões pelas quais hoje a política encontra-se deveras distante da reflexão crítica e do aperfeiçoamento que esta possibilita.

O presente artigo intenta apresentar um breve levantamento histórico acerca deste processo evolutivo do conceito de política, para tornar possível a compreensão do atual modelo político ocidental, de modo a possibilitar um diálogo sobre o distanciamento da população do processo de produção e materialização política, bem como do indisfarçável silêncio filosófico de toda a coletividade acerca da funcionalidade das estruturas do Estado na implementação desta mesma proposta organizacional.

2 A TEORIA POLÍTICA GREGA E O AVANÇO OCIDENTAL

2.1 A TEORIA POLÍTICA PLATÔNICA E ARISTOTÉLICA

Torna-se imprescindível ao estudo do tema político o início da investigação a partir das produções gregas, uma vez que é exatamente nesta civilização que se visualiza o berço cultural, tanto da filosofia quanto da própria teoria política, presentes nas produções de filósofos como Platão e Aristóteles. 4

Inicialmente utilizado para significar o “agir na polis”, o termo politiké é visto em Platão como algo que poderia ir muito além das simples relações de conflito e cooperação, decorrentes da vida em sociedade, embora não houvesse até então um conhecimento teórico inerente à atuação política. Pretendia o aludido filósofo estabelecer uma ordem, pela via racional, para estas relações sociais preexistentes ao seu pensamento, de modo a construir um modelo operacional para a sociedade. Em sua obra “República”, Platão estabelece um fim para a prática política: a justiça social. Para ele o governo ideal seria aquele que perseguisse e manifestasse a justiça e, por esta razão, sua teoria se propõe a discorrer sobre este modelo organizacional, mencionando inclusive que seria o governo um mal necessário, uma ordem da qual carecia a cidade, ordem esta a ser exercida pelos filósofos e reis 6, sendo estes os únicos aptos ao exercício da política, como se percebe no trecho de sua obra: [...]então para que esse homem seja governado por uma autoridade semelhante à que governa o melhor que dizemos que deve ser escravo do melhor, em quem predomina o elemento divino, não porque pensemos que essa escravidão deva resultar em seu prejuízo [...] mas porque não há nada mais vantajoso para cada indivíduo do que ser governado por um mestre divino e sábio, quer habite dentro de nós mesmos, o que seria o melhor, quer nos governe de fora, a fim de que, sujeitos ao mesmo regime, nos tornemos todos, tanto quanto possível, semelhantes uns aos outros e amigos. (PLATÃO, República; p.375-376)

Para Platão é evidente que não são todos os integrantes da sociedade “homens de bem” e portanto haveria que se estabelecer uma ordem, um regramento a ser seguido por todos a que se proporciona um esperado equilíbrio: a justiça.

É preciso ainda mencionar que a justiça em Platão era mais que a mera imposição de leis pela força que dispunha o governante para um apaziguamento social. “República” é uma tentativa do filósofo de expor sua perspectiva acerca do tema, sua defesa pelo necessário desenvolvimento de uma nova ética para a então sociedade grega que padecia, assim como a atual, da corrupção e descredibilidade dos governantes. Platão defendia um agir racional, onde a atuação política deveria estar diretamente ligada a uma ética pré-definida. 6

Para Platão, os Filósofos deveriam ser reis e os Reis, por sua vez, deveriam exercitar a filosofia para o melhor governo.

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Mais adiante, em Aristóteles, a teoria política platônica encontra suas primeiras críticas, quando este aponta na obra de Platão a ausência da evidenciação do interesse comum como fundamento de todas as comunidades. Para Aristóteles, a cidade era bem mais que apenas um aglomerado de pessoas, no intuito de trocar bens e serviços que carecia de uma ordem. Para este pensador a cidade era uma comunidade política que visava um bem específico, havendo no homem uma necessidade de socialização que precedia à econômica:

[...] o homem é por natureza um animal social; por isso, mesmo que os homens não necessitem de assistência mútua, ainda assim eles desejam viver juntos. Ao mesmo tempo eles são levados a reunir-se por interesses comuns, na medida em que cada um deles pode participar de uma vida melhor. É este, então, o principal objetivo de todos e de cada um em separado na vida comunitária. (ARISTÓTELES, Política III, 4, 1278b.)

Para o filósofo, era notório a existência de interesses de cunho econômico, vislumbrados na troca de serviços e produtos, mas, para além destes, teria o homem um interesse maior, imediato: a justiça. Porém não aquela oferecida pelo governante, mas outra, construída por todos os integrantes deste corpo social.

Defendia Aristóteles que a política deveria ser compreendida como uma ciência prática, a ser utilizada pelo Estado para proporcionar aos seus integrantes a justiça esperada, que se materializaria por meio do alcance do bem comum: a felicidade. Para ele todos os que se submetiam à vida em sociedade buscavam esta felicidade que somente se daria coletivamente, por meio do implemento de todas as potencialidades individuais. Portanto deveria o Estado estar comprometido com o exercício de uma política que, relacionada diretamente com a moral, pudesse elevar o animal político ao alcance da felicidade e da virtude 7.

