A Atualidade em Os Maias

July 7, 2017 | Autor: Henrique Monteiro | Categoria: Eça de Queirós
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Profecias d' Os Maias

Henrique Monteiro e Irene Fialho

Se Os Lusíadas são a epopeia dos feitos dos portugueses, Os Maias são
o romance dos defeitos de Portugal. Nenhum outro livro é tão abrangente na
crítica ao conjunto da sociedade, na censura a hábitos enraizados, nos
reparos aos tiques sociais. Poucas figuras escapam, sejam elas políticos,
escritores, poetas, jornalistas ou simples espetadoras de corridas de
cavalos. Não fica pedra sobre pedra e o que resta tem verdete, humidade,
sobrecasaca fora de moda, sinais de envelhecimento. Vejam, por exemplo, a
desolada descrição da casa do Ramalhete no final da obra, quando Carlos,
depois de 10 anos a viajar, regressa a Lisboa e, com João da Ega, seu amigo
de sempre, desce a correr a rampa de Santos, em direção ao 'Americano',
apesar de ter acabado de dizer que nem por uma fortuna aceleraria o passo.

Páginas antes, os dois amigos remiraram toda Lisboa. Passaram por
velhos conhecidos, o Eusebiozinho, o Dâmaso Salcede, tomaram boa nota da
nova Avenida da Liberdade que substituiu o Passeio Público; revisitaram a
Baixa e o Chiado e sentaram-se a olhar os altos da Graça, a Penha de
França. Então, Carlos pergunta a João da Ega: o que resta? Restava a Penha
de França, na época apenas umas hortas. Eis o que permanecia. Como alguns
anos depois Eça insistiu, n' A Cidade e as Serras, em Portugal apenas vale
o genuíno, ainda que atrasado e baço, o paio com ervilhas que Carlos da
Maia e João da Ega recordavam com gula e saudades ao descer a rampa de
Santos.

Os Maias é o romance que corresponde ao total despejar de um saco que
Eça de Queirós transportava repleto. Em novelas como A Capital! ou O Conde
de Abranhos - e outras, projetadas pelo autor, que nunca chegaram a ver a
luz do dia e que fariam parte de umas programadas "Cenas da Vida
Portuguesa" -, os pequenos e particulares defeitos de cada atividade, de
cada área, de cada nicho da sociedade seriam desenhados e retocados com a
inteligência aguçada e visão focada do autor. Mas em Os Maias, Eça decide,
finalmente, condensar num romance de 800 páginas, escritas ao longo de 10
anos, tudo aquilo que inicialmente pensara dividir pelas várias histórias
das "Cenas".

É por isso que o velho Palma Cavalão já está em A Capital!, que o
solícito Dâmaso Salcedo já dá sinais em A Tragédia da Rua das Flores e que
o pomposo Gouvarinho não é totalmente alheio a Abranhos, como o não é a
Pacheco d' A correspondência de Fradique Mendes, como todos eles, na sua
vacuidade intelectual, fazem lembrar o célebre Conselheiro Acácio d' O
Primo Basílio.

A atualidade de Os Maias é tanto maior quanto o país insiste em ser o
mesmo, em não se regenerar, em não sarar os seus males nem curar as suas
doenças. Decadente, como surge o Ramalhete no início do romance, também
Portugal tem pequenos momentos de esplendor mais ou menos pechisbeques (a
casa será abrilhantada por uma decoração inglesa) para mais tarde reincidir
no desmazelo. Como no ciclo da pimenta, e depois do ouro do Brasil e, mais
recentemente, no dos fundos comunitários, o Ramalhete, cujo nome vem de um
painel azulejos com um ramo de girassóis, simbolicamente no lugar da casa
que pertenceria ao brasão, sente-se, por breves períodos, próspero e
equivalente ao melhor que há lá fora… Mas logo se resigna a ser de novo a
construção decadente, empoeirada, desalentada, sombria, imprópria.
Condizente com esta pátria e os seus indígenas.