Assim, quando trata de sua teoria política, Aristóteles expressa com clareza uma necessária relação entre o agir na polis e a ética ligada à vida cotidiana, ética esta que não haveria de transcender as atitudes dos cidadãos, como propunha Platão, e sim uma estritamente voltada à 7

Aristóteles defende em sua obra “Política” que apenas a polis virtuosa poderia instigar os cidadãos ao amadurecimento de suas potencialidades, sendo a virtude uma das mais importantes dentre várias. Seria então esta virtude a disposição de caráter e tendência moderada a alcançar a justa medida. Sendo tarefa precípua deste Estado, por meio da política e da ética, orientar e prover os meios para que todos os cidadãos pudessem adquirir a habilidade para deliberar sobre o bom e o mau acerca de todas as coisas.

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análise dos atos despendidos nas interrelações que se observavam na cidade, sem contudo afastar a análise da compreensão acerca do próprio ser individual. Dai a dicotomia traçada por Platão e reforçada em Aristóteles entre ética, enquanto doutrina moral individual, e política, como doutrina moral coletiva, quando este defende que apenas o homem de phronesis8 deveria habitar a polis ideal.

2.2 TEORIA POLÍTICA MEDIEVAL E MODERNA

O longo período denominado como Idade Média foi marcado por uma teoria política predominantemente teológica, onde a finalidade da vontade superior sobrepunha-se à virtude humana, como antes o fora na antiguidade grega. Este período é marcado pela ausência de autonomia entre política e religião, forjando o caráter teocrático no governo implementado, valendo-se a Igreja, grande detentora do poderio governamental, de força e violência para a imposição de seu método organizacional, como bem aponta Senellart (2006): “(...) a igreja, não podendo abster-se da coerção, adaptou-se aos poucos às regras éticas do governo, quase sacerdotilização da espada, na falta de poder desarmar o sacerdócio”(sic). Como é sabido, este período histórico possui uma peculiar teoria política, voltada mais para a expressão dogmática do que para uma produção científica propriamente, o que se mostra distante do cerne desta produção. Por isto mesmo, faz-se necessário avançar para o período histórico superveniente e os acréscimos dele oriundos.

Ao tempo em que decai o império religioso da idade média, ergue-se o governo dos reis, onde as teorias políticas propostas passam a migrar da esfera religiosa novamente para o interesse dos homens enquanto seres sociais. Assim, no período de transição que seguiu a Idade Média, tem-se parte da teoria política voltada a abandonar a dicotomia político-religiosa, numa retomada dos conceitos clássicos da política como meio pelo qual é alcançada a virtude dos homens em sociedade.

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Termo para designar aquele que prudentemente pensa e sente a realidade política.

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É neste contexto histórico de ascensão dos reis que a teoria política recebe grande importância ao funcionar como conselho útil aos reis para a implementação e manutenção de seus governos neste novo período que então se deflagrava, o início da era moderna.

Desse período de transição, três autores merecem destaque no estudo das teorias políticas adotadas no ocidente9, dada a sua importância para o fortalecimento dos soberanos e, consequentemente, a construção das bases para o liberalismo. São eles: Maquiavel, Hobbes e Kant. Comumente apontado como fundador do pensamento político moderno 10, Maquiavel, além de influente pensador, foi historiador, poeta, diplomata e músico italiano do Renascimento. Em sua principal obra, “O Principe”11, o filósofo descreve como principal objeto da teoria política o conselho prático destinado ao soberano para a manutenção do poder, algo bastante específico sobre como o soberano deve manter o exercício de seu poder, não apenas em conteúdo, mas claramente segundo o teor do texto.

Sobre esta figura do soberano, defendida em Maquiavel, não deveria pairar julgamentos acerca do certo ou errado no tocante as suas ações, uma vez que quaisquer que fossem as situações em que se encontrasse o soberano, deveria ele agir de modo a proteger as estruturas desse Estado que se materializava por meio de seu poder. Não haveria de sujeitar-se o príncipe a qualquer julgamento de certo ou errado, dado os meios por ele adotados, pois estaria acima de quaisquer valorações12, por ser efetivamente o objeto dessa teoria política a preservação do poder do soberano.

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Obviamente diversos outros autores poderiam ser aqui listados, dada a importância de suas obras e contribuição para o estudo político, todavia o que aqui se propõe é tão somente um recorte da produção de alguns pensadores que, em conformidade com a temática selecionada, apresentam mais coesa relação. 10 Embora recorrentemente tratado como autor moderno, Maquiavel é considerado por alguns autores, como Michel Senellart e Maurizio Ricciardi e outros, como pertencente ao período de transição entre a idade média e a era moderna, sendo então Nicolau Maquiavel não compreendido apenas como “moderno”. 11 Escrito e dedicado especificamente a Lourenço II de Médici, teve “O Principe” sua primeira edição póstuma, em 1532. Considerado como um dos tratados políticos mais importantes jamais produzido, teve papel crucial na construção do conceito de Estado como modernamente é admitido. 12 Caberia neste momento certa reflexão sobre o teor de relativismo moral que possui a obra de Maquiavel, todavia serão tratadas mais adiante as questões pertinentes a relativismo e universalismo moral na atuação política, portanto no momento oportuno estes temas serão abordados.

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Diferentemente da visão Platônica e Aristotélica, onde o objeto da teoria política era, respectivamente, a justiça e a promoção da felicidade e virtude, em Maquiavel é proposto um outro foco, voltado especificamente à gestão, ou como melhor se pode colocar, ao gestor em si mesmo, de modo que a preservação do poder é de per se o conteúdo essencial desta teoria política13. O que fora considerado como “poder” em Maquiavel, passa a ser “poder legítimo” em Hobbes, que defende o mesmo fim pretendido em “O príncipe”: a preservação do Estado. Porém diferente do autor anteriormente citado, preocupa-se Hobbes com a legitimidade deste poder exercido pelo Rei. Os discursos sobre o direito, sua constituição e alteração são recorrentes em “Leviatã”, uma de suas obras mais importantes e que revela os contornos de sua teoria política, que se dedica aos meios pelos quais estaria o soberano respaldado em suas ações, não pela força ou coerção, mas antes pelo direito instituído, onde a soberania funda-se na necessidade do povo por unidade, organicidade e proteção, como percebe-se do fragmento a seguir: O motivo que leva os seres humanos a criar os Estados é o desejo de abandonar essa miserável condição de guerra que […] [surge] quando não existe poder visível que os controle […]. O único caminho para criar semelhante poder comum, capaz de defendê-los contra a invasão dos estrangeiros […], assegurando-lhes de tal modo que por sua própria atividade e pelos frutos da terra poderão alimentar-se a si mesmos e viver satisfeitos, é conferir todo o seu poder e fortaleza a um homem ou a uma assembléia de homens […] que representem sua personalidade […]. Isso é algo mais que consentimento ou concórdia; é uma unidade real de tudo isso em uma e mesma pessoa, instruída por pacto de cada homem com os demais […]. Feito isso, a multidão assim unida em uma pessoa se denomina Estado. (HOBBES, 1999; p.109)

Em Hobbes o conselho para o soberano não poderia ser tão somente de ordem prática14, como o era em Maquiavel, voltado à preservação de seu poderio, e sim, eivado de uma legitimidade que o protegesse de quaisquer insurgências populares:

Aquele que é portador dessa pessoa se chama soberano, e dele se diz que possui poder soberano. Todos os restantes são súditos. Este poder soberano pode ser 13

Teoria Política esta que reflete facilmente a forma de governo adotada pelos regimes absolutistas na Europa Moderna. 14 Dada a profunda racionalização proposta por Hobbes em sua teoria política, é este autor admitido como fundador da ciência política.

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adquirido de duas maneiras. Uma delas é a força natural [...] a outra é quando os homens concordam entre si em submeterem-se a um homem, ou a uma assembleia de homens, voluntariamente, com a esperança de serem protegidos por ele contra todos os outros. Este último pode ser chamado um Estado Político. (HOBBES, 1999; p.110)

Já em “Leviatã” percebe-se uma nítida distinção entre as ações públicas e privadas, o que se configura como contribuição bastante peculiar. Para Hobbes, as ações do soberano eram sempre voltadas a alcançar o bem público 15, sendo somente estas consideradas ações políticas. Deste modo, todos os demais particulares estariam sempre agindo na esfera privada, não podendo estas ser confundidas, segundo o autor, com atos políticos, devendo ser interpretados, consequentemente, como menos relevantes para todo o corpo social, por serem desprovidos de teor político. Pode-se assim concluir que, para a teoria política de Hobbes, havia nítida definição sobre quem estaria apto para exercer a política, determinando-se, neste ponto, um distanciamento entre todo o povo e os assuntos pertinentes ao exercício do gerenciamento social, reservando-se apenas ao soberano estas atribuições.

O processo deflagrado em Hobbes de racionalização do poder, numa teoria política que legitima a ação do soberano, encontra sua máxima expressão em Kant. Sua produção é tão profundamente marcada pela questão da legitimidade que, para alguns estudiosos, nem haveria que se falar em teoria política produzida pelo autor, dado o alto teor jurídico de sua obra. Por isto mesmo é considerada por alguns como teoria jurídica e não política.