Este ciclo, que intercala momentos de exaltação numa linha contínua de
depressão resume-se, como todos sabem, na cena final. Desistentes,
afirmando-se incapazes de apressar o passo em nome de qualquer riqueza,
assegurando que tudo é ilusão e sofrimento, Carlos e Ega desatam a correr
calçada abaixo para apanhar um transporte público - estão atrasados para um
jantar mundano.

Em 1888, ano em que o romance é publicado, a crise portuguesa aproxima-
se do clímax do Ultimatum inglês que, em 1891, destrói o que resta do
orgulho imperial e mata a esperança numa regeneração sonhada desde meados
do século. Lisboa é postiça, os seus habitantes são pindéricos e incultos
e, se algo se salva, é o campo e as suas gentes, que Eça pintará com cores
talvez demasiado favoráveis n' A Cidade e as Serras, exaltando a
simplicidade, e n' A Ilustre Casa de Ramires, que retrata a falida
infortuna da nobreza lusa. Em Os Maias, cuja ação tem Lisboa por palco (e
um pouco de Sintra, onde o poeta Alencar, o lúgubre ultrarromântico, deixa
"mil ais" em Seteais) as personagens são todas risíveis, talvez à exceção
dos incestuosos irmãos Carlos e Maria Eduarda.

Comecemos pela política. Lá temos o Gouvarinho, o Conde de Gouvarinho,
ministro e par do reino, bigode com cera, pera curta. "Tem todas as
condições para ser ministro: voz sonora (…) e é um asno!". Incapaz de
compreender as subtilezas de Ega (que alguns consideram ser o autor
colocado na obra) era um bruto, incluindo a falar de mulheres, o que já
antevê o moderno tema do machismo. Mas acima de tudo era um patrioteiro. "A
inveja que nos têm todas as nações, por causa da importância das nossas
colónias e da nossa vasta influência em África" vociferava. Quantos dos
atuais políticos e comentadores ali estão retratados? A célebre importância
africana, a célebre possibilidade africana, as nossas "grandes glórias" que
a besta do ministro da Marinha, o Gouvarinho, proclamava são hoje, e foram
ao longo dos 125 anos que passaram desde a publicação do livro, loas
cantadas a várias vozes, por diversas vozes, mas sempre sonoras vozes.
Chega a ser um consolo saber que o espírito não morreu. Que continuamos
invejados, ainda que azarados pela nossa pequenez territorial e pela falta
de uma marinha de guerra.

O funcionalismo, do Sousa Neto, também não escapa. Esse mesmo Sousa
Neto que não faz ideia de quem é Proudhon e que considera o amor "um
assunto escabroso", explode com João da Ega: "É meu costume, Sr. Ega, não
entrar em discussões e acatar todas as opiniões alheias, mesmo quando elas
sejam absurdas". Ora aí está como um Estado de Sousa Netos pode ser
kafkiano. Nada se discute e tudo se acata, mesmo o absurdo. Apesar disso, o
fidelíssimo funcionário tem sobre os ingleses uma opinião que é comum em
Portugal (e de certa forma na Europa do Sul, ainda hoje), a de que se trata
de um povo de comerciantes. "Tudo gente de negócio" como vinca, ao saber
que naquelas paragens a norte, onde há excesso de frio e carvão, escasseiam
os folhetinistas e poetas de pulso que existem entre nós.

O nosso funcionalismo aí está, mais interessado no lirismo do que na
prática do negócio ou na obtenção de resultados. Não por ter interesses
culturais mas, pelo contrário, por não ter incentivos que prestem, por não
ter meios que lhe permitam "ter visto sequer Badajoz".

Passemos ao jornalismo, para que não nos fiquemos a mofar dos outros
sem rir de nós. Lá temos o Palma Cavalão, que faz num antro um jornal que é
uma porcaria. "A Corneta do Diabo" é uma folha imunda onde se publicam, a
troco de dinheiro e favores, os escândalos dos adversários. Já não temos
disso – tão à descarada! Embora na subtileza das cornetas e de outros
instrumentos menos estridentes, mas talvez mais insinuantes, ainda passeie
a perfídia e a falta de moral de um jornalismo corrupto. Quando o Palma, o
vil Palma, publica, a troco de dinheiro, um artigo visando Carlos da Maia,
só resta uma maneira de lidar com o mal: comprar toda a edição e por essa
via dar ainda mais dinheiro ao Palma.

O Palma, que é um aprofundamento soez de todos os jornalistas vendidos
que já haviam surgido na obra de Eça, merecia, senão a estátua de precursor
de um estilo, pelo menos a de seu símbolo. Não viria menos a-propósito do
que a representação do cauteleiro que está ali por bandas do Bairro Alto,
em pleno Largo da Misericórdia.

Há também o Esteves, o arquiteto que é também político e, claro - como
todo o bom português –, compadre do procurador dos proprietários do
Ramalhete, o Vilaça. É ele que começa as obras de restauro do palacete. E
fá-lo em grande, atrasando-se com o projeto de uma escada aparatosa,
flanqueada por duas figuras que simbolizam as conquistas da Guiné e da
Índia – sempre presente este glorioso passado cantado pelos Gouvarinhos e
por algumas glórias da Comunicação Social de hoje. Esteves idealizou ainda
uma cascata de louça na sala de jantar – coisa que, aliás, Rafael Bordalo
Pinheiro havia de fazer no Palacete da viscondessa da Regaleira, ali à
Estrada de Benfica, no Palácio do Beau-Sejour, hoje propriedade da Câmara
Municipal de Lisboa e sede do Gabinete de Estudos Olisiponenses. Lá está
ainda para quem a quiser ver…

Inesperadamente, porém, Carlos traz um arquiteto e decorador inglês
que destrona o Esteves, levando-o a correr à sede do seu partido político
clamar alto e bom som que o país está perdido. Também o compadre Vilaça
chora a desconsideração do amigo, conseguindo pelas súplicas dar ao seu
protegido, para que nem tudo se perca, a edificação das cocheiras do
Ramalhete. Esteves ia aceitar, mas na mesma altura a Pátria nomeou-o
Governador Civil.

E há o Dâmaso, o Salcede, não o Guedes, porque como dizia o Neves,
redator do jornal 'Tarde', contraponto da Corneta, mas nem por isso melhor,
"quando se diz o Dâmaso é o Guedes!...". O Salcede é um gordalhufo, janota
que tem uma propriedade em Sintra. "Um manganão que nos entalou na eleição
passada; fez gastar ao Silvério mais de trezentos mil réis!". Pois era,
precisamente, desse Dâmaso "frisado como um noivo de província" que falava
Ega, portador de uma carta em que o dito se humilhava e se confessava
bêbado a fim de pedir desculpas a Carlos da Maia. E o bom Neves, que ao
pensando tratar-se do seu amigo Dâmaso Guedes estava a pensar em
liminarmente recusar a publicação de tal coisa, muda de ideias e grita para
o ajudante: "Ó Pereirinha, olhe aqui o Sr. Ega. Tem aí uma carta para sair
amanhã, na primeira página, tipo largo…". O Salcede é o nouveau-riche,
deslumbrado, vigaristazinho, cobardolas, conviva da alta sociedade que, em
simultâneo alinha com companhias reles e adora glorificar-se com as viagens
a Paris e com o tio que é supostamente bem colocado. Tem uns cartões-de-
visita que são objetos complexos e vistosos onde pontifica o nome em caixa
alta DÂMASO CÂNDIDO DE SALCEDE, e logo por baixo COMENDADOR DE CRISTO. A
morada riscada da Rua de São Domingos à Lapa faz sobressair a que vem
manuscrita a tinta azul: Grand Hôtel do Boulevard des Capucines, Paris.
Para Salcede Lisboa era chinfrim (palavra muito de Eça) e Paris sim, um
local onde se podia viver. E onde vive Mr. de Guimaran, o seu supostamente
poderoso tio, o Sr. Guimarães, que o sobrinho diz íntimo de Gambetta, de
Rochefort e de Mac-Mahon, dos republicanos no poder em França na época.
Caramba! Todos nós conhecemos um Salcede atual. Com amigos em França e
tudo… E nem é preciso puxar muito pela cabeça!