Partindo de suas concepções morais, Kant estabelece um arcabouço jurídico prévio ao soberano, que possa lhe servir de orientação para sua atuação. Deste modo, deve, segundo o autor, agir o líder guiado pela razão prática do Estado, presente nestes tratados políticos de caráter precipuamente jurídicos. Assim como Hobbes, Immanuel Kant defende estar a legitimidade do governante fundada neste acordo entre todos os homens, em prol de um bem maior, que para ele é a paz que se pretende alcançar, evitando-se a guerra entre os homens, que segundo ele é o estado inevitável da natureza humana: 15

É importante destacar que em Hobbes o Bem público, não se confunde com o bem defendido por Aristóteles qual era a promoção da virtude de todos os homens e o alcance da felicidade. Embora haja certa controvérsia por parte dos estudiosos da obra de Thomas Hobbes, é defendido por esmagadora maioria que o bem público que defendia o autor era a própria conservação do Estado, que por sua vez confundia-se com o exercício do poder do soberano, distinguindo-se assim de Maquiavel e outros autores, tão somente pela preocupação com a legitimidade jurídica destas ações.

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O estado de paz entre os homens que vivem juntos não é um estado de natureza (status naturalis), o qual é antes um estado de guerra, isto é, um estado em que, embora não exista sempre uma explosão das hostilidades, há sempre todavia uma ameaça constante. Deve, pois, instaurar-se o estado de paz; a omissão de hostilidades não é ainda a garantia de paz e, se um vizinho não proporcionar segurança a outro (o que só pode acontecer num estado legal), cada um pode considerar como inimigo a quem lhe exigiu tal segurança. (KANT, 1990; p.10)

Isto posto, elucida-se a posição de Kant na defesa pela legitimidade do Soberano quando de suas ações, pois estaria ele também sujeito ao império das leis, todavia diferentemente dos demais súditos.

Assim como Maquiavel e divergindo de Hobbes, Kant defende a impunibilidade do Soberano que, eventualmente incorrendo em erro, não deve ser punido, dada sua posição como líder maior, tendo em vista a preservação do próprio Estado, e indo o autor ainda mais adiante, defende a inimputabilidade deste, ou seja, a impossibilidade de responsabilização do soberano por quaisquer atos danosos, por considerá-lo como fonte própria do direito.

Divergindo em determinados pontos e convergindo em outros tantos, Maquiavel, Hobbes e Kant lançam as bases para as teorias políticas que irão se desenvolver e nortear os rumos da atuação política moderna no ocidente e, ao que se segue, sua aplicabilidade no período conhecido como absolutista e mais adiante na ascensão burguesa ao poder por meio do liberalismo.

2.3 TEORIA POLÍTICA DE NORBERTO BOBBIO E DEMOCRACIA

Considerado um dos mais relevantes filósofos políticos contemporâneos, Noberto Bobbio, falecido em janeiro de 2004, contribuiu amplamente para a ciência politica por meio de sua extensa obra.

Defensor da figura do Estado e de sua legitimidade para atuação na busca do bem público, aproxima-se dos autores até aqui citados, quando defende ser efetivamente este acordo coletivo um mal necessário, dada a impossibilidade de convívio voluntário harmônico entre os 11

homens, todavia sua teoria política em muito se distancia de parcela dos autores modernos, vez que traça uma acentuada crítica às falhas dos mecanismos políticos ocidentais que pouco interesse demonstram no atendimento das demandas sociais e efetivação dos direitos fundamentais, conquistados ao longo das diversas lutas históricas por igualdade e liberdade 16.

Em sua obra, o autor evidencia os paradoxos entre o conteúdo das declarações dos direitos do homem e do cidadão admitidas pelas nações ocidentais e aquilo que concretamente se é efetivado pelos governos. Para Bobbio, a simples menção dos direitos em declarações, constituições ou tratados internacionais, sem a concreta ação Estatal, não teria serventia alguma para os povos, o que evidencia uma das grandes contradições do ocidente.

Crítico do sistema democrático, como ora se implementa, defende uma constante análise filosófica sobre o modo como a política é articulada, sobretudo em como a democracia é exercida, como se percebe no trecho abaixo de seu livro “O futuro da democracia”: Num escrito de alguns anos atrás, ocupei-me dos "paradoxos" da democracia, isto é, das dificuldades objetivas em que se encontra uma correta aplicação do método democrático exatamente nas sociedades em que continua a crescer a exigência de democracia. Para quem considera a democracia como o ideal do "bom governo" (no sentido clássico da palavra, ou seja, no sentido de que ela está melhor capacitada do que qualquer outro para realizar o bem comum), outro tema objeto de contínuo debate é o que se poderia chamar de os "insucessos" da democracia. Grande parte do que hoje se escreve sobre democracia pode ser incluído na denúncia, ora amargurada ora triunfante, destes insucessos. Nela cabem o tema já classico da teoria das elites e o tema ainda mais clássico do contraste entre democracia formal e democracia substancial. Nela cabe, enfim, o tema da ingovernabilidade, que emergiu nestes últimos anos. (BOBBIO, 1986, p.83)