Termos o banqueiro, o Cohen (o nome judeu dá-lhe a misteriosa
perversidade que têm os mercados financeiros). Os empréstimos, em Portugal,
declara ele para satisfazer a curiosidade dos circunstantes, constituem
hoje "uma fonte de receita, tão regular, tão indispensável, tão sabida como
o imposto". E remata com uma frase que se podia mandar escrever no Arco da
Rua Augusta: "A única ocupação mesmo dos ministérios é esta – cobrar o
imposto e fazer o empréstimo". Cohen não tem dúvidas: assim havemos de
continuar. E continuámos!

É por isso que as páginas d' Os Maias cada vez mais se confundem com a
realidade, as suas personagens com os protagonistas atuais, as frases
compostas por Eça com as que são ditas pelos diversos comentadores que nos
surgem na televisão, peritos em tudo. É de novo Cohen a proclamar:

"- Ah! Sobre isso, ninguém tem ilusões, meu caro senhor. Nem os
próprios ministros da Fazenda!... A bancarrota é inevitável; é como quem
faz uma soma...(…) A bancarrota é tão certa, as coisas estão tão dispostas
para ela – continuava Cohen – que seria mesmo fácil a qualquer, em dois ou
três anos fazer falir o país".

Note-se que durou exatamente três anos a falir, com a declaração de
insolvência de 1891.


João da Ega não queria outra coisa! Desejava a bancarrota, sonhava com
a bancarrota porque ela provocava-lhe o devaneio da pós-bancarrota, uma
espécie de paraíso reencontrado. Pede, por isso, a Cohen a receita da
insolvência.

O banqueiro dá-a, desta forma extraordinária, se vista com os olhos de
hoje: "Nas vésperas de se lançarem os empréstimos haver duzentos maganões
decididos que caíssem à pancada na municipal e quebrassem os candeeiros com
vivas à República; telegrafar isto em letras bem gordas para os jornais de
Paris, de Londres e do Rio de Janeiro; assustar os mercados, assustar o
brasileiro, e a bancarrota estalava (…)". Só que, avisa, isso não convém a
ninguém!

Ega protesta com veemência. Como não convém a ninguém? Ora essa! Era
justamente o que convinha a todos! À bancarrota seguia-se uma revolução,
evidentemente. Um país que vive do subsídio, em não lho pagando, agarra no
cacete; e procedendo por princípio, ou procedendo apenas por vingança – "o
primeiro cuidado que tem é varrer a monarquia que lhe representa o calote,
e com ela o crasso pessoal do constitucionalismo. E passada a crise,
Portugal, livre da velha dívida, da velha gente, dessa coleção grotesca de
bestas..."

E por esse caminho ia o debate. Cohen considerava que nem todos eram
bestas e Ega, bem-educado, lembrando a amizade que unia alguns deles a
Cohen e a outros amigos seus, concedia que alguns tinham talento e saber.
Ega sume-se, ou melhor, congela, em 1888, com a publicação do romance, mas
o seu alter ego, que dizem ser Eça, morre em 1900. Nenhum deles soube que a
coleção de bestas jamais abandonou o país. Além disso, nenhuma bancarrota
ou simples ameaça dela o regenerou.

Ega não era, digamos, um revolucionário vulgar, uma vez que defende
igualmente a invasão espanhola – e quantos, ainda hoje, a temem! São os
mesmos que poriam as conquistas da Guiné e a da Índia numa escadaria. Mas
porque defenderia Ega, nascido em Celorico, que a Espanha nos invadisse?
Porque entendia que, caso fôssemos sovados e humilhados, arrasados,
escalavrados, teríamos de fazer um esforço desesperado para viver. E era
assim que, "Sem monarquia, sem essa caterva de políticos, sem esse tortulho
da inscrição, porque tudo desaparecia, estávamos novos em folha, limpos,
escarolados, como se nunca tivéssemos servido. E recomeçava-se uma história
nova, um outro Portugal, um Portugal sério e inteligente, forte e decente,
estudando, pensando, fazendo civilização como outrora... Meninos, nada
regenera uma nação como uma medonha tareia... Oh ! Deus de Ourique, manda-
nos o castelhano."