Sua crítica se dirige ao fato de não corresponder a democracia com sua proposta ideológica, de “governo de todos”, dado o insucesso de sua hodierna implementação: Durante séculos, de Platão a Hegel, a democracia foi condenada como forma de governo má em si mesma, por ser o governo do povo e o povo, degradado a massa, a multidão, a plebe, não estar em condições de governar: o rebanho precisa do pastor, a chusma do timoneiro, o filho pequeno do pai, os órgãos do 16

Bobbio é um dos maiores estudiosos dos direitos humanos modernos, criador da já famosa categorização Bobbiana dos direitos humanos em quatro gerações, sendo eles respectivamente: Individuais, Coletivos, da Solidariedade e de Manipulação Genética.

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corpo da cabeça, para recordar algumas das metáforas tradicionais. Desde quando a democracia foi elevada à condição de melhor forma de governo possível (ou da menos má), o ponto de vista a partir do qual os regimes democráticos passaram a ser avaliados é o das promessas não cumpridas. (BOBBIO, 1986, p.100)

Embora Bobbio (1992) defenda a preservação dos direitos do homem como conquistas inalienáveis e a democracia como melhor meio para persecução destas, questiona, sistematicamente, a validade e continuidade deste regime de soberania do povo, uma vez que a participação de “todos” é sempre limitada a uma representatividade defeituosa e por vezes desonesta, que compromete o alcance do bem comum como finalidade maior deste Estado.

Bobbio (1992) defende uma teoria política socialista liberal, onde coexistem elementos do socialismo e do capitalismo liberal, comportando uma economia mista que vem a favorecer uma economia de livre mercado.

Assim como Bobbio (1986), defendem os autores deste artigo o contínuo questionamento acerca da funcionalidade da democracia 17, forma de governo que exalta a participação de todos, todavia não implementada, quando consideradas as democracias representativas que cobrem a maior parte dos países democráticos.

A proposta da democracia representativa é em si mesmo bastante simples: nela o poder soberano do povo é exercido por representantes, designados por este mesmo povo através de um sistema de escolha, um sistema eletivo onde são outorgados mandatos para atuação em nome deste povo e legitimados por meio desta autoridade delegada. É pertinente frisar, aqui, que o sistema ora vigente em muito se aproxima das ideias presentes nas teorias políticas de Hobbes e Kant no aspecto da legitimidade na atuação do soberano.

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É sabido haver diversas variantes de democracias no mundo, todavia duas formas básicas interessam ao conteúdo destas observações, ambas relacionadas ao corpo inteiro de todos os cidadãos elegíveis, aptos a executarem sua vontade. A primeira forma de democracia que interessa a este artigo é a democracia direta, em que todos os cidadãos elegíveis têm participação direta e ativa na tomada de decisões do governo. Já a segunda manifestação de democracia ocorre na maioria das democracias ocidentais modernas, onde todo o corpo de cidadãos elegíveis permanecem com o poder soberano, porém este - o poder político - é exercido indiretamente por meio de representantes eleitos, o que é chamado de democracia representativa.

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Quando comparada à democracia praticada na Grécia antiga, percebe-se que a participação no processo democrático nessa era limitada a apenas alguns membros da sociedade 18, enquanto que, na democracia representativa atualmente desenvolvida no ocidente, o sufrágio universal se propõe a garantir a participação de toda população ou de grande maioria dela 19. Porém, qualitativamente falando, os mecanismos que forjam esta democracia representativa limitam a compreensão e participação da população em outros aspectos além daqueles voltado à escolha da representação.

A democracia representativa estabelece, estrutural e permanentemente, uma separação entre dirigentes e dirigidos20. Um dos meios pelos quais se reforça esta separação entre dirigentes e dirigidos está nos conhecimentos técnicos necessários àqueles que irão representar o "povo", além de toda a estrutura burocrática que se requer para que se estabeleça um diálogo frutífero entre governo e governados.

Ausente de conhecimento técnico-político e desprovida da necessária habilidade reflexiva para acompanhar e averiguar os processos político-sociais, permanece a população alheia ao que acontece consigo mesma, no curso dos regimes políticos implementados, o que configura para Norberto Bobbio (1986) uma das grandes máculas deste formato de democracia.

O filósofo político Italiano analisa ainda as formas como o poder decorrente desta representatividade se manifesta, numa estrutura que ele chama de “tipologia moderna das formas de poder”, dividindo-o em poder econômico, poder ideológico e poder político, que são para o autor instrumentos necessários para a implementação dos objetivos governamentais. Todavia Bobbio despende crítica ao modo pelo qual os poderes ideológico e político convergem para a manutenção do poder.