Estas coisas eram ditas sempre em confortáveis serões e saraus. Um
pouco como as revoluções de café antes do 25 de Abril e as que, mais
recentemente, são bem regadas a vinho alentejano e erva marroquina. Nada se
pratica, mas há teoria a rodos. E, de repente, a destruição criativa surge
como o raio purificador que, não podendo ser enviado por Deus, que esta
gente da revolução descai muito para o ateísmo, é lançada por golpes da
fortuna e por 'oportunidades revolucionárias' que nascem de uma crença
niilista antiga – muito mais antiga do que pretendem os seus defensores – e
que se resume no velho aforismo 'quanto pior melhor'.

Podem os leitores, por esta altura, entender que se andou de lupa e
pinça à procura de episódios que fizessem lembrar assuntos atuais. Podem
esquecer tal ideia. Em todo o romance sucedem-se episódios semelhantes.
Abram ao calhas e leiam. Lá encontrarão aquele que fala no canal x e o que
escreve no jornal w. E mais a desorganização da repartição z e a cretinice
do político y. É tiro e queda!

Veja-se como as revistas sociais, as nossas pindéricas revistas
sociais que, sem uma corte, sem verdadeiros ricos para endeusar, aplaudem
um andrógino de modos importados das barracas dos subúrbios, são tratadas
avant la letre. É no célebre episódio da corrida de cavalos no hipódromo de
Belém. Avance-se, direto à descrição:

"(…) estavam ali todas as senhoras que vêm no high-life dos jornais,
as dos camarotes de S. Carlos, as das terças-feiras dos Gouvarinhos. A
maior parte tinha vestidos sérios de missa. Aqui e além um desses grandes
chapéus emplumados à Gainsborough, que então se começavam a usar, carregava
duma sombra maior o tom trigueiro duma carinha miúda. E na luz franca da
tarde, no grande ar da colina descoberta, as peles apareciam murchas,
gastas, moles, com um baço de pó de arroz." De facto, nada é gracioso, nada
resplandece, apenas as peles murchas, gastas, moles…

É a célebre choldra, que leva o nativo a não fazer mais do que a
imitação: "O figurino da bota que veio de fora era levemente estreito na
ponta; por cá imediatamente o janota estica-o e aguça-o até ao bico do
alfinete. Por seu lado o escritor lê uma página de Goncourt ou de Verlaine
em estilo precioso e cinzelado; - imediatamente retorce, emaranha,
desengonça a sua pobre frase até descambar no delirante e no burlesco. Por
sua vez o legislador ouve dizer que lá fora se levanta o nível da
instrução; - imediatamente põe no programa dos exames de primeiras letras a
metafísica, a astronomia, a filologia, a egiptologia, a cresmática, a
crítica das religiões comparadas, e outros infinitos terrores. E tudo por
aí adiante assim, em todas as classes e profissões, desde o orador até ao
fotógrafo, desde o jurisconsulto até ao sportsman... é o que sucede com os
pretos já corrompidos de S. Tomé, que veem os europeus de lunetas - e
imaginam que nisso consiste ser civilizado e ser branco. Que fazem então?
Na sua sofreguidão de progresso e de brancura acavalam no nariz três ou
quatro lunetas, claras, defumadas, até de cor. E assim andam pela cidade,
de tanga, de nariz no ar, aos tropeções, no desesperado e angustioso
esforço de equilibrarem todos estes vidros - para serem imensamente
civilizados e imensamente brancos..."