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Platão acreditava que nem todos os integrantes da sociedade estavam aptos a participar da política; apenas os intelectualmente lúcidos, que seriam os filósofos e os reis filósofos. 19 Nas democracias em que o sufrágio é obrigatório, o número de participação popular é efetivamente maior, porém nas sociedades onde o voto é facultativo, como nos Estados Unidos, a participação reflete nitidamente a parcela da população que deseja participar do processo político. 20 Separação que em muito se assemelha à proposta política de Hobbes

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Em outra de suas obras - “As teorias das formas de governo” -, Bobbio (2001) complementa a crítica que realiza em “Teoria geral da política”, quando pontua que o fator “medo” é comumente utilizado pelo poder ideológico para reforçar a ideia de distanciamento entre dirigentes e dirigidos: Aproveito porém a oportunidade e chamo a atenção para a importância histórica que terá o princípio do medo como integrante da categoria do despotismo, meio século depois da publicação da obra de Montesquieu. [...] o terror é necessário para instaurar o reino da virtude [...] a república democrática. Robespierre dirá, num discurso célebre, que "a mola do governo popular na revolução é ao mesmo tempo a "virtude" e o "terror": a virtude, sem a qual o terror é funesto; o terror, sem o qual a virtude é impotente". (BOBBIO, 2001. p.122)

Em seu discurso Bobbio (2001) comenta ser o medo difundido pelos governantes, em suas mais variadas manifestações, um poderoso recurso utilizado para assegurar a manutenção do Estado, bem como a preservação de suas estruturas e instituições, ideia claramente percebida quando o autor comenta sobre o monopólio e exclusividade do uso da força pelo Estado, por meio do consentimento da sociedade organizada, tendo em vista a persecução do bem comum.

Muito embora teça reiteradas críticas ao Estado e à democracia, Bobbio (1986) defende sua importância, levando aquele que analisa sua teoria política a perceber o real objeto de sua crítica, qual seja: a forma como se manifesta a democracia e não ela em si mesmo: O estado é um mal necessário, mas é um mal. Não se pode deixar de lado o estado, e portanto nada de anarquia, mas a esfera a que se estende o poder político (que é o poder de colocar na cadeia as pessoas) deve ser reduzida aos termos mínimos. Contrariamente ao que se afirma habitualmente, a antítese do estado liberal não é o estado absoluto, se por estado absoluto se entender o estado em que o poder do soberano não é controlado por assembléias representativas, é um poder que vem de cima para baixo. A antítese do estado absoluto é o estado democrático, ou mais exatamente o estado representativo, que através do progressivo alargamento dos direitos políticos até o sufrágio universal se transforma pouco a pouco em estado democrático. (BOBBIO, 1986. p.121)

Norberto Bobbio(1986) defende a permanência da democracia, mas evidencia suas falhas ao perpetuar o distanciamento entre dirigentes e dirigidos, pela alienação ideológica fomentada pelo uso excessivo do poder político e mal gerenciamento de seus fins, como mínimo provimento educacional por exemplo. No entanto, assim como grande parte dos filósofos e filósofos políticos, Bobbio (2001) acreditava que o uso racional da reflexão, voltada à análise do modo como a política se manifesta, por parte de todos os integrantes da população, seria o 15

único meio pelo qual a democracia pode se apresentar como efetiva forma de governo de todos e soberania do povo. Em seu prefácio para a edição brasileira do seu livro “A teoria das formas de governo”, ele convida os “estudantes” ao diálogo com o objetivo de dividir sua compreensão acerca deste tema e, dos demais convergentes, ao tempo em que conclama a todos à reflexão contínua: [...] Parecia chegado o momento de fazer entender aos estudantes tão inflamados quanto despreparados que a política era uma outra coisa e que, com certeza, era importante transformar o mundo, mas, para transformá-lo para melhor e não para pior, era necessário antes de tudo compreendê-lo. Para compreendê-lo, era preciso estudar, relacionar os problemas do presente aos do passado, definir os conceitos fundamentais para evitar as superficialidades e as confusões, dar-se conta de que a história, com seus problemas não resolvidos, não recomeça a cada geração; em suma, fazer da política um objeto de análise racional e não apenas uma ocasião de desabafos passionais, de projetos fantasiosos, de controvérsias desprovidas de finalidade e infecundas. [...]. (BOBBIO, 2001. PREFÁCIO)

O conteúdo da teoria política de Bobbio(2001) aponta para caminhos de reflexão sobre a forma pela qual a democracia e seus mecanismos se materializam e, antes disto, o modo como a população interage com todo este processo, que teoricamente deveria ser o soberano do qual emana a vontade que define o curso do “agir político”, porém, no campo prático, é deixado à margem das decisões ou, em tantas outras situações, vitimado por um mal gerenciamento político.