Mas, claro, nem tudo pode ser semelhante passados 125 anos. Afinal
falamos de cinco gerações. Estão agora a nascer os trinetos e tetranetos
dos homens e mulheres que vicejavam por essa altura e muito se evoluiu - do
telefone à televisão e à internet; do avião que encurtou as distâncias e do
automóvel que se tornou indispensável. Seria natural que uma conversa
política fosse, também ela, irreconhecível nos nossos dias. Ora o nosso
Ega, justamente na altura em que vai entregar o pedido de desculpas de
Salcede ao jornal a Tarde – a peça há de ser publicada antes de uma outra,
sobre a reforma das pautas aduaneiras, porque o Neves grita ao Pereirinha,
que talvez insistisse em fazer um jornal com interesse público - "As
questões de honra antes de tudo!" – o Ega dizia assiste a uma discussão
política que mete o nosso Gouvarinho, logo ali defendido como possuidor de
enormes dotes parlamentares. No grupo pontificam deputados, assim
descritos:

"Em todos havia esse ar, conjuntamente apagado e desconfiado, que
marca os homens de província, perdidos entre as tipoias e as intrigas da
Capital. Vinham ali às noites, àquele jornal do partido, saber as novas,
beber do fino, uns com esperanças de empregos, outros por interesses de
terriola, alguns por ociosidade. Para todos o Neves era um «robusto
talento»; admiravam-lhe a verbosidade e a tática; decerto gostavam de citar
nas lojas das suas vilas o amigo Neves, o jornalista, o da 'Tarde'... ".

A conversa deriva para o jornalismo, e o que é mais para a crítica
literária, quando Ega troca umas ideias com Melchior, que no momento anda
às voltas com um texto sobre "o livro do Craveiro, os Cantos da Serra". Não
há revistas críticas em Portugal, é tudo um conjunto de despachos, números
da lotaria e política em "estilo mazorro ou estilo fadista". Melchior
concorda: "- Com efeito, murmurou Melchior, ninguém fala de nada, ninguém
parece pensar em nada...". E Ega não lhe dá descanso: "Certamente muito
desse silêncio provinha do natural desejo que têm os que são medíocres de
que se não aluda muito aos que são grandes. É a invejazinha reles e
rastejante! Mas em geral o silêncio dos jornais para com os livros provém
sobretudo de eles terem abdicado todas as funções elevadas de estudo e de
critica, de se terem tornado folhas rasteiras de informação caseira, e de
sentirem por isso a sua incompetência...".

E Melchior, que Ega prudente e muito portuguesmente excecionara da
descrição geral, concorda: "Calam-se também porque o público não se
importa, ninguém se importa". Mas Ega volta ao ataque: «Nós somos
incompetentes. Nós estamos bestializados pela notícia do Sr. conselheiro
que chegou ou do Sr. conselheiro que partiu, pelos High-lifes, pela
amabilidade dos donos da casa, pelo artigo de fundo em descompostura e
calão, por toda esta prosa chula em que nos atolamos... Nós não sabemos,
não podemos já falar duma obra de arte ou duma obra de história, deste belo
livro de versos ou deste belo livro de viagens. Não temos nem frases nem
ideias. Não somos talvez cretinos - mas estamos cretinizados. A obra de
literatura passa muito alto - nós chafurdamos aqui muito em baixo...».

Se a coisa vai neste nível no jornalismo literário, imagine-se no
político. E, mais do que isso, na própria política. Temendo algum processo
por alguém que venha lá do século XIX cheio de brios, aqui fica a citação:
"Meu caro, a política hoje é uma coisa muito diferente! Nós fizemos como
vocês os literatos. Antigamente a literatura era a imaginação, a fantasia,
o ideal... Hoje é a realidade, a experiência, o facto positivo, o
documento. Pois cá a política em Portugal também se lançou na corrente
realista (…) Hoje é o facto positivo, - o dinheiro, o dinheiro! o bago! a
massa! A rica massinha da nossa alma, menino! O divino dinheiro!"