2.4 O SILÊNCIO FILOSÓFICO E SEUS EFEITOS

De modo recorrente tem-se uma má compreensão do fragmento de texto de Platão, na “República”, quando este trata do perfil ideal para o líder grego: [...] Enquanto os filósofos não forem reis nas cidades, ou aqueles que hoje denominamos reis e soberanos não forem verdadeira e seriamente filósofos, enquanto o poder político e a filosofia não convergirem num mesmo indivíduo, enquanto os muitos caracteres que atualmente perseguem um ou outro destes objetivos de modo exclusivo não forem impedidos [...] de agir assim, não terão fim [...] os males das cidades, nem, conforme julgo, os do gênero humano, e jamais a cidade que nós descrevemos será edificada. Eis o que eu hesitava há muito em dizer, prevendo quanto estas palavras chocariam o senso comum. De fato, é difícil conceber que não haja felicidade possível de outra maneira, para o Estado e para os cidadãos. (PLATÃO, Republica; p.214)

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Quando Platão especifica que apenas filósofos poderiam ser reis e os reis somente poderiam permanecer como tal, quando finalmente tornarem-se “verdadeiros e sérios” filósofos, está na verdade o pensador expandindo a destinação da atuação política para todos aqueles que estejam aptos a realizar a critica peculiar ao pensamento filosófico. Hessen (2000, p.8) ao comentar o pensamento platônico ressalta esta percepção ao afirmar que em Platão “tanto o agir do estadista quando do poeta ou do cientista tornam-se igualmente objetos da reflexão filosófica”. Definindo assim a filosofia de Platão como a “auto-reflexão do espírito a respeito de seus mais altos valores teóricos e práticos”.

Pode então concluir-se que desde Platão já se sinalizava a necessidade de toda a população participar do fenômeno político, no entanto, para implemento de tal desafio, faz-se imprescindível o mínimo de exercício crítico para mais ampla compreensão do processo.

Quando o contrato social é firmado e cria-se este fenômeno jurídico conhecido como Estado, teoricamente tem-se a determinação de que um seleto grupo de pessoas exercerá o poder de governar, efetivando o agir na polis. Todavia, segundo as ideias mais basilares de Platão, ao apresentar seu modelo de governo ideal, não poderia haver governo justo se o povo padece em ignorância sobre todas as coisas que o cercam, não podendo este povo que delega, desconhecer os mecanismos pelos quais se constrói e mantém este Estado. Finalmente, Platão registra em sua obra a incapacidade momentânea do povo em compreender os desdobramentos políticos. No entanto aponta uma direção para a mudança: Não acuses em demasia a multidão. Ela mudará de opinião se, em lugar de a provocares, a aconselhares e, refutando as acusações contra o amor e a ciência, lhe indicares aqueles a quem denominas filósofos e lhe definires, como fazemos, a sua natureza e profissão, para que não pense que lhe falas a respeito dos filósofos tais como ela os concebe. Quando a multidão puder enxergar as coisas assim, não crês que mudará de opinião e responderá de modo diferente? (PLATÃO, Republica p.248)

Certamente o distanciamento e ignorância da população acerca dos temas políticos ocasiona seu silêncio, a não participação efetiva, limitando-a apenas a uma mera escolha representativa, que se esvazia em si mesma, quando tais representantes passam a agir de modo adverso aos anseios de seus outorgantes. 17

O silêncio filosófico passa então, neste contexto, a ser mais que a mera ausência de uma voz reflexiva, mesmo porque tais vozes sempre existiram, como as aqui citadas. O silencio a que se reporta este artigo é aquele que se origina da incapacidade de compreensão, da inépcia na auto-reflexão deste povo que, dito soberano, desconhece sua própria composição e por conseguinte permanece alienado acerca desta aludida soberania. Resta assim a democracia como um governo mau, nas palavras de Bobbio (1986, p.100), por permanecer o povo degradado, por continuar “massa” e não dispor das condições necessárias à governabilidade; condições estas, segundo Platão, ligadas diretamente à capacidade de reflexão, de compreensão de mundo, que apenas a filosofia seria capaz de prover, daí sua afirmação de que apenas filósofos-reis poderiam governar. No entanto, como bem assevera Bobbio, no governo democrático todo o povo é em si mesmo o soberano, logo deve este estar apto a governar, do contrário padecerá em um mau governo. Assim, deve o povo estar apto a exercer a crítica filosófica, sob pena de não perdurar a própria democracia. Não estranhamente percebe-se, em larga escala nos países ocidentais democráticos, um alto grau de corrupção e pobreza, além de outros problemas sociais, como péssimos sistemas educacionais. No caso específico da corrupção, verifica-se, lamentavelmente, o grave silêncio das próprias instituições de ensino superior. Ramos (2014), em sua tese de doutoramento, enfatiza esta situação: O tema da corrupção é provocativo e desafiante por as instituições de ensino superior recusarem admitir que está instalada, seja qual for o modo de configuração, e por evitarem tornar público os casos verificados, considerando um descaso problemático e meramente pontual. Nestas instituições a corrupção é encarada impressionistamente e apontada como excepção, ao contrário da corrupção no exercício político, onde se crê generalizada por violação das leis, pelo abuso de poder, pela posse do património público para atender a interesses privados, em detrimento dos interesses colectivos, e pelo desvio do orçamento público em prejuízo do fim social estabelecido. (RAMOS. 2014, p.7)

Portanto resta nítida a carência de todo o povo pelo exercício do saber filosófico, do método filosófico aplicado à percepção do fenômeno político, numa necessária interdisciplinaridade que possa prover os meios necessários à real implementação da soberania popular e consequentemente, manutenção do sistema democrático.