E o que resta nesta choldra, na piolheira tão glosada pelo Conde de
Arnoso, que era, como Eça, um dos 'Vencidos da Vida'? O que resta, salvo as
hortas da Penha de França, os campos em Sintra, o genuíno português,
façanhudo mas reto?

Resta ainda o poeta! O Alencar! Apesar de vestir à antiga, de
sobrecasaca preta, não obstante a face escaveirada e os olhos encovados,
pese ser um ultrarromântico, ainda que critique o estilo realista de Eça de
modo contundente, como nesta frase que é uma das suas falas célebres em Os
Maias: - "Vocês estão gastando cera com ruins defuntos, filhos. O realismo
critica-se deste modo: mão no nariz! Eu quando vejo um desses livros,
enfrasco-me logo em água-de-colónia. Não discutamos o excremento".

O Alencar que escrevia no arrebique de luares e ais, cantando o
palácio de Sintra,

"Quantos luares eu lá vi!
Que doces manhãs de abril!
E os ais que soltei ali
Não foram sete, mas mil!"

Alencar permanece porque há nele uma genuinidade que Eça salienta.
Talvez por isso dedique umas linhas do romance à polémica de Alencar com
Craveiro (o dos Cantos da Serra) que simboliza as velhas querelas
literárias (ah! se houvesse a tal revista de crítica) do Bom Senso e Bom
Gosto, a Questão Coimbrã que moldara a sua juventude e que longe de, como
se pensa em jovem, trazerem uma nova aurora, trazem velhas afetações e
amaneiramentos, vaidades diversas e cópias ridículas

A Craveiro, que tinha despachado Alencar com este poema:

O Alencar de Alenquer
Que quer? Na verde campina
Não colhe a tenra bonina
Nem consulta o malmequer…
Que quer? Na verde campina
O Alencar de Alenquer
Quer menina!

(Que acabava de uma forma que o livro não revela, mas que se intui ser
violenta, pois contém os versos "O Alencar de Alenquer quer cacete").

O soturno poeta dois ais recomenda que se faça o que, provavelmente
também Eça nos aconselharia. É uma atitude prudente, passiva e o mais limpa
possível: Alencar "apenas arregaça as calças, deixando ver as ceroulas,
porque perante os dichotes que lhe dedicam faz o mesmo do que quando lhe
passa o enxurro da cloaca. Arregaça as calças e deixa passar…"

Como as hortas da Penha de França, como os campos de Sintra, como o
paio com ervilhas que apetece de morte a Ega e a Carlos quando ambos no fim
do romance desatam a correr pela rampa de Santos, no meio da Lisboa
postiça, do país chinfrim, "Alencar permanecia o único português genuíno",
tal como acaba por confessar João da Ega.

Porque conservava, apesar de intrujão, uma honestidade que lhe vinha
dos fundos, resistente. E a lealdade, e a bondade e a generosidade. "O seu
comportamento com a sobrinhita tinha sido tocante. Tinha mais cortesia,
melhores maneiras que os novos. Um bocado de piteirice não lhe ia mal ao
seu feitio lírico. E por fim, no estado a que descambara a literatura, a
versalhada do Alencar tomara relevo pela correção, pela simplicidade, por
um resto de sincera emoção. Em resumo, um bardo infinitamente estimável". O
velho Tomás de Alencar, o Alencar de Alenquer, no meio da pavorosa
decadência de Portugal, surge assim com "as proporções dum génio e dum
justo".

A choldra é, ao fim e ao cabo, diferente do que parece à primeira
vista. Eça acaba por fazer justiça também aos que a ele se opõem de forma
leal, honesta e correta. O essencial não é termos ideias pré-formatadas –
nem sobre a educação inglesa, nem sobre a decoração das casas, nem sobre a
moral que mata um amor entre dois irmãos que não se sabiam irmãos. A
essência é uma pureza de águas límpidas e de vidas simples.

Na choldra atual poderemos ainda vir a fazer justiça a alguém que
ainda não estamos a ver quem é? A algum Alencar?

A quem?

Isso dirão Vossas Excelências, que esta prosa por aqui se fica.
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