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3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Abordaram-se, inicialmente, as bases das teorias políticas que fundaram os atuais regimes governamentais do ocidente, tratando dos conceitos políticos elementares propostos por Platão e Aristóteles e avançando para o momento histórico em que, superada a crise medieval, passam os governos à busca por novas alternativas, mais similares aos governso gregos, onde a prosperidade intelectual era notória. Neste contexto surgem teorias políticas que evidenciam a figura do soberano como meio para unificar e gerir os povos, como as de Maquiavel, que exaltam e isolam o soberano para, mais adiante, legitimar a figura e atuação do governo, pensando então um regime jurídico que respalda as decisões e atuação estatal. O fenômeno político por fim evolui para os formatos liberais democráticos, ora vigentes, onde o distanciamento entre dirigentes e dirigidos é amplamente fortalecido pelos próprios mecanismos estruturais deste Estado, numa flagrante contradição conceitual que evidencia uma democracia onde o governo emana, efetivamente, apenas de um reservado grupo detentor do conhecimento necessário para tal, a despeito da mais plena ignorância daqueles que, em tese, deveriam ser os senhores do “agir na cidade”.

Por fim, foram retomados conceitos essenciais de democracia que levaram à percepção segundo a qual o povo deve compreender e participar dos processos políticos nos quais está inevitavelmente envolto, percebendo os meios pelos quais isto poderia ocorrer, quando abordadas as questões pertinentes à importância do exercício filosófico, como ferramenta interdisciplinar 21, para a manutenção dos fundamentos democráticos. Resta, pois, evidente a necessidade urgente de inclusão de todo o corpo social no processo político, por meio da filosofia, que pode, finalmente, prover os meios de que precisa o povo para compreender tanto a si mesmo, nas suas características e peculiaridades, quanto o próprio fenômeno organizacional visto a longo prazo. A ausência da reflexão filosófica e do saber filosófico tem levado os que são “dirigidos” a um relativo estado de alienação política, seja pelo seu desencanto com relação aos “dirigentes”, constatado por um silêncio premeditado, ainda que carregado de ostensiva indignação, ou 21

Interdisciplinaridade necessária, dada a complexidade do fenômeno político e da autonomia das ciências sociais, envolvidas no processo.

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talvez revelando uma ignorância bem nutrida do sistema político-social – avaliada como gravidade social. Considera-se ainda mais grave verificar-se que esses dirigentes da cidade e da política são, via de regra, intelectualmente esclarecidos, mas que, ao mesmo tempo, revelam uma prática político-social insensível e corrupta, extremamente danosa ao povo. Tal fato configura um paradoxo político-social que grande parte da sociedade silencia, o que tem apontado para a premente necessidade de desenvolverem-se estudos mais aprofundados sobre a questão aqui tangencialmente trabalhada e outras que lhe são afins.

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REFERÊNCIAS

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BARKER, Sir Ernest. Teoria Política Grega. Tradução de Sérgio Fernando Guarischi Bath. Brasília: Unb, 1978.

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GOLDMANN,Lucien. Epistemologia e Filosofia Política. Lisboa: Editorial Presença, 1978.

HESSEN, Johannes. Teoria do Conhecimento. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

HOBBES, Thomas. Leviatã ou Matéria, Forma e Poder de um Estado Eclesiástico e Civil in Hobbes, tradução de João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva. São Paulo: Abril Cultural: 1999.

KANT, Immanuel. A Metafísica dos Costumes. Tradução de Edson Bini. Bauru: Edipro, 2003.

_____. A Paz Perpétua Um Projeto Filosófico. In A paz perpétua e outros opúsculos. Tradução de Artur Morão. Lisboa: Edições 70, 1990. 21

PLATÃO. A República. Tradução de Maria Helena da Rocha Pereira. 7.ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1993.

SENELLART, Michel. As Artes de Governar. Tradução de Paulo Neves. São Paulo: Editora 34, 2006.

VERNANT, Jean-Pierre. As Origens do Pensamento Grego. 16.ed. Rio de Janeiro: Difel, 2006.

RAMOS, Zélia Maria Xavier. A vulnerabilidade das instituições de ensino superior à corrupção. Tese apresentada à Universidade de Évora, Portugal, 2013.

